O monstro e a virgem: o legado da propaganda “Destroy this mad brute”

June 19, 2017 | Autor: Rosana Pavarino | Categoria: Social Representations, Imaginário social, War Propaganda
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Ana Taís Martins Portanova Barros (org.)

Anais do II Congresso Internacional do Centre de Recherches Internationales sur l'Imaginaire

A teoria geral do imaginário 50 anos depois: conceitos, noções, metáforas

Porto Alegre Imaginalis Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 2015

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO BIBLIOTECA C749a

Congresso Internacional do Centre de Recherches Internationales sur l’Imaginaire (2. : 2015 : Porto Alegre, RS) [Anais...] / Ana Taís Martins Portanova Barros (Organizadora). – Porto Alegre: Imaginalis, 2015. ISBN: 978-85-69699-00-278 1. Imaginário. 2. Comunicação I. Barros, Ana Taís Martins Portanova. (Org.). II. Titulo. CDU: 159.954

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Ficha Técnica II Congresso Internacional da rede CRI2i (Centre de Recherches Internationales sur l'Imaginaire): a Teoria Geral do Imaginário 50 anos depois: conceitos, noções, metáforas Evento científico: 29 e 30 de outubro de 2015 Assembleia geral do CRI2i: 31 de outubro de 2015 Local: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil Coordenação geral Ana Taís Martins Portanova Barros (PPGCOM/UFRGS/Brasil) Organizadores Ana Taís Martins Portanova Barros (PPGCOM/UFRGS/Brasil) Jean-Jacques Wunenburger (Université de Lyon 3/ Lyon, França) Comissão científica Ana Taís Martins Portanova Barros (UFRGS, Brasil) Artur Simões Rozestraten (USP, Brasil) Eduardo Portanova Barros (UNISINOS, Brasil) Jean-Jacques Wunenburger (Université de Lyon III, França) Lucia Maria Vaz Peres (UFPel, Brasil) Maria Cecília Sanchez Teixeira (USP, Brasil) Philippe Walter (Université de Grenoble III, França) Comissão organizadora Andriolli de Brites da Costa Anelise Angeli de Carli Annelena Silva da Luz Carlos André Echenique Dominguez Danilo Fantinel Francisco dos Santos Renata Lohmann Comitê diretor do CRI2i Jean-Jacques Wunenburger (Université Jean Moulin, Lyon, França) Philippe Walter (Université Stendhal, Grenoble, França) Corin Braga (Université Babes-Bolyai, Cluj, Romênia) Danielle Perin Rocha Pitta (UFPE Recife, Brasil) Fanfan Chen (National Dong Hwa University, Hualien, Taiwan) Apoio CNPq, processo 466118/2014-7 CAPES, processo PAEP 3825/2015-49

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Apresentação A Teoria Geral do Imaginário 50 anos depois: conceitos, noções, metáforas Ao longo do século XX, o imaginário deixou de ser sinônimo de fantasia ou de ser associado à loucura para ocupar um elugar epistemológico e ontológico específico na produção de representações e de sabers, ao ponto de constituir sua própria heurística. Deve-se isso ao trabalho de numerosos pensadores oriundos dos campos mais diversos das Ciências Humanas e Sociais, da filosofia à psicanálise, da antropologia à literatura, que desembocou na Teoria Geral do Imaginário, lançada há quase 50 anos em Chambéry (França) sob forma do primeiro CRI (Centro de Pesquisas sobre Imaginário). Desde então, os estudos sobre o imaginário se tornaram mais diversificados e complexos através do mundo e através das disciplinas. Diversos movimentos epistemológicos reivindicaram conceitos mais flexíveis, que se tornaram noções e se dispersaram em metáforas. Se, por um lado, as noções e as metáforas apresentam a vantagem de admitir mais de uma ideia por vez, como as ideias contraditórias, por outro lado elas podem levar à imprecisão ou à equivalência generalizada dos termos, tornando vão o trabalho do pensamento. O II Congresso Internacional da rede CRI2i (Centro de pesquisas internacionais sobre o imaginário) se propõe assim proceder a um estado da arte, a um balanço epistemológico e a uma perspectivação científica em torno do imaginário, suas acepções, seus recursos, suas aplicações. Durante estes 50 anos de Teoria Geral do Imaginário, quais foram os conceitos mais frutíferos para as pesquisas? Em quais metáforas eles foram transformados? Que oscilações epistemológicas a teoria conheceu? Que novas perspectivas podem se abrir hoje em contato com os novos campos de saber, sempre inspiradas pelo legado dos fundadores? A presente reunião de comunicações feitas quando do II Congresso Internacional do CRI2i, que ocorreu de 29 a 31 de outubro de 2015, em Porto Alegre, se organiza em torno de conferências plenárias, mesas-redondas e grupos de trabalho. O conjunto reúne contribuiçòes intelectuais fecundas a partir de cerca de cem artigos inéditos que nos revelam o panorama atual da pesquisa sobre imaginário. Boa leitura! Ana Taís Martins Portanova Barros (UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil) Jean-Jacques Wunenburger (Université Jean Moulin, Lyon 3, France) Organizadores do II Congresso Internacional da rede CRI2i

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Avant-propos La théorie générale de l'imaginaire 50 ans après : concepts, notions, métaphores Au fil du XXe siècle, l’imaginaire a cessé d’être synonyme de fantaisie ou d'être associé à la folie, pour occuper une place épistémologique et ontologique spécifique dans la production des représentations et des savoirs, jusqu'à constituer sa propre heuristique. On le doit au travail de nombreux penseurs, issus des champs les plus divers des Sciences humaines et sociales, de la philosophie à la psychanalyse, de l’anthropologie à la littérature, qui a abouti à la Théorie Générale de l’Imaginaire, lancée il y a presque 50 ans à Chambéry (France) sous forme du premier CRI (Centre de recherche sur l'imaginaire). Depuis lors, les études sur l’imaginaire se sont toujours plus diversifiées et complexifiées à travers le monde et à travers les disciplines. Plusieurs mouvements épistémologiques ont revendiqué des concepts plus flexibles qui sont devenus des notions et se sont dispersés en métaphores. Si, d’un côté, les notions et les métaphores présentent l’avantage d’admettre plus d’une idée à la fois, voire des idées contradictoires, de l’autre, elles peuvent conduire à l’imprécision voire à l'équivalence généralisée des termes, rendant vain tout travail de la pensée. Le II Congrès International du réseau CRI2i s'est donc proposé de procéder à présent à un état des lieux, à un bilan épistémique et à une prospective scientifique autour de l'imaginaire, ses acceptions, ses ressources, ses applications. Pendant ces 50 ans de Théorie Générale de l’Imaginaire, quels ont été les concepts les plus fructueux pour les recherches ? En quelles métaphores se sont-ils transformés ? Quelles oscillations épistémologiques la théorie a-t-elle connu ? Quelles nouvelles perspectives peuvent-elles s'ouvrir aujourd'hui au contact des nouveaux champs de savoir tout en restant inspirées par l'héritage des fondateurs ? Le présent recueil des communications faites lors du II Congrès International du CRI2i, les 29-30 octobre 2015, à Porto Alegre, s'organise autour de séances plénières, tables-rondes et ateliers de recherche. L’ensemble rassemble des ressources intellectuelles fécondes de près d’une centaine d'articles inédits qui nous révèlent le panorama actuel de la recherche sur l'imaginaire. Bonne lecture ! Ana Taís Martins Portanova Barros (UFRGS, Porto Alegre, RS, Brésil) Jean-Jacques Wunenburger (Université Jean Moulin, Lyon 3, France) Comité d'organisation du II Congrès du réseau CRI2i

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Sumário Conferências plenárias ......................................................... 14 Jean-Jacques WUNENBURGER.......................................................................... 15 L’anthropologie de l‘imaginaire selon Gilbert Durand : Contextes, options, enjeux Danielle Perin Rocha PITTA ................................................................................ 29 Diversidade cultural brasileira e a teoria sobre o imaginário de Gilbert Durand : correspondências e derivações Corin BRAGA ...................................................................................................... 45 Archétypocritique, mythocritique, psychocritique Malena CONTRERA ............................................................................................ 62 A imagem simbólica na contemporaneidade Francimar ARRUDA ............................................................................................ 74 Imagem contemporânea e imaginário: como aproximá-los? Mesa redonda 1: Subversões imagéticas e filosofia de vida .................................. 81 Florence DRAVET ............................................................................................... 82 Communication et Nonsens – Étude du tournoiement de la pombagira pour une communication féminine Hildo Honório do COUTO Elza Kioko Nakayama Nenoki do COUTO .......................................................... 99 Une possibilité de dialogue entre l’anthropologie de l'imaginaire et l'écolinguistique María Noel LAPOUJADE .................................................................................... 110 La philosophie de la vie chez Gaston Bachelard aujourd’hui Alina Ioana BAKO ............................................................................................... 122 La subversion de l’imaginaire : le cas de la littérature roumaine Vanessa Costa e Silva SCHMITT......................................................................... 134 L'idéologie du progrès dans l'imaginaire scientifique du XIXe siècle : le credo du docteur Pascal dans le roman éponyme d'Émile Zola (1893) Mesa redonda 2: Imaginação simbólica: mídia, culto e religiosidade ...................... 153 Marco Antônio DIB .............................................................................................. 154 Mitodologia durandiana – a mitocrítica Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

Gustavo de CASTRO ............................................................................................ 182 Imaginário, literatura e mídia Artur ROZESTRATEN ........................................................................................ 191 Constelações de imagens fotográficas de arquitetura: desafios do projeto ARQUIGRAFIA Jorge MIKLOS...................................................................................................... 209 A tecnologia como religião: imaginário tecnológico e religioso na cibercultura - o culto à Apple Jorge Augusto MAXIMINO ................................................................................. 222 Discurso metafórico, imaginário e alteridade em Primeiras estórias de João Guimarães Rosa Mesa redonda 3: Da representação tecnológica à fenomenologia do corpo .............. 235 Paolo BELLINI ..................................................................................................... 236 Le langage de l'imaginaire entre mythe et utopie Stanislas DE COURVILLE .................................................................................. 262 L'image manquante: le cinéma à l'épreuve du travail de mémoire Marie-Agnès CATHIARD .................................................................................... 278 Et il fallut attendre le début de ce XXIe siècle pour que deux intuitions fondamentales, de Jung et Bachelard, inspirateurs du CRI naissant, se conjuguent en corps neural Juliana Michelli OLIVEIRA ................................................................................. 307 As máquinas de Morin: o vivo como modelo do artificial Mireille COURRÉNT ........................................................................................... 322 Le mode ternaire, concept dynamique d’organisation dans le monde grec antique.Gilbert Durand et le modèle homérique Mesa redonda 4: O paradigma da complexidade e a Teoria Geral do Imaginário ........ 333 Alberto Filipe ARAÚJO ....................................................................................... 334 Da necessidade de falar-se de mitanálise em educação. Uma contribuição à hermenêutica do mito Monique SILVA Vanessa VASCONCELLOS Valeska Fortes de OLIVEIRA .............................................................................. 354 As contribuições do imaginário para a educação: um estado da arte Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

Maria Thereza de Queiroz Guimarães STRÔNGOLI .......................................... 370 Um novo olhar sobre as estruturas de Gilbert Durand Alberto Filipe ARAÚJO Lúcia Maria Vaz PERES Iduina Mont’Alverne Braun CHAVES ................................................................. 380 O imaginário educacional como contributo às linguagens da educação Thácio FERREIRA DOS SANTOS...................................................................... 395 Durandismo no Brasil: ou florescimento de novas propostas teórico-metodológicas? Grupo de Trabalho 1: Imaginário, ciência e tecnologia ................. 415 Carlos ORELLANA.............................................................................................. 416 A imaginação radical Cláudio CORDOVIL ............................................................................................ 434 A religião dos fatos: a persistência do mito do genesis nas representações da Nova Genética Luis Flávio Almeida LUZ .................................................................................... 454 Construção de uma paisagem gráfica para a visualização do imaginário, elaborada a partir da tentativa de compreensão do funcionamento da noosfera Alexandre Vergínio ASSUNÇÃO ........................................................................ 468 Imaginário e tecnologia: pequeno ensaio sobre suas aproximações Andriolli COSTA e Francisco SANTOS .............................................................. 482 Reportagem algorítmica: imagens de um jornalismo sem jornalistas Denise Ayres GOMES e Roberto José RAMOS .................................................. 497 Tecnologias do imaginário: o jornalismo como promotor das doenças mentais Cláudia Mariza Mattos BRANDÃO e Gustavo REGINATO .............................. 513 Imagens, tecnologias do imaginário e formação docente Mágda CUNHA e Paula VISONÁ ....................................................................... 522 O inacabado: a estética no cruzamento tecnológico Heloisa Juncklaus MORAES e Edla LUZ ............................................................ 538 O lugar místico da intimidade no imaginário contemporâneo: o parto como espetáculo Grupo de Trabalho 2: Imaginário e cotidiano ............................. 551 Gustavo de CASTRO e Victor STOIMENOFF.................................................... 552 Imaginário pós-romântico entre travestis

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Alex DAMASCENO ............................................................................................ 566 A imaginação técnica e dialógica na sociabilidade dos videochats randômicos Jonara Raquiel ECKHARDT e Leonardo CHARRÉU ......................................... 584 Ambientes, dissensos e fricções docentes nas artes visuais: Vivendo e experimentando na casa de Bachelard Valéria Cristina Pereira da SILVA ....................................................................... 590 Paisagens sensíveis e flutuantes: o imaginário da cidade na era da imaginação Adilson MARQUES ............................................................................................. 614 Saúde integral e imaginário: uma proposta de tecnologia social e comunitária Lisandro Lucas MOURA ...................................................................................... 619 O imaginário nas narrativas visuais do cotidiano: contribuições para a retomada de uma educação reencantada Angelita HENTGES.............................................................................................. 634 Imaginários da cultura brasileira: A educação e a ancestralidade nas rodas de capoeira Angola José CELORIO e Lúcia PERES ........................................................................... 646 As faces de Saturno: Imaginário, melancolia e mal-estar na escola Fabio José Cardias GOMES ................................................................................. 656 Pescadores em busca do seu Touro: regência, sabência e sofrência no imaginário da Ilha dos Lençóis – MA Lúcia Maria Vaz PERES e Valeska Maria Fortes de OLIVEIRA........................ 671 Transitando entre a antropologia do imaginário e o imaginário social: trajetos de dois grupos e de duas pesquisadoras que buscam o sentido existencial para seus ofícios Grupo de Trabalho 3: Imaginário e mídia .................................. 684 Elza Nakayama Nenoki do COUTO, Heloanny de Freitas BRANDÃO e Lais Carolina Machado e SILVA ....................................................................... 685 O regime crepuscular e a construção do imaginário sustentável na publicidade Colgate Frederico de OLIVEIRA....................................................................................... 704 Mitosfera do Consumo: um olhar mitodológico sobre a temporalidade dos slogans que passam na TV Rafiza VARÃO e Rosana PAVARINO ................................................................ 724 O monstro e a virgem: o legado da propaganda “Destroy this mad brute” Annelena LUZ e Paula CORUJA ......................................................................... 744 Um olhar oximorônico da publicidade da “Real Beleza” Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

Paula Francinete Barros BEZERRA e João de Deus Vieira BARROS ................ 758 Estado da arte da área de cultura visual, mediação educativa e imaginário no contexto da arte contemporânea em periódicos brasileiros Lutiana CASAROLI ............................................................................................. 775 Autorreferencialidade midiática: Imagem e Imaginário Anelise Angeli DE CARLI e Renata LOHMANN ............................................... 796 Minha câmera para mim: Sentidos do gesto da selfie Ada SILVEIRA e Isabel GUIMARÃES............................................................... 808 A mediação do imaginário na representação da periferia Leidiane Coelho JORGE....................................................................................... 819 Pregnância simbólica ou esteriótipo: as narrativas tecidas pelos descendentes dos colonizadores acerca dos Xokleng no município de Pouso Redondo/SC Wilson NOGUEIRA ............................................................................................ 832 Boi-bumbá de Parintins: uma abordagem comunicacional ecossistêmica do imaginário amazônico no espetáculo midiático Eunice Simões Lins GOMES................................................................................ 853 Batismo em águas e discurso jornalístico: Das imagens que se mostram às imagens que se ocultam Flávia Gabriela da Costa ROSA ........................................................................... 873 Imaginários corrompidos: Audiência da fé a serviço da mediosfera Grupo de Trabalho 4: Imaginário e linguagens ............................ 890 Elza Kioko Nakayama Nenoki do COUTO e Samuel de Sousa SILVA ............. 891 O olhar que distorce o tempo e o espaço: mitocrítica do discurso científico Naiara Gomes de OLIVEIRA e Ana Beatriz Simon FACTUM ........................... 901 Contribuições da teoria do imaginário através do diálogo entre arte, design e a obra do profeta Gentileza Fernanda NORONHA .......................................................................................... 920 Animês e mangás: o mito vivo e vivido no imaginário infantil Ana Laudelina Ferreira GOMES .......................................................................... 942 A religação dos saberes no rio do imaginário e da imaginação simbólica Eduardo Romero Lopes BARBOSA .................................................................... 953 Mitos do corpo na performance

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Franciele Machado de AGUIAR .......................................................................... 974 A presença na imagem: intensidades mitopoéticas em cena Márcio Soares dos SANTOS e Adriana Pierre COCA ......................................... 985 Vinheta de abertura de “Roque Santeiro”: a esfera simbólica do início do período redemocrático do país configurada diariamente na TV Danilo FANTINEL ............................................................................................... 995 Família centro do mundo, descida ao inferno, renascimento e queda: O imaginário movido pelo rockumentary Cobain: Montage of Heck Maria Zilda da CUNHA e Maria Auxiliadora Fontana BASEIO ........................ 1021 Imaginário e Literatura em perspectiva interdisciplinar Heloisa Juncklaus Preis MORAES, Willian Corrêa MAXIMO e Luiza Liene BRESSAN ..................................................................................... 1038 Entre os fios que tecem a peneira d’água: uma leitura do imaginário por meio do Regime Diurno da imagem Luara Pinto MINUZZI .......................................................................................... 1052 Mia Couto e a simbologia de barcos: navegar, mais do que preciso, é sonhável Renata LISBÔA .................................................................................................... 1069 A constituição do si-mesmo e os valores do ser: os devaneios da intimidade em Bachelard, a invenção poética em Manoel de Barros e a psicanálise em Winnicott Grupo de Trabalho Temas Transversais A .................................. 1087 Alberto Filipe Ribeiro de Abreu ARAÚJO e Iduína Mont’Alverne Braun CHAVES .............................................................. 1088 Da “boa vida” a um “bem viver” num quotidiano à deriva: um olhar mitanalítico Carlos André Echenique DOMINGUEZ .............................................................. 1106 A natureza e a emoção no ethos jornalístico Sueli SCHIAVO.................................................................................................... 1127 Mídia, imaginário e a relação com a responsabilidade social Ivan Vasconcelos FIGUEIREDO ......................................................................... 1138 Imaginários sociodiscursivos transgressivos de Black Blocs Paula Cristina VISONÁ e Paula CORUJA ........................................................... 1158 Memórias do futuro: novas práticas para moda e comunicação

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Cristiane WEBER e Ernani César FREITAS ....................................................... 1170 A figura do Sumo Pontífice e a quebra de um tabu: o discurso do Papa Francisco e o imaginário da comunidade católica a respeito do tema homossexualismo Alecrides Jahne Raquel Castelo Branco de SENNA ............................................ 1192 Um número no Lager: um estudo sobre o nome e alma no judaísmo, a partir da literatura da Shoah Ivana Soares PAIM ............................................................................................... 1201 Um Orixá evangélico: a transição de Exu para o culto da Igreja Universal do Reino de Deus Vânia NORONHA ................................................................................................ 1215 Imagens míticas na celebração do reinado de Nossa Senhora do Rosário Givaldo Ferreira CORCINIO Jr ............................................................................ 1233 A arte da fé: os ex-votos no imaginário religioso de Trindade-Goiás Grupo de Trabalho Temas Transversais B .................................. 1248 Ana Iara Silva de Deus e Roseléia SCHNEIDER ................................................ 1249 Imaginário, cinema e formação: a linguagem cinematográfica na ação educativa Andressa Lima TALMA e Waldeir Reis PEREIRA............................................. 1258 A construção da identidade étnico-racial: trajetórias de professoras negras Genis Frederico Schmaltz NETO ......................................................................... 1277 O imaginário sob a perspectiva ecológica da linguagem Silvia Sueli Santos da SILVA e Cainã de Paula MELLO .................................... 1287 Recortes Poéticos da Amazônia Ribeirinha: narrativas de quintais em Paquetá Luciana Martins LINDNER .................................................................................. 1297 A técnica de pesquisa da autoscopia: primeiras aproximações com a abordagem teórico-mitodológica do imaginário Aline Fatima da Silva Costa MAGNO ................................................................. 1313 Sistema IDA: Uma Metodologia de criação artística em Diálogo com as Ciências do Imaginário Marília G. G. GODOY e Alzira L. A. CAMPOS ................................................. 1321 Renovação da Casa de Reza (opy) em aldeias Guarani Mbya: imaginário e xamanismo Cláudio Baptista CARLE...................................................................................... 1338 O Quilombo do Paredão pela atmosfera do Imaginário Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

Zilda Dourado PINHEIRO ................................................................................... 1350 O estudo do corpo pelo viés da antropologia do imaginário Andrisa Kemel ZANELLA e Lúcia Maria Vaz PERES ....................................... 1362 Escrituras do corpo biográfico: um olhar a partir do imaginário e da memória

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Conferências plenárias Séances plénières

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L’anthropologie de l‘imaginaire selon Gilbert Durand : contextes, options, enjeux Jean-Jacques WUNENBURGER Université de Lyon III, IRPhil, Lyon, France

Commencée par le monumental ouvrage sur les "Structures anthropologiques de l'imaginaire", contemporain de la montée en puissance du structuralisme dans les sciences humaines et sociales en France durant les années 1960 et interrompue après les derniers travaux de comparatisme nés de la mythodologie dans les années 2000, la pensée de Gilbert Durand se présente comme une vaste refonte des hypothèses et thèses sur l’activité imaginative de l’espèce humaine, au carrefour de toutes les disciplines innovantes du siècle, de la neurobiologie à l’histoire culturelle comparée, en passant par la philosophie, la sociologie, la psychanalyse, l’ethnographie, la linguistique, les sciences des religions, les sciences de la nature, etc. Il est sans doute encore difficile, au vu de notre grande contemporanéité avec cette œuvre, d’en évaluer toutes les innovations et tous les retentissements, mais on peut néanmoins esquisser quelques grandes lignes permettant de mieux en apprécier la force heuristique et même sa dimension avant-gardiste, qui restent souvent masquées par les grandes idéologies dominantes des sciences humaines

I- Contexte historique

Les "Structures anthropologiques de l'imaginaire", maître-livre qui a d’ailleurs dans le public universitaire souvent éclipsé une grande part de l’œuvre ultérieure, sont le fruit d’un travail de thèse d’un agrégé de philosophie, professeur au Lycée de Chambéry, marqué par les cours de Gaston Bachelard (mort en 1962) et les livres – antithétiques- de Jean Paul Sartre, et déterminé à comprendre la fonction générale de l’imagination dans les arts et les religions de l’humanité. Quel est le paysage intellectuel sur le fond duquel se découpent ce premier grand travail, en même temps que la thèse complémentaire consacrée au « Décor mythique de la Chartreuse de Parme » de Stendhal, illustre écrivain savoyard lui aussi. La fin des années 50 et le début des années 60, pour un jeune philosophe soucieux de circuler aux confins de la philosophie, de la littérature et des sciences sociales, restent dominés par une double filiation intellectuelle française et allemande.

