O modo de produção jurídico e as categorias de António Manuel Hespanha: investigação sobre a contribuição de Michel Foucault

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O MODO DE PRODUÇÃO JURÍDICO E AS CATEGORIAS DE ANTÓNIO MANUEL HESPANHA: INVESTIGAÇÃO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DE MICHEL FOUCAULT

Henrique Montagner Fernandes Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected]

1 INTRODUÇÃO

Apontado como o maior historiador do direito no mundo de fala portuguesa, António Manuel Hespanha carrega com seu nome a autoria de mais de uma dezena de livros e muitas dezenas de artigos, publicados em Portugal e no ultramar, muitos, como notório, no Brasil. Invariavelmente nos traços da história institucional, percorreu o Antigo Regime e a Modernidade, até os fins de oitocentos, transitando incessantemente pelos séculos a desvelar as mudanças e permanências, com particular atenção ao direito português. O detalhe com os aspectos de método, contudo, não se converteu em motivo de dedicação a obras exclusivas sobre o fazer do historiador. Enquanto tantos há a escrever sobre esse tópico fundamental ao labor historiográfico, ainda mais no campo jurídico, onde não faltam dúvidas e muitas são as desconfianças, António Manuel Hespanha oferece uma visão compreensiva do fenômeno jurídico sem deixar de fazer história do direito. A centralidade posta na dimensão institucional do direito não implica o expurgo das dimensões normativa e decisória, nas quais o jurista aparece com maior força, ainda que condicionado por aquela. Assim, recorrer a António Manuel Hespanha em tema formal e árido como o do método, quando a sua própria produção goza de análises substanciais do direito passado, não parece mais tão despropositado. Todavia, a abordagem ora proposta será ela mesma demasiadamente metódica. Pretende-se esclarecer uma questão bastante delimitada: qual a contribuição, se houve alguma, António Manuel Hespanha atribui a

Michel Foucault na formatação do modo de produção jurídico e das categorias como eixos da estruturação e compreensão do domínio jurídico. A primeira parte do trabalho contém, no primeiro título, a revisão do modo de produção jurídico e contextualização dos elementos estruturais do aparelho de produção do direito e, no segundo, a exposição das categorias. A segunda parte contém, no primeiro título, o levantamento das obras de Michel Foucault referidas em obras de António Manuel Hespanha e, no segundo, a análise de como e em que medida este último incorporou insights do primeiro.

2 AS CHAVES DE HESPANHA PARA ACESSAR O DIREITO PASSADO

O capítulo primeiro de A História do Direito na História Social, intitulado O materialismo histórico na história do direito, talvez seja o texto fundamental para compreender como António Manuel Hespanha concebe as potencialidades e limites da investigação histórica do fenômeno jurídico. Sua preocupação central está no encontro de um ponto de equilíbrio a partir do qual possa bem desempenhar seu ofício de historiador, isto é, “auscultar, no jurista, (...) o que, para além da sua vontade, o faz ser as duas coisas: cultor de um sistema dogmático altamente hermético e formalizado, engenheiro de relações sociais de que depende o modo como os homens entre si vivem” (1978). Se bem verdade que a historiografia se afastava da naturalização da ordem jurídica, produto de uma objetividade falsa, porque impossível, levando ao colapso a pretensão de dedução racional da realidade no bojo do subjetivismo ou idealismo, a percepção da “indocilidade dos instrumentos jurídicos” (HESPANHA, 1978) sugeria, por sua vez, uma falha essencial nas propostas que, redutoras da complexidade do direito, explicavam-no exclusivamente com base na dinâmica socioeconômica. Por considerar necessária “a adesão a um modelo explicativo prévio” por meio do qual seria possível ao historiador reconstituir ou, caso se queira, simplesmente constituir os fatos brutos encontrados na pesquisa em história, Hespanha conforma suas lentes com “as posições nucleares do materialismo histórico”, porém, e aqui uma ressalva importante, “tal como elas hoje aparecem correntemente expostas” (1978).

