O mobiliário religioso de António Vaz de Castro, “ensamblador e entalhador de Sua Magestade\" (act. 1646 / 1667)

Share Embed


Descrição do Produto

O MOBILIÁRIO RELIGIOSO DE ANTÓNIO VAZ DE CASTRO, “ENSAMBLADOR E ENTALHADOR DE SUA MAGESTADE” (ACT. 1646 / 1667) ISABEL MAYER GODINHO MENDONÇA *

São raros os nomes de marceneiros portugueses, sobretudo quando nos reportamos aos séculos XVI e XVII. Robert Smith, o ilustre historiador norte-americano que tantos estudos deixou sobre arte portuguesa, deu a conhecer a figura de dois marceneiros seiscentistas, a quem atribuiu documentalmente várias obras ainda existentes: Samuel Tibau, o autor dos arcazes da sacristia da igreja de Santa Cruz em Coimbra, que terá realizado por volta de 1634 1, e Agostinho Marques, operoso marceneiro residente em Braga, na rua da Cónega, que entre 1692 e 1717 realizou várias obras ainda hoje existentes, nesta cidade e nas suas cercanias, desde grades e púlpitos para igrejas a móveis de sacristia (arcazes, armários e bufetes), passando por candelabros e portadas 2. A figura de António Vaz de Castro, “ensamblador e entalhador de Sua Magestade”, situa-se no espaço temporal compreendido entre os dois marceneiros identificados por Robert Smith. Filho de um “imaginário”, o escultor António Vaz, a sua primeira obra identificada (um caixilho entalhado para uma pintura ainda existente do pintor Avelar Rebelo) data de 1646 3. Sabe-se que foi hábil entalhador e riscador de retábulos, mas todos os que comprovadamente realizou desapareceram na voragem dos tempos. Dele ainda restam, contudo, belos exemplares de móveis de uso religioso, uns de autoria confirmada através de documentos e outros que lhe podem ser atribuídos por

* Escola Superior de Artes Decorativas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva Robert SMITH, “Samuel Tibau and portuguese ivory inlaid furniture of the seventeenth century”, in Revista da Universidade de Coimbra, vol. 21, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1971, pp. 153-163. 2 Robert SMITH, Agostinho Marques “enxambrador da Cónega” – elementos para o estudo do mobiliário em Portugal, Barcelos, Livraria Civilização, 1974. 3 Vítor SERRÃO, “Documentos dos protocolos notariais de Lisboa referentes a artes e artistas portugueses (1563-1650)”, in Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, 1984/1988, 3ª série, nº 90, pp. 55-104, a p. 82. O documento em questão encontra-se no INSTITUTO DOS ARQUIVOS NACIONAIS / TORRE DO TOMBO (IAN/TT), Cartório Notarial, nº 11, Lº 158, fls. 124 v – 126. 1

1

comparação estilística. Em todos esses móveis Vaz de Castro revela, além de uma grande perícia manual, uma notável erudição que muito deve ainda aos projectos de arquitectura de Hans Vredeman de Vries, editados um século antes, em 1565 4.

1. O que se conhece sobre António Vaz de Castro

António Vaz de Castro (act. 1646 / 1667) foi um dos mais operosos entalhadores e marceneiros lisboetas do século XVII. A primeira referência à sua actividade deve-se a Ayres de Carvalho, na sua introdução ao “Catálogo da Colecção de Desenhos” da Biblioteca Nacional de Lisboa, publicado em 1977 5. O conhecido investigador, além de assinalar pela primeira vez um contrato notarial em que Vaz de Castro participou, com vista à construção dos arcazes da sacristia do convento dominicano de Lisboa, identificou dois riscos para retábulos, de sua autoria, assinados e datados de 1656 6. Outras obras de marcenaria e retabulística foram recentemente reveladas por Vítor Serrão 7, nomeadamente o já referido caixilho para um painel do pintor Avelar Rebelo, encomendado em 1646 pela Irmandade do Santíssimo Sacramento da sé de Lisboa e ainda existente, figurando “Jesus Cristo a dar a comunhão aos Apóstolos”, 4