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Du côté de la culture française s’impose un style de pensée métaphysique concrète, issue de H. Bergson, relayée par la nouvelle phénoménologie (issue de Husserl et Heidegger autour de M Merleau Ponty), par les versions chrétiennes et athées de l’existentialisme (J.P. Sartre, G. Marcel, E. Mounier, etc.), qui centrent la relecture de la vie de l’esprit sur l’affectivité, l’imagination, le temps et la mort, plus que sur la rationalité purement spéculative et abstraite. En marge, on retrouve l’écho des mouvements intellectuels et artistiques qui ont cherché à développer des transgressions de la raison; le surréalisme d’abord, célèbre pour ses audaces relatives à l’infra et l'outre-conscient, le Collège de sociologie des années 1930 (R. Caillois, G. Bataille, etc.), dont les protagonistes continuent à développer après-guerre des positions, en ordre séparé mais allant dans le même sens d’un dépassement des catégories de la rationalité. Pour tout philosophe et littéraire, la culture allemande demeure aussi une source foncière d’inspiration. G.Durand est familier avec la pensée goethéenne, le romantisme allemand (il reprend le terme de « Fantastique Transcendantale » à Novalis), l’immense tradition de la théosophie allemande de Jakob Boehme à Franz von Baader, irriguant l’idéalisme allemand (Schelling, Hegel) mais aussi les contributions plus récentes des néokantiens (E. Cassirer, auquel G. Durand consacre une notice dans l'Encyclopaedia universalis), de la phénoménologie (Ed. Husserl, M. Heidegger dont l’œuvre maîtresse « Sein und Zeit » inscrit le rapport temporel à la mort au cœur d’une métaphysique, qui sous-tend clairement aussi les "Structures anthropologiques de l'imaginaire" 1). Il nous semble que G. Durand se trouve donc à l’entrecroisement de ces traditions françaises et allemandes, à l’égal de son maître G Bachelard, souvent qualifié de « rationaliste romantique », porteur d’une méthode de conceptualisation très cartésienne mais mise au service d’une conception de l’esprit élargie, où la conscience est à l’intersection entre des profondeurs inconscientes et une participation au tout de la Nature et du cosmos. Et c’est même cette réintroduction de l’"anthropos" dans son milieu éco-éthologique qui incite un jeune philosophe comme G. Durand à faire place aux nouvelles approches des sciences de la nature et de l’homme : éthologie, de von Uexküll à A. Portman 2, mais aussi neuro-biologie

1

G. Durand définit bien l’imaginaire comme fonction d’euphémisation voire d'exorcisation de la mort, en proximité avec A. Malraux. Voir SAI p 470 sq. 2 Les années 60 voient se populariser les conceptions de l’éthologie (K Lorenz), qui facilitent la redécouverte des travaux des fondateurs, plus connus en pays germaniques, comme von. Uexküll et A. Portmann qui sont pourtant connus et discutés par Merleau-Ponty tout au long de son oeuvre. A Portmann est d'ailleurs assidu aux rencontres d’Eranos, aux côtés de G. Durand. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 16

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(écoles pavloviennes), puis plus tard les conséquences épistémologiques des récentes révolutions scientifiques du début du siècle (mécanique quantique, etc.). Peu à peu se met en place une vaste culture, allant des savoirs les plus positifs aux spéculations les plus chargées de références symboliques et métaphysiques, qui vient servir de socle à un projet ambitieux : remettre l’imagination et l’imaginaire au centre de la compréhension de l’"anthropos" et de ses constructions culturelles et présumer que cette production symbolique relève d’une science de l’homme, c'est-à-dire peut être modélisée, réglée, comme Bachelard avait commencé à le proposer depuis 1937. En s’investissant dans une telle entreprise, G. Durand a conscience de réouvrir un chemin très ancien, celui de la mytho-logie (le logos de la conscience mythique), mais aussi fort intempestif et suspect au yeux de ses contemporains, encore dominés par le positivisme voire le scientisme, même et surtout dans les sciences sociales (freudisme et marxisme). G. Durand se lance pourtant sur la voie de la recherche anthropologique dans les années 1950 avec la même ferveur et rigueur qu’il s’est lancé dans les années 1940 dans la résistance à l’Allemagne nazie durant la seconde guerre mondiale. Dans l’histoire réelle des hommes comme dans l’histoire des idées, il s‘agit de choisir avant tout les valeurs de liberté, de vérité, de l’esprit de résistance aux puissances dominantes et combattre en franc-tireur toutes formes d’oppression et d’aliénation. Pour G. Durand l’étude de l‘homme est passée aux mains de courants d’idées réductionnistes et quasi totalitaires, qui divisent l’homme pour mieux le réduire à l’objectivité, qui cherchent dans divers matérialismes, historicismes, déterminismes externes les clés d’une humanité qui s’est révélée en fait limitée le plus souvent à l’homme européen rationnel, propre aux Lumières, incapables de comprendre les diverses voies des cultures pour exprimer leur sens de la vie et du monde. Proche, nous semble-t-il, de ce Waldgänger réfractaire cher à E Jünger, G. Durand va se frayer un chemin original, qui armé des meilleures méthodes des sciences humaines et sociales, même des données statistiques et plus tard des outils numériques- va redessiner un visage de l’homme aux antipodes des canons de la modernité rationaliste. C’est bien pourquoi la nouvelle anthropologie centrée sur l’imagination symbolique, tout en intégrant certaines données les plus positives et scientifiques, va déplacer son centre de gravité pour prendre en charge aussi les acquis des sciences traditionnelles, des expériences de l’esprit telles que les relatent et les amplifient, les gnoses, la théosophie, l’ésotérisme, l’alchimie, les mystiques, non seulement de l’occident chrétien, mais aussi du judaïsme et de l’islam, plus encore des sociétés

africaines, indiennes, chinoises. Ce

décentrement

et

cette

amplification

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anthropologiques se veulent triplement en rupture avec une philosophie et des sciences humaines, accusées d’être trop ethnocentrées et logocentrées : - d’abord en intégrant les cultures de l’ombre par rapport aux références retenues par l’esprit de l’Aufklärung qui n’a sélectionné dans la culture que ce qui devait permettre une émancipation historique par la rationalité universelle. Pour G. Durand les savoirs parcellaires et unidimensionnels des sciences humaines doivent être recalibrés et rectifiés pour entrer dans une Science de l'Homme au singulier, pour signifier par là que l’Homme doit être saisi dans son propre et dans son unité mais aussi à travers la pluralité de ses manifestations, qui comprennent autant le rationnel que le religieux, autant l’identité que l’analogie, autant le concept que le symbole ; - ensuite, en s’ouvrant aux cultures d’ailleurs, c'est-à-dire avant tout non occidentales, d’autant plus que l’imaginaire européen et occidental a été dominé par un seul type d’imaginaire, millénariste et progressiste, qui a étouffé voire colonisé d’autres matrices d’imaginaires du temps. G. Durand n'a cessé de désoccidentaliser ses références pour appréhender les sources vives de l’imaginaire trop désymbolisé en Occident, cherchant par là un véritable « orient », qui n’indique pas seulement une orientation géographique, mais une source spirituelle déployant un sens multidimensionnel que le rationalisme a démythifié voire démystifié imprudemment 3 ; - enfin en bâtissant une théorie de la culture qui ne soit plus découplée des autres sciences mais soit articulée avec elles. Il est essentiel pour G Durand que la représentation de l’homme soit compatible avec les données les plus récentes des sciences de la nature, qui ont de la même manière activé des modes de penser en rupture avec les paradigmes antérieurs. Il est significatif que G. Durand ait attaché autant d’importance aux colloques de Cordoue, de Venise ou de Washington sur les rapports entre sciences et gnoses, qui ont, en leur temps, cherché à penser l’unité de l’esprit et de la nature par une même rationalité contradictorielle. Il résulte de toutes ces convergences et exigences un ensemble de propositions anthropologiques complexes qui peuvent se décliner à deux niveaux de compréhension : l’un exotérique, formulé selon les normes dominantes et qui permet de retourner les méthodes des sciences humaines contre leurs propres résultats pour laisser apparaître une autre lecture des productions symboliques ; l’autre ésotérique, c'est-à-dire non réservée à des initiés, mais 3

Sur la notion d’"orient" voir l'ensemble des publications de l'Université Saint Jean de Jérusalem, fondée par Henry Corbin. puis les travaux du Groupe d'études spirituelles comparées avec A. Faivre; et J. L. VieillardBaron.. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 18

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présupposant l’accord préalable et tacite de fondamentaux herméneutiques différents, et qui complète le consensus de l’argumentation par une fraternité des affinités, permettant d’incorporer toutes les informations de la Tradition dans les propositions de la modernité et de confirmer cette dernière par les premières. On peut donc soutenir que l’œuvre en gestation dès les années 60 se tient à un carrefour rare, qui accepte les héritages philosophiques français et allemand du siècle, les tisse de nouveaux paradigmes issus des mouvements culturels de transgression de la rationalité mais en s’appuyant sur un dialogue avec les nouvelles logiques des sciences, de l’homme et de la nature. Il en résulte une volonté de savoir, conforme aux grandes écoles du structuralisme et de l’herméneutique modernes (expliquer et comprendre), mais toujours nourrie de la longue durée des traditions et de la pluralité des visions culturelles.

II- Une révolution épistémologique.

La nouvelle anthropologie durandienne résulte donc d’une reconnaissance des savoirs des différentes sciences mais aussi de leur réorganisation voire de leur réinterprétation dans le sens d’une épistémologie rectifiée. Sur quelles bases G. Durand va-t-il bâtir sa méthodologie d’étude de l’imaginaire des cultures ? Trois grandes orientations peuvent être dégagées : - la recherche d’une troisième voie entre structuralisme et herméneutique. Les années 60 étaient en effet dominées par deux grandes méthodologies : l’une, représentée par Cl. Lévi Strauss, proposait d’expliquer les superstructures complexes des mythes des sociétés par une même combinatoire formelle de mythèmes, régis par la binarité et l’opposition, selon les référentiels dégagés par la linguistique saussurienne. L’universalité de l‘imaginaire s’expliquait par une rationalité algorithmique sous-jacente, réduisant les variations des récits à des jeux formels et non à des changements du contenus de sens. A l’opposé, l’herméneutique, d’origine allemande, trouvait chez P. Ricoeur une version alternative soulignant l’importance du moment existentiel et historique de l’acte d’interprétation des mythes en plus de leurs contraintes formelles qui ne sauraient être qu’un soubassement. Entre les deux méthodes, G. Durand veut conserver de l'oeuvre de Lévi-Strauss une science des structures des discours, mais de l’herméneutique la dimension du sens symbolique, aboutissant ainsi à énoncer un « structuralisme figuratif ». Ainsi prenaient formes « mythocritique » et« mythanalyse » en tant que méthodes syncrétiques et hybrides, participant de chacune des méthodes dominantes.

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- La nouvelle science de l’imaginaire conduisait à distinguer deux régimes et trois structures qui se déclinaient à différents niveaux, des postures corporelles aux symboles culturels. On pouvait ainsi, à partir des données artistiques et religieuses, rapporter les œuvres à des figures typiques pouvant elles-mêmes s’opposer ou se concilier en un métadiscours, voire une méta-logique. Ainsi se confirmait bien l’universalité des structures de l’imaginaire définissant un « homo symbolicus » commensurable à l’espèce « Homo sapiens ». Mais l’anthropologue ne pouvait éliminer la force de différenciation et de variation de l’histoire. A l’approche synchronique devait faire suite, de manière complémentaire, une approche diachronique, qui devait permettre de saisir les fluctuations des paysages de l’imaginaire, les cycles de domination et de récession des grands mythes dans une culture donnée. Ainsi s’est développée la « mythodologie » comme étude des bassins sémantiques et de la périodisation des grandes configurations, des récits et des expressions plastiques par exemple. Le durandisme, qui avait consacré le paradigme structuraliste au moment des Sructures anthropologiques de l'imaginaire devait donc par la suite donner de plus en plus de place à l’histoire et aux cycles historiques, ouvrant ainsi sur une véritable science globale de la culture, à la fois des structures et des variations. - Enfin l’imaginaire ne relève plus seulement d’une approche seulement cognitive, mais s’intègre dans la totalité de la constitution du vivant humain. G. Durand insère l’imagination dans un « trajet anthropologique » qui commence par les configurations réflexes –aujourd’hui neuronales- et s’accomplit par le biais des représentations et valeurs culturelles (arts et religions). Loin d’être un processus parasite et divergent de la vie psychique, l’imagination mobilise et traverse la totalité du sujet, impliquant un ancrage corporel et se greffant largement sur des supports immatériels de la conscience collective. Par là G. Durand retrouve la fonction centrale de l’imagination en tant que source de toutes nos représentations (conformément au kantisme), enracinées dans la corporéité, animant l’affectivité et irradiant les expressions collectives de la culture. Dans ce cas, l’étude de l’imaginaire nécessite de convoquer des savoirs pluridisciplinaires, allant de la neurobiologie à l’histoire de l’art en passant par la psychologie, la sociologie, etc. L’imagination devient ainsi le vrai tronc de l’arbre anthropologique, prenant racine dans l’anthropologie physique et se déployant dans les arborescences de l’anthropologie culturelle. Il n’est étonnant dès lors que le tableau synoptique des structures de l’imaginaire qui clôt les Structures anthropologiques de l'imaginaire, distingue le niveau des postures réflexes, celui des structures langagières (verbes,

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substantifs et adjectifs) et le plan propre des relations logiques et les expressions symboliques des mythes et rites. Cette triple démarche épistémologique de G. Durand repose en fait sur trois axiomes à consistance forte et aux enjeux majeurs : - comme pour G Bachelard, les représentations originaires, premières, archaïques sont des images, chargées d’affects et de corrélats symboliques ambivalents, organisées en réseaux cohérents qui nourrissent toutes les expressions symboliques, au sens d’E Cassirer. Il en résulte que la rationalité de l’homme est toujours acquise, seconde, construite à partir et contre des imaginaires et qu’elle se diversifie en rationalités régionales plurielles, doublant en quelque sorte les structures préalables des imaginaires. Cette inversion psychogénétique, apparemment mineure, qui relativise et pluralise la raison, ne manque pas d’avoir des répercussions majeures sur la conception de la vie intellectuelle des humains et la hiérarchie des facultés ; - ces images ne résultent pas uniquement de perceptions premières qui seraient de ce fait affaiblies par leur reprise mimétique (thèse empiriste dominante en philosophie) mais se voient d’emblée dotées de valences symboliques et analogiques, intégrées dans des constellations de sens figurés (et non de sens propres seulement). Parfois même ces images accèdent au rang d’archétypes, remontant eux-mêmes à des schèmes moteurs matriciels, d’où résultent des gerbes de significations mises à disposition de l’imagination pour produire ses représentations narratives ou plastiques. G. Durand reprend ainsi la position de G Bachelard, qui se situent tout deux en proximité de CG Jung (qui avait plaidé, à l’opposé de S Freud, en faveur d’un imaginaire transcendantal spermatique) et d’une longue tradition philosophique qui pense que l’humanité a commencé par chanter, poétiser et mythifier avant d’accéder à la froide raison (Rousseau, Vico, etc.) L’imaginaire n’est donc pas une activité seconde, en manque de réalité, mais se présente comme une floraison spontanée d’images plus riches que la réalité, surtout lorsqu’elle est subsumée sous des concepts et des mots. - enfin l’imaginaire est fondamentalement une activité psychique temporelle, c'est-à-dire à la fois soumise au temps et capable de défier le temps destructeur qui nous expose à la mort. Non seulement l’imagination est narrative et mythopoïétique, mais elle connaît pour ses œuvres des variations périodiques et cycliques régies par la loi de l’alternance. Fidèle aux grandes intuitions du temps déployées de Héraclite à Nietzsche, G. Durand pense retrouver empiriquement la vérité de ce principe de retour périodique des

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mêmes structures d’imaginaire (ce qui permet de conférer des régularités répétitives à l’histoire, qui semble à tort emportée par une linéarité irréversible). Il en résulte une interprétation des cultures et de leurs œuvres et institutions, qui est plus proche de Spengler et Toynbee que des historicismes obsédés par le mythe du progrès continu 4, qui rapproche le durandisme de modes de pensée plus asiatiques qu’occidentaux, comme l’illustrent ses affinités avec le Tao, le Yi King et la loi de balancier des principes du Yin et du Yang.

III- Une fresque culturelle

Au fil de l’énoncé des principes et axiomes de cette nouvelle épistémologie, il apparaît de plus en plus clairement que G. Durand n’a pas modifié sur tel ou tel point de méthode ou de description le paysage des sciences humaines du 20eme siècle mais, sans bruit, renversé le socle sur lequel repose l’anthropologie moderne. Il en résulte, au-delà d’une science de l’imaginaire, le développement d’une théorie générale de la culture (des arts, de la politique, de la religion, etc.) voire des prolégomènes d’une authentique sagesse de la civilisation humaine : - d’abord l’imaginaire, une fois identifié, classé, périodisé, apparaît comme la meilleure forme de compréhension non seulement des représentations et croyances, mais aussi des valeurs et des actions des communautés et sociétés. Car l’imaginaire est abordé aussi comme une matrice performative de praxis, de décisions, d’actions et d’événements historiques. Imaginer c’est aussi faire, accomplir, non seulement des rites, mais instituer ou combattre des pouvoirs, célébrer ou détrôner un ou des dieux, désirer ou craindre des magies ou des techniques, etc. Le durandisme ouvre sur des études des imaginaires imaginés, mais aussi des imaginaires imaginant, c'est-à-dire produisant ici et là tels ou tels effets pratiques, entraînant des individus ou des groupes dans des adhésions ou des refus, des drames ou des fêtes. - la place reconnue aux imaginaires dans la vie des cultures doit rendre sensible aux environnements iconiques et à leurs pénétrations dans les milieux sociaux. G. Durand, comme d’autres, a des jugements sévères sur différentes formes d'éducations et de politiques iconoclastes qui promeuvent uniquement la rationalité ou des images standardisées par la civilisation mécaniste. Il n’est pas sûr, en ce sens, que la prolifération des images favorise 4

D'où l'importance très tôt de Sorokin, de Pareto, de la critique du temps linéaire et l'adoption des "riccorsi", Voir G. Durand, Les grands textes de la sociologie moderne, Bordas, 1969. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 22

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vraiment l’imagination et encore moins la réappropriation des grands archétypes mythiques. On pourrait sans doute pointer même une véritable philosophie politique, le pouvoir demeurant fondamentalement pris dans le registre symbolique et mythique. Familier de la longue histoire de l’empire et de la papauté, des rapports entre pouvoirs temporels et spirituels, G. Durand s’est sans doute senti plus proche de l’idéalité de l’imperium romain que de la démocratie athénienne ou du papisme et de différentes théocraties 5. Ses travaux si proches de G. Dumézil sur les postes symboliques de toute institution de la sphère politique témoignent de cette capacité d’une théorie de l’imaginaire à prendre en charge l’individuel, la socialité mais aussi les institutions régulatrices, du politique et du théologique.