Um elemento crucial dessa matriz é o “descentramento do sujeito”, processo progressivo deflagrado por Marx e Freud. O reconhecimento de quão limitado é o domínio do homem nas atividades nas quais ele próprio pensava-se o protagonista conduz a reflexão teórica a objetos que, subitamente, ganham relevo. Mais do que isso: esses objetos talvez sejam componentes vitais das diversas instituições, discursos ou domínios sociais que, embora em relação tensional com o nível econômico (distinta da “de mera causalidade ou de estrito condicionamento”), possuem “um motor próprio, cujo ritmo não é necessariamente o dos restantes” (HESPANHA, 1978). Nesse veio aberto no limiar de teorias totalizantes da realidade, Hespanha encontra o objeto por excelência da investigação histórica: o complexo aparelho institucional constituinte do direito de qualquer dada sociedade. Contudo, apesar de ele próprio ser constituído por e dependente da atuação dos homens históricos, “não está na disponibilidade dos indivíduos ou, mesmo, das classes” (1978). Eis o ponto identificado por Hespanha como “rigorosamente materialista”, qual seja, a “determinação dos conteúdos da consciência [dos juristas, no caso] pelo contexto da prática [jurídica, por coerência]” (1978). Novamente, ao justificar a escolha, Hespanha prefere a realidade à “ideologia”: os resultados proporcionados por essa linha de análise revelam maior capacidade explicativa do fenômeno jurídico, porque recorre a fatores internos, específicos do direito, orientados “por uma lógica intrínseca, capaz de explicar os seus desenvolvimentos concretos” (1978).

2.1 O MODO DE PRODUÇÃO JURÍDICO

Quando em funcionamento, o aparelho institucional de produção do direito implementa um modo de produção propriamente jurídico (atuação no nível das relações sociais), ou seja, estrutura uma prática com objetos, instrumentos, sujeitos e princípios característicos, não se confundindo com as práticas, com os produtos ou com os processos produtivos dos domínios político (atuação no nível das instituições e estruturas sociais) e ideológico (atuação no nível da consciência dos homens). O adensamento do direito no plano da ação e das condições de ação do jurista não exclui a análise das ideias, teorias e conceitos laboriosamente concatenados pelo intelecto humano, tampouco nega a relevância dos textos jurídicos oficiais, sejam eles a

materialização de atos legislativos, administrativos ou judiciais. Todavia, esse arcabouço típico dos juristas passa a ser considerado do ponto de vista externo, isto é, do observador-investigador que pretende esquadrinhar esse aparato a fim de responder por que e como – quais elementos, relações e causações – o domínio jurídico produziu por ele mesmo tais e tais resultados na realidade social. A apreensão do direito na perspectiva histórica caracteriza-se, portanto, por privilegiar a dimensão fática do fenômeno jurídico – ou, em outras palavras, como ele se se fez presente na história, ou, ainda, o direito enquanto fato histórico. Nesse passo, aparecem o jurista – sujeito-agente –, a realidade juridicizada – objeto-matéria – e o aparato de trabalho – instrumentos-meios –, todos relacionais e abertos a combinações infinitas, não fossem os limites de cada realidade concreta em exame (HESPANHA, 1978). Mesmo o elemento estrutural centrado na figura humana do jurista possui um aspecto político – diferente de inseri-lo no nível político ou de atribuir-lhe racionalidade exclusivamente política. Quer-se dizer, em realidade, que o jurista ocupa um papel social de dimensão política, tanto em virtude de caber-lhe criar ou declarar o direito – o que legitima a atuação estatal coerciva –, quanto em razão de ser designado a essa função por norma produzida primariamente no nível político. Ademais, pode-se encontrar outros sujeitos competindo pelo poder de dizer o direito, à margem da designação oficial, porém cobertos por alguma espécie de legitimidade. Seja como for, todos esses sujeitos integram “categorias sociais” às quais cabe zelar por uma determinada fonte do direto e que possuem “um certo estatuto social” (HESPANHA, 1978). Os juristas, portanto, estão no meio do mundo, imersos em relações sociais travadas por diferentes categorias sociais. A autonomia do direito revela-se de maneira especial no campo dos objetos da prática jurídica. Sua resistência em relação aos demais domínios da vida social não lhes permite determinar por si sós a juridicização de certo campo da vida social. Tal ocorre apenas “quando, do ponto de vista das condições da prática jurídica, as coisas estejam maduras para que isto aconteça. E o movimento de sentido contrário também se verifica (...)”, qual seja, a persistência do domínio jurídico em – por meio e no uso pleno de seu aparato técnico-instrumental – dispensar determinado tratamento a certo objeto, a