As gravuras inseridas no tratado de Arquitectura de Hans Vredeman de Vries (Den eersten Boeck ghemaect op de twee Colomnen Dorica en Ionica …), publicadas pela primeira vez em 1565 e várias vezes reeditadas, tiveram um êxito estrondoso na decoração arquitectónica e nas artes decorativas, em finais do séc. XVI e ao longo do séc. XVII. Também a influência das gravuras do filho de Hans, Paul Vredeman de Vries, publicadas em 1630, com sugestões para obras de marcenaria (Verscheyden Schrynwerck) pode ser detectada nas obras de marcenaria que vamos analisar. 5 Ayres de CARVALHO, Catálogo da Colecção de Desenhos da Biblioteca Nacional de Lisboa, Lisboa, 1977, pp. XIII e XIV. 6 Inseridos no Códice 256 dos Reservados daquela Biblioteca, estes desenhos tinham sido anteriormente publicados por Reinaldo dos SANTOS, “Plantas e desenhos barrocos”, em Belas-Artes, 2ª série, nº 2, Lisboa, 1950, pp. 58-66. Ayres de Carvalho atribuiu ainda a Vaz de Castro o belo risco, não assinado, do retábulo da igreja de S. Domingos de Abrantes, existente na mesma Biblioteca, mas na secção de Iconografia (ficha 582, Iconografia D. 27 R), realizado para a capela tumular de D. Guiomar Coutinho, mulher do infante D. Fernando, filho de D. Manuel I. O infante faleceu na vila de Abrantes em 1534, tendo sido enterrado na capela-mor do convento dominicano, e aí repousando com os restos da sua mulher, D. Guiomar Coutinho, até 1582, quando os ossos do infante foram trasladados para os Jerónimos, por ordem de Filipe II. 7 Vítor SERRÃO, A Pintura Proto-Barroca em Portugal, 1612-1657. O Triunfo do Tenebrismo e do Naturalismo, Lisboa, Ed. Colibri, 2000, e Francisco LAMEIRA e Vítor SERRÃO, “O retábulo proto-barroco da capela do antigo Paço Real de Salvaterra de Magos”, in Actas do II Congresso Internacional do Barroco, Porto, 2001, pp. 215-226, a p. 219, 220. A mesma moldura seria dourada pelo pintor de têmpera João Correia. O documento encontra-se no Arquivo do Santíssimo Sacramento da Sé de Lisboa, Livro de Receita e Despesa do Santíssimo Sacramento de 1642 a 1672, fl. 28 e 28 v.

2

entre outras obras feitas para a capela já desaparecida da irmandade, em parceria com Marcos de Magalhães, também ele autor de riscos para retábulos e entalhador. Um interessante contrato, igualmente revelado por Vítor Serrão e Francisco Lameira, firmado em 1650 entre António Vaz de Castro e seu irmão e parceiro Lourenço Coelho e a Irmandade de Nossa Senhora da Penha de França em Lisboa, sita no convento agostiniano da mesma invocação 8, revela a variedade de obras de marcenaria e entalhe que os mestres deste ofício realizavam: o revestimento integral em madeira entalhada da casa nova da Irmandade, que deveria ser “toda emcaixilhada em painéis e Retabolos, tecto e Ilhargas e cabeseiras”, estipulando-se que os florões de talha deveriam ser relevados em mais de um palmo, à semelhança do retábulo da capela-mor do convento que os dois irmãos já anteriormente tinham realizado. Os dois irmãos entalhadores deveriam ainda fazer “o trono em que há de estar nossa Senhora” e reparar “a pianha em que está nossa Senhora de madeira por detraz como esta feita por diante, que fique perfeita em quatro faces, na forma do Trono, para se poder pratear”; para a imagem da Virgem deviam entalhar “hum resplandor, premanente, com seus Rajos e nas costas delle, emsembrar hum sol, e em cada Rajo hum cherubj com a face a nossa Senhora que a serque em Roda”. Obrigavam-se ainda a “dar hum pouco de sextavo aos degraos que estão por baixo do Arco do nicho aonde esta Santo Agostinho”, “a fazer a escada levadiça, com que se ha-de subir ao sacrário, onde há-de estar o santíssimo sacramento”, e “a fazer huma moldura na meia laranja do Arco que esta por baixo da Cappella, no Jazigo da Irmandade para se lhe poder por hum painel em pano”. No contrato foi estipulado o preço a pagar por estas obras, de carácter tão diversificado: 600.000 réis. Em 1664, a 6 de Novembro, os irmãos da fábrica da igreja de S. Vicente de Abrantes assinaram com António Vaz de Castro, designado como “marceneiro de Sua Magestade”, um “reconhecimento” da obra do retábulo-mor da igreja, para a qual fizera dois desenhos; a obra tinha sido acordada pelo preço de 380.000 reis e deveria estar concluída até Setembro de 1665 9.

Vítor SERRÃO, “Documentos dos protocolos notariais (…)”, cit., p. 103. Francisco LAMEIRA e Vítor SERRÃO, “O retábulo proto-barroco da capela do antigo Paço Real de Salvaterra de Magos”, cit., p. 220. O documento em questão encontra-se no IAN/TT, Cartórios Notariais, nº 9-A, Maço 35, Lº 162, fls. 131 v – 133 v. 9 Francisco LAMEIRA e Vítor SERRÃO, ob. cit., p. 222. O documento encontra-se no Arquivo Distrital de Santarém, Cartório Notarial de Abrantes, Lº 174, fls. 40 v e 41. 8