IV- Mise en discussion et polémiques

L’ampleur et la nouveauté de cette œuvre qui retrouve les grandes traditions immémoriales en les actualisant à travers le langage des nouveaux savoirs positifs des sciences de la nature et de l‘Homme, ne sauraient laisser indifférents. Si le nombre des lecteurs enthousiastes et illuminés par l’œuvre ne cesse d’augmenter, les résistances voire les récusations ne doivent pas être balayés d’une main et méritent d’être entendues, ne serait-ce que pour profiter de ces débats et polémiques pour clairfiier ou rectifier des positions souvent mal comprises. A côté d’un silence d’exclusion et d’ostracisme, venant des milieux scientifiques des sciences humaines et sociales les plus soumises à la critique de G. Durand, d’autres positions critiques témoignent d’indignations vertueuses devant des thèses souvent mal comprises et assimilées à tort à des positions simplistes, unilatérales, qui ne méritent guère d’être réfutées dans le détail. Nous nous contenterons de prendre en compte quelques positions critiques portant sur l’épistémologie déployée par G.Durand. On en retiendra cinq types, souvent d'ailleurs contradictoires entre eux : - critique du présumé naturalisme cognitiviste. La référence, dès les années 60, aux théories pavloviennes déterminant le poids des postures réflexes dans le montage des comportements puis des productions psychiques, était contemporaine d’une forte présence, sur la scène épistémique, de déterminismes matérialistes proches du marxisme. Plus tard un cycle plus antinaturaliste, libérant un paradigme purement relativiste et constructiviste de la culture, allait précipiter une vague de modèles explicatifs découplant nature et culture. En 5

J.P. Sironneau : "Sermo mythicus et religions politiques" in Y Durand, et alii, "Variations.." op. cit Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 23

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effet, en cette période, l’incorporation de l’esprit dans le terrain neurologique ne pouvait susciter de sympathie axiologique ni épistémologique, ce qui permettait de dénoncer dans le durandisme une version de la naturalisation de l’esprit. La montée en puissance à nouveau de la « mind » philosophie, qui naturalise à nouveau les fonctions cognitives, pourrait de fait amoindrir la méfiance et même recréer un courant d’ouverture intellectuelle en faveur du durandisme. Il reste qu’en aucun cas le « trajet anthropologique » ne permet de soutenir un réductionnisme. S’il est vrai que les structures réflexes (haut et bas de la verticalité, dehorsdedans des conduites digestives et métaboliques, rythmiques en lien avec la sexualité), préfigurent toutes les mises en forme langagières symboliques et logiques, les niveaux supérieurs immatériels ne sont pas remplis par le biologique mais par les données de la culture sociale. La pensée durandienne mobilise l’homme intégral mais en aucun cas ne réduit le haut au bas, même si le bas est toujours l’assise sur laquelle se construit le haut ; -

critique

d'un

présumé

anti-historicisme :

l’impact

des

Structures

anthropologiques de l'imaginaire sur le public durandien a sans doute poussé parfois certains disciples hâtifs à absolutiser une lecture structuraliste, synchronique et fixiste de l’imaginaire, au point que l’ouvrage recèle une véritable grille de lecture pour expliquer les œuvres d’art de manière non contextuelle et

non externaliste. Pourtant très tôt G.Durand insère les

imaginaires dans le temps des cultures, en mettant en évidence « la vie des images » selon l’expression de G Bachelard, vie qui peut se comparer à des périodes de croissance et de décroissance, ou plus précisément selon la métaphore potamologique, de ruissellements, de formation d'un fleuve, de stabilisation des rives, puis de disparition dans delta pour former une masse Sur fond de cette image se déploient de riches analyses sur les évolutions des mythes (Prométhée, Hermès, etc.) aboutissant à des fresques pluriséculaires de variations d’un même socle mythique (le baroque, le joachimisme, etc.). Loin d‘être promotion unilatérale d’un paradigme, la pensée durandienne tente d’édifier un système complet où identité et différence, structure et histoire, forme et contenus doivent être pris en charge simultanément. En ce sens, la mythodologie constitue un concept inédit d’intégration dans la longue durée des allers et retours, des sacs et ressacs des mouvements symboliques de la culture et ne saurait en rien apparaitre comme un anhistoricisme ; - critique d’une présumée réduction théologique et ésotériste. G. Durand a tôt intégré la dimension herméneutique de l‘activité de l’imagination, qui implique que la production et la perception des images reposent sur l’actualisation de sens seconds, qui nous

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mettent en situation de réception devant un invisible, une transcendance, un sacré. Telle est la conception du symbolisme issue de la tradition romantique et herméneutique allemande mais déjà mise en œuvre par les courants hermétistes de la Renaissance, du gnosticisme alexandrin, etc. G. Durand a pris en charge cet héritage en accordant autant de poids et d’intérêt à l’alchimie qu’à la chimie, aux sciences cosmologiques qu’aux mythes d’Hermès trismégiste de la Renaissance, etc. C’est bien pourquoi une partie décive des travaux théoriques de G. Durand, éparpillés ensuite dans plusieurs ouvrages, sont nés dans le contexte du cercle d’Eranos à Ascona (Suisse), où chaque été se retrouvaient dans la continuité de la pensée de Jung, M Eliade, H. Corbin, des spécialistes des religions extra-occidentales, etc. L’inspiration hermétiste d’Eranos signifie que l’homme ne peut être compris sans en accepter sa dimension d’"homo sacer » ou d‘"homo religiosus », cela sans consacrer un Dieu unique particulier ni une supériorité d’une religion sur une autre, voire même du religieux sur des versions métamorphosées du religieux. Le rapprochement de G. Durand et de H. Corbin constitue ainsi un moment clé qui illustre comment l’imagination gagne à être comprise dans ses versions les plus subtiles, celles mises en œuvre dans la mystique des mondes imaginaux, et pas seulement dans les versions appauvries de l’imagination extravertie moderne. Car la science n’est pas antithétique avec une gnose, qui implique non un savoir subjectif, mais un savoir qui en même temps qu’il est porteur d’une vérité effective modifie le sujet connaissant et participe de sa transformation intérieure, ce que devrait procurer toute science véritable; - enfin la critique d'un présumé sécularisme. Dans cette perspective, l’imaginaire symbolique qui œuvre dans les sociétés traditionnelles, immergé dans une vision du monde sacrée et religieuse, se verrait par G. Durand laïcisé, sécularisé, adapté aux catégories des sciences au mieux positives, pour devenir une sphère anthropologique réductible à une science rationnelle. A l’opposé des positivistes reprochant au durandisme sa coloration mystique, les tenants des sciences traditionnelles (Guénon par exemple), versus ésotérisme, reprocheraient à G. Durand d’avoir abandonné la foi symbolique au profit d’une lecture purement immanente. Il est vrai que dans "Science de l'Homme et Tradition", G. Durand situe pleinement son entreprise moderne dans le fil d’une vision du monde traditionnelle, proche de la théosophie, du gnosticisme, de l’hermétisme, mais en d’autres textes le sociologue accepte de rester agnostique et de ne convoquer aucune ontologie ni métaphysique dans sa théorie de l’imaginaire. G. Durand a opté pour une voie synthétique qui harmonise des savoirs pluriels adaptés à la nature "tigrée", bariolée, du psychisme ;

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- enfin la critique, paradoxale encore, d'un présumé scientisme. Reprenant le projet bachelardien d’une science de l’imaginaire, G. Durand revendique de fait un savoir rationnel sur la vie symbolique de la psychè, en cherchant même dans la rationalité nouvelle des sciences mathématiques ou microphysiques des énoncés éclairant le symbolique (R Thom, par exemple). Sur fond par conséquent de l’hypothèse d’une rationalité unique de toutes les sciences, G. Durand s’opposerait clairement aux analyses démystificatrices de polémistes comme Sokal ou Belmont et de différents courants analytiques invalidant tout usage de la métaphore dans le domaine des science. Il reste que cette scientificité -développée par le réseau des Centres de recherches sur l'imaginaire- que G. Durand a même accepté de faire évaluer par le Centre national de la recherche scientifique (CNRS) français, n’est jamais une science quantitative, réductionniste, mais une science de l’homme global et associant différentes strates de discours.

V- Atouts et potentiel heuristique

La pensée de G. Durand est, sans doute, encore à comprendre, à découvrir, à approfondir, à mettre en œuvre dans des champs nouveaux Sa réception change selon les périodes et selon les catégories dominantes. Il n’est pas exclu que l’évolution actuelle des neurosciences, de la naturalisation de l’esprit, des progrès de l’interculturalité ne favorise une nouvelle séquence de réception, non seulement en France mais dans le monde. L’oeuvre dispose en ce sens d’atouts cognitifs majeurs qui ouvrent sur des prolongements novateurs. En vrac on peut en relever plusieurs : - l’ancrage de l’imaginaire dans la corporéité biologique de l’espèce se disait dans les "Structures anthropologiques de l'imaginaire" dans un langage devenu assez anachronique, celui des réflexes ; de nos jours les substrats corporels se disent plutôt dans le langage neuronal du cerveau, dont l’exploration croissante permet de mieux comprendre la puissance des images mentales, véritables concurrentes des images empiriques. Il ne serait donc pas étonnant que la neurobiologie permette de poursuivre la logique durandienne dans la lignée d’une anthropo-biologie de l’imaginaire ; - Les structures et cycles de l’imaginaire ont permis de nombreuses applications aux imaginaires des arts -surtout littéraires et arts plastiques figuratifs. Sans doute certaines préférences idiosyncrasiques de G. Durand l’ont-elles conduit à limiter le champ

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d’exemplification des œuvres, souvent aux époques symbolistes. Pourtant les arts visuels (photographie et cinéma) et les arts plastiques abstraits se laisseraient sans doute approcher par le biais des modèles durandiens, ce que commencent à faire de nombreux chercheurs de par le monde ; - G. Durand a commencé à saisir l’effet performatif de l’imaginaire mais sans toujours intégrer toutes les nouvelles techniques de communication (politique, publicité, management etc.). Or les situations et programmes de communication, d’innovation, de créativité dans le champ social et technologique se laissent de plus en plus enrichir par les modèles durandiens. Les questions actuelles sur la créativité individuelle et sociale croisent et enrichissent de plus en plus le cadre proposé par G. Durand. - enfin le développement des études interculturelles oblige à se doter d’outils d’analyse des comparatismes culturels, en situation phasée et diphasée, synchrone ou asynchrone ; de ce point de vue, les études des archétypes, des bassins sémantiques et des périodicités d’imaginaires peuvent devenir d’irremplaçables détecteurs et analyseurs des affinités entre cultures, des atouts et des obstacles dans le dialogue interculturel. A l’ère de la globalisation et de la mondialisation, les recherches des invariants et des variations des imaginaires des sociétés et des civilisations peuvent devenir une clé, aussi bien pour la conservation des identités culturelles que pour la contribution à une réelle pensée cosmopolitique.

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Diversidade cultural no Brasil e a teoria sobre o imaginário de Gilbert Durand : correspondências e derivações Cultural diversity in Brazil and the Gilbert Durand’s theory of the imaginary: correspondences and derivations Diversité culturelle au Brésil et la théorie sur l’imaginaire de Gilbert Durand : correspondances et dérivations

Danielle Perin Rocha PITTA PPGA/ UFPE Associação Ylê Setí do Imaginário

Resumo: As características da cultura brasileira, mosaico de culturas de diversas origens, com a sua dinâmica acelerada, e as propostas teórico metodológicas da obra de Gilbert Durand, convergem. Esta convergência pode ser observada na crescente quantidade de grupos de estudo e de publicações sobre o imaginário no Brasil. Palavras-chave: imaginário, Brasil, mitodologia, Gilbert Durand Abstract: The Brazilian’s characteristics of culture, mosaic of cultures from diverse backgrounds, with its accelerated dynamics, theoretical and methodological proposals of the work of Gilbert Durand, converge. This convergence can be seen in the growing number of study groups and publications on the imaginary in Brazil. Mots-clés : imaginaire, Brésil, mythodologie, Gilbert Durand

« Em todas as épocas, em todas as sociedades existem subjacentes mitos que orientam, que modulam o curso do homem, da sociedade e da história » (G. DURAND)

Numerosos são os autores que demostram o quanto o Brasil é essencialmente caracterizado por um espírito barroco, pela diversidade de culturas em interação cotidiana e acelerada. Para entende-lo, é pois necessário afastar-se das lógicas dicotômicas, objetividade e outras determinações do positivismo ou até mesmo do estruturalismo. Consideramos aqui que através da expressão simbólica, e da sua abordagem através das teoria e método de Gilbert Durand, é possível ter alguma compreensão aprofundada desta diversidade da cultura brasileira e de sua extraordinária dinâmica. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 29

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Mas, porque o Brasil seria especialmente receptivo a esta nova epistemologia, a este "novo espírito científico"? “Este imaginário do Feminino e do seu sucedâneo, a natureza, igualmente polifórmica, traduz-se nas intenções profundas da historia e da politica do Brasil” G. Durand Tenho relacionado, em outras oportunidades, as características do ethos brasileiro condizentes, a meu ver, com a receptividade das novas perspectivas, do “novo espirito antropológico”, propostos por Gilbert Durand: A complexidade parece ser o elemento fundamental deste ethos: diversidade da formação étnica não só no que diz respeito às diversas culturas em presença, mas à maneira original como cada Estado do Brasil construiu seu sincretismo próprio; diversidade de trajetórias históricas de um Estado para outro; diversidade da organização econômica de cada um, etc. Dinâmica: uma organização política em que os personagens transitam de um partido para outro, em que os próprios partidos frequentemente mudam de alianças, em que os ministérios são renovados o tempo todo; uma organização econômica na qual, durante décadas uma inflação galopante impedia qualquer projeto individual a longo prazo; na qual nunca se sabe quais serão exatamente os direitos do cidadão (aposentadoria, dedução de impostos, etc.) amanhã; em que o nome e o valor da moeda está em constante mudança, etc. De maneira que, muitas já foram as constatações de que os conceitos clássicos das Ciências Humanas não eram adequados à realidade brasileira, dando espaço aos novos paradigmas. E consequentemente dando espaço a novas metodologias como a mitocrítica, a mitanálise, e as aplicações variadas, as derivações, do AT-9 de Yves Durand. Certamente, nos dias de hoje, nenhum estudo aprofundado pode ser feito de maneira satisfatória através de teorias e métodos que foram adequados à modernidade. A nosso ver, só as teorias emergentes, levando em conta a complexidade, o mundo fragmentado, o terceiro incluído, as novas tribos, enfim, as teorias que abordam de uma maneira ou outra esta função psíquica que é o Imaginar, podem dar conta do recado. Empreender estes estudos me parece urgentíssimo, pois com a aceleração da capacidade tecnológica, em breve, sem uma nova elaboração dos dados, sem novos paradigmas, estaremos totalmente distantes da realidade. Consideramos que o estudo do imaginário, concebido como função psíquica e como "capital pensado" da humanidade, permite, pois, abordar a atualidade em suas dimensões específicas.

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As diversas ciências deste século juntaram-se para formar esta nova ciência que é a do imaginário. Para tanto, são propostos novos paradigmas tais como a alogia, o trajeto antropológico, dando conta de uma cibercultura caracterizada pela fractalidade, pela complexidade dinâmica. Para tanto, metodologias ou melhor, mitodologias, diversas têm se desenvolvido e foram adaptados à realidade brasileira, como a mitocrítica, a mitanálise e o AT-9 (Arquétipo-teste de 9 elementos) com suas derivações. A alogia diz respeito à lógica do mito. G. Durand mostra como Bachelard, criando a noção de "pluralismo coerente", propõe um transtorno epistemológico 1 para todas as ciências. Estes novos paradigmas conduzem à compreensão própria ao mito através do princípio de redundância, pois o mito não raciocina nem descreve: ele procura convencer repetindo uma relação através de todas as suas nuanças (...) possíveis. A contrapartida desta particularidade, é que cada mitema - ou cada ato ritual - é portador da mesma verdade que a totalidade do mito ou do rito. Ele se comporta à maneira de um holograma (E. Morin) onde cada fragmento, cada parte, contém a totalidade do objeto 2.

O que isto tem a ver com o Brasil? é que esta linguagem simbólica é a que se encontra no cotidiano das ruas, das casas, das instituições, etc. 3 A fractalidade (Benoit Mandelbrot), diz respeito a uma série de formas e padrões, que foram surgindo na matemática. Mandelbrot percebeu que todos possuíam algumas características comuns e que havia uma relação entre estes objetos e aqueles encontrados na natureza. Podemos assim considerar a cultura brasileira como um mosaico composto pelos diversos Estados, pelas diversas regiões, pelas diversas etnias. Quanto ao "trajeto antropológico": este consiste em uma maneira adequada de abordar a dimensão dinâmica (cada vez mais dinâmica) das sociedades. Através desta noção, a dimensão sociocultural não é mais vista como um objeto estático (como na proposta clássica do estruturalismo), mas como um "incessante intercâmbio" entre os elementos objetivos e subjetivos, entre todos os elementos componentes da vivência. O que interessa ao pesquisador, a partir de agora, não é somente o objeto em si, não são somente as relações que este objeto estabelece, mas é a teia dinâmica na qual ele se insere. Esta teia dinâmica não pode ser observada somente pelos meios clássicos de investigação, mas também pelo estudo

1

DURAND, G.: L'Imaginaire p.52 Op. Cit. p. 57 3 Cf. a este respeito a tese de Katiane Nobrega sobre a logica paraconsistente e o imaginário 2

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dos mitos diretores subjacentes a todo relato, através das redundâncias observáveis nos vários campos socioculturais (cotidiano, literatura, religiões, filosofias, artes...). nesta perspectiva, é da tensão entre os polos (heroico e místico) que nasce a dinâmica social (G. Durand). Não resta dúvida que o mundo atual criou outra linguagem, seja a nível do cotidiano em que a linguagem ingênua (na qual um gato era um gato) desapareceu com o advento da pós-modernidade, seja a nível da linguagem científica com estas novas noções 4. Sincronias, pois. De onde a multiplicação dos grupos de estudo do imaginário pelo mundo afora e principalmente pelo Brasil 5. Isto nas várias áreas de conhecimento. Para ilustrar segue a exposição de alguns dos 73 grupos (cadastrados no CNPQ) por área institucional de conhecimento, sabendo-se que na verdade todos são interdisciplinares. Centrados mais profundamente em Antropologia tem-se estudos comparados de grupos culturais desde 1973 pelo Centro de Estudos sobre o Imaginário (FUNDAJ/UFPE), hoje Núcleo, por exemplo entre as culturas Fulni-ô, Afrobrasileiras, do nordeste e sul do Brasil; estudos sobre arte como expressão cultural 6; imaginário da 3a idade (encabeçados por Altair Macedo Lahud Loureiro (Brasília), discurso político (dimensões culturais presentes no discurso do PT (Rosalira dos Santos Oliveira), por exemplo; medicina e cultura (imaginário dos doadores de rins, das dimensões culturais no tratamento do câncer bucomaxilofacial), no jogo de RPG... Os mais relacionados com educação, e são os mais numerosos, tratam das "mediações simbólicas" em organizações educativas 7, e tiveram início graças ao trabalho pioneiro do CICE da USP com José Carlos de Paula Carvalho e Maria Cecilia Sanchez Teixeira principalmente; tem o Kawé tratando da dimensão pedagógica dos cultos afro-brasileiros (Ruy Povoas, Consuelo Oliveira Santos, na Bahia) 8; o LISE (Laboratório do Imaginário Social e Educação – da UFRJ); João de Deus Vieira Barros da UFMA 9; Cultura, Imaginário,

4

Exemplos de teses defendidas na França, sobre o Brasil, nesta perspectiva: Promenades Imaginales dans le Creux de Villes Contemporaines. De l'imprévisible subversion de la beauté de la forme: Noto – Belleville - Morro da Conceição. Tese de doutorado de Tania Pitta (Sorbonne 2007). Les correspondances esthétiques entre la France et le Brésil d'après le baroque. Les créations de Christian Lacroix et de Rosa Magalhães. Mario Carvalho, tese de doutorado (Sorbonne 2008) 5 No dia de hoje, 10/8/2015, são 73 grupos registrados no CNPQ, cobrindo a maioria dos Estados do Brasil. Cf. a lista dos grupos in Rocha Pitta, D. P. : Esprit critique n. 20 - 2014 6 Cf. os temas dos Ciclos de Estudo de Recife http://www.yle-seti-imaginario.org/home/artigo/Histrico/34 7 Cf. a Revista de Educação Pública de 1994 8 Núcleo de Estudos Afro-Baianos Regionais – Kàwé http://www.uesc.br/nucleos/kawe/index.php?item=conteudo_apresentacao.php 9 http://arteculturaeimaginario.blogspot.com.br Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 32

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Memória, Narrativa e Educação – CIMNE, coordenado pela professora Iduína Mont’Alverne Chaves - UFF. Em História: estudo da bacia semântica ligada à inquisição (Tese de doutorado de Carlos André Cavalcanti - UFPB) 10. Importante trabalho realizado pelo Departamento de Ciências das Religiões (UFPB) com os grupos Videlicet - Religiões, de Estudos em Intolerância, Diversidade e Imaginário. Em Literatura: com Maria Teresa Strôngoli (PUC-SP) e Sebastien Joachim (UFPE) e atualmente com o Núcleo de Pesquisa NELIM - Núcleo de Ecolinguística e Imaginário 11 coordenado por Elza Kioko Nakayama Nenoki do Couto. Quanto à Arquitetura: o método por mim proposto em 1993 tem sido utilizado na Ecole d'Architecture de Grenoble, tendo por produtos o Diplôme de Sophie Chambe sobre o vilarejo Real de Catorce no México (1997), e um espetáculo sobre a Sicília (2000), em Cenografia. Também a tese de doutorado de Tania Pitta (Paris V - 2007). Um grupo de estudos da UFPE de Caruaru, dirigido por Mario de Faria Carvalho, trabalha com design e moda via imaginário. Em Comunicação, temos a preciosa contribuição de Muniz Sodré que, com seu pertencimento simultâneo a duas culturas,

propõe indispensáveis "Jogos Extremos do

Espírito". Juremir Machado da Silva, da PUC-RS com as pesquisas em Cultura midiática e tecnologias do imaginário, seus vários livros publicados a este respeito, e Ana Tais Portanova Barros que lidera o Imaginalis - Grupo de Estudos sobre Comunicação e Imaginário / CNPq / UFRGS, organizadora deste congresso, entre outros. E ainda, o estudo da vivência de mulheres em meio Rural (Flávia Maia Guimarães. A luta pela terra: Imaginário e Gênero. Dissertação de Mestrado em Educação - 1998) – orientação de Neide Miele - UFPB) através da aplicação do AT-9. Mas seria impossível citar tantos trabalhos em tão pouco espaço de tempo. Veremos a seguir adaptações e variações efetuadas sobre as propostas metodológicas durandianas. Muitas são relativas ao teste AT-9 de Yves Durand, que consiste na elaboração de um microuniverso mítico.

10

Cavalcanti, C. A. : Doutorado em História (Conceito CAPES 4). Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Brasil. Título: O Imaginário da Inquisição: Desmitologização de Valores no Tribunal do Santo Ofício, no Direito Inquisitorial e nas Narrativas do Medo de Bruxa (Portugal e Brasil, 1536-1821), Ano de obtenção: 2001. 11 http://www.nelim.letras.ufg.br Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 33

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Foi feita em 1975, pelo NIPI da UFPE, uma padronização do teste AT-9, propondo novas categorias para a sua interpretação, como por exemplo, acrescentar a opção “família” entre os adjuvantes 12. Tendo em vista a especificidade do objeto de estudo, o AT-9, inicialmente aplicado pelo seu criador de maneira individual, foi adaptado para aplicação coletiva. Assim é que Flávia Maia Guimarães, para estudar o imaginário de mulheres em área rural, juntou folhas de isopor e diversos materiais (pedras, terra; grama, etc.) para que, em conjunto construíssem o microuniverso proposto. A história a ser contada também foi feita de forma coletiva. Desta forma pôde ser observado o semblante da angústia na figura antropomorfa ligada ao poder, nas formas de defesa escolhidas, etc.. Outra aplicação coletiva foi feita em relação ao estudo de um grupo de pichadores, alunos de uma escola da periferia do Recife: uma parede do pátio foi disponibilizada, assim como latas de spray de tintas, para responderem coletivamente ao teste 13. O teste também foi adaptado para os interesses da arquitetura e urbanismo 14 desde 1993. Trata-se de desenhar e dispor em um mapa os 9 elementos do teste, isto aplicado a um número representativo de habitantes do lugar, com a finalidade de se obter um mapa sensível do mesmo. O novo método foi batizado por Tania Pitta de ATL-9 (arquétipo teste do lugar de 9 elementos) 15. Em conferência apresentada na XV Semana de Humanidades (UFRN) em Maio de 2007, intitulada: “O corpo inserido em diversas lógicas culturais: uma poética da sexualidade”, e antes no Congresso de Americanistas em Sevilha (2006), eu colocava que, após trabalho de campo realizado no Recife, pôde ser observado, no cotidiano da cidade e não na academia, um grupo de lésbicas, reunidas em 2004, que consideravam a existência de 17 categorias sexuais. Já se expressa aí uma lógica bem menos excludente que a lógica binária. Ora, a proposta que então fazíamos e que continuamos fazendo, em adequação com a teoria acima exposta e com as práticas do cotidiano, é considerar a existência não mais de categorias sexuais, mas de polarizações criando uma dinâmica específica. A sexualidade se atualiza então entre os dois polos feminino e masculino.

