O mito do contrato escrito

June 4, 2017 | Autor: Raphael Fraemam | Categoria: Direito Civil, Contratos, Direito Privado, Direito Contratual, Teoria Geral do Direito Contratual
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O mito do contrato escrito

Vamos começar esse novo texto a partir de um exemplo prático. Suponhamos que Tício e Mévio celebram um contrato de compra e venda. Para ter mais segurança, eles colocam por escrito num papel, assinado por ambos, que: i) o pagamento será realizado de forma parcelada; ii) todo mês, Mévio realizará o pagamento das parcelas no local de trabalho de Tício; iii) a forma de pagamento será em espécie. Ocorre que, desde a primeira parcela, Mévio realiza o pagamento na residência de Tício e paga através de cheques. Vamos supor que Tício aceita o pagamento durante as primeiras seis parcelas e, na sétima parcela, resolve exigir que Mévio pague as parcelas seguintes no seu local de trabalho e em espécie. Diz a Mévio que não irá mais aceitar o pagamento em cheque e nem feito em sua residência porque não foi isso que eles colocaram por escrito no papel quando assinaram o contrato. O que ocorre se Mévio não aceitar mais as exigências de Tício? Ele tem que cumprir o que os dois acordaram e colocaram por escrito ou Mévio ainda poderá continuar pagando da mesma maneira que pagou as primeiras seis parcelas? Antes de responder a essas perguntas, façamos uma pausa na análise do caso e vamos a algumas reflexões sobre o direito contratual. Costuma-se pensar que contratos são acordos realizados por escrito com a presença, ao final do texto, da assinatura de cada uma das partes. Este seria o contrato finalizado e acabado. Cada um que assinou teria que cumprir tudo que foi colocado por escrito no papel, pois, caso contrário, sofreria as consequências estipuladas pelas próprias partes do acordo e pela lei. Bem, tenho uma novidade para quem acredita que o que foi descrito acima é um contrato: não, não é bem assim. Contratos são acordos de vontade. Simplesmente isso. Em linhas gerais, quando duas pessoas combinam alguma coisa, elas celebram um contrato. O ser humano contrata o tempo todo. Desde o momento que acorda até a hora de ir dormir, ele realiza diversos contratos.

Mesmo sem perceber, cada acordo de vontade celebrado é um contrato. Quando uma pessoa aceita uma carona da outra para algum lugar, ela celebra um contrato. Quando duas pessoas combinam de ir ao cinema juntas, elas celebram um contrato. Ao pagar a passagem do ônibus, o pão, o jornal, a água ao vendedor ambulante, a pipoca comprada no meio do trânsito, todos esses atos são contratos que foram celebrados. Ao aceitar que o flanelinha tome conta do seu carro, um contrato é celebrado. Quando você pede para alguém “tomar conta” de alguma coisa sua enquanto você vai ali, rapidinho, há a celebração de um contrato. Enfim, já deu para entender a ideia, né? Até quando você coloca o carro dentro de um estacionamento “gratuito” de uma loja e vai entrar só para dar aquela olhadinha, você celebrou um contrato. Contratos estão por todo o lugar e presentes no dia a dia de todos nós. Aprendemos a contratar desde pequenos e tudo isso é consequência da convivência em sociedade. “Ah, mas também tem aquele contrato todo escrito no papel e assinado, né? Esse é o contrato escrito, não é?”. Em linhas gerais, não é bem assim. Sabe o papel escrito que todo mundo chama de contrato? Ele não é efetivamente o contrato. Ele é apenas o instrumento (a maneira pelo qual se formou o contrato). Ele apenas representa uma fotografia do início do contrato. Uma das coisas mais interessantes sobre o direito contratual é que os contratos não são imutáveis. As suas cláusulas e suas obrigações vão sendo modificadas conforme o comportamento e a aceitação das partes.

Assim, a partir do momento em que uma das partes age em determinado sentido que não seja exatamente da maneira que foi estipulada inicialmente no contrato, ela está propondo, tacitamente, uma modificação nas cláusulas contratuais. Se a outra parte aceita este comportamento “diferenciado” do que foi estipulado, ainda que tacitamente também, então houve uma alteração contratual. Caso não aceite, pode exigir o cumprimento do que foi acordado e exatamente como foi estipulado inicialmente no instrumento escrito. Vale ressaltar que não é apenas uma mudança pontual de comportamento que seria capaz de alterar as cláusulas contratuais. Isso varia bastante a depender