3

Um último documento fornece importantes informações sobre a vida pessoal, a situação financeira e a actividade de António Vaz de Castro: o seu testamento, que ditou já doente e retido no leito, a 13 de Outubro de 1667, pouco antes de morrer 10. Ficamos a saber que vivia no Bairro Alto, na Rua da Rosa, ao Cunhal das Bolas, que era casado em segundas núpcias com Natária Ferreira Barrosa, de quem tinha dois filhos, António de 3 anos e José de 15 meses, além de um filho do primeiro casamento, de nome Aleixo, que já destinara à vida religiosa. Desejava ser sepultado na capela de Nossa Senhora da Doutrina, da igreja de S. Roque, uma vez que era, tal como o seu pai, membro da irmandade do mesmo nome que aí tinha a sua sede 11. Este documento também nos dá informações interessantes sobre a forma como se organizava a sua oficina, com livros de contabilidade onde assentava os proventos e as despesas, afirmando “que todas as obras que em meu poder tenho tomado como assim do dinheiro que a conta delas tenho recebido se achará a clareza de tudo nos mesmos livros em que costumo asenta-las com a fedelidade conhecida…”. O dinheiro que pedira emprestado, e ainda devia, estava garantido por objectos em prata: castiçais e facas. Fora, além disso, tesoureiro e pagador dos oficiais da obra da capela do Paço da Ribeira e tesoureiro das décimas da freguesia de Nossa Senhora das Mercês. À data da morte, Vaz de Castro enuncia ainda as obras que tinha entre mãos e que estavam por concluir ou por pagar: além da obra da capela real do Paço da Ribeira, que tomara de empreitada com cinco companheiros (Manuel Francisco, Filipe Ramalho, Francisco Taveira, Francisco Lopes e José Antunes) e que faltava avaliar, fizera dois retábulos para a igreja de S. Lourenço de Alhos Vedros, que ainda não estavam assentes (embora tivesse ajustado enviar para o efeito Sebastião Pais de Matos), uma obra (embora sem especificar qual) para a capela do Senhor Jesus dos Passos na igreja dos Jerónimos e ainda o retábulo da ermida de Nossa Senhora das Necessidades, em que faltava “limpar” as seis colunas e colocar “a coroa que remata o zimbório”.

10

Francisco LAMEIRA e Vítor SERRÃO, ob. cit., pp. 222, 223. O documento original encontra-se no IAN/TT, Registo Geral de Testamentos, Lº 23, fls. 62-64. 11 A Irmandade de Nossa Senhora da Doutrina reunia oficiais de várias artes mecânicas. Maria João Coutinho e Sílvia Ferreira coligiram interessantes informações sobre as várias profissões e os nomes dos artistas que dela faziam parte: vide A Irmandade de Nª Sª da Doutrina. Subsídios para o estudo dos oficiais mecânicos na Lisboa Seiscentista e Setecentista, no prelo.

4

Aparentemente para este mesmo retábulo, executara “hum painel de meio relevado”, tendo ainda acrescentado “a charola com seus pedrestaes lavrados”. Todas as obras de talha de que nos fala a documentação já desapareceram. Da sua actividade neste campo restam apenas os dois desenhos para retábulos, assinados e datados de 1656 12. De planta recta, mostram três tramos e dois registos a que se sobrepõe um ático. Os tramos laterais, compartimentados por colunas de fuste com caneluras, enquadrando nichos e telas, são ainda características maneiristas; a profusa decoração entalhada, a tribuna escondida por uma tela, interrompendo o entablamento, e o cenográfico panejamento, cobrindo o sacrário, são elementos que anunciam já o período barroco. (Fig. 1) Os desenhos de Vaz de Castro revelam ainda a influência do tratado de Hans Vredeman de Vries, publicado em 1565, quase um século antes, visível na configuração dos nichos, em forma de concha, das aletas, fogaréus e pináculos de remate.

2. António Vaz de Castro e o mobiliário de utilização religiosa Os arcazes do convento de S. Domingos de Lisboa Além de retábulos e de revestimentos em madeira entalhada, Vaz de Castro realizou móveis de sacristia, como também revelou Ayres de Carvalho no texto atrás mencionado 13. Os móveis em questão, dois belos arcazes iguais de grandes dimensões (13,50m x 1,13m x 2,35m, respectivamente comprimento, altura e profundidade), encimados por espaldares com 1,25m de altura, permanecem ainda in situ, na sacristia da igreja de S. Domingos em Lisboa, encostados aos dois alçados maiores. (Fig. 2) Assentes num estrado de madeira com 12 centímetros de altura, são compostos por nove tramos desiguais, separados por pilastras, alternando quatro tramos maiores com cinco menores. O arcaz do lado nascente tem gavetas falsas nos primeiros quatro

12

Vítor Serrão atribuiu a Vaz de Castro alguns retábulos ainda existentes: os laterais da igreja de S. Vicente de Abrantes e o retábulo da capela do paço de Salvaterra. 13 Ayres de Carvalho, ob. cit., pp. XIII e XIV. Este investigador revelou ainda o contrato firmado entre Luís Barbudo de Melo e o mestre pedreiro Gregório Luís, com vista à construção da obra de pedraria da nova sacristia, a partir da traça do arquitecto Marcos de Magalhães. Vítor SERRÃO transcreveu e analisou este contrato no seu estudo fundamental sobre este arquitecto, “Marcos de Magalhães, Arquitecto e entalhador do ciclo da Restauração (1647-1664)”, in Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, 3ª série, nº 89, I tomo, 1983, pp. 271-329.