12

Rocha Pitta, D.P.: Inédito, 1975 Garcez, Rita : O muro do Cemitério. Polissemia de uma escola. UFPE - 2000 14 Rocha Pitta, D.P.: . Para uma arquitetura sensível. Revista de Antropologia (PPGA/UFPE), UFPE Recife, 1998. Cf. Discutindo o Imaginário: olhares multidisciplinares; Ed. UFPE - 2015 15 Pitta, Tania: in Discutindo o Imaginário: olhares multidisciplinares; Ed. UFPE – 2015; assim como a tese de doutorado op. cit. 13

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Paralelismos: TRAJETO ANTROPOLÓGICO

M = místico

H = heroico

TRAJETO SEXUAL

F = Feminino

M = Masculino

Nesta perspectiva, a sexualidade sendo uma dinâmica, não há mais possibilidade de exclusão de uma ou outra vivência. Assim como a identidade, esta dinâmica varia no tempo: cada cultura, assim como cada indivíduo, pode se locomover no seu próprio eixo, construir o seu trajeto, viver seu próprio destino sendo atraído mais ou menos por um dos polos segundo as circunstâncias. No plano mítico, esta concepção da sexualidade é bem ilustrada pelas imagens dos deuses Shiva ou Oxumare que conjugam as várias dimensões da sexualidade. Perspectivas: Deve-se destacar a importância das redes internacionais que estão se formando atualmente tais como : A Red Iberoamericana de Investigación en Imaginarios y Representaciones (RIIR), criada em 2014, pelo Dr. Felipe Saez Aliaga, do Instituto Nacional de Estudos Avançados (IAEN) em Quito, chamando pesquisadores de diferentes partes da América Latina para formar a rede que adquire o aval acadêmico em abril de 2015, da faculdade de sociologia da Universidade de St. Thomas – Colômbia. A RIIR tem por objetivos: Criar uma reunião e intercâmbio de conhecimentos sobre o imaginário e as representações em várias abordagens teóricas e metodológicas; a criação de um banco de dados de pesquisadores; a divulgação de grupos, projetos, informações e eventos; articular virtualmente cursos, seminários, workshops, fóruns, conferências nacionais e internacionais; promover projetos comuns internacionais de investigação. O CRI2i, foi fundado em Cluj em 2012: é um centro de pesquisa de vocação multidisciplinar. Desenvolve uma reflexão sobre a hermenêutica das imagens, símbolos,

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arquétipos e mitos presentes na imaginação de uma cultura, de uma época ou de um criador. Ele está estruturado em quatro áreas principais de pesquisa: Imaginário Topológico: lugares, paisagens, espaços; Imaginário da ciência e das tecnologias; o Corpo Imaginário; Mitocrítica e mitanálise. O que foi exposto acima representa uma pequena parte do que se tem feito na ótica desta nova epistemologia. Complementa-se a informação com a lista parcial (abaixo) dos livros publicados no Brasil. O Brasil é o laboratório vivo da pós-modernidade, diz Michel Maffesoli, é pois um país que tem afinidades profundas com as propostas desta nova visão de mundo, julgada tão necessária por Fritjof Capra, entre outros, deste novo espirito antropológico proposto há mais de 50 anos por Gilbert Durand.

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______. Fractais de uma poética pernambucana. Revista de Antropologia v.7. Recife: PPGA/ UFPE, 1998 ______. Mitos e símbolos nos Xangô de Pernambuco. Cadernos de Ciências Sociais. Recife: 1985. p. 263-267 SANTOS, M. C. O. Conhecimento Mítico: Expressão do Imaginário. Caderno Kàwé n.1Ilhéus : UESC, 1997. SILVA, Cristina P. da; JUNIOR, Givaldo F. C. Natureza e Representações Imaginárias. Curitiba: Appris, 2013. SODRÉ, Muniz : Jogos extremos do espírito. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. WUNENBURGER, Jean–Jacques : Des "mythologiques" de Claude LEVI-STRAUSS à la "mythodologie" de Gilbert

DURAND – in Pierre Guenancia, Jean-Pierre Sylvestre :

Claude Lévi-Strauss et ses contemporains. Paris : PUF, 2012.

Anexo: Bibliografia parcial existente em português: ARAÚJO, Alberto Filipe ; ARAÚJO, Joaquim Machado de ; RIBEIRO, José Augusto. As Lições de Pinóquio. Estou farto de ser sempre um boneco. Curitiba: Editora CRV, 2012. ARAÚJO, Alberto Filipe ; TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez. Gilbert Durand: imaginário e educação. Niterói: Intertexto, 2011. ARAÚJO, Alberto Filipe ; BARROS, João de Deus Vieira (Org.) ; Actas do III Seminário Arte e Imaginário na Educação. Braga: Centro de Investigação em Educação - CIEd, 2011. ARAÚJO, Alberto Filipe ; AMARAL, Marta das Vitórias (Org.) ; Actas do Colóquio Internacional Antropologia do Imaginário e Educação do Envolvimento/Desenvolvimento. Braga: Centro de Investigação em Educação - CIEd, 2011. ARAÚJO, Alberto Filipe (Org.) ; ARAÚJO, Joaquim Machado de (Org.) ; AZEVEDO, Fernando (Org.). Actas do Colóquio Internacional Educação, Cultura e Imaginário: desafios contemporâneos. Braga: Centro de Investigação em Educação, 2010. ARAÚJO, Alberto Filipe (Org.) ; AZEVEDO, Fernando (Org.) ; BARBOSA, M. (Org.) ; ARAÚJO, Joaquim Machado de (Org.). Actas do Colóquio Internacional: Educação, Cultura e Imaginário: recontextualização e tradição. Braga: Centro de Investigação em Educação, 2010. ARAÚJO, Alberto Filipe ; ARAÚJO, Joaquim Machado de. Imaginário Educacional - figuras e formas. Niterói: Intertexto, 2009.

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Arquetipocrítica, mitocrítica, psicocrítica Archétypocritique, mythocritique, psychocritique Archetype-criticism, Myth-criticism, Psycho-criticism

Corin BRAGA 1 Universitatea Babes-Bolyai, Cluj-Napoca, Roumanie

Résumé: Mon texte se propose de mettre à jour le concept d’archétype et la méthode archétypocritique avec le paradigme culturel et herméneutique actuel. Au cours de sa biographie millénaire, l’archétype a reçu trois acceptions principales: métaphysique (ou ontologique) ; psychologique (ou anthropologique) ; et culturelle (ou philologique). Pour pouvoir utiliser dans l’analyse littéraire et comparatiste ce riche héritage, sans devoir adhérer (voire faire profession de foi) aux systèmes métaphysiques ou psychologiques invoqués, je propose d’adopter un regard distancié, qui envisage les herméneutiques archétypales non plus en tant qu’explications définitives de la réalité, extérieure ou intérieure, mais comme des scénarios explicatifs, comme des épistémès élaborées à divers moment de l’histoire par des théologiens, philosophes, psychologues et autres spécialistes du sacré, de la nature et de l’âme humaine. Mots-clés : archétype, archétypocritique, mythocritique, psychocritique.

De nos jours, le concept d’archétype n’a pas une très bonne presse. Peut-on encore parler d’archétypes et donc de visions métaphysiques, d’ontologies fortes, ou de psychologies abyssales à un âge qui ne jure que par les phénomènes, les avatars, les simulacres, les succédanés, les mondes virtuels ? La culture postmoderne, avec sa fascination pour les surfaces et la multiplicité, est-elle encore disposée ou capable de concevoir des centres et d’attribuer des profondeurs à la réalité objective ou à celle subjective ? Pouvons-nous ignorer, le cœur léger, les critiques contre les présupposées aprioriques, autant psychologiques qu’ontologiques, qui depuis plusieurs décades ont inhibé tout discours essentialiste ? Faut-il alors rejeter et oublier, comme démodé et encombrant, un concept comme celui d’archétype ? Sommes nous vraiment prêts à envoyer au grenier toute la richesse d’idées qui, à la manière d’une boule de neige, ont nourri ce concept depuis plus de deux millénaires ? Et qui nous garantit que l’appréhension anti-archétypale n’est pas elle-même une tendance (ou la

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tendance) spécifique d’une époque, voire une mode correspondant à un âge criticiste possédé par le démon de la déconstruction ? Ne risquons-nous de nous laisser emporter, avec véhémence, par un courant de pensée qui ne manquera pas de devenir à son tour désuet dans quelques décades ou une centaine d’années ? De toutes ces questions, plutôt rhétoriques, nous voudrions faire émerger une attitude et une vision plus compréhensive, qui nous permettrait, immergés comme nous sommes dans l’histoire de la culture occidentale et mondiale, de ne rien perdre sur le parcours, de ne rien laisser en arrière, sans cependant céder à la tentation de la soumission inconditionnée à la tradition, de l’acceptation non-critique des autorités. Autrement dit, comment continuer d’utiliser le concept d’archétype sans perdre de vue ses faiblesses et ses porte-à-faux, les impasses dans lesquelles il nous a parfois mené, comment l’adapter à la mentalité postmoderne ou contemporaine tout court ? Une telle démarche de mise à jour devrait commencer, pensons-nous, par une rétrospective détachée, sine ira et studio, de l’évolution du concept, par sa « biographie » culturelle 2. Le terme archétype a une histoire de longue date et un contenu en inflation, qui l’a converti de nos jours en une sorte de passe-partout terminologique. Pour lui rendre l’efficacité théorique, il faudrait délimiter ses définitions principales et distinguer les herméneutiques qui en ont été dérivées. Du point de vue étymologique, le mot « archétype » est composé des mots grecs « @arc#h » (commencement, point de départ, principe, substance première) et « t#upoV »

(forme, figure, type, modèle). Il désigne par conséquent les « types originaux », les « premiers types », les proto-types, les matrices (autant dans un ordre génétique et chronologique, que dans un ordre logique et systématique) de diverses séries de phénomènes. Par son contenu, le concept est censé donner une réponse à une question théorique et pragmatique fondamentale : pourquoi dans notre représentation du monde il existe des invariants, des éléments constants et récurrents ? Quelle est la nature de ces universaux ? Au cours de sa biographie millénaire, l’archétype a donné, par ses différentes acceptions, pas moins de trois solutions principales à ce questionnement, que nous avons circonscrit dans une autre étude (BRAGA, 2007) : I. métaphysique (ou ontologique) ; II. psychologique (ou anthropologique) ; et III. culturelle (ou

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Pour l’instrumentalisation du concept de « biographie » dans l’histoire des idées, voir Adrian Marino, Biografia ideii de literatură [Biographie de l’idée de littérature], Cluj-Napoca, Roumanie, Dacia, vol 1-7, 1991-1998. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 46

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philologique) 3. Toutes les trois, à des dates et dans des contextes idéologiques divers, ont été utilisées comme des instruments qui ont permis la création de méthodologies distinctes dans l’analyse des textes religieux, philosophiques, littéraires et autres. Tout d’abord, il faut remarquer que les trois conceptions ne se retrouvent pas au même moment de l’évolution dans l’histoire des idées. La définition métaphysique est rentrée dans un coin d’ombre avec le déclin de la métaphysique même, amorcée par la critique dévastatrice de Nietzsche et accomplie par les philosophes postmodernes qui ont déconstruit tous les « grandes narrations » et « scénarios explicatifs » du monde. Aujourd’hui, les philosophes paraissent avoir cédé la tâche d’expliquer l’univers aux physiciens et cosmologues. Les systèmes à la Hegel ont été remplacés par les modèles mathématiques de la physique relativiste, de la thermodynamique quantique, des théories des cordes et des super-cordes, par la belle utopie de T.O.E. - Theory of everything (GREENE, 2003). En revanche, la « bataille pour l’archétype » anthropologique, tel qu’il a été défini par C. G. Jung 4 ou Gilbert Durand (1969) est loin de s’être éteinte. En pleine expansion au milieu du XXe siècle, l’archétypologie « psychologique » connaît des nos jours un recul. La critique majeure qui lui est adressée vise le fait que la base organique ou génétique des archétypes n’est pas démontrable, que l’inconscient collectif et sa panoplie d’images et de symboles est une construction spéculative, séduisante peut-être, mais impraticable en psychiatrie et autres neurosciences 5. Ce qu’on reproche en fin de compte à la conception anthropologique, c’est 3

Cette classification recoupe d’ailleurs des distributions similaires, qui tendent à rentrer dans l’usage commun. Alain de Libera, par exemple, attribue les trois conceptions médiévales des universaux – réalisme, conceptualisme, nominalisme – à trois grands domaines – ontologie, psychologie, sémantique. Voir La querelle des universaux. De Platon à la fin du Moyen Âge, Paris, Éditions du Seuil, 1996. Le Trésor de la Langue Française, Tome 3, Paris, Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1974, traite le terme « archétype » des points de vue de la Philosophie, Anatomie, Philologie, Psychologie et Littérature. Le Grand Larousse universel, vol. I, 1994, p. 634, donne à l’entrée « archétype » plusieurs définitions selon les domaines : Biologie, Paléographie, Philosophie, Psychologie, Littérature. 4

Voir spécialement le volume 9 de la série d’œuvres complètes de C. G. Jung, Part I The Archetypes and the Collective Unconscious, Translated by R. F. C. Hull, Bollingen Series, Princeton University Press, 1968 ; Part II Aion. Researches into the Phenomenology of the Self, Translated by R. F. C. Hull, Bollingen Series, Princeton University Press, 1968. En français, on peut consulter les éditions L’homme à la découverte de son âme : Structure et fonctionnement de l’inconscient, Préface et adaptation par le Dr Roland Cahen, Nouvelle édition entièrement revue et augmentée, Paris, Albin Michel, 1990 ; Problèmes de l’âme moderne, Préface du Docteur Roland Cahen, Traduction par Yves le Lay, Paris, Buchet / Chastel, 1991 ; Les racines de la conscience : études sur l'archétype, Présentation de Michel Cazenave, Traduit de l’allemand par Yves Le Lay, Sous la direction de Roland Cahen, Paris, Librairie générale française, 1995. 5

« La clef de voûte de l’énoncé de Jung est le terme ”résidus psychiques” qui implique vraisemblablement la présence dans l’esprit de caractéristiques héréditaires. Il est impossible de fournir une preuve scientifique et complète de cette hypothèse. Cela dit, il faut admettre que tout comme la psychologie de Jung frise la philosophie, cette affirmation parascientifique est en réalité un présupposé métaphysique et que, même si pour Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 47

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qu’elle transporte l’idée d’archétype (en tant qu’essence parménidienne immuable) de l’ontologie à la psychologie. Métaphysique ou métapsychique, l’archétype est dénoncé comme un concept artificiellement enflé, hypostasié ou généralisé d’une manière illégitime. Le criticisme postmoderne s’est ingénié à déconstruire le concept d’archétype, mettant à nu sa fonction idéologique, d’instrument-clé dans la construction de discours (textes) de légitimation comme la psychanalyse ou la morphologie des cultures (DELEUZE, GUATARRI, 1972). Heureusement, en tant que spécialiste de littérature comparée, la « bataille pour l’archétype » ne nous concerne pas de manière directe. La définition culturelle et philologique de l’archétype, qui nous revient de droit, est la mieux assurée, la plus prudente et la moins contestable. En fin de compte, on peut bien constater l’existence de thématiques récurrentes dans les mythologies, les littératures et les arts, sans devoir décider de leur fondement métaphysique ou psychologique. Point marqué par Laurent Mattiussi : « La critique littéraire s’épargnera à la rigueur le débat sur l’origine des schèmes et des archétypes. Qu’ils sourdent des profondeurs ou qu’ils tombent du ciel, elle peut se contenter de n’être attentive qu’à leur éventuelle fécondité heuristique » (MATTIUSSI, 2005, p. 308). Faut-il pour autant renoncer à toute la richesse d’idées que les controverses sur la condition ontologique ou anthropologique des archétypes nous ont laissée en héritage ? Sommes-nous prêts à faire tabula rasa de deux millénaires et demi de théories qui ont constitué les bases des plusieurs systèmes métaphysiques et psychologiques, les plus importants de l’histoire culturelle de notre continent ? Ou, sinon, est-il possible de récupérer ou de garder dans notre approche ces systèmes d’une manière quelconque, qui ne fasse l’impasse sur leur vérité absolue ou leur démontrabilité logique, scientifique et expérimentale et qui ne nous oblige non plus d’abandonner nos compétences de comparatiste et nous prononcer dans des questions de théologie, philosophie ou psychanalyse ? Ce qu’il nous faudrait, afin d’obtenir une telle position privilégiée, c’est un regard distancié, qui envisage les herméneutiques archétypales non plus en tant qu’explications définitives de la réalité, extérieure ou intérieure, mais comme des scénarios explicatifs, comme des épistémès élaborées à divers moment de l’histoire par des théologiens, philosophes, psychologues et autres spécialistes du sacré, de la nature et de l’âme humaine. De toute évidence, chacune des théories archétypales ont constitué, à leur époque, une Jung il s’agissait d’une évidence, il faut la juger comme telle ». Lauriat Lane Jr., « The Literary Archetype », apud Marshall McLuhan avec Wilfred Watson, Du cliché à l’archétype. La foire du sens, éd. cit., p. 28. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 48

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explication valide pour un auteur, un groupe de lecteurs, un courant ou un mouvement religieux, philosophique, littéraire ou artistique, pour un paradigme culturel. Ces hommes se sont servi de ces explications pour se représenter le monde et l’être humain. Ces théories faisaient partie de leur horizon intellectuel et imaginaire et des moyens cognitifs qu’ils mettaient en œuvre pour se rapporter à l’univers. Pour eux, elles avaient valeur de réalité, elles donnaient des réponses plus ou moins confortables aux questions levées par leur curiosité. En d’autres mots, chaque « grande narration », métaphysique ou psychologique, a servi, à certaines époques, comme grille d’interprétation autant de la réalité objective et spirituelle, que de la mythologie, de la littérature, des arts. Les auteurs et les artistes respectifs et leur public comprenaient le monde dans leurs termes, ils se représentaient le grand tableau de l’univers utilisant leurs concepts et schémas. Les aèdes qui ont conçu les poèmes cycliques de la Grèce, résumés dans la figure d’Homère, voyaient l’univers à travers le polythéisme antique et la théogonie hésiodique. Les différentes créations religieuses institutionnelles, cultuelles et théologiques ultérieures (le culte des héros, et puis des âmes, le culte dionysiaque, les mystères d’Éleusis et autres cultes a mystères antiques, l’orphisme et le pythagorisme) ont apporté des innovations et des nuances nouvelles, qui se sont reflétées dans les œuvres littéraires et artistiques contemporaines aussi. Émergeant du grand « melting pot » de l’Antiquité tardive, le Christianisme a changé radicalement le paradigme religieux et culturel et a imposé une explication de l’univers bien différente. La Renaissance, le Baroque, le Classicisme, l’Illuminisme, le Romantisme, le Réalisme, chaque grand courant, avec les philosophies adjacentes, ont proposées des épistémès nouvelles et ont provoqué autant de mutations de la Weltanschauung. Pour comprendre toute œuvre mythologique, littéraire ou d’art, le comparatiste, le mythographe, l’historien de la littérature ou de l’art doivent la resituer dans le contexte religieux et culturel qui l’a vu naître, sinon il risque de commettre des anachronismes et de lui attribuer des intentions et des significations qui appartiennent à une autre époque ou vision du monde. Pour ce faire, le chercheur doit être capable de se représenter ces systèmes comme des visions autonomes, inscrites dans une période précise. Autrement dit il est censé faire un pas en arrière et sortir du tableau historique et culturel qu’il contemple. Il est obligé de traiter toute théorie du monde comme un artefact théologique, philosophique ou d’imagination, comme une construction d’images, de symboles et d’idées, comme un appareil conceptuel et

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imaginaire mis en place par chaque culture pour appréhender le réel. Comme l’affirme John Searle, la réalité est un projet social, la représentation du monde est une image collective (SEARLE, 1995), engendrée par un groupe ou une civilisation à un moment donné de l’histoire. Une telle attitude distanciée va de soi dans le cas des religions et des métaphysiques anciennes. De manière spontanée, tout historien de l’antiquité traitera les polythéismes oriental, gréco-latin, germanique ou celtique comme des religions et des mythologies différentes de sa propre vision du monde, de ses convictions intimes concernant la nature de l’univers. C’est la marche des cultures, les changements historiques qui l’ont acculturé par rapport aux visions de nos prédécesseurs. La situation se complique un peu en ce qui concerne le christianisme et ses confessions, ainsi que les divers ésotérismes syncrétiques contemporains. Un certain nombre (pas grand) de chercheurs peuvent embrasser, de manière ouverte ou en secret, ces visions du monde et faire donc, en quelque sorte, corps commun avec les œuvres chrétiennes ou occultistes qu’ils analysent. Évidemment, pour ces auteurs, les visions respectives du monde expriment la vérité non seulement en termes culturels, mais aussi métaphysiques et ontologiques. C’est contre ce type d’identifications qu’a pris position le positivisme d’Auguste Comte, compris comme une philosophie fondatrice des sciences modernes. Mais est-ce que les chercheurs modernes sont-ils devenus pour autant moins vulnérables au problème d’identification par le rejet des principes « magique » et « dogmatique » qui structuraient les (pseudo)sciences antérieures au positivisme ? Ne sont-ils pas, à leur tour, immergés dans une vision particulière du monde, justement celle du positivisme, scientisme, matérialisme et athéisme modernes ? Cette vision a des traits bien précis, de manière que John Searle peut parler d’une « ontologie fondamentale » de la modernité, d’une sorte de « vulgate » collective dans la représentation de l’univers, basée sur les théories de la physique relativiste et quantique, de la biologie évolutionniste, etc (SEARLE, 1995). Est-ce que l’adoption de cette (méta)physique garantit une attitude neutre, détentrice d’une vérité intrinsèque, capable d’offrir un point de repère extérieur pour aborder « objectivement » les autres explications du monde ? Évidemment, non. Ce sont l’anthropologie, l’ethnologie et la science des religions qui ont ébranlé assez vite cette utopie de la position « objective » de l’observateur. Face aux cultures traditionnelles, taxées auparavant de « primitives », les savants positivistes s’avèrent