despeito da pressão em sentido contrário imposta por agentes externos (HESPANHA, 1978). No contexto do aparelho institucional jurídico, o jurista opera com instrumentos de natureza intelectual, institucional e material. No enquadramento dado por HESPANHA, “as realidades lógico-conceituais e linguísticas a partir das quais os sujeitos-agentes organizam o discurso” constituem, elas próprias, instrumentos de trabalho – de natureza intelectual, no caso –, os quais conduzem a e fundamentam conteúdos normativos relativamente autônomos em face aos demais níveis do sistema social. Além desses, os instrumentos institucionais – toda a constelação de fontes de produção do direito, bem como a estrutura da formação acadêmico-cultural dos juristas – e os instrumentos materiais – o corpus jurídico enquanto conjunto das fontes literárias do direito, bem como os sistemas de organização do material e do espaço de trabalho dos juristas – respondem pela unidade na transmissão do conhecimento jurídico e suas práticas. Em suma, sustentam e perpetuam uma dada tradição jurídica.

2.2 AS CATEGORIAS

As categorias aparecem na intersecção do jurídico com o sociopolítico. Rigorosamente, consistem em recurso linguístico empregado tecnicamente para indicar conjuntos socialmente posicionados e lhes assinalar um estatuto normativo. Importa ao investigador sua “capacidade activa, estruturante, criadora (poiética), na modelação do conhecimento” (HESPANHA, 2003a) – capacidade de criar conhecimento que se confunde com intromissão na própria realidade, modelando as percepções, as avaliações, os comportamentos por meio de quadros mentais internamente ordenados. A proposta de alguns da história social em ignorar as palavras, como se nada importassem diante da força efetiva da ação, não deve ser aceita pelo historiador do direito. Mesmo a ação não ocorre num grau zero de pensamento, pois tanto as práticas sociais quanto as “apropriações” dos discursos são mediadas pelo tênue véu das ideias. É assim que “as categorias constituem, de facto, modelos muito permanentes de atribuir sentido aos comportamentos individuais e individualizados” (HESPANHA, 2003a).

Assim como os conceitos, burilados sobretudo por R. Koselleck, as categorias dizem mais e independentemente do autor, ou melhor, não é dado ao falante usar certas categorias sem entrar num impasse comunicacional: o receptor receberá algo diferente do que o emissor pretendia transmitir. Os conceitos polêmicos da história política ilustram o ponto: revolução, feudal, cidadão etc. não são “domesticamente apropriáveis, senão limitadamente, pelos grupos sociais. Realmente, elas estão antes deles, fazem eventualmente os grupos sociais” (2003a). Essa autonomia da história dos discursos tem um segundo aspecto: o discurso como palco de luta social onde os oponentes buscam conquistar para si o domínio de determinadas categorias, pois algumas palavras são mais do que palavras: intelectual, burguês, proletário, homem, demente, rústico etc. “são, além de sons e letras, estatutos sociais pelos quais se luta para entrar neles ou para sair deles” (HESPANHA, 2003a). A dimensão política do uso das categorias no discurso revela-se na sua aptidão constituir reflexamente a ordenação social, por isso “podemos encarar a categorização social como uma forma de institucionalização de laços políticos e as tentativas de recategorização como uma espécie de revolução” (HESPANHA, 2003a), uma e outra regradas pela gramática inerente ao sistema das categorias. Com essa “relativa indisponibilidade do discurso”, a qual torna possível uma “história autónoma das categorias e dos discursos” (HESPANHA, 2003a), retoma-se a ideia de “descentramento do sujeito” (HESPANHA, 1978 e 2003a), isto é, de buscar o sentido fora da cogitatio do homem falante. A teia de argumentos afins e contrários reconhecida pelos interlocutores de uma dada época, por exemplo, barra a utilização de uns e disponibiliza apenas outros, cada qual predeterminando a conclusão do raciocínio ainda por ser empreendido. Também a ação humana, se pensada causalmente como reação ou resposta a um estímulo, nunca é imediata, mas sempre mediada pela compreensão do sujeito no contexto de um quadro conceitual.