5

tramos, correspondentes ao vão onde se guardavam os frontais de altar, com acesso pelo alçado lateral. Os espaldares, enquadrados inferiormente por frisos e em cima por arquitrave, repetem a mesma divisão em nove tramos de diferentes dimensões, separados por estípites encimadas de volutas e capitéis coríntios entalhados em pau-santo 14. Em frente dos quatro tramos maiores do espaldar, apoiados no tampo dos arcazes, encontram-se outros tantos espelhos com elaboradas molduras rematadas por frontões semicirculares, interrompidos para receber pináculos; lateralmente, as molduras são enquadradas por enrolamentos de volutas com cabecinhas de meninos entalhadas em vulto perfeito, encimadas de capitéis jónicos, e na zona inferior por enrolamentos envolutados ladeados de pináculos e centrados por uma cabeça alada relevada. Tanto as faces dos arcazes como as dos espaldares, faixeadas de pau-santo e de piquiá amarelo 15, são decoradas com embutidos das duas madeiras, criando motivos geométricos (simples faixas nas gavetas dos arcazes, nas pilastras divisórias dos seus tramos e nos painéis dos espaldares, formas polilobadas nos alçados laterais e nas gavetas dos arcazes, no friso e no entablamento dos espaldares, encordoados nas molduras dos espelhos e dentículos na cornija dos espaldares) e sugestões vegetalistas (nos frisos e nos painéis dos espaldares, nas volutas do entablamento que os percorre e nas volutas que enquadram os espelhos). Na superfície dos arcazes e dos espaldares encontramos ainda elementos entalhados aplicados em forma de botão (nos painéis maiores dos espaldares e nas faces das gavetas) e em forma de diamante facetado (nos painéis menores dos espaldares). Finalmente, as gavetas são decoradas com escudetes e outras chapas de metal dourado vazado, figurando motivos vegetalistas, idênticos aos dos embutidos.

14

O pau-santo, madeira exótica brasileira também conhecida como jacarandá, foi uma das mais importantes madeiras brasileiras, utilizada, quer de forma maciça, quer em embutidos e em faixeados (Cf. Pedro Costa PINTO, O Móvel de Assento Português do século XVIII em colecções do Norte, Lisboa, Mediatexto, 2005, p. 128). 15 Esta madeira exótica (caryocar villosum), de tons muito claros, oriunda do Brasil, também conhecida como pau-marfim e pau-liso, pertence à família das rutácias. Foi muito utilizada no mobiliário e em laminados decorativos (cf. Pedro Costa PINTO, ob. cit., p. 129), sendo vulgar o seu emprego em cómodas de estilo barroco e rococó, em trabalhos de embutidos ou faixeados, contrastando com madeiras mais escuras, como o jacarandá ou o vinhático. Foi também usada de forma maciça, por influência francesa. (Cf. Maria Helena Ochi FLEXOR, “Mobiliário no Brasil dos séculos XVII ao XIX”, in Portugal / Brasil, Brasil / Portugal. Duas faces de uma realidade artística, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, pp. 395-407, a pp. 403, 404).

6

O contrato da obra dos arcazes da sacristia do convento de S. Domingos em Lisboa A 11 de Junho de 1664, o prior do convento de S. Domingos, D. frei Miguel Baptista, contratou a obra dos caixões da sacristia com António Vaz de Castro, “ensamblador e entalhador de Sua Magestade”, morador na rua da Rosa em Lisboa. O contrato foi celebrado na Casa do Depósito do convento, na presença de Monteiro de Mesquita, corregedor do cível da cidade de Lisboa, e das testemunhas António de Oliveira e José Borges da Silva, da casa de Luís de Barbudo de Melo 16. No dia anterior, este fidalgo da Casa Real, morador no Rossio em frente ao convento de S. Domingos, contratara com a Ordem dos Pregadores a cedência do espaço da sacristia para sua sepultura perpétua, de sua irmã, mulher e descendentes, a troco da obra de pedraria da mesma sacristia. Luís Barbudo de Melo estabelecera igualmente no mesmo dia um contrato com o mestre pedreiro Gregório Luís para a construção da sacristia, segundo a traça do arquitecto Marcos de Magalhães 17. António Vaz de Castro obrigava-se a fazer “dois lanços de caixões com gavetas e respaldos iguais” de uma parte e de outra da sacristia, de acordo com a traça assinada pelas partes. Cada um dos lanços (os conjuntos de arcazes) deveria ter nove andares (tramos) de cinco gavetas, separados por dez “pilares de peralto” (as pilastras); cinco desses tramos teriam quatro palmos e meio de largo, e os quatro restantes, sete palmos e meio. Os arcazes teriam “respaldos (alçados) repartidos em tantos painéis como tem de andares de gavetas e com tantas quartelas como há-de ter de pilares”; as quartelas (o conjunto de estípite e voluta) teriam capitéis coríntios. No contrato são previstos os materiais e as técnicas a utilizar. As dianteiras das gavetas e pilares deviam ser faixeadas de pau-santo maciço, “de dois bons dedos de grossura”, com “faixas de palma grossas, embutidas e perfiladas por todas as partes com dois fios, um amarelo, outro preto”. As travessas e os montantes das gavetas deveriam ser de “piquiá amarelo maciço com faixas de pau-santo com seus perfis