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tout aussi conditionnés par leur propre formation et vision du monde que les chercheurs appartenant à une autre religion. C’est l’approche phénoménologique, reprise par les recherches ethnographiques, qui a permis de lutter contre l’illusion de la neutralité du chercheur moderne. Pour éviter d’imposer les vecteurs subliminaux, les lignes de force de sa propre vision du monde, l’ethnographe et l’historien des religions, aussi que des cultures, doivent devenir conscients de leur conditionnement, de leur propre formation culturelle. Ils devraient pouvoir « sortir de leur propre tableau », faire le pas en arrière pour appréhender leur propre vision du monde comme une construction intellectuelle et imaginaire déterminée historiquement. C’est un peu la leçon du relativisme postmoderne : toute Weltanschauung est une « grande narration ». C’est cette conclusion que nous nous proposons d’appliquer à l’archétypologie. En effet, dans l’acception « ontologique » ou « métaphysique », les théories des archétypes se sont mises en devoir d’expliquer la nature et la surnature, de donner des modèles du monde. Chacun de ces modèles, religieux, théologique, philosophique, a servi d’horizon d’attente, de création et de réception de plusieurs œuvres mythologiques, littéraires ou d’art. Pour surprendre la richesse intrinsèque de ces œuvres, le comparatiste se doit de les resituer dans le cadre de la vision (ou des visions combinées) contemporaine(s). Dans sa variante métaphysique, l’archétypologie devrait offrir le grand panorama diachronique, la succession historique des Weltanschauungen sur lesquelles les auteurs et leur public projetaient leurs créations. Dans une telle approche, la question de la consistance ontologique, de la réalité et de la véracité, de la nature et du mode de subsistance, du lieu transcendant ou immanent des archétypes ne se pose évidemment pas. Pour le chercheur, peu importe que ce soit le polythéisme païen ou le monothéisme judéo-chrétien ou l’athéisme et nihilisme moderne qui détiennent la vérité, que ce soit Platon ou Aristote, les réalistes ou les nominalistes qui aient raison. Le comparatiste peut reconstituer les réseaux de concepts et les constellations d’images et de symboles des divers systèmes, pour mieux comprendre les œuvres qu’il analyse, sans avoir à se prononcer en théologien ou métaphysicien. Il peut invoquer toutes leurs richesses théoriques et imaginaires, pour amplifier et cadrer les mythes, épopées, romans, tableaux, etc., sans devoir adhérer à ces systèmes, même quand il analyse disons une utopie ou un film actuel qui invoque la « vulgate » (méta)physique contemporaine, le Big Bang, la théorie des gènes, les neurosciences, etc. Ses uniques desseins doivent être la

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sélection de la Weltbilt la plus conforme et appropriée à l’œuvre respective et sa reproduction la plus correcte et riche. La critique archétypale (dans la variante métaphysique) peut donc être utilisée pour révéler la grille de concepts théologiques ou philosophiques par laquelle l’auteur et ses lecteurs interprétaient eux-mêmes, à leur époque ou à des dates ultérieures, le texte mythologique ou littéraire ou l’œuvre d’art. Elle permet de dégager l’horizon conceptuel et imaginaire sur lequel s’inscrit l’acte de la création dans la psychologie de l’écrivain et l’acte de la lecture dans la psychologie du lecteur. Parfois, ces archétypes métaphysiques sont désignés explicitement par l’auteur, d’autres fois ils ne sont que suggérés. Pour n’en offrir qu’un exemple, prenons Goethe qui, pressé par Schiller de donner une signification allégorique à son Faust, invoque explicitement, dans le cadre d’une vision plutôt hermétique que chrétienne, le Bon Dieu, le Diable, l’âme de la terre (Erdgeist, anima terrae), les esprits élémentaires, homunculus, etc., c’est-à-dire les figures archétypales du christianisme, de la magie, de l’alchimie et de l’occultisme néoplatonicien. D’autres figures de son œuvre reposent sur un fond archétypal explicatif moins évident, mais pas pour autant moins présent et actif. À travers un code d’interprétation théologal, on voit se dessiner derrière la figure de Marguerite l’archétype de l’Ange qui choit à cause du désir charnel induit par le Diable ; derrière la figure de Valentin, son frère, l’archétype de l’Archange militaire qui, à la manière de Saint Georges, s’oppose au Diable ; derrière la figure de la mère de Marguerite l’archétype de la Sainte Vierge, symbole de l’amour chaste, opposé à la luxure proposée par Méphistophélès. À travers un code de lecture philosophique, élaboré par Goethe lui-même, on peut percevoir en palimpseste dans le personnage de Faust le concept goethéen de daïmonion, dans les figures de Marguerite et d’Hélène – le concept d’éternel féminin, dans les apparitions des Mères – le concept de phénomènes originaires, etc. L’acception ontologique de l’archétype sous-tend donc les interprétations soi-disant théologiques et philosophiques. En invoquant l’une ou l’autre des conceptions sur les universaux, on donne d’un même coup un arrière-fond métaphysique à l’œuvre analysée. Une telle démarche sort de façon interdisciplinaire de la littérature comparée et de l’histoire littéraire et des arts et offre un horizon d’analyse complémentaire, qui enrichit le commentaire esthétique avec des éléments de mythologie, d’histoire des religions, de philosophie, d’histoire des idées. Si certaines approches « puristes » modernes ont reproché ce type d’ouvertures, arguant que la valeur esthétique est indépendante de la religion, de la

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philosophie ou de la sociologie, il faut convenir toutefois qu’il ne s’agit pas d’expliquer le spécifique littéraire ou artistique par des domaines extérieurs, mais de cadrer la création dans les réseaux plus larges des mythes, concepts, schémas, figures, constellations d’images, rituels, etc. de son époque. Si, avec la modernité au sens large, à partir de la Renaissance, la littérature et les arts ont vécu un processus progressif d’individuation et d’autonomisation, qui permet à la critique de traiter séparément l’esthétique, il faut se rendre à l’évidence que pour les époques et cultures antérieures, isoler le côté artistique des autres domaines comme la mythologie, la religion, la théologie, la métaphysique, reviendrait à amputer ces œuvres des dimensions syncrétiques qui les composent et à condamner l’analyste à un aveuglement dirigé. Quel nom donner à cette branche de l’archétypocritique fondée sur l’acception ontologique de l’archétype ? L’école française de recherches sur l’imaginaire a forgé les concepts de mythocritique et mythanalyse, en tant que composantes d’une « mythodologie », à savoir une méthodologie d’analyse des mythes imprégnés dans les œuvres et les cultures humaines (DURAND, 1996). La mythocritique se donne pour objet d’identifier les mythes présents au niveau d’une œuvre ou d’un auteur. Elle commence par identifier les « redondances », c’est-à-dire les thèmes et les motifs qui reviennent chez un auteur, puis regroupe ces récurrences autour des mythèmes ou unités composantes d’un schéma mythique, identifie ensuite le ou les mythes actualisé(s) par l’œuvre, et finalement illumine les modifications spécifiques qu’il(s) y a (ont) souffertes. À son tour, la mythanalyse étend cette approche à plusieurs écrivains ou artistes représentatifs d’un courant ou d’une époque, pour en dégager le réseau des mythes dominants. Elle peut procéder soit de manière inductive, se dirigeant des œuvres vers les mythes fondateurs, soit de manière déductive, descendant des mythèmes constitutifs des grands mythes vers leurs actualisations dans les œuvres. Cette démarche, qui ressemble à l’« amplification » définie par Jung, est moins intéressée à démontrer la validité de la théorie des archétypes de l’inconscient collectif et plus à donner un tableau sociologique et un profil culturel du courant, du bassin sémantique ou du paradigme respectif (CHAUVIN, SIGANOS, WALTER, 2005, BRUNEL, 1992; DURAND, 1994; DURAND, 1992). Néanmoins, la « mythodologie » ne recouvre que partiellement l’archétypocritique métaphysique. Elle ne s’occupe que des mythes et par extension des représentations mythologiques et religieuses du monde, alors que l’acception ontologique des archétypes

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s’ouvre aussi vers les représentations théologiques, philosophiques, métaphysiques, c’est-àdire conceptuelles. L’objet que nous voudrions assigner à cette branche de l’archétypologie est l’analyse de la (des) Weltanschauung(en) qui accueille(nt) l’œuvre et son auteur. Comme terme, il nous faudrait en conséquence une « kosmos-critique », une « universum-critique », ou une « Weltbild-critique ». Mais pour ne pas forcer la sensibilité linguistique par de tels barbarismes, il serait peut-être plus sage de continuer d’utiliser le terme de mythocritique, en amplifiant son objet des mythes et des visions mythiques du monde à la vision générale du monde. En définitive, soit qu’elle ne s’exprime que par des figures et des images, soit qu’elle adopte un langage conceptuel abstrait, une vision du monde ou un modèle cosmologique repose de toute façon sur des unités de sens archétypal. Ne peut-on entrevoir, derrière les systèmes de Platon et des docteurs gnostiques jusqu’aux philosophes conceptualistes les plus hardis comme Hegel, les profils d’un ou de plusieurs mythes fondateurs camouflés ? Le Big Bang n’est-il pas un mythe scientifique moderne ? Par symétrie avec la mythocritique et la mythanalyse, il serait opportun de trouver un usage pour l’acception anthropologique ou psychologique de l’archétype aussi. Tant que la psychanalyse ou la psychologie analytique ne sont (et peut-être ne seront-elles jamais) assurées du point de vue épistémique, il serait risqué de les appliquer à l’analyse de la religion, de la littérature ou des arts en tant que garantes de vérité scientifique. Mais la psychologie cognitive ou les neurosciences contemporaines sont-elles plus en mesure de certifier le fondement psychologique d’une telle démarche ? Tout comme la métaphysique, les systèmes explicatifs de la psyché ont une biographie coextensive à la culture humaine et ont parcouru autant de métamorphoses et d’évolutions au long de l’histoire. À leur moment de gloire, elles ont été investies, chacune, avec une valeur de vérité. Cela ne leur a pas épargné la réfutation ultérieure par des doctrines nouvelles, apparemment plus correctes, plus subtiles, plus adéquates. À coup sûr, dans une centaine d’années la même chose arrivera aussi à la psychanalyse et au cognitivisme, à la psychologie analytique et aux neurosciences actuelles. Faut-il pour autant se débarrasser d’elles comme des tentatives échouées et des résidus encombrants, leur donner un « delete » et les jeter à la poubelle de l’histoire des idées ? En fin de compte, de même que les visions du monde, elles ont aidé à leur tour, à diverses époques, certains auteurs et créateurs ainsi que leurs publics, à mieux se représenter et comprendre le fonctionnement de l’âme. On a pu reconstituer, à partir du vocabulaire même, la conception commune sur la psyché dans les épopées d’Homère, tâche que les anthropologues et

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ethnologues contemporains continuent de parfaire dans l’analyse des sociétés traditionnelles. Dans son traité De l’âme Aristote a mis au point une systématique forte du psychisme humain. Dans ses Méditations, saint Augustin a ouvert des perspectives inattendues sur la psychologie abyssale, que les mystiques chrétiens de la Philocalie n’ont pas manqué d’illuminer de leur savoir subtil. Dans Les passions de l’âme et autres traités, Descartes a reconstruit la psychologie classique pour l’usage de la modernité et tous ses successeurs se sont ingéniés à produire pour leurs systèmes un volet psychologique aussi. Les romantiques ont fait émerger le grand continent ignoré de l’inconscient, cependant que Freud et Jung ont transposé le discours romantique sur l’âme nocturne dans les termes de la science moderne. Toutes ces conceptions sont devenues à un certain moment révolues et ont été remplacées par de nouvelles. Ce que nous proposons donc est d’adopter dans leurs cas aussi un regard distancié, de les envisager comme des « scénarios explicatifs » de la psyché bien déterminés historiquement. Les derniers venus, la psychanalyse et la psychologie analytique jungienne il y a quelques décades, le cognitivisme et les neurosciences de nos jours, ont pu prétendre à leur moment de gloire qu’ils détenaient la vérité et qu’ils pouvaient donner l’explication du psychisme humain. Mais leur succès (voire mode) et l’autorité qu’ils ont gagné auprès les diverses catégories de penseurs ne devraient pas nous empêcher de les relativiser, de les mettre en perspective, de sortir du tableau et de les regarder comme des artefacts théoriques. Cela va d’ailleurs de soi pour les systèmes anciens, auxquels nous n’adhérons plus parce que le paradigme épistémologique a changé. Si un critique littéraire invoque les catégories psychologiques de Platon, d’Aristote, des pères de l’Église ou de Descartes pour expliquer les ressorts d’une œuvre ou d’une autre, personne ne pensera opportun d’obliger le critique de prendre position face à ces théories et de les réfuter ou valider. Les choses se brouillent et la capacité de faire la part des choses ne va plus de soi quand le critique fait appel aux systèmes qui constituent la « vulgate » psychologique de notre propre époque. Puisque la psychanalyse, la psychologie jungienne, le cognitivisme, l’éthologie, les neurosciences, etc., sont partie intégrante de nos instruments cognitifs actuels et sont investis d’une valeur explicative efficace, le critique littéraire a tendance d’assumer l’une ou l’autre de ces disciplines comme garante de vérité. Tôt ou tard, il sera obligé par les adeptes ou les critiques de la discipline respective, et par l’évolution des idées même, de faire une sorte de profession de foi, de déclarer s’il endosse ou s’il rejette le système respectif.

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C’est pour éviter de telles situations impropres, qui obligent le comparatiste, l’historien de la mythologie et de la littérature, le critique littéraire ou des arts à débattre des questions hors de sa compétence, que le criticisme postmoderne peut être salutaire. Comme nous l’avons souligné, l’archétypologue « culturel » n’a pas à se prononcer dans la « querelle des archétypes ». Il lui suffit de constater que les mythes ou les œuvres qu’il analyse rentrent dans un paradigme culturel dominé par l’une ou l’autre théorie de l’âme. Peut importe si la triade homérique sophrosyné-tymos-epitymia, ou celle néoplatonicienne nous-pneuma-soma, sont ou ne sont pas véridiques, le critique peut (en toute liberté de conscience) et même doit (par souci de compréhension et d’érudition) les invoquer et les utiliser, pour remettre l’œuvre dans son horizon culturel. Ce que nous proposons de plus c’est de transposer cette attitude, adoptée de façon « spontanée » face aux systèmes acculturés, aux théories psychologiques actuelles aussi et de voir en elles non des garantes de la « vérité » de l’œuvre, mais des éléments actifs de l’horizon de création et de réception. Même si nous avons nos propres doutes ou si nous acceptons carrément les critiques formulées à l’adresse de la psychologie abyssale de Jung, rien ne nous empêche d’analyser telle ou telle œuvre en utilisant les concepts jungiens, tant que nous restons conscient de leur nature d’éléments d’une « grande narration » psychologique. Pourquoi refuser d’invoquer une grille de lecture, même si elle est erronée (en fin de compte, quelle est la validité des psychologies d’Aristote, Augustin, Descartes de nos jours ?), si elle nous fournit ou nous inspire des aperçus, des intuitions et des idées nouvelles ? Le but d’une analyse n’est pas de démontrer par l’œuvre la raison ou la vérité d’une conception quelconque, mais de mettre à profit toute conception qui pourrait apporter plus de lumières sur l’œuvre elle-même. Dans son acception psychologique, une archétypocritique peut mettre en relief les structures liminaires de la création, évoquant les théories anthropologiques qui ont été créées au cours de l’histoire pour expliquer l’âme humaine. Si l’identification des archétypes métaphysiques dans une œuvre revient à faire la topographie de l’horizon d’images et de concepts à travers lequel l’artiste organise sa vision du monde, l’identification des archétypes psychologiques revient à étudier les rythmes organiques et les fantasmes inconscients qui conduisent la plume de l’artiste. Depuis ce double point de vue, les personnages de Faust, par exemple, peuvent-ils être interprétés autant comme des idées métaphysiques que comme des personnifications d’archétypes inconscients. Dans ses personnages, Goethe projette aussi bien

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ses concepts théoriques que ses complexes autonomes. Les œuvres abordées de cette manière dévoilent une dimension abyssale et deviennent des immenses scènes de l’intériorité, où les diverses voix de l’artiste, clivées et projetées sur des figures individuelles, entrent dans un jeu de rôles. Dans une lecture archétypale (dans le sens psychologique jungien), le docteur Faust goethéen se révèle être une personnification de l’ego conscient qui, à cause d’une inflation rationnelle, entre dans un état de crise et se fait posséder par l’ombre, personnifiée par Méphistophélès. Cependant que la pulsion démoniaque s’épanouit vers d’autres régions psychiques, elle gagne aussi l’anima, personnifiée par Marguerite. Or, à la chute de Marguerite dans une sexualité désublimée s’opposent des figures qui représentent l’interdiction de la régression, des personnifications de l’imago maternel (la mère) et de l’imago fraternel (Valentin). Faust est sauvé de la damnation par son hieros gamos avec le principe féminin (Hélène, Marguerite), de même que l’individuation, dans le sens jungien, s’obtient par la conjonction du moi avec l’anima. Le Dieu faustien, que Goethe imagine d’une manière plutôt hermétique que chrétienne (puisque le diable n’est pas son adversaire, mais son instrument), renvoie au Soi jungien, c’est-à-dire à l’archétype de la totalité psychique, supraordonné autant au moi qu’à l’ombre. Enfin, les figures insaisissables des Mères semblent visualiser, par perception empathique, les archétypes jungiens en soi, instances irreprésentables, qui ne sont pas des images, mais des générateurs d’images. Peut-on donner un nom à une méthodologie d’analyse basée sur l’acception psychologique de l’archétype aussi ? Par symétrie avec la mythocritique de l’école de recherches sur l’imaginaire de Grenoble, nous avons le terme de psychocritique, créé et imposé par Charles Mauron comme une extension de la psychanalyse, terme qui d’ailleurs a servi d’inspiration à Gilbert Durand et à ses successeurs. Selon Charles Mauron, une approche psychanalytique pourrait donner une colonne vertébrale, un noyau de sens unificateur à l’œuvre d’un écrivain ou artiste (MAURON, 1962). La méthode psychocritique réside dans l’identification des « métaphores obsédantes » d’un auteur (les figures récurrentes qui attestent la présence de certains fantasmes dans l’imagination créatrice), et dans leur organisation dans un réseau associatif qui témoigne de l’existence d’un « mythe personnel » de l’auteur respectif. La psychocritique reconstitue le « complexe » imaginatif personnel (syntagme que Gilbert Durand préfère à celle de mythe personnel, justement pour pouvoir dés-identifier psychocritique et mythocritique) d’un auteur, alors que la psychanalyse dévoile les complexes d’un groupe ou d’une société, sinon de toute la race humaine (dans la

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prétention de Freud ou de Jung), de même que la mythocritique s’applique à une œuvre alors que la mythanalyse étend ce travail à tout un courant ou culture. Toutefois, en ce qui nous concerne, si nous avons cru bon d’amplifier le terme de mythocritique, nous devons bien modifier celui de psychocritique aussi. Bien qu’il prétende conférer à la psychocritique une autonomie esthétique par rapport aux complexes inconscients, Charles Mauron continue tout de même de coupler l’analyse de l’imaginaire et la critique thématique de l’œuvre avec la psychanalyse. Quant à nous, conséquent avec l’idée du distanciement postmoderne que nous voulons imposer à l’archétypocritique, nous proposons de défaire la psychocritique du couple méthodologique qu’elle fait avec les psychologies de Freud et de Jung et de lui permettre de désigner toute approche de la psyché humaine. Dans notre acception, est une démarche psychocritique tout analyse qui identifie un système psychologique appliqué ou applicable à une œuvre : la tragédie grecque peut être envisagée à travers les concepts psychologiques d’Aristote ; les visions apocalyptiques du Moyen Âge, avec la Divine Comédie pour chef d’œuvre, à travers les catégories de saint Augustin et de Thomas d’Aquin ; le théâtre de Calderón de la Barca selon le système de Descartes ; les personnages de Byron à travers les concepts des philosophes romantiques, Schelling, Carus, etc. ; les romans de Gustav Meyrink à travers l’anthroposophie moderne. Ces exemples pourraient suggérer qu’il faudrait statuer d’emblée un synchronisme historique entre la psychologie de l’époque et l’œuvre analysée ; mais, de fait, rien ne nous empêche d’analyser les œuvres d’une époque avec les instruments d’une autre époque : la tragédie grecque à travers la psychologie de Nietzsche, Œdipe dans l’interprétation de Freud, l’alchimie renaissante dans les catégories de Jung, etc. Il est vrai que cela implique le risque d’anachronismes et de généralisation (puisque l’illusion et la prétention de tout système anthropologique est de découvrir la vérité globale et définitive sur l’âme humaine), mais un regard distancié, conscient du fait que chaque système est un artefact théorique, une grille de lecture, devrait pouvoir faire, sans problème, la part des choses. Il est donc possible, à partir des trois grandes acceptions historiques du concept d’archétype, d’établir une archétypocritique à trois volets, ayant l’acception culturelle comme base de débat et utilisant les deux autres comme des amplifications théoriques vers la métaphysique, respectivement la psychologie sous-jacente de l’œuvre, en tant que composantes de l’horizon plus vaste de l’auteur et de son public. Nous obtenons ainsi une sorte de retable herméneutique, qui expose sur le panneau central l’œuvre avec son réseau de