3 A PRESENÇA DE MICHEL FOUCAULT NA OBRA DE HESPANHA

A influência de um pensador em outro pode ser percebida de diferentes formas, assim como diversos podem ser os indícios dessa relação, além de variados os modos como se dá essa colaboração. A identificação de Michel Foucault como um autor citado

com ênfase por António Manuel Hespanha na fundamentação das premissas teóricas de suas investigações históricas sugere eventual influência do primeiro no segundo. Por vezes a citação de um autor possui outros significados: mera concordância com o posicionamento, indicação de estudo mais aprofundado ou desenvolvido em outra perspectiva e a lista segue. No presente, busca-se elucidar como António Manuel Hespanha incorpora, isto é, torna suas, as ideias de Michel Foucault quanto ao método historiográfico. A correção das teses de Michel Foucault ou da atribuição feita por António Manuel Hespanha não estão em pauta – a análise é propositadamente unilateral.

3.1 FOUCAULT EM HESPANHA

O levantamento das referências de António Manuel Hespanha a Michel Foucault teve por acervo os artigos publicados na revista Análise Social, editada pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em Portugal, e os livros disponíveis à consulta, sem restrições. Em A história do Direito na História social (HESPANHA, 1978), tem-se citações de L ’archéologie du savoir (Paris, 1969), nas pp. 15, 19, 21 e 152, e de Surveiller et punir: naissance de la prison (Paris, 1975). Em História das Instituições: épocas medieval e moderna (HESPANHA, 1982), tem-se, novamente, a citação de L ’archéologie du savoir (Paris, 1969), nas pp. 23, 333 e 482. Em O Direito dos Letrados no Império Português (HESPANHA, 2006), tem-se apensa uma referência genérica na p. 20, não obstante o rol bibliográfico correspondente às pp. 109-145 indique L ’archéologie du savoir (Paris: Galimard, 1969) sem haver qualquer citação nessas mesmas páginas. A permanência na “bibliografia citada” – esse o título – pode ser considerada uma continuidade não suprimida pela eventual exclusão da referência na formatação do texto quando da confecção do livro. Em Caleidoscópio do Antigo Regime (HESPANHA, 2012), coletânea de textos publicada no Brasil, não foi encontrada qualquer citação de Michel Foucault, tampouco houve sua inserção nas referências bibliográficas ao final de cada artigo. Em Caleidoscópio do Direito: o Direito e a Justiça nos dias e no mundo de hoje (HESPANHA, 2014), Michel Foucault aparece nas referências finais com duas obras:

L’archéologie du savoir (Paris: Galimard, 1969) e L’ardre du discours (Paris: NRF, 1976), as quais são citadas uma única vez, na p. 651, em meio a diversos autores, na mesma nota de rodapé. Em Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio (HESPANHA, 2015), temse a citação de diversos comentadores de Michel Foucault: nas pp. 72, 386 e 496, Andrew Barry et al. (eds.) (Foucault and political reason. Liberalism, neo-liberalism and rationalities of government. Chicago: The University of Chicago Press, 1996); nas pp. 25 e 496, Antonio Serrano González (Michel Foucault. Sujeto, derecho, poder. Zaragoza: Universidade de Zaragoza, 1987); na p. 496, Jan Goldstein e Laura Engelstein (“Framing discipline with law: problems and promises of the liberal State”. American historical review, v. 98, n. 2, pp. 364-381, 1993); na p. 496, John Caputo Mark Yount (eds.) (Foucault and the critique of institutions. Philadelphia: The Pennsylvania State University Press, 1993); na p. 496, Peter Fitzpatrick (“A criação do sujeito de direito nas genealogias de Michel Foucault”, Revista do Ministério Público, n. 30, pp. 7-24, 1985); na p. 560, Alan Hunt e Gary Wickham (Foucault and the law: towards a sociology of law as governance. London: Pluto Press, 1994); na p. 496, Ramon Máiz (ed.) (Discurso, poder, sujeto: lecturas sobre Michel Foucault. Santiago de Compostela, 1987). A obra organizada por Luther H. Martin et al. (Un seminario con Michel Foucault: technologie del se. Torino: Bollati, 1992) aparece nas referências bibliográficas, na p. 614, mas não é citada ao longo do texto. Quanto às referências específicas a Michel Foucault, tem-se: nas pp. 27 e 239, L’archéologie du savoir (Paris: NRF, 1969); nas pp. 25, 26, 42 e 43, Microfísica del poder (Madrid: La Piqueta, 1978) (ed. fr., Microphysique du pouvoir, 1977); nas pp. 25 e 43, La verdad y las formas juridicas (Barcelona: Akal, 1980); nas pp. 25 e 43, Il faut défendre la société: Cours au Collège de France, 1976 (Paris: Hautes Études, Gallimard, Seuil, 1997); e, sem nenhuma citação, Surveiller et punir (Gallimard, NRF, 1975). Ademais, há remissões genéricas a Michel Foucault nas pp. 75, 496, 515, 560, 561. Por fim, a epígrafe do livro merece destaque, pois retirada do debate de Michel Foucault com Noam Chomsky (Human nature: justice versus power, consultado nos formatos audiovisual e textual disponíveis na web). A pesquisa no acervo da revista Análise Social retornou nove artigos de António Manuel Hespanha e uma entrevista a Pedro Cardim. Desses, sete artigos não