16

IAN/TT, Cartórios Notariais de Lisboa, Cartório 9-A, Livro 193, fls. 94v a 96v. Esta escritura notarial, referida por Ayres de CARVALHO, ob. cit., e por Francisco LAMEIRA e Vítor SERRÃO, ob. cit., pp. 215-226, foi pela primeira vez transcrita e analisada em Isabel Mayer Godinho MENDONÇA, “A sacristia da igreja de S. Domingos em Lisboa e o património integrado de Artes Decorativas”, in Os Dominicanos em Portugal (Congresso Internacional no VIII Centenário da Fundação da Ordem dos Pregadores, 14 a 16 de Dezembro de 2006), no prelo. 17 Cf. Vítor SERRÃO, “Marcos de Magalhães Arquitecto e entalhador do ciclo da Restauração (1647-1664)” (cit.) e Isabel Mayer Godinho MENDONÇA, “A sacristia da igreja de S. Domingos em Lisboa e o Património Integrado de Artes Decorativas” (cit.).

7

amarelos e negros que corresponda a da obra das gavetas”. Por cima das gavetas haveria um “tabuleiro de largura de cinco palmos e meio e de todo o comprimento dos caixões, de madeira de Angelim vermelho 18 de dois dedos de grosso, repartido em painéis conforme os lanços das gavetas”. Da mesma madeira e grossura devia ser o “estrado para o pé dos caixões”, que deveria assentar em barrotes de madeira de carvalho ou do Brasil “em razão da humidade”. A estrutura dos arcazes seria executada com uma grade de madeira grossa do Brasil e “todos os vãos da dita grade (…) tapados com tábuas encaixilhadas nos mesmos barrotes por donde correm as gavetas e bem junto dellas que não possa entrar rato”. No espaldar dos arcazes, as quartelas seriam em madeiras maciças (pau-santo e piquiá amarelo), “encaixilhadas e perfiladas dos mesmos fios e com laçarias negras muito boas embutidas nas ditas tábuas amarelas (…) de boa grossura que não salte fora”. Também as banquetas, o friso e os “remates que se hão-de fazer nos prumos das quartelas e ressaltos” deveriam ser de pau-santo maciço, “com peças amarelas de garganta de seis e pelo longo dos ditos remates haverá embutidos ou folhas ou galões”. (Fig. 3) Os painéis entre as quartelas seriam “encorpados de tábuas de bordo grossas ou do Brasil e forrados de pau santo grosso, enfaixadas em faixas amarelas perfiladas com os mesmos fios amarelo e preto e todos colados de laçarias de pau amarelo embutidas de boa grossura”. Os painéis seriam ainda encaixilhados com uma grade de madeira de piquiá, suficientemente grossa para “que não possa torcer”. São igualmente fornecidas instruções para as ferragens: “as asas, chapas e escudetes serão tão grandes e tão boas e melhores se puder ser ou pelos mesmos moldes que são as da sacristia da sé desta cidade, tudo dourado de (…) três folhas de ouro, como são as da dita sé”. Todas as ferragens seriam de “latão legítimo sem liga alguma” 19. Recomendava-se a António Vaz de Castro que mandasse fazer a ferragem para uma gaveta e que a mostrasse ao prior, para aprovação, antes que fosse a dourar. (Fig. 4)

18

Angelim vermelho (dinizia excelsa), madeira exótica do Brasil, também conhecida como angelim ferro ou angelim falso, foi utilizada não só no mobiliário, como também na construção naval, pela sua extraordinária resistência aos xilófagos (Cf. Pedro Costa PINTO, ob. cit., pp. 125, 126). 19 O latão é já uma liga de cobre e zinco, tendo por vezes incorporado estanho.

8

O custo total da obra foi acordado em 400 000 réis, devendo o marceneiro receber 150 000 réis no acto da escritura e 40 000 réis por mês, a partir de Julho e até ao final da obra, que deveria estar concluída no prazo de um ano e meio, a contar da data da escritura. Luís de Barbudo de Melo adiantou os 150 000 réis iniciais 20. No final da escritura reafirmava-se a necessidade de ser seguida a traça assinada por ambas as partes e a obrigação de ser feita uma gaveta como modelo a submeter à aprovação do prior. Previa-se também a possibilidade de vir a ser melhorada a traça “a qual se não diminuirá em cousa alguma, antes se usará do disposto nesta escritura se for para a ampliar e melhorar”. Terão sido certamente esses ajustes que motivaram algumas alterações que encontramos nos arcazes que chegaram até nós. Ao contrário do estipulado no contrato, os arcazes têm quatro e não cinco gavetas. Não existe qualquer banqueta nos espaldares, mas apenas predelas entre as bases das quartelas. Por outro lado, cada um dos arcazes recebeu quatro espelhos que se sobrepõem aos quatro tramos menores, não referidos no contrato com Vaz de Castro.