das circunstâncias de cada contrato, mas, em diretrizes gerais, para ter mais segurança, é o comportamento reiterado e aceito pela outra parte que é capaz de alterar as cláusulas de determinado contrato. É importantíssimo se entender que, considerando que um contrato é um acordo de vontades, a vontade de uma pessoa pode ser manifestada tanto de maneira expressa, como também de maneira tácita (através do comportamento). Não existe uma hierarquia acerca de qual forma de manifestação (expressa ou tácita) deve prevalecer. É claro que é muito mais fácil de se provar as manifestações de vontade na forma expressa, entretanto isto não implica dizer que a maneira expressa deve prevalecer quando em conflito com a tácita. Na verdade, regra geral, a manifestação de vontade que deve prevalecer é a que ocorreu no momento posterior. Isto porque, considerando que inexiste uma hierarquia, a manifestação de vontade posterior representaria uma mudança na vontade da pessoa quando comparada com o que ocorreu antes. Por fim, uma última consideração bastante relevante que deve ser feita é que os contratos devem se pautar pela boa-fé, conforme expressam os arts. 113 e art. 422 do Código Civil. O fato de alguém se comportar de maneira diferente da que foi estipulada inicialmente no contrato não implica necessariamente em dizer que esta pessoa está de má-fé. Tal atitude deve ser vista, a princípio, como uma proposta de alteração contratual. Se a outra parte não aceitar e, ainda assim, houver uma insistência ou um comportamento diferente do que foi estipulado, então já poderemos discutir sobre a possibilidade de má-fé. Ou então, se for aceito este comportamento diferenciado por um determinado período, as partes devem se conscientizar de que houve uma alteração contratual. O importante é existir uma previsibilidade de comportamento reiterado das partes em determinado sentido. O que não poderia existir seria, durante a execução de um contrato, uma das partes ora se comportar de uma maneira e depois se comportar de outra maneira logo em seguida e depois de uma terceira maneira diferente, causando uma verdadeira confusão em sua execução.

Feitas todas essas considerações, voltemos agora para a situação de Tício e Mévio, proposta no começo deste post. Poder-se-ia inicialmente pensar que Mévio estaria obrigado a cumprir o que foi posto por escrito quando o contrato foi celebrado. Ou seja, Mévio teria que realizar os pagamentos no

local de trabalho de Tício e em espécie. Entretanto, o próprio Código Civil possui uma norma tratando do pagamento feito reiteradamente em local diferente do que foi estipulado no início. O art. 330 do Código Civil dispõe que “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”. Dessa maneira, Mévio poderá continuar realizando o pagamento no domicílio de Tício sem problemas. Antes de tratarmos sobre a segunda questão (a forma do pagamento em espécie ou em cheque), devemos tecer duas importantes considerações sobre o art. 330 do Código Civil. A primeira delas é de que existe uma atecnia no próprio texto da norma. Isto porque o pagamento feito reiteradamente em local diverso representa uma mudança de comportamento em relação ao que era previsto inicialmente no contrato. A partir do momento em que ele é aceito neste local diverso, não ocorre, propriamente, uma renúncia do que está previsto no contrato, mas sim uma alteração contratual. Existe, sim, uma renúncia ao que está previsto no instrumento do contrato, mas não da cláusula contratual acerca do local do pagamento (neste ponto há uma alteração nela). É importante que isto fique bem claro. Existe uma renúncia ao que está escrito no papel em relação àquele ponto, mas em relação ao contrato (acordo de vontades) existiu uma modificação, posto que o acordo de vontades foi modificado de maneira tácita (através do comportamento). A segunda consideração é de que o art. 330 do Código Civil não trata de uma exceção à regra da interpretação contratual. A situação expressa nesse dispositivo dispõe sobre o que ocorre, de maneira geral, com qualquer outra cláusula quando ocorre um comportamento reiterado de maneira diversa da que foi estipulada no instrumento. Ou seja, tecnicamente, não seria necessária a existência do art. 330 do Código Civil, posto que levando-se em conta que as manifestações de vontade podem ocorrer de maneira tácita e que as relações contratuais devem ser pautadas na boa-fé, o pagamento reiterado em local diverso modificaria o contrato independente de uma norma expressa neste sentido. Deste modo, respondendo à segunda pergunta, Mévio poderá continuar sim a fazer os pagamentos na forma de cheque. Isto porque a partir do momento que Tício os aceitou, em cheques, de forma reiterada, também existiu modificação do contrato nesta cláusula. Para finalizar este post, gostaria de dizer que a ideia de “contrato escrito” é, na verdade, um mito. Não existem contratos escritos propriamente ditos. O que se pode fazer, é verdade, é o instrumento escrito da celebração de um contrato. Tal ato possui uma importante função porque dá mais segurança nas relações contratuais porque é mais fácil dos termos contratuais serem provados, além de também facilitar a prova da intenção das partes no momento inicial de contratar. O papel escrito do contrato nada mais é do que uma fotografia da intenção das partes naquele momento contratual em que elas assinam. O contrato deve ser entendido como um filme ou como um vídeo. Ele é contínuo e sua execução ocorre em diferentes momentos, podendo ser modificado de acordo com o comportamento das partes. O papel escrito seria apenas uma fotografia retratando a intenção das partes no início do filme (início da relação contratual). Se o contrato será cumprido exatamente da maneira pela qual foi estipulada no instrumento ou não, é algo que cabe às partes contratuais decidirem. Contrato, regra geral, não é o papel escrito, é acordo de

manifestações de vontade e, diversas vezes, o ser humano expressa a sua vontade através de seu comportamento e não necessariamente das palavras que saem de sua boca. Por Raphael Fraemam Braga Viana.

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