apresentaram qualquer menção expressa a Michel Foucault (HESPANHA, 1980, 1982, 1993a, 1993b, 2001, 2002a, 2003b). Na revisão do livro de Zygmunt Bauman (Legislators and Interpreters: On Modernity, Post-Modernity and Intelectuals. Cambridge: Polity Press, 1987), dois falsos positivos nas pp. 1162 e 1164 (HESPANHA, 1998), isto é, duas referências feitas, na verdade, por Edward Said e pelo próprio Bauman, ambos citados literalmente Já na revisão do livro de Paolo Grossi (Continuità e transformazioni: la scienza giuridica italiana tra fascismo e repubblica, Milano, Giuffrè, 1999), tem-se uma referência genérica na p. 1291 (HESPANHA, 2002b) e, na entrevista a Pedro Cardim, outra referência genérica na p. 434 (CARDIM, 2011). Por fim, em Categorias: uma reflexão sobre a prática de classificar (HESPANHA, 2003a) as referências são L’archéologie du savoir (1969) e Les mots e les choses (Paris, 1966), concentradas nas pp. 830, 831 e 832.

3.2 O FOUCAULT DE HESPANHA

Pois bem, a análise do levantamento apresentado no tópico anterior aponta a tematização do modo de produção jurídico e das categorias no contexto da fase arqueológica de Michel Foucault. Embora sua atenção ao longo do tempo não se tenha distanciado “[d]as relações existentes entre os discursos, as práticas de poder e seus efeitos sobre o sujeito” (FONSECA, 2012), Ricardo Marcelo Fonseca – e não só ele – identifica “um certo percurso intelectual do próprio Foucault”, marcado, no início, na década de sessenta, pelo enfrentamento da questão do saber. Não por acaso, portanto, a permanente referência de António Manuel Hespanha a L’archéologie du savoir ao longo de mais de três décadas de produção e, há de se destacar, sempre a primeira edição, publicada em 1969. Tanto em A História do Direito na História Social (HESPANHA, 1978) quanto em Categorias: uma reflexão sobre a prática de classificar (HESPANHA, 2003a), o referencial foucaultiano é L’archéologie du savoir.

Cumpre registrar a referência

singular a Les mots e les choses no artigo de 2003, mas sem precedente no acervo consultado. É possível indicar duas ideias-força assumidas por Hespanha e por ele atribuídas, em alguma medida, a Foucault: o “descentramento do sujeito”, a qual pode