O projecto para os arcazes de S. Domingos Um desenho com duas versões para um arcaz, inserido no já referido códice 256 da Biblioteca Nacional onde se guardam os projectos para retábulos assinados por Vaz de Castro, parece poder ser associado à obra dos arcazes de S. Domingos 21. (Fig. 5) O risco para o arcaz, com escala em palmos e a legenda “Perfil de huns Caixões de Sanchristia em que se mostrão duas fonções” 22, apresenta duas versões para arcazes de dois tramos, uma com quatro e a outra com cinco gavetas, com aplicação de madeiras de cores contrastantes, emoldurando as faces das gavetas e fazendo ressaltar o 20

Barbudo de Melo obrigara-se a contribuir com 200.000 réis para a obra dos arcazes, na escritura de compra do espaço da sacristia ao convento de S. Domingos. 21 Os desenhos estão identificados, na capa que os protege, como plantas e desenhos da igreja dos padres teatinos, embora a única associação com esta Ordem seja a que aparece numa das plantas para um jardim triangular (“Planta do Jardim que está no sitio do convento da Divina Providência”). A outra planta para este jardim está assinada por Vaz de Castro, tal como os dois desenhos para retábulos. Fazem ainda parte do códice outros desenhos para arquitectura e para retábulos, assinados por João Nunes Tinoco, e ainda diversos desenhos anónimos para alfaias (um sacrário, dois turíbulos, um candelabro, uma custódia e um candeeiro de igreja) e para um arcaz. Biblioteca Nacional de Lisboa, Códice 256, “Plantas e desenhos para uma egreja. Parece ser dos padres Teatinos. Planta do jardim que está no sitio do convento da Divina Providência. Original. Vê-se n’algumas folhas a assignatura Crasto com a data 1656. Outras são assignadas por João Nunes Tinoco”. 22 Idem, fólio 11.

9

latão dos puxadores e dos escudetes. Embora não haja qualquer referência ao local a que se destinam os arcazes, é muito possível que se trate de propostas para os arcazes da sacristia de S. Domingos. Como vimos atrás, apesar de o contrato estipular cinco gavetas por tramo, a obra final apenas contemplou quatro, muito provavelmente no seguimento do modelo de gaveta que Vaz de Castro se obrigou a mostrar ao prior do convento para apreciação.

Os arcazes da sacristia da sé de Lisboa Na tentativa de encontrar os modelos das ferragens de S. Domingos, visitámos a sacristia da sé de Lisboa, um belo espaço abobadado de planta rectangular, com muitas semelhanças com a sacristia de S. Domingos, cujo projecto foi atribuído ao arquitecto Marcos de Magalhães por Vítor Serrão 23. Nos alçados menores encontramos também um altar, de um lado, e o lavabo em pedraria, do outro. Aos alçados maiores encostam-se dois arcazes, tal como em S. Domingos. Embora tenham sofrido alterações, os espaldares têm ainda muitos pontos de contacto com os arcazes de S. Domingos. Alternam também tramos maiores e menores, aqui separados por estípites com caneluras e capitéis jónicos; no remate do espaldar encontramos um friso com figuras geométricas polilobadas embutidas, a que se sobrepõem idênticas volutas sustentando uma cornija com igual modinatura. Também existem espelhos, em frente aos tramos menores, com molduras semelhantes, encimadas por frontão interrompido, percorrido por dentículos embutidos, embora sem as cabeças de anjos de vulto nas laterais e na zona inferior. Os embutidos de madeira amarela, perfilada de madeira mais escura, contrastam com o faixeado de pau-santo. Os painéis que compõem os espaldares, constituídos por portas lisas, com gavetas de almofadas recortadas, claramente mais tardios, não mostram já quaisquer ornatos embutidos. Os arcazes de cinco gavetas, intercalados por pilastras, foram realizados na mesma época, provavelmente já na segunda metade do século XVIII. Contudo as ferragens – tanto os puxadores como os escudetes – são muito parecidas com as dos arcazes de S. Domingos, e serão ainda as originais que lhes serviram de inspiração. (Fig. 6)

Cf. Vítor SERRÃO, História da Arte em Portugal – O Barroco, Lisboa, Ed. Presença, 2003, p. 83. 23

10

Estão ainda por conhecer as campanhas de obras da sacristia da sé de Lisboa, que certamente esclarecerão a autoria, não só do espaço arquitectónico como da obra dos arcazes. Sabe-se apenas que se prolongaram pelos arcebispados de D. Afonso Furtado de Mendonça e de D. Luís de Sousa. As semelhanças estilísticas parecem confirmar a autoria de Vaz de Castro, já proposta por Ayres de Carvalho 24. A referência às ferragens dos arcazes da sé como modelo a seguir nas ferragens dos arcazes de S. Domingos, no contrato entre a Ordem dos Dominicanos e Vaz de Castro, vem ainda apoiar esta atribuição.