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thèmes, images et symboles, et offre par les deux panneaux latéraux, en superposition ou en palimpseste, deux filtres supplémentaires d’analyse, l’un qui a trait à la vision métaphysique du monde dans laquelle s’inscrit la Weltbilt de l’auteur, l’autre qui vise les mécanismes psychologiques par lesquels son époque ou les analystes ultérieurs comprenaient le processus de création et l’âme humaine en général. Une autre métaphore, peut-être plus appropriée, que nous proposons pour décrire ce dispositif archétypocritique nous est offerte par l’ophtalmologie. Quand ils désirent déterminer l’acuité visuelle d’un patient, les oculistes utilisent, parmi d’autres instruments plus ou moins sophistiqués, des lunettes spéciales, à lentilles rabattables. Pour chacun des deux yeux, ces lunettes disposent, à droite et à gauche, d’une série de lentilles à dioptries progressives. Le patient regarde un panneau avec des lettres à dimension décroissante situé devant lui et l’oculiste rabat sur chacun de ses yeux des lentilles successives, jusqu’à ce que l’image devienne de plus en plus claire et précise. Au moment où les lentilles qui correspondent aux déficiences des deux yeux sont identifiées, le patient retrouve la vision correcte (du moins pour l’appareil optique humain) des lettres présentes sur le panneau. Nous aussi, comparatistes, historiens des religions, de la littérature et des arts, nous sommes tenus focaliser des images et de panneaux culturels. Quand nous regardons des œuvres de notre propre époque, d’habitude nous n’avons pas besoin d’aides et de corrections, parce que nous sommes en résonance avec elles. Nous participons du même horizon d’attente, des mêmes conventions, du même goût que leurs auteurs. Notre interprétation « va de soi », elle surprend correctement le cadrage de l’œuvre. Néanmoins le paysage risque parfois de rester plat, bidimensionnel, clair peut-être, mais déroutant par l’effet de trompe-l’œil provoqué par cette clarté même. Les choses se compliquent encore plus quand nous focalisons des images d’une autre époque, avec laquelle nous ne faisons plus corps commun, par rapport à laquelle nous sommes acculturés. Nos instruments spécifiques (analyse philologique, thématique, formaliste, esthétique, etc.) ne suffisent plus pour rendre à l’œuvre contemplée la clarté et la profondeur qu’elle avait pour le public de son époque. Alors nous pouvons avoir recours aux lunettes de l’archétypocritique. La vision « naturelle », sans lentilles de correction, que nous avons de l’œuvre est celle offerte par les organes visuels de nos disciplines, comparatisme, histoire de la littérature et des arts. Elle nous permet de dégager les invariants de nature thématique, les réseaux d’images, de

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symboles et d’idées qui constellent l’œuvre respective. Évidemment, on peut par la suite étendre ce dessin individuel à des tableaux plus larges, représentant toutes les œuvres de l’auteur, tout un corpus d’œuvres appartenant à un même groupe ou courant, ou le panorama synoptique des archétypes culturels de toute une époque. Cependant, pour rendre au tableau sa multi-dimensionnalité originelle, on peut avoir recours aux deux séries de lentilles complémentaires : attribuons (par convention) à l’œil droit le jeu de lentilles qui correspondent à l’archétypocritique ontologique ou métaphysique, et à l’œil gauche les lentilles de l’archétypocritique psychologique ou anthropologique. Sur l’« œil » droit, nous allons rabattre une suite de visions du monde, chamanisme, religions néolithiques de la Grande Mère, polythéismes antiques, mythologies celtique ou germanique, cultes à mystères, monothéisme judéo-chrétien, gnoses, mystique arabe et juive, disciplines occultes de la Renaissance, philosophies classiques et romantiques, athéisme et cosmologies scientifiques, etc., jusqu’au moment où l’œuvre contemplée acquiert une profondeur tridimensionnelle, un arrière-plan métaphysique, une « voûte céleste », une Weltanschauung. De même, nous offrirons à l’« œil » gauche le choix d’une autre série d’explications et théories, visant l’âme humaine cette fois : transes chamaniques, extases, possessions et autres états altérés de la conscience, conceptions antiques de l’âme humaine et des être surnaturels, psychologies de Platon, d’Aristote, des Stoïciens, Néopythagoriciens et autres philosophes, dogme

chrétien

de

l’âme,

systèmes

ésotériques,

alchimiques,

théosophiques

et

anthroposophiques, systèmes des philosophes classiques, conception romantique de l’âme nocturne, psychanalyse et autres psychologies des profondeurs, cognitivismes, behaviorismes, éthologismes et sciences du cerveau contemporains, etc. L’une ou l’autre de ces lentilles, en fonction du profil du critique qui l’utilise, aura la chance d’offrir à l’œuvre contemplée une profondeur accrue, une dimension abyssale, un arrière fonds fantasmatique et inconscient révélateur. Il n’est pas exclu que chaque œuvre puisse accepter plusieurs lentilles, qui lui prêtent des contours également lumineux, ou même qu’elle exige l’utilisation de plusieurs lentilles superposées. Mettant à profit les définitions élargies que nous avons données plus haut, on pourrait dire que les deux mécanismes optiques complémentaires, pour les « yeux » droit et gauche du chercheur, sont la mythocritique et la psychocritique. L’analyste des mythes, des œuvres littéraires et des arts, ne peut que gagner s’il ajoute à ses instruments spécifiques (ceux de l’archétypologie culturelle) les puissants dispositifs de l’archétypologie métaphysique et de

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II Congrès International du CRI2i La théorie générale de l’Imaginaire 50 ans après : Concepts, notions, métaphores 29-31 octobre 2015 - Porto Alegre, Brésil

celle psychologique. Ces lunettes, ces loupes, ces lentilles, ces télescopes et microscopes lui permettront de recadrer l’œuvre dans les horizons extérieur et intérieur de son époque, de lui rendre les profondeurs du macro et du microunivers. Flanquées par la mythocritique et la mythanalyse, d’un côté, et par la psychocritique et les différentes analyses psychologiques, de l’autre, la critique littéraire ou artistique, le comparatisme et l’histoire des images et des idées deviennent plus riches, plus compréhensives, plus pénétrantes et englobantes à la fois, évitant le risque, si actuel, si moderne, de la simplification et de la réduction. L’archétypocritique pourrait être un instrument herméneutique très efficace, à condition de ne pas oublier son rôle d’instrument, de dispositif optique, de construction intellectuelle : un jeu postmoderne, détaché et relativiste, avec des visions du monde et de l’âme que leurs auteurs auraient voulu, eux, vraies, sérieuses et définitives. RÉFÉRENCES BRAGA, Corin. 10 studii de archetipologie. Cluj-Napoca, Dacia, 2007, p. 5-23. BRUNEL, Pierre. Mythocritique. Théorie et parcours, Paris: Presses Universitaires de France, 1992. CHAUVIN, Danièle; SIGANOS, André; & WALTER, Philippe (orgs.) Questions de mythocritique. Paris: Imago, 2005 DELEUZE, Gilles, GUATARRI, Félix. L’Anti-Œdipe. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972 GREENE, Brian. The Elegant Universe. New York: Vintage Books – Random House, 2003 MATTIUSSI, Laurent. Schème, type, archétype. In: CHAUVIN, Danièle; SIGANOS, André; & WALTER, Philippe (orgs.) Questions de mythocritique. Paris: Imago, 2005 SEARLE, John R. The Construction of Social Reality. New York: Free Press, 1995. DURAND, Gilbert. Introduction à la mythodologie. Mythes et sociétés, Paris, Albin Michel, 1996 ______. L’Imaginaire. Essai sur les sciences et la philosophie de l’image, Paris, Hatier, 1994. ______. Figures mythiques et visages de l’œuvre. De la mythocritique à la mythanalyse, Paris, Dunod, 1992 ______. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Bordas, 1969 MAURON, Charles. Des métaphores obsédantes au mythe personnel. Paris: José Corti, 1962

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A imagem simbólica na contemporaneidade The symbolic image in contemporary times L'image symbolique à l'époque contemporaine

Malena Segura CONTRERA 1 Universidade Paulista, São Paulo, Brasil

Resumo: O texto trata do atual estatudo da imagem simbólica na contemporaneidade, considerando o contexto da sociedade mediática e o apagamento das vivências corporais concretas. Questionando-se a respeito de qual a imagem que uma psique que dissociou o corpo pode gerar, a reflexão segue tratando do domínio do diabólico sobre o simbólico e apontando alguns sintomas dessa perda do sentido. Propõe ainda a possibilidade do resgate da imaginação criativa como estratégia de resiliência e de reintrodução do simbólico no mundo contemporâneo. Palavras-chave: imagem simbólica; sociedade mediática; psique; imaginação. Abstract: The text deals with the current statute of symbolic image in contemporary times, considering the context of the media society and the deletion of specific bodily experiences. Questioning yourself about which image to a psyche that dissociated the body can generate, the reflection follows the case of the domain of the diabolic on the symbolic and pointing some symptoms of this loss of sense. It also proposes the possibility of rescue of the creative imagination as a strategy of resilience and reintroduction of the symbolic in the contemporary world. Keywords: symbolic image; media society; psyche; imagination.

A imagem simbólica hoje Apresentando um diagnóstico acerca da crise do pensamento simbólico no mundo contemporâneo, Gilbert Durand (1995, p.20) afirma que essa crise teria se efetivado pelo processo de extinção das três principais características da ação do simbólico, apontando de certo modo para os desdobramentos contemporâneos do processo de desencantamento do mundo 2: “... à presença epifânica da transcendência as Igrejas irão opor os dogmas e clericalismos; ao ‘pensamento indireto’ os pragmatismos irão opor o 1

[email protected] Uma reflexão acerca dos desdobramentos contemporâneos do processo de desencantamento do mundo foi apresentada no livro Mediosfera – meios, imaginário e desencantamento do mundo (2010). 2

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pensamento direto, o ‘conceito’ – quando não é o ‘preceito’ – e, finalmente, face à imaginação compreensiva, ‘mestra do erro e da falsidade’, a Ciência levantará longas sucessões de razões da explicação semiológica, assimilando aliás estas últimas às longas sucessões de ‘fatos’ da explicação positivista” (DURAND, G., 1994, p. 20)

Atacadas a imaginação compreensiva, o pensamento indireto - ou metafórico, como poderíamos dizer -, e a epifania da transcendência vemos diagnosticado com precisão por Durand o atual cenário da crise do pensamento simbólico, que se retira lentamente do mundo (não sem resistência, é claro) para dar lugar ao pensamento cartesiano, instalado há séculos como forma hegemônica de pensamento. Mas não se pode excluir milênios de produção cultural e imaginária simplesmente, não se apaga um continente, apenas podemos afastá-lo dos olhos, fazer com que ele submerja no oceano do inconsciente, gerando a ilusão de que ele não esteja mais ali, exatamente de onde ele irradiará um enorme poder, por meio da ação do inconsciente coletivo. A contribuição de C. G. Jung para os estudos do imaginário foi, nesse e em muitos sentidos, fundamental, na medida em que nos permite ainda hoje continuar pensando no destino de todos os excluídos da História, principalmente nas manifestações sombrias e na sintomatologia cultural que elas compõem. Jung afirmou certa vez que “os deuses tornaram-se doenças”. Venho pensando nessa frase há muitos anos e ainda hoje me deparo com desdobramentos inusitados desse fenômeno, especialmente ao refletir sobre as transformações operadas na imagem simbólica. O que acontece com a imagem quando ela perde seu potencial simbólico? De certa forma, a reflexão acerca da Mediosfera apontou o que acontece com o imaginário quando o simbólico é despotencializado. A crescente migração da energia dos Imaginários Culturais para o Imaginário Mediático – padronizado e hegemônico – é talvez um dos maiores sintomas de como nossa época padece da crise do simbólico e de como procura ocupar o lugar deixado pelos deuses e pela transcendência, com o consumo e a tecnolatria. Por outro lado, sabemos que a imagem simbólica cedeu gradativamente lugar, no mundo tecno-burocrático do Capitalismo, para a imagem técnica, num movimento em que a complexidade cognitiva é transferida do pensamento e da consciência humanos para os programas dos aparelhos cujo funcionamento nos escapa, como postulou Vilém Flusser 3.

3

Referimo-nos aqui à ideia proposta por V. Flusser de que os aparelhos possuem sua própria lógica de funcionamento, representativa do sistema que os cria, e que escapa à consciência humana. Essa reflexão foi Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 63

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Mas e a imaginação, o que aconteceu e acontece com ela? Como fica esse terceiro elemento tão fundamental à integridade do humano? Buscando refletir sobre essa questão, necessitamos entender quais são as forças hoje que atuam em nossa própria vida, que modulam nossa imaginação e que, talvez, estejam inviabilizando nosso potencial imaginativo.

Figura 1 – Aaron Nace – Addiction Fonte: http://www.aaron-nace.com/Addiction

O domínio do diabólico É a pretensão de tudo fazer advir ao mundo real, de tudo precipitar numa realidade integral. E em algum lugar esta é a própria essência do poder. A corrupção do poder está em inscrever no real tudo o que era da ordem do sonho (BAUDRILLARD, J., 2004, p. 27-28). apresentada por ele em vários textos, mas o artigo “Do funcionário” (in Da Religiosidade) é especialmente feliz na reflexão que provoca. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 64

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Se lançarmos um olhar à história do corpo veremos que vem de longa data a associação do corpo ao mal, a rejeição à sua natureza concreta e mortal. Como bem disse André Le Breton, para nossa civilização“o corpo encarna a parte ruim, o rascunho a ser corrigido” (BRETON, A. L.: 2008, p. 16). Se nas culturas arcaicas o nascimento do símbolo foi marcado pela irrupção da consciência advinda do confronto com a morte, conforme nos apresentou Edgar Morin (1988), e respondeu desde o início à necessidade da criação de estratégias mentais para elaborar a angústia advinda dessa consciência, com o passar do tempo o desenvolvimento do pensamento humano, talvez por não ter encontrado solução satisfatória ou reversível para a questão da morte, passa a construir um longo processo de dissociação entre mente e corpo. Não vencemos a morte, mas livrando-nos do corpo cremos estar nos livrando do que encarna nossa mortalidade, afinal, o corpo, com o adoecimento e o envelhecimento, dá provas cotidianas de nossa transitoriedade. Essa dissociação é irreal e artificialmente construída, mas oficializada e implantada no Ocidente como a forma correta de se estar no mundo desde o século XVII, a partir da dissociação cartesiana entre sujeito e objeto, como postula Morris Berman, que apresenta a arqueologia desse processo a partir dos desdobramentos da mecânica de Newton e do método de Descartes (BERMAN, M.: 2004, pg. 31-50). Nessa dissociação, coube ao corpo ser o depositário dos deuses pagãos que se pretendia desempoderar, da visão de mundo encantada de uma natureza-corpo dos deuses. O corpo é o lugar em que reside o incontrolável pela razão, o ilógico, o surpreendente. O corpo é o lugar do assombro que foi expulso de todos os outros lugares do mundo. E só restou a esse assombro apresentar-se na forma de sintoma. As possessões viraram patologias, o entusiasmo (estar repleta de Theos) foi substituído por uma depressão generalizada e sistêmica. E buscamos nos elixires não mais a transubstanciação, mas a anestesia, a medicalização das dores do mundo. Nosso ódio à natureza e nosso projeto industrial de destruí-la sistematicamente, como bem afirmou V. Flusser, incluiu nosso corpo, e fez das estratégias de apagamento da dimensão concreta do mundo o grande espírito do nosso tempo desde o século XVII. Nesse cenário, toda a possibilidade de ver a transubstancialização da matéria, o trabalho dos antigos alquimistas, foi abortada.

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Muniz Sodré (2015) recentemente afirmou que nossa época sucumbe ao domínio do diabólico, apresentando esse diabólico como a força que subjaz a uma enorme operação alquímica que se iniciou no momento em que o papel-moeda, sem lastro concreto, foi inventado. Desdobrando, de certa forma, a reflexão que Hans C. Binswanger faz acerca das relações entre dinheiro e magia, a partir da obra Fausto, de Goethe. A criação do dinheiro como abstração e a centralidade que esse aspecto imaginativo do dinheiro passa a ter na economia industrial são apresentadas por Binswanger ao comparar a economia industrial com a economia de subsistência que a precedeu:

A economia de subsistência está adaptada para satisfazer as necessidades físicas do homem, que são saciáveis. Portanto, seus objetivos são finitos. A economia industrial, por outro lado, está adaptada a necessidades imaginárias, que podem ser incessantemente expandidas pela fantasia humana; essas necessidades são insaciáveis. Neste sentido, um esforço infinito é inerente à economia industrial. Decorre da luta por dinheiro, já que este (pela criação de papel-moeda) pode ser aumentado mais depressa e com maior facilidade que os bens, que precisam ser laboriosamente obtidos a partir do material do mundo. Por isso, a tendência é a de produzir dinheiro em primeiro lugar; depois, fica-se tentado, seduzido pelo lucro, a conceder a esse dinheiro um valor adicional como capital-dinheiro, por meio de uma expansão correspondente da demanda imaginária e da produção de bens que ela acarreta... Ao remover esses limites internos ao progresso, a economia conquista um domínio cada vez maior e submete o mundo todo à sua magia (BINSWANGER: 2011, p. 140-141).

Partindo do fato de que o dinheiro como hoje o concebemos, sob a forma de papel moeda, não passa de uma abstração, Sodré aponta para o fato de que o dinheiro, ao deixar de corresponder a qualquer matéria concreta, se torna a grande ficção que gera, a partir do nada, uma possibilidade infinita de criação de valor abstrato. E quem soube gerar essa ficção, essa abstração radical, teve em mãos o sistema de valoração do mundo. Poderíamos dizer que é esta a operação inicial de nossa época que acabou por reduzir todos os valores a um único valor: o dinheiro. A atualidade dessa questão é também objeto de atenção de W. Magaldi (2009) que, a partir de uma leitura junguiana, relaciona o dinheiro à sombra e aponta historicamente para a dissociação entre dinheiro e sagrado existente na raiz do mal estar do mundo capitalista contemporâneo. Essa operação de perda radical da noção do valor teve como grande alvo o planeta terra e a dimensão biológica do mundo, e, imbricadamente, o corpo.

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Tal processo, que aparentemente nos parece tão banal, quase naturalizado, tão absoluta é sua aceitação no mundo contemporâneo, esconde uma per/versão, que nos ajuda a aprofundar a compreensão acerca da crise da imaginação simbólica, a dissociação entre o concreto e o abstrato que, no âmbito do “pensamento hermético”, apontado por M. Berman, eram considerados complementares e constituíam uma antinomia própria do vivo. Sua dissociação passa praticamente a ser radical no momento em que as desilusões históricas com o humano e com o processo civilizatório, geradas pelas grandes guerras mundiais, abrem margem à ação final de um espírito mefistotélico. No período de meio século vimos finalizar o programa que visou transformar o objeto em abjeto, e o corpo no grande incômodo existencial, que todas as dietas, intervenções estéticas e programas de “saúde” tentam consertar ou destruir. Não temos paciência de esperar por nada que é da esfera dos ritmos naturais, não aceitamos nenhum tipo de morosidade - os frutos que sejam modificados geneticamente para darem 3, 4 vezes mais colheitas em um ano. Não toleramos nenhuma marca peculiar no nosso ideal de perfeição, queremos rosas simétricas, perfeitas, ainda que isso nos custe seu aroma (como no caso da Beleza Americana), frutas que pareçam de plástico de tão bonitas, queremos a natureza sem naturalidade, a artificialidade levada ao grau máximo. E queremos para já, porque tudo tem de ser devorado instantaneamente. James Hillman (1993) já disse que nossa época é maníaca, e N. Baitello (2005) nos diz que essa mania é iconofágica, o homem contemporâneo é obrigatoriamente mediático e precisa devorar imagens incessantemente até ser devorado por elas. O tempo lento e a assimetria do corpo, das coisas que ocupam lugar no tempo e no espaço, tornaram-se insuportáveis para nós. É preciso produzir imagens incessantemente para cobrir toda a superfície da pele do mundo com os simulacros da perfeição. As simulações são sempre mais confortáveis do que a vida, mais aprazíveis, sob encomenda para a nossa impotência. É preciso controlar todas as esferas por onde a vida resiste em irromper, ainda que seja preciso transformar todo o orgânico em sintético. Começamos com objetos de uso cotidiano,

passamos

pelos

alimentos,

estamos

agora

sintetizando

deus

(vide

fundamentalismos). Já temos tecnologia de impressão 3D disponível, é só questão de a aperfeiçoarmos para o que mais precisarmos. Filósofos como D. Kamper e J. Baudrillard falaram suficientemente sobre esse processo para que os tivéssemos ouvido ou para que tivéssemos levado em consideração que

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o triunfo da fantasmagoria das máquinas eletrônicas de imagens sobre a vida teria consequências mais sérias do que inicialmente supomos. Kamper em sua vasta obra reforçou a centralidade do corpo e das experiências concretas na construção de uma consciência mais rica e complexa, retomando a lembrança de que o sonho acontece também nos músculos e que o poder criativo se encontra para além da “órbita do imaginário” tecnológico, afirmando serem as vivências corporais a grande resistência à crise da visibilidade e ao esvaziamento simbólico de nossa época. Baudrillard (2004), por sua vez, tratou primeiramente do sistema dos objetos, da concepção de mundo implicada na produção industrial, seguiu refletindo sobre a criação do valor simbólico de mercado no alavancar da sociedade de consumo, para chegar ao “crime perfeito” cometido pelo hiper-real tecnológico e pela falsa pulsão erótica que este apregoa. A experimentação ilimitada, o “se eu posso fazer, eu tenho de fazer” de nossa época, é clara pulsão de morte vendida pela publicidade como um histriônico “seja feliz” 4. Talvez a grande armadilha de nosso tempo seja essa perversão econômica que quer nos fazer crer que todo o sonho é representável e que tudo que é possível fazer tenha de ser feito. É por meio desse literalismo que o diabólico vence sobre o simbólico. Eletrificamos nossos sonhos na medida em que transferimos para as máquinas eletrônicas de imagens (TV, Internet) nosso tempo livre, nosso olhar, nossos desejos, a expectativa de transcendência 5. Os primeiros modernos foram Doutores Frankensteins, mas depois deles somos todos o monstro. Nossos selfies e incessantes posts são uma maneira de nos mostrarmos à procura de alguém que nos entenda, de alguém que nos ame, mesmo aos pedaços, mal remendados, cambaleantes. Dietmar Kamper dizia: “ama o teu monstro como a ti mesmo” (KAMPER, D.: 1997, p. 61). A questão da energia, aliás, deveria ser uma questão central para os estudos do imaginário e da imaginação, e com isso queremos obviamente tratar da energia psíquica. Julgamos importante reconhecer a natureza psíquica do imaginário e colocarmos em cena a natureza dos fenômenos psíquicos como fenômenos, em primeira instância, energéticos.

4

Sobre a felicidade como palavra de ordem da sociedade contemporânea, recomendo o livro Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade, João Freire Filho (org.). Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. 5 Ainda será preciso considerar de que forma essa eletrificação da vida, somada à dromologia de nossa época, transformou nossa energia psíquica e o campo energético do planeta.