ser tomada como premissa teórico-filosófica do conhecer, e a análise do discurso, a qual pode ser tomada como premissa teórico-metodológica do historiar. O “descentramento do sujeito” combate a noção humanista ou subjetivista de uma história global da atividade humana determinada pelo homem (HESPANHA, 1978, 2003a), sujeito-agente da razão universal capaz de “domina[r] todos os níveis da sua atividade” e de constituir e ordenar por completo suas atividades e objetos, inclusive no nível mais elementar da linguagem, a qual seria “meramente funcional e de todo ao dispor dos indivíduos que a falavam e que, eventualmente, a inventavam, não se conhecendo quaisquer leis intrínsecas às formas fonéticas e gramaticais que limitassem o arbítrio inventivo e modificativo dos sujeitos” (HESPANHA, 1978). Em suma, o historiar não deve ter por pressuposto a unidade interna perfeita dos tempos históricos, como se todos os acontecimentos e práticas estivessem inapelavelmente jungidos a um mesmo princípio homogeneizador, sem variações ou descontinuidades. É notável, porém, que Hespanha (1978) reconheça a origem dessa nova concepção no pensamento marxista, sobretudo nas interpretações de L. Althusser, G. Bachelard, J. Lacan e G. Canguilhem, expoentes de um amplo movimento de ideias nascido na França. Na análise do discurso, as palavras “têm de ser objecto de uma segunda leitura que as interrogue na sua própria espessura de enunciados linguísticos e não como meros suportes de algo que está para além delas – o sentido” (HESPANHA, 1978). Esse “método de questionamento do texto” – aplicável a discursos entre o literário e o científico, como o filosófico, o jurídico, o moral etc. – parte de uma “série de pressupostos teóricos e, até, filosóficos”, que relacionam os enunciados a estruturas discursivas e as estruturas discursivas a práticas discursivas. A estrutura discursiva resulta da composição de diferentes sistemas de formação dos objetos, de enunciação, de formação dos conceitos, de formação das estratégias etc. Do ponto de vista do historiador, cada um desses sistemas consiste em objeto de investigação – e chave para conhecer o universo jurídico do contexto –, os quais podem ser relacionados, de um lado, com os enunciados e, de outro, com as práticas discursivas. Na discriminação dessa arquitetura do conjunto discursivo, Hespanha (1978) remete o leitor às páginas de L’archéologie du savoir, de Michel Foucault.

As categorias, por sua vez, surgem nos “dispositivos materiais da produção cultural”, conforme Hespanha depreende, novamente, de L’archéologie du savoir, de Michel Foucault; mais precisamente, “é nesses dispositivos e nas práticas discursivas que eles suscitam que as formações discursivas, ou seja, as particulares configurações dos discursos num determinado período, têm a sua origem” (HESPANHA, 2003a). Não é demasiado questionar se os dispositivos não são os instrumentos-meios pelos quais os sujeitos-agentes operam no modo de produção jurídico. Em verdade, Hespanha (2003a) substitui “o sujeito, com o seu poder de atribuição de sentido” pelos “dispositivos que, objectivamente, constituem os sentidos possíveis. Dispositivos, uns intelectuais, outros materiais, outros sociais”, considerando que “entre os primeiros estão as nossas categorias”. É de ver que, para a melhor compreensão da relação entre categorias, dispositivos intelectuais e prática discursiva, Hespanha não remete o leitor a nenhuma obra de Michel Foucault, mas a textos dele próprio – António Manuel Hespanha.

4 CONCLUSÃO

Ao concluir o presente estudo, a pesquisa parece ter cumprido o objetivo lançado na introdução, qual seja, resgatar as referências feitas por António Manuel Hespanha a Michel Foucault, com o objetivo de responder qual relevância aquele atribui ao último na elaboração de seu modo de abordar o fenômeno jurídico, especificamente quanto ao modo de produção jurídico e às categorias. O levantamento do acervo disponível ao pesquisador, conforme indicado na segunda parte do artigo, possibilitou a identificação da permanência de L’archéologie du savoir, de Michel Foucault, no referencial teórico de António Manuel Hespanha, sobretudo quando entendeu pertinente explicitar os fundamentos de suas escolhas metodológicas. Por essa razão, detalhou-se como António Manuel Hespanha trabalhou a obra de Michel Foucault, isto é, quando e por que se referiu a ele ao desenvolver suas considerações acerca do modo de produção jurídico e das categorias. Explicou-se, também, a relação conceitual entre as categorias e o modo de produção jurídico, promovendo a inteligibilidade de ambos os artefatos teóricos.

A recusa a explicações históricas mecanicistas, que implicam a redução arbitrária da complexidade da vida social, não conduziu António Manuel Hespanha a nenhum idealismo, racionalismo ou subjetivismo. Antes, situou-se firme e lucidamente no plano da realidade, a partir do qual, bem assentado, poderia escalar da análise dos textos, documentos e discursos imediatos à identificação das permanências, rupturas e relacionamentos mediatos.

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