Um oratório franciscano Um precioso móvel foi recentemente atribuído a António Vaz de Castro por Vítor Serrão 25. Trata-se de um belo oratório adquirido no mercado antiquário francês e hoje parte de uma colecção privada portuguesa, que pôde ser apreciado na exposição sobre “Pintura portuguesa do século XVII”, em 2004, no Museu Nacional de Arte Antiga. Na face interna das duas portas vêem-se pinturas a óleo, assinadas por Avelar Rebelo e datadas de 1655. Com mais de um metro de altura, o oratório de pau-santo com finos embutidos em marfim sublinhando a base, as portas, o interior e o remate, guarda no interior um Cristo crucificado indo-português seiscentista em marfim, apoiado numa base já da segunda metade do século XVIII. No fecho do arco interior, as armas da Ordem franciscana, inscritas numa cartela em marfim, constituem a única pista sobre a origem deste móvel. Anísio Franco, que estudou o móvel em 2001 26, datou-o por engano de 1633, atribuindo-o a Samuel Tibau, marceneiro de origem francesa que na década de 30 de Seiscentos trabalhou na sacristia da igreja de Santa Cruz de Coimbra 27. (Fig. 7) 24

Ayres de CARVALHO, ob. cit., p. XIV. Atribuição reiterada por Vítor SERRÃO, “Marcos de Magalhães, Arquitecto e entalhador do ciclo da Restauração (1647-1664)” (cit.), p. 83. 25 Luís de Moura SOBRAL, Pintura Portuguesa do século XVII – histórias lendas narrativas, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 2004, pp. 156-161. Francisco LAMEIRA e Vítor SERRÃO, “O retábulo proto-barroco da capela do antigo Paço Real de Salvaterra de Magos” (cit.), p. 221. 26 Anísio FRANCO, “Um oratório com pinturas de Avelar Rebelo”, in Arte Ibérica, 4-5, 2001, pp. 42, 43. As pinturas das portas inspiraram-se em gravuras de Rafael Sadeler e Henrique Golzius, como bem provou Anísio Franco. Veja-se Luís de Moura SOBRAL, ob. cit.. 27 Robert SMITH, “Samuel Tibau and portuguese ivory inlaid furniture” (cit.), pp. 153-171.

11

Vítor Serrão atribuiu a obra de marcenaria e entalhe a António Vaz de Castro, que colaborara com Avelar Rebelo na pintura encomendada pela irmandade do Santíssimo da sé de Lisboa, em 1643 28. É de facto de grande qualidade o pequeno móvel, tanto no aspecto da marcenaria como da talha (nas colunas de fustes canelados e com pendurados no terço inferior, na cartela de enrolamentos flamengos e nas quatro urnas de remate). Também o trabalho do marfim é extremamente elaborado, tanto nos finos filetes que enquadram as portas, a base e a cartela de remate, e com que são inscritos dizeres em latim na cartela e na base (MORS AMOR),

MEA

/

VITA TUA; HIC ME FIXIT

como nas figuras dos anjos relevados nas enjuntas do arco, na cartela com as

armas franciscanas no fecho do arco, nos pendurados das colunas, nos símbolos da Paixão do exterior das portas e no pano de Verónica da cartela.

Os armários da sacristia do mosteiro de Alcobaça Analisemos agora dois móveis de sacristia contemporâneos das obras de marcenaria que temos vindo a analisar: os armários que ladeiam a porta principal da sacristia do mosteiro de Alcobaça. Cada um destes armários, iguais e de grandes dimensões (com 4,47 m de altura por 2,49 m de largura), é composto por um corpo de dois registos encaixado na espessura da parede, a que se sobrepõe um frontão de remate. No registo inferior, menor e enquadrado por pilastras, encontramos duas portas com dobradiças especiais que permitem a sua justaposição quando abertas, encerrando o vão de armazenagem. No registo superior, ladeado por estípites com volutas e capitéis coríntios, a um “escritório” – um compartimento central, encerrado por tampo de abater e ladeado por duas pequenas portas – seguem-se 66 gavetinhas, algumas falsas, em seis andares. Sobre o entablamento, intercalado por mísulas, dois pináculos em posição extrema e um corpo de remate, enquadrado por enrolamentos de volutas. Este corpo, ladeado por estípites com volutas, é encimado por frontão e dois fogaréus e rasgado por nicho. Os armários são faixeados em pau-santo e ébano, com finos embutidos em marfim sublinhando motivos geométricos (octógonos, quadrados, losangos e ziguezagues), formas polilobadas, sulcos e ornatos vegetalistas. Acantos entalhados 28

Francisco LAMEIRA e Vítor SERRÃO, ob. cit., p. 221. Vítor Serrão atribui ainda a Vaz de Castro o retábulo do paço da Ribeira para o qual Avelar Rebelo recebeu a encomenda de uma tela. Veja-se também a entrada de Rafael MOREIRA, “António Vaz de Castro”, in Dicionário do Barroco, pp. 110, 111.