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Carl G. Jung tratou com muita atenção a natureza da energia psíquica e sua importância para os fenômenos psíquicos, aproximando-a da imagem e do simbólico, divergindo bastante da interpretação de S. Freud sobre a libido. Buscando a integridade da imagem, e considerando a importância das imagens endógenas, Jung via no símbolo o papel central para a mobilização da energia psíquica, bem como a evidência de como essa energia se manifestava. Segundo ele, “o mecanismo psicológico que transforma a energia é o símbolo” (JUNG, 1985, p. 44). Ao considerarmos a dimensão endógena da imagem (BELTING, H.: 2007), quase sempre esquecida ou minimizada, estamos apontando para a natureza psíquica integralizante da imagem simbólica, logo, sua realidade como portadora e mobilizadora de energia. Se pensarmos na condição contemporânea do homem das sociedades mediáticas, temos de nos perguntar: que imagem produz uma psique que não se reconhece em seu corpo? que se pensa apenas etérea, nuvem? C. Mellman (2003) afirma que estamos frente a uma nova economia psíquica que tem como um dos traços principais o desinvestimento radical da consciência em relação ao corpo. Ele relata que lhe parece que os jovens que o procuram sentem o próprio corpo como objeto, e de tal modo isso lhe parece comum e recorrente que isso o faz crer que isso não se trate apenas de um sintoma pessoal, mas sim de um traço de nossa época; uma radical transformação do próprio corpo em outro, em algo que não nos diz respeito. Qual o potencial imaginativo que se pode ter ao “habitar” um corpo desinvestido de sentido, um corpo anestesiado (sem aisthesis)? É claro que esse sintoma aponta para um fenômeno mais geral, a negação da mortalidade, outro traço fundamental dessa nova economia psíquica que Mellman aponta como uma das principais causas da crise do sentido que a civilização ocidental atravessa. Suas reflexões nos ajudam a pensar o estatuto atual da imagem simbólica, na medida em que sabemos que ela surge com a consciência da morte, como apresentou longamente E. Morin (1988a; 1988b) em suas pesquisas acerca do surgimento da consciência no sapiensdemens. A seguirmos essa relação, vemo-nos frente à negação da morte, obsessão contemporânea tanto da ciência quanto da mídia, e aos frutos imediatos dessa empreitada: a negação do corpo. Tudo então nos leva a crer na profunda relação de interdependência entre corpo, mortalidade e pensamento simbólico.

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Apagando dois dos elos dessa relação, o terceiro – o simbólico – se vê seriamente ameaçado. O sentido de reivindicar a integralidade do humano, chamando de volta as vivências corporais, é justamente a suspeita de que é no corpo e em sua capacidade de resistência que podemos encontrar a maior força instauradora do simbólico. Não há transcendência sem imanência; essa interdependência foi propositalmente apagada da equação entre concretude e abstração. É uma ilusão pensar que o simbólico é abstrato, que o símbolo reside apenas no espírito, que massacraríamos o planeta e os corpos naturais que nele vivem sem que o espírito fosse afetado, sem que o simbólico se retirasse.

As in/per/reversões imagináveis Nunca fomos nós que produzimos as imagens, sempre foram elas que nos produziram, mas houve um tempo em que as imagens eram para nós duplos, depois se tornaram objetos de culto, depois espelhos e linguagem; após 100 anos de cultura de massas as imagens passaram a nos devorar. Tornaram-se superfícies cheias de olhos que nos olham de volta devorando nosso tempo de vida, nossa atenção, em suma, nossa energia psíquica. A possibilidade de revertermos esse processo passará necessariamente por uma reviravolta capaz de nos devolver a capacidade de resistirmos à luminescência das imagens eletrônicas, silenciarmos os apelos do consumo e nos voltarmos para as imagens endógenas. Dietmar Kamper dizia que contra a órbita do imaginário mediático só mesmo a imaginação criadora tem força. Só a imaginação pode providenciar a abertura para o simbólico em um mundo em que as vivências foram virtualizadas e até mesmo a arte se submeteu ao mercado 6. Redescobrir a imaginação e seu potencial de nos reconduzir ao simbólico será certamente essencial tanto para a reconstrução de um sentido possível à vida, quanto para a tarefa de resiliência a qual o atual cenário mundial de convulsões sociais e ambientais nos convoca.

6

Hans Belting (2007) afirma que a imagem artística não é mais possível no mundo contemporânea que a tudo reduz a um fenônomeno mediático. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 70

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James Hillman, que propôs uma abordagem arquetípica para a Psicologia, a partir da obra de C. G. Jung, dizia que “uma imagem é dada pela perspectiva imaginativa e só pode ser percebida pelo ato de imaginar” (HILLMAN: 1992, p. 28) 7. Dando à imaginação uma relevância central nos processos psíquicos, Hillman afirma ser a imaginação “o trabalho de transformar devaneios e fantasias em espaços cênicos interiores, onde se pode entrar, e que estão povoados de figuras vívidas, com as quais se pode falar e conversar, sentindo e tocando-lhes a presença” (HILLMAN, p. 126). Dessa maneira, entrar em contato com sua própria alma e conviver com as imagens que ela abriga parece ser a sugestão de uma prática terapêutica necessária frente a esse atual estado de crise do simbólico do qual vimos tratando. Mas aí mais uma vez somos convidados a um mergulho interior que passa pelo resgate das propriocepções corporais. Sonhar, meditar, devanear são gestos do corpo, tais como a dança, o gesto artístico, o afago que convidam a um mergulho interior, ao resgate das imagens internas que se agitam na alma. Jung tratou de esclarecer o que para ele consistia na indissociabilidade existente entre corpo e alma, e considerava o termo psique como a conjunção dos dois. Para ele, a psique deveria ser considerada a partir da noção de que o indivíduo é um Todo, e sua abordagem clínica partia sempre da necessidade de buscar uma certa integralidade perdida, ainda que ele reconhecesse as tensões existentes dentro desse Todo. Por isso ele afirmou, em 1946, ainda sem que a ciência da Física tivesse alcançado os conhecimentos de que hoje podemos dispor, que “psique e matéria estão encerradas em um só e mesmo mundo” e que haveria “não só a possibilidade, mas até mesmo uma certa probabilidade de que a matéria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa” (JUNG: 1986, p. 152). Ainda que essa questão tenha sido considerada amplamente pela Física e pelos estudos da Psicossomática, não a problematizamos ainda o suficiente quando consideramos a produção imaginária, logo, psíquica, de uma era que vem alienando de tal modo o corpo e a dimensão concreta do mundo. De fato, as perguntas que talvez nos restituam ao caminho da imaginação criativa e das

imagens

simbólicas

sejam

essas:

qual

o

corpo

que

imagina

o

mundo

contemporaneamente? Que imagens são geradas por uma psique alienada das vivências sensório-motoras do corpo? De que lugar em nós mesmos podemos partir para restituir às imagens seu potencial simbólico? 7

James Hillman (1992:34) refere-se, em sua reflexão acerca da imaginação, à Teoria do Imaginário de G. Durand, ressaltando a importância e seu trabalho no sentido de se compreender o imaginário arquetípico. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 71

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Imagem contemporânea e imaginário: Como aproximá-Los? Contemporary and imaginary picture: How to approach them? Image et imaginaire contemporain: Comment les aborder? Francimar Arruda * UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo: Este texto tem como finalidade uma possível aproximação entre a imagem oriunda de um trabalho endógeno que o sujeito faz visando com isso um processo de transcendência do peso da existência. Uma outra concepção de imagem é aquela produzida por um outro e que nós a consumimos, não há algum trabalho, ela é exógena e não provoca mudança, ela nos isola e joga na solidão. Aproximá-las por contraste foi a única solução possível. Palavras-chave: Imaginação; filosofia; Comunicação. Abstract: This text aims at a possible rapprochement between the image derived from an endogenous work that the subject makes this a transcendent order to process the weight of existence. Another image design is one produced by another and that we consume, there is some work it is exogenous and does not cause change, it isolates us and play in solitude. Bring them by contrast was the only possible solution. Keywords: Imagination; philosophy; Communication.

Introdução Depois de uma marginalidade de 300 anos, o Imaginário atualmente está ligado e vinculado a tudo, ele está na moda. Na imprensa escrita, pululam as alusões ao imaginário de um autor, seja no campo das artes plásticas e do cinema, seja no campo literário. Não raro comparece também o imaginário da escola, e mais recentemente, o imaginário político. Quando surgiu, entre nós, a temática do imaginário, pesquisadores que se vinham dedicando à áreas situadas nos confins das artes, da religião e da filosofia – como no meu caso – acolheram com satisfação uma denominação que, ao abarcar campos variados, surgia como poderosa via de legitimação acadêmica de seus trabalhos. Passado o primeiro momento, no entanto, foi fácil verificar a polissemia do termo Imaginário, adjetivo substantivado, tão englobante que parecia prestar-se a usos variados.

*

Pós-doutorado em Filosofia e Imagem na Universidade da Bourgogne, França. Doutora em Teorias do Imaginário, UFRJ. Mestre em Filosofia e Hermenêutica, I. F. C. S. (UFRJ). Professora Conferencista na PUC/Rio. Palestrante da Pós-graduação no curso Psicologia Yunguiana, Arte e Imaginário. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 74

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O conceito de imaginário é, no mínimo, confuso e controvertido. Confuso porque a simples menção já suscita na imaginação dos ouvintes significados tão diversos quanto divergentes. Controvertido porque são tempos, esses nossos, em que a premonição iluminista que entronizou a deusa razão transformou-se numa idolatria da racionalidade técnicainstrumental, e hoje, razão cínica que tiraniza as relações sociais e normatiza o conjunto de saberes. Secularmente, a imaginação foi identificada (século XVII, Malebranche) como a louca da casa. Ela é a faculdade que não se explica pela razão nem se submete ao controle da vontade. Ante a imaginação, a razão declina seu poder. Não consegue domesticar totalmente seus impulsos nem direcionar plenamente seus conteúdos. A imaginação parece possuir vontade própria, autonomia incontrolada, indeterminação inexaurível. O termo imaginário tem significados diferentes para cada um de nós. Para uns, ele é tudo o que não existe; uma espécie de mundo oposto à realidade dura e concreta. Para outros, o imaginário é uma produção de devaneios de imagens fantásticas que permitem a evasão para longe das preocupações cotidianas. Alguns representam o imaginário como um resultado de uma força criadora radical própria à imaginação humana. Outros o veem apenas como uma manifestação de um engodo fundamental para a constituição identitária do indivíduo. Como não tenho, como meta desse trabalho, realizar um histórico do conceito de imaginário, resolvi optar por alguns filósofos para explicar melhor a concepção de imaginário e que se harmonizam com o meu olhar sobre essa dimensão humana. O fim do século XX abre uma espécie de autorização na qual se assiste a um reequilíbrio da atualização e da potencialização dos polos do imaginário e do real/racional. Seguindo a lógica da bipolaridade antagônica de S. Lupasco (1970, p. 13), eu diria que entramos em uma fase chamada de ‘estado T’ onde uma semiatualização e uma semipotencialização imaginária – real – racional tendem para um equilíbrio. Bachelard foi o pioneiro desta fase de autorização em uma época que não era ainda de bom – tom valorizar a poética do devaneio. Para ele a função do irreal é psiquicamente tão útil quanto à função do real. Durante sua atividade diurna, o homem constrói o real graças ao espírito científico que começa sempre por uma catarse intelectual e afetiva. Durante sua atividade noturna, o homem sonha o imaginário. Assim, o único modo de falarmos seriamente do imaginário é o de o criarmos nós mesmos permanentemente. Segundo diz Bachelard: “a imagem só pode ser estudada pela imagem, sonhando as imagens tal qual elas se reúnem no

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devaneio. É absurdo se pretender estudar objetivamente a imaginação, visto que só recebemos realmente a imagem quando a admiramos” (1965, p. 46). Por isso, para ele, entre o conceito e a imagem, nenhuma síntese é possível. O homem vive, então, dividido entre esses dois polos. Segundo Gagey (1969, p.48), o filósofo não consegue escapar da separação entre dos modos de existência e devemos viver essa benéfica tensão. Na linha de Bachelard se encontra outro pioneiro, G. Durand, fundador do Centro de Pesquisa sobre o Imaginário (C. R. I.) em Grenobre no ano de 1966. Ele busca recensear, fazer um repertório, classificar e situar as imagens para fixar o imaginário concebido como “o conjunto das imagens e das relações de imagens que constituem o capital do homo sapiens” (1969, p. 12), Durand procura leis e desconfia de uma hermenêutica fundada essencialmente na intuição e na simpatia com o autor. De sua coleta de imagens ele retira uma série de conjuntos constituídos em torno de núcleos organizadores (constelação e arquétipos). A pesquisa exigente de Durand dá seus frutos hoje em numerosos laboratórios de ciências humanas, na França, e em diversos países, como aqui no Brasil. 1 Mais recentemente, lendo um texto de Ardoino, o artigo ‘Autorisation’ (1991, p. 445) me deparei com Mikel Dufrennes e penso que talvez seja de sua parte que encontraremos uma compatibilidade fundamental entre real e imaginário. A imaginação se situa no prolongamento da natureza. Tal é a afirmação que privilegio assim como Saison (1981) na obra de Dufrennes: o corte não é mais entre real e imaginário, mas entre imaginação autêntica e imaginário irreal, o que só pode chamar de o quimérico, ao mesmo tempo subjetiva, irreal e incomunicável. Para Dufrennes (apud SAISON, 1981, p. 70), pelas grandes imagens, nós aprofundamos nossa percepção do real. Elas constituem o verdadeiro imaginário concebido como qualidade de percepção do real que exige uma prática, uma ação em relação a este real. Ele é, de certa forma, um pré-real, não é o homem que inventa ou fabula, mas a natureza nele e por ele, então: “o real escapa de si mesmo e se exprime como pré-real no imaginário” (ibid, p. 78). Para Defrennes, aquele que tem o poder de imaginar é alguém inspirado. O imaginário torna-se a prova de nossa inserção profunda na natureza, da qual procedemos e da qual nós herdamos. Deste ângulo podemos sustentar a seguinte imagem: o imaginário é o perfume do real. Por causa do odor da rosa eu digo que a rosa existe.

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Nesse sentido ver o texto: Gilbert Durand et le Brésil, In: Cahiers Gaston Bachelard, Imaginaire et intérpretation: hommage à Gilbert Durand. Dijon, Paris: Klincksiak Esthétique, 2015, p. 13. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 76

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A imaginar, como Bachelard (1965, p. 69), no que concerne à compreensão do mundo humano: “a simpatia é o fundo do método” – eu sei que um outro mundo mais justo, mais humano, mais solidário e executável já está em curso de realização em meu imaginário. A fase de autorização atingirá seu apogeu no dia em que o imaginável prevalecer sobre o quimérico, no cerne de um pensamento humano, tomando consciência de sua hipercomplexidade e de sua relação intrínseca com o ecossistema a que ela pertence. Os caminhos já começaram a ser desbravados, mas a estrada ainda é longa. 2 Finalmente, entendo o conceito de imaginário como o sem fundo do ser humano, que não pode ser exaurido em plenitude nem explicado totalmente; é desse sem fundo que brota a imaginação, deste lugar se origina e se constitui a dimensão primária do conhecimento humano e, dizendo sim a Durand, quando afirma o contraponto: “O imaginário é a realidade última na qual o conhecimento humano vem a decifrar os Imperativos do Ser. Sobre ela se ordenam – consciente ou inconsciente – todas as obras, as atitudes e as opiniões humanas” (1961, p. 89. Tradução nossa). Como ligar essa dimensão humana do ser de produção de imagens com essa densidade, que vivenciamos na relação com a produção contemporânea de imagens? Como relacionar essa dimensão primeira e última da qual somos os autores e atores diante do turbilhão de imagens que recebemos e não necessariamente produzimos? Esse turbilhão de imagens, oriundo do mundo virtual está ligado a conceitos sobre a questão temporal; sendo assim o virtual é entendido sob diferentes formas cujas origens encontram-se nos pensamentos de Platão e Bergson. Na Teoria das ideias encontradas na obra A República, Platão divide o ser em duas partes: o ser inteligível e o ser sensível. O ser inteligível encontra-se fora do tempo, imutável e eterno, enquanto o ser sensível encontra-se mergulhado no tempo, numa condição de cópia da essência. A verdade platônica descreve os seres inteligíveis como modelos para os seres sensíveis. Estas duas metades do ser são separadas por uma linha de distinção temporal intransponível, significando a divisão entre a eternidade e a imutabilidade do tempo. De acordo com Platão, encontram-se distribuídos no tempo as cópias e simulacros. As cópias seguem o modelo da essência e por ela são informadas; os simulacros não se encontram 2

Seria necessário citar muitos outros autores da linha do desbravamento em particular J. Duvignaud por sua exploração do Imaginário do teatro, da festa, do jogo; E. Morin pelo Imaginário da morte, do cinema, do starsys-time, da abertura do século XX e ao reconhecimento de seus mitos irredutíveis; ao belo trabalho de J.J. Wunenburger sobre a vida das imagens e o imaginário do político. Enfim, a todos que contribuíram nesse trabalho de desocultar a imensa riqueza do mundo do imaginário. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 77

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influenciados por nenhum modelo, configurando-se como sombras a serem expurgadas por escaparem à essência, ou seja, são negativos para a concepção do ser (CHAUÍ, 2002, p. 35). A distinção temporal formulada pelo filósofo Henri Bergson (ibid. p. 72), em Matéria e Memória, também divide o ser em duas partes, porém as denomina atual e virtual, estando ambas imersas no tempo. A atual refere-se às presentes enquanto o virtual às potencialidades do atual, entendido como tempo puro, como passado ontológico, distinto do passado vivido. Desse modo, atual e virtual, são considerados reais, mas possuidoras de naturezas diferentes. Para ilustrar tal conceito filosófico utilizaremos um exemplo da literatura de Jorge Luis Borges que, de forma metafórica, apresenta o que seria um espaço virtual na concepção bergsoniana. Trata-se do famoso conto intitulado O Aleph, no qual o autor cria um personagem que, em um mundo sombrio e acinzentado toma contato com o fabuloso e maravilhoso objeto – chamado Aleph – definido como uma pequena e perfeita esfera mágica através da qual se pode vislumbrar em um só momento o universo inteiro, em todos os seus pormenores, em toda sua magnitude. Encontra-se no conto a seguinte passagem: “O diâmetro de Aleph seria de dois a três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição do tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo” (BORGES, 2001, p. 170). Segundo o próprio autor, em seus comentários para uma tradução inglesa de 1970: O que é a eternidade para o tempo, o Aleph é para o espaço. Na eternidade, todo o tempo – passado, presente, futuro – coexistem simultaneamente. No Aleph, a soma total do universo espacial encontra-se em uma diminuta esfera resplandecente de pouco mais de três centímetros. (ibid. p. 7).

Ora, não seria tal objeto uma matriz que encarna as propriedades do virtual como pleno de realizações, como gerador de imagens múltiplas de um determinado mundo? Desse modo, não seria o Aleph um análogo a um banco de dados que contém em si todas as paisagens possíveis de um mundo virtual em suas infinitas combinações de dados? Se realmente o Aleph existisse não só seria a coisa mais famosa do mundo como também mudaria toda a nossa ideia de tempo, da astronomia, da matemática e do espaço. De fato a virtualização afeta a informação, a comunicação, as noções de espaço e tempo e mesmo dos próprios corpos, tornando-se a cada dia mais presente no cotidiano. Por conta disso a preocupação de Jean Baudrillard (2002, p. 7), quando profetiza o fim da realidade objetiva e com ela o fim da comunicação que teria atingido simultaneamente seu topo e sua ruína com a virtualização. Baudrillard trabalha na construção da transcendência Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 78

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erguida pelo modelo platônico, ou seja, com o simulacro, o qual rompe a linha divisória situada entre a eternidade da imutabilidade e o tempo. Ele parte do princípio de que o virtual nada mais é que a criação de uma realidade artificial. Assim como os simulacros platônicos fogem à essência, os simulacros são constituídos por uma verdade paralela, são imagens sem referente: modelos sem origem e sem conexão com a realidade como essência. Assim, segundo Baudrillard, ao simular o real, o virtual esvazia o processo comunicacional e anula o processo referencial. Há uma máxima expansão da comunicação, ocasionando implosão social. A virtualização incondicional desertifica o espaço real e tudo o que cerca o ser humano. Ela elimina a realidade e a imaginação do real, do político e do social, ao eliminar a realidade e a imaginação do tempo. A indiferença entre o presente, o passado e o futuro traz a incerteza sobre o que acontece no tempo real, já que este não possui vivencia e provas como possui o tempo histórico. O denominado tempo real fará as mensagens chegarem a um ponto crítico de improdutividade. Não haverá mais tempo de pensar, sentir e criar uma imagem que venha do interior do meu eu, e que seja fruto do meu desejo. Segundo Baudrillard: Enquanto anteriormente o pensamento dava fim ao real em pensamento, hoje as novas tecnologias dão fim ao pensamento na realidade; enquanto o pensamento trabalha no inacabado da realidade, o virtual, por sua vez, trabalha no acabamento do real e em sua solução final. (ibid. p. 47)

Apocalíptico ou não, o que Baudrillard expõe é que o uso dos processos comunicacionais, para fins libertários, é impossível, pois a sociedade é constituída sobre a contradição; isto é, possui simultaneamente elementos de dominação e libertação. Desse modo, proclama a morte do sujeito numa sociedade contemporânea composta por massas homogêneas incapazes de distinguir o real do imaginário: “Do real só resta a realidade virtual. Do outro, só resta uma forma espectral” (ibid, p. 47). As diferenças sociais, raciais e culturais que continuam a existir não são notadas pelo homem. O que a mídia exibe não se aplica à vida prática, não é correspondente ao real como essência e verdade. Constitui-se, então, um universo povoado por máscaras onde o ser se desprende de sua essência por se desconhecer por completo, fazendo-se passar por um simulacro de si mesmo: “Na pluralidade, na multiplicidade, o ser nada mais faz do que trocar-se por si mesmo, ou por seus múltiplos avatares. Ele faz metástase, não se metamorfoseia” (ibid. p. 82). Então, como aproximar imagem como consumo, com a concepção de imagem como produção libertária? É preciso que saibamos harmonizar os contrários em luta e finalizo este Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 79

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breve texto com o velho filósofo Heráclito que dizia: “Os pares são coisas inteiras e coisas não inteiras, coisas juntas e coisas separadas, o harmonioso e o discordante. O um é composto de todas as coisas e, todas as coisas saem do um” 3.