12

decoram os capitéis e as volutas das estípites e das mísulas do entablamento. Também os pináculos, as urnas e o frontão são entalhados em pau-santo. No friso do entablamento dos dois armários a seguinte inscrição, com letras e números em metal: “ANNO

DOMINI

1664”. Escudetes vazados e puxadores em metal

amarelo (em forma de botão nas portas e de pingente nas gavetas) animam a superfície. (Fig. 8) A estrutura marcadamente arquitectónica dos dois armários de Alcobaça remete-nos para os espaldares dos arcazes de S. Domingos e da sé de Lisboa, com idênticas quartelas (o conjunto de estípite e voluta) e capitéis. Também as mísulas sobrepostas ao entablamento, sustentando a cornija, mostram a mesma configuração. (Fig. 9) A cartela do frontão, uma aplicação erudita da obra de laço flamenga, é idêntica à do oratório franciscano. Os vasos que pontuam lateralmente o entablamento (com um formato invulgar: uma urna de duas asas, bojuda e marcada por nervuras, rematada por fino pináculo) estão muito próximos dos elementos do mesmo tipo que coroam uma das propostas para retábulos assinada por Vaz de Castro em 1656. Também os nichos representados no outro retábulo de Vaz de Castro são idênticos ao nicho de remate dos dois armários. A influência pode facilmente ser encontrada num dos desenhos para móveis de Paul Vredeman de Vries 29. (Fig. 10) Finalmente, os elementos decorativos, sobretudo as formas polilobadas e os motivos vegetalistas das enjuntas dos nichos, sublinhados a marfim, lembram idênticos motivos em piquiá amarelo dos arcazes de S. Domingos. Todos estes elementos estilísticos parecem apontar para a autoria de António Vaz de Castro. A par dos armários, o mesmo ensamblador terá igualmente realizado os dois grandes arcazes, ainda descritos por frei Manuel dos Santos (1672/1748), cronista da ordem de Cister, em inícios do séc. XVIII: “Tem caixoens grandes para os ornamentos das duas partes ou paredes de norte a sul; e são de pão santo guarnecido de evano e marfim. A pregaria he de bronze dourada; tem os caixoens seu espaldar, e nelle de excelente pintura os passos principais da vida de N. P. S. Bernardo e outros Santos e Santas da Ordem. Na parede da porta aos dous lados da mesma tem dous caixoens mais com suas gavetas que servem de ter os amitos, missaes e calices; são tambem de

29

Paul Vredeman de Vries, Verscheyden Schrynwerck, Amsterdão, 1630.

13

pao santo guarnecido de evano e marfim; e a pregaria tambem de bronze dourada; são altos vinte palmos, e de largo tem des” 30. Os arcazes descritos pelo cronista, muito danificados pelo terramoto de 1755, foram substituídos pelos actuais, realizados entre 1756 e 1762 31. De grandes dimensões, já que ocupavam as duas paredes maiores da sacristia, prolongando-se de norte a sul, teriam provavelmente uma decoração idêntica à dos armários, vivendo também dos contrastes criados pelas madeiras exóticas, perfiladas de finos embutidos em marfim e realçadas pelo brilho do bronze dourado das chapas e dos escudetes.

* * * Autor de uma vasta obra retabular (que riscou e entalhou), António Vaz de Castro foi igualmente um operoso marceneiro. As obras de mobiliário religioso que lhe podem ser atribuídas por comparação com o magnífico trabalho dos arcazes de S. Domingos, que comprovadamente realizou, revelam um artista com domínio do desenho e um bom conhecimento da tratadística. Obras realizadas entre o maneirismo e o barroco, estes belos móveis, de acentuado carácter arquitectónico, revelam já os novos valores de um barroco ainda tímido, mas que aqui se anunciava pela utilização das lustrosas madeiras exóticas, de cores contrastantes, enriquecidas pelo brilho dos fios de marfim, desenhando e entalhando com dinamismo motivos geométricos e vegetalistas, a par dos dentículos, quartelas e outros ornatos requeridos pelas ordens arquitectónicas na versão proposta pelo famoso tratado de Hans Vredeman de Vries, então já com um século de edição.

30

Frei Manoel dos SANTOS, Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça, Alcobaça, Associação para a Defesa e Valorização do Património Cultural da Região de Alcobaça, 1979, p. 36. As paredes eram forradas integralmente com azulejos figurando os fundadores das ordens militares de cavalaria. A sacristia actual tem as mesmas dimensões da primitiva, manuelina, ou seja 133 palmos e meio de comprimento por 46 palmos e meio de largura. Os arcazes primitivos, descritos por Frei Manuel dos Santos, ocupavam parte das paredes maiores; junto a eles, dos dois lados, encontravam-se “bufetes” de pedra com espelhos para as alfaias do serviço litúrgico. 31 Dom Maur COCHERIL, Notes sur l’architecture et le décor dans les abbayes cisterciennes du Portugal, Paris, 1972, p. 193.

14

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.