REFERÊNCIAS ARDOINO, J.. Autorization. In: Enciclopedie philosophique universelle. Paris: P.U.F., 1991. ARRUDA, F. D.. Gilbert Durand et le Brésil. In: BACHELARD, G. C.. Imaginaire et intérpretation: homnage à Gilbert Durand. Nº 13, Dijon: Ed. U. Bougogne, 2015. BACHELARD, G. La poetique de La revêrie. Paris: 1965. BAUDRILLARD, J. A troca impossível. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. BORGES, J. L. O Aleph. São Paulo: Globo, 2001. BURGOS, J. Pour une poetique de l’imaginaire. Paris: Seuil, 1982. CHAUÍ, M. Introdução à História da Filosofia, dos pré-socráticos à Aristóteles. 2. ed. v. I. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. DURAND, G. Les structures anthopologigues de l’imaginaire. Paris: Bordas, 1969. ______. G. Tâches de l’espirit et impératifs de l’être. Paris: Bordas. 1961. GAGEY, I. Bachelard ou la conversion à l’imaginaire. Paris: Marcel Rivière, 1969. HERÁCLITO. Fragmento nº 59. 1971. LUPASCO, S. S. Les trois matières. Paris: Ed. Minuit, 1970. SAISON, M. Imaginaire, imaginable, parcours philosophique à travers le téâthe et la médicine mentale. Paris: Klincksiak Esthétique, 1981. VERNANT, J. P.. Mythe et pensé chez les grecs. v. II. Paris: Maspéro, 1971.

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HERÁCLITO. Fragmento nº 59. 1971, p. 13. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 80

Mesa-redonda 1: Subversões imagéticas e filosofia de vida Table-ronde 1 : Suversions imagières et philosophie de la vie

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Comunicação e dessentidos – estudo do giro da pombagira para uma comunicação feminina Communication and nonsense – study of pombagira’s spin for a feminine communication Communication et nonsens – étude du tournoiement de la pombagira pour une communication féminine

Florence DRAVET 1 Universidade Católica de Brasília, Brasília, Brasil

Resumo Neste artigo, propomos fazer uma leitura do giro da pombagira e de seus significados para a Comunicação. Partimos da observação do fenômeno mediúnico da incorporação e de um imaginário híbrido sobre essa entidade. Recorremos à noção warburguiana de pathosformel e aproximamos imagens de giro que possam nos esclarecer sobre o sentido do girar da pombagira. Em seguida, fazemos uma aproximação com a noção de revolta como giro e com o que identificamos como um paradigma dionisíaco na arte e na filosofia. Finalmente, concluímos sobre o papel da pombagira numa concepção de mundo acêntrica/pluricêntrica onde os dessentidos ocupam um lugar determinante do sistema comunicacional que se instala entre a força do feminino contida na pombagira, os médiuns que a incorporam e as pessoas que a procuram. Palavras-chave: Pombagira; Comunicação; Giro; Revolta; Feminino. Abstract In this paper, we aim to make an interpretation of the pombagira's spin and its meanings in the field of Communication. We begin with the observation of the mediunic phenomenon called channeling and that of a hybrid imaginary concerning this entity. We rely on the Warburgian pathosformel idea to bring together images that might enlighten us on the meaning of the pombagira's spin. Afterwards, we establish a link with the idea of revolt as rotation and with what we identify as a dionysiac paradigm in art and philosophy. Finally, we conclude with a reflection on the role of the pombagira in an acentric/pluricentric world conception in which the nonsenses play an influencing role in the communicational set up between the force of femininity contained in the pombagira, the mediums that channel it and the people who seek it for help. Keywords: Pombagira; Communication; Spin; Revolution; Feminine.

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Chamou-nos a atenção, no contexto de um estudo sobre fenômenos de incorporação na Umbanda, a presença e o comportamento de uma entidade muito popular no Brasil: a pombagira. A pesquisa tinha por intuito “apreender o modo de comunicação do feminino – isto é, não só das mulheres, mas do princípio feminino presente em diversas manifestações ritualísticas e na vida cotidiana de homens e mulheres em comunidades de terreiro – no âmbito da tradição afrobrasileira e seu reflexo no imaginário popular do Brasil” 2. No decurso da pesquisa, observamos, entre outras coisas, o giro da pombagira, não apenas contido em seu nome, mas também em sua gestualidade. E nos questionamos sobre a razão desse giro. Em um primeiro momento, procuramos entender por que ela gira e o que seu giro quer dizer, para logo deslocarmos a pergunta: o que a pombagira faz ao girar? Que estados corporais, mentais e espirituais seu giro provoca? Dessa forma, dos possíveis significados do giro, deslocamos nossa atenção para os prováveis dessentidos. Veremos mais adiante por quê. Situamo-nos dentro de um conjunto de outros textos 3 que exploram o imaginário da pombagira no Brasil, com a particularidade aqui de estabelecer correlações com os estudos em Comunicação. Tomaremos, portanto, o giro como gesto ou ação corporal imbuída de sentidos, mas, sobretudo de dessentidos. Para chegarmos a nosso objetivo com este artigo, propomos o seguinte percurso: uma apresentação da pombagira, de seu papel no terreiro de umbanda e no imaginário brasileiro, conforme nossa pesquisa permitiu que percebêssemos numa perspectiva comunicacional; em um segundo momento, uma aproximação entre a noção de giro na atuação da pombagira e a noção de revolta que nos conduziu ao dessentido e à desrazão do aberto 4. Em seguida, uma leitura interpretativa de algumas imagens de giro, recorrendo à maneira como Aby Warburg (2012) aproxima imagens em torno de um mesmo pathosformel, suscetível de esclarecer a imagem que nos ocupa; e por fim, tentaremos uma interpretação do giro que conduz a uma concepção acêntrica/pluricêntrica de mundo. Esperamos, com isso, contribuir para uma concepção de comunicação na qual não apenas os processos de circulação de informação e significação atuam, mas também seus corolários em negativo: desordem, desinformação, dessignificação e incomunicação. 2

Projeto de pesquisa aprovado no edital MCTI/CNPq/MEC/CAPES Nº 43/2013 e realizado durante anos de 2014 e 2015. Ver, entre outros, FONTENELLE, 2004; CAPONE, 2004; BIRMAN, 1983; CONTINS, 1983; MEYER, 1993; AUGRAS, 2000; PRANDI, 1996 e 2008; MONTEIRO, 1985; CARDOSO, 2012. 4 Como dissemos em obra anterior: “O Aberto é uma noção poética capaz de conduzir-nos ao entendimento da comunicação como o princípio animador e movimentador vital da physis, que preferimos chamar apenas de princípio com. Este princípio deve ser entendido como o que possui e propicia a conexão. (...) O Aberto é também o círculo mais vasto, aquilo que circunscreve tudo o que é; a circunscrição que circun-une todo ente.” (CASTRO e DRAVET, Comunicação e poesia, p.93102) 3

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1.

Elementos cosmogônicos e simbólicos na formação do imaginário da pombagira A força feminina universal se apresenta na Umbanda na forma de uma cabaça,

chamada na língua iorubá Igbadu e constituída por duas metades sobrepostas e seu conteúdo. Igbadu é, portanto, ao mesmo tempo o um (a cabaça) e o três: o princípio feminino em baixo, o princípio masculino em cima e, encerrado em seu interior, o elemento gerado – o filho ou manifestação dos princípios masculino e feminino reunidos. Ela pertence às chamadas Senhoras dos Pássaros, as mais altas representantes do poder feminino sobre a criação na cosmologia iorubá. São em número de sete, sendo três do lado esquerdo (pousadas sobre a árvore do mal), três do lado direito (pousadas sobre a árvore do bem) e a sétima voando entre um lado e outro. É preciso saber, todavia, que essa representação cósmica do feminino não é apenas simbólica. Ela é atuante enquanto força. É percebida como real, embora o silêncio e o mistério em torno dela não permitam que se lhe dê forma, e pode se manifestar em vários sinais que a natureza dá: no piar de um pássaro no escuro da noite, numa jogada de búzios, na fala dos Orixás. Os adeptos consideram essa força como extremamente perigosa, provavelmente por ser uma das mais misteriosas de toda a cosmogonia umbandista. Há vários modos ritualísticos de proteger-se de seu poder, tais como evitar pronunciar seu verdadeiro nome, passar a mão sobre a cabeça, fazer oferendas etc. Mas o que importa por ora é entender que sua presença e seu poder habitam o silêncio, uma vez que a fala evoca e dissemina; sendo assim, apenas os gestos e as atitudes corporais podem se referir a sua força. Qual é então a força feminina abertamente cultuada nos terreiros de Umbanda? Para entendê-la, teremos que começar pelos Orixás femininos: Nanã, Yemanjá, Yansã, Oxum, Yewá e Obá. Como já vimos em artigo anterior: Os poderes guardados e simbolizados pelos Orixás femininos se sintetizam em poder matricial original (Nanã), poder selvagem e guerreiro (Obá e Iansã), poder de geração (Iemanjá e Oxum), poder de sedução (Oxum e Iansã) e poder mágico (Iewá). [...] Embora possamos determinar o tipo de poder correspondente a cada Orixá, é fato também que todos se encontram reunidos em todos os Orixás femininos, constituindo, talvez, uma só força feminina do universo, que dá a vida, gera, transforma, ama e cria. (DRAVET, F. 2014; 165)

Na Umbanda, os Orixás pouco se manifestam diretamente. Usam intermediários que atuam nos terreiros como mensageiros. São os chamados “guias” de Umbanda: os PretosBaixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 84

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Velhos, os Caboclos, as Crianças, os Exus e as Pombagiras, para nomear apenas os principais, que se manifestam tomando o corpo dos médiuns, através de um processo de incorporação, próximo da possessão 5. Em suas pesquisas, Birman (1991) explicou bem como se concebe a possessão dessas entidades na Umbanda: As entidades de umbanda são construídas como seres em contigüidade com o mundo humano – seres que já viveram, portanto. Com efeito, a elaboração ritual da possessão umbandista deixa entrever que o sobrenatural é percebido como uma instância que traz duplicadas as relações que conhecemos no mundo terreno. A possessão considerada umbandista se realiza de forma a construir ritualmente os personagens que 'descem' nos terreiros, de modo que estes se tornam verossímeis por apresentarem traços semelhantes aos das pessoas vivas. (BIRMAN, 1991, p.43)

Entendemos então que as Pombagiras quando incorporam são mensageiras da força feminina e que manifestam, para dizê-lo de forma bastante simplificada, a força emanada dos orixás femininos. Alguns estudiosos (AUGRAS, 2004; CONTINS, 1983) defendem que a Pombagira carrega em si aqueles aspectos que Iemanjá, após sua chegada ao Brasil e uma vez sincretizada com a Virgem Maria, muito popularizada em todo o país devido, principalmente, à presença do mar e sua importância para a cultura brasileira, não poderia mais comportar. Isso porque, na perspectiva cristã, algumas características femininas como a força de sedução, a sensualidade e o envolvimento em casos de paixões avassaladoras, de infidelidade, incesto e estupro não poderiam permanecer ligadas à figura de uma Iemanjá santificada e “desafricanizada”. No entanto, essas características do feminino, com isso, não deixaram de existir e foram atribuídas a outra entidade: a Pombagira. Segundo Augras (2004), esta é pura criação brasileira: A Umbanda parece ter promovido, em torno da figura de Iemanjá, um esvaziamento quase total do conteúdo sexual. Tal sublimação (ou repressão?) deu ensejo ao surgimento de nova entidade, pura criação brasileira, a Pomba Gira, síntese dos aspectos mais escandalosos que pode expressar a livre expressão da sexualidade feminina, aos olhos de uma sociedade ainda dominada por valores patriarcais (2004; 15).

A pombagira foi então associada no imaginário brasileiro, às figuras portadoras das características negativas atribuídas às mulheres: devassa, diabólica, perversa, ela completava o quadro das bruxas, feiticeiras, prostitutas, histéricas, loucas, diabas e outras habitantes da 5

Sobre noções de possessão feminina, ver KRISTEVA, J. ; CLÉMENT, C. O feminino e o sagrado. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Sobre a possessão nos ritos africanos, ver LEIRIS, M. La possession et ses aspects théâtraux chez les Ethiopiens de Gondar. Paris: Plon, 1958.

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esfera nefasta da gente feminina perseguida ao longo da história. Alguns estudos das “biografias míticas” 6, das pombagiras as distancia, porém, da África e aponta para uma origem europeia dessa figura. Meyer (1993), por exemplo, atribui à Pombagira, notadamente à Maria Padilha, uma origem espanhola. O fato é que, em sua brasilidade, ela pode ser considerada como uma entidade mestiça, situada no limiar entre as várias origens culturais que compõem a cultura brasileira. Essa característica híbrida dialoga, inclusive, muito bem com a imagem da encruzilhada à qual ela está associada na simbologia umbandista. Ao tratar das narrativas das pombagiras que contam de forma peculiar suas “biografias míticas”, Vânia Cardoso explica que estas seguem vários “caminhos do imaginário” (MEYER apud CARDOSO, 2012), de fato, não se trata de narrações oferecidas como informação, numa perspectiva de comunicação linear, lógica e compreensível em si mesma, mas sim de “estórias que emergem da própria comensalidade da experiência” (CARDOSO, 2012, p.188), histórias construídas de forma fragmentada, plural, com a co-participação de imaginários diversos, o das feiticeiras das antigas cortes espanholas, o da magia feminina africana, o da crença nos espíritos desencarnados, e sobretudo, a forte ancoragem da pombagira no universo da prostituição desde os tempos do Brasil colônia até hoje. Nessa comensalidade, participar desse tecer narrativo não é participar da criação de uma estória coerente, versões acertadas, ou mesmo, participar de um ato isolado e passível de identificação como um momento do narrar. Os elementos dessas estórias estão dispersos no dia a dia, nos vários momentos dos rituais, em pontos (cantigas) e conversas. [...] O narrar dessas estórias simultaneamente conta quem são essas mulheres e as mantém estranhas, outras. [...] Por meio da duplicidade dos significados, elas reencantam o próprio mistério. (Idem. p. 188-192)

Trata-se, portanto, de um sistema narrativo de múltiplas frequências em que uma interfere na outra. E em que cada um dos elementos é forçado a criar seus próprios mecanismos de autoproteção e defesa de interesses, a estabelecer suas próprias lógicas hermenêuticas na decifração das mensagens. Naquilo que podemos considerar como uma estratégia de afirmação do direito da mulher a sua autonomia corporal, tanto na sensualidade como na sexualidade e na liberdade em usufruir dela, a pombagira assumiu a imagem da prostituta para si e explorou, perante homens e mulheres, o discurso da mulher de vida livre: sexual e sensual, sem deixar, todavia, 6 Noção apresentada por PRANDI (1996, p. 149) em que o autor afirma que as histórias de vida narradas pelas pombagiras ou pelos adeptos e retomadas pelos estudiosos de sociologia, psicologia e antropologia, misturam narrativas míticas de entidades espirituais com dados biográficos de personagens histórica e socialmente situados.

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de poder ser também maternal e amorosa. Tornou-se conselheira em matéria de amor e relacionamento, de sexualidade, de exercício de liberdade. Mas tornou-se também protetora das prostitutas, dos travestis e de todas as pessoas que vivem explicitamente sua força feminina. Sua maior característica está implícita nas narrativas de sua existência pretérita: enquanto pombagira, fez do seu sofrimento em vidas anteriores uma força e transformou-o em alegria de viver. Mulher que, ao incorporar em seus médiuns, chega gargalhando e girando, virando as mãos em movimentos circulares, rodando a saia, fumando, bebendo e cantando, todas as suas atitudes falam de um poder de sedução, mas também de uma alegria trágica. Um de seus pontos cantados afirma: “Dizem que pombagira é uma rosa, é uma rosa que nasceu entre os espinhos”. A rosa é aqui mais que uma imagem ou uma metáfora. Também não deve ser entendida em uma perspectiva esotérica. Não se trata disso aqui. Trata-se da rosa enquanto ela é uma rosa; trata-se do real tal como podemos e não podemos apreendê-lo, sendo esse aspecto inapreensível fundamental para nossa concepção de comunicação. Trata-se da rosa como resultado de um sopro vital e dinâmico que conduz da potencialidade do real à sua realização, da semente à planta, da planta ao broto, do broto à flor cujas pétalas se organizam em espiral e formam o desenho harmônico de uma rosa que vemos e cujo cheiro sentimos. Se “dizem que pombagira é uma rosa”, não é porque é bela e cheirosa, é sobretudo, porque ela é dotada de uma força dinâmica, tal qual a força natural que organiza as pétalas de uma rosa. Tal qual a força selvagem que faz brotar entre os espinhos a flor vermelha. Oriunda de uma desordem caótica – como o caos emocional causado pelo sofrimento – faz brotar uma nova harmonia através da superação do sofrimento na alegria. Qualquer que seja o desdobramento linguístico e imagético da rosa, quaisquer que sejam as interpretações metafóricas que dela possamos fazer, é inegável que a pombagira, enquanto ser feminino por excelência, é e assume-se como uma força dinâmica que age nas zonas intermediárias da abjeção a fim de fazer brotar um tipo de beleza, um poder que encanta, fascina, seduz; mas também assombra. Segundo Frederico Feitoza (2015), em uma conferência apresentada no colóquio Comunicação e Arte: Políticas do Corpo, na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP - AP): Há pelo menos dois corpos que convivem hoje: o civilizado-tanático, biopolitizado, sedado pela abstração do pensamento, capturado pela imagem narcísica, pelas categorias operativas (masculino/feminino, sagrado/profano) e condicionado segundo uma repetição mecânica (que exercemos na frente do computador, na academia de ginástica, ao volante de um carro, etc.) e o selvagem-erótico, sem gramática e sem verbo, ouvinte de seus fluidos e Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 87

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orifícios, morto pela civilização, mas que nos assombra, vez por outra, cheio de vida inominável, através da incorporação de um outro muitas vezes socialmente inconveniente (na possessão, na psicose, no êxtase, na performance etc.) Seria a pombagira manifesta no corpo de um médium o selvagem-erótico que retorna?

O reencantamento do corpo civilizado-tanático? A África que nos habita? O Continente Negro do Brasil, não somente feminino, mas também africano, e nesses dois sentidos, historicamente maltratado, abafado e amaldiçoado, porém naturalmente vivo e presente? Kristeva e Clément (1998) ao buscarem uma definição do sagrado obscuro feminino que conduz aos fenômenos de possessão, por vezes chamadas no ocidente de histeria, usam as seguintes expressões: “revolta instantânea que atravessa o corpo, e que grita” (p.17); “uma experiência interior de transgressão dos interditos sexuais” (idem, p.34); “percepção inconsciente que o ser humano tem de seu insustentável erotismo: sempre nas fronteiras da natureza e da cultura, do animal e do verbal, do sensível e do nominável (...) potência/impotência de um desfalecimento delicado” (idem, p.38); “espaço no qual a mulher podia dar livre curso a essa abjeção (indizível prazer), ao seu nada e à sua glória” (idem, p.51). O que podemos extrair da aproximação entre a possessão descrita por Kristeva e Clément e a incorporação da pombagira nos médiuns de Umbanda é que acontece algo indefinível, da ordem da revolta e da transgressão, que se manifesta pela forma arqueada que tomam os corpos das possuídas e pelo giro da pombagira. Sabemos tratar-se de uma revolta que se dá no corpo e alude ao selvagem-erótico. Falta-nos entender melhor o seu sentido.

2.

Os sentidos e dessentidos da revolta Partiremos aqui propriamente dessa noção de revolta para tratar do movimento

circular que é o giro da pombagira. A ideia de re-volta é a de um giro sobre si mesmo, um voltar novamente para modificar. Revoltar-se. Operar uma revolução; dar uma volta completa sobre si mesmo; perfazer um ciclo. Também significa, em negativo, não aceitar o estado de coisas, a estabilidade, o status quo, a inércia. Movimentar, dinamizar, desestabilizar e, com isso, modificar, transformar. Mas de que transformação se trata? E de que tipo de revolta? O giro turva os contornos, borra as fronteiras. Ao girar inúmeras vezes sobre si mesmo, o objeto torna-se círculo, de contornos indefinidos, cores se misturam, fronteiras se interpenetram, a realidade descritível aproxima-se e apresenta-se como um real inapreensível:

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mente e matéria tornados um só. A coisa mental, a palavra que designa, o sentido atribuído, o sentido que emana encontram e se dissolvem na coisa material que já não se define mais pela sua forma, suas cores e seu contorno, nem por nenhum de seus atributos de materialidade. Ambas as coisas tornadas algo, indefinido, indistinguível, inominável, vulto, fantasma, sombra, abjeção: isto que compreendemos como a experiência feminina do feminino. Esta poderia ser uma primeira compreensão do giro da pombagira: um movimento que conduz a uma experiência feminina do feminino através da neutralização de toda dialética e de toda distinção; uma experiência de abjeção e de dessignificação. Assim, trata-se da revolta contra as definições e em direção às indefinições? Contra a língua que descreve e narra, que classifica e designa, em direção a um corpo indefinido, vivo, pulsante. Vários pensadores, entre poetas, artistas e filósofos, já trataram desse corpo vivo no âmbito de reflexões que podemos situar em um mesmo eixo paradigmático do dionisíaco: Nietzsche, Rilke, Heidegger, Artaud e, mais recentemente, Kamper. Para compreendê-lo melhor, podemos aproximar o giro da pombagira da proposta de um “corpo sem órgãos”, no âmbito do teatro, por Artaud: “Quando tiverem/ Conseguido fazer um corpo sem órgãos, / então o terão libertado dos seus automatismos/ e devolvido sua verdadeira liberdade./ Então o terão ensinado a dançar às avessas/ como no delírio dos bailes populares/ e esse avesso será/ seu verdadeiro lugar” (ARTAUD, 1974, p 134). Mas também do corpo dionisíaco descrito por Nietzsche (2005) ao falar do coro da tragédia grega: Agora, no Evangelho da harmonia dos mundos, cada um sente-se não apenas unido, reconciliado, fundido com o seu próximo, mas como um ser único, como se o véu de Maya estivesse rasgado e já só esvaecesse em farrapos perante o misterioso Uno primordial. Cantando e dançando, o ser humano expressa-se como membro de uma comunidade superior: deixou de saber andar e falar e está em vias de ascender dançando nos ares. O encantamento fala a partir de seus gestos. (2005, p. 28)

O gesto de girar seria então o caminho para um estado anárquico? Caótico? Original e livre? A volta ao estado bruto das origens do corpo enquanto materialidade indefinida? Ao corpo vivo da não-dimensão, tal como descrito por Kamper (prelo) 7? Nesse livro, o filósofo alemão propõe a noção de “não-dimensão” na qual o corpo vive quando se encontra fora da consciência da diferenciação entre ele enquanto ser humano e o resto da natureza. Nesse caso, 7

Dietmar Kamper (1936-2001) escreve em 2001 o livro Mudança de horizonte O sol novo a cada dia, nada de novo sob o sol, mas... traduzido para o português por Daniela Naves, cuja publicação está prevista pela Paulus em 2015/2016.

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o sentido usado por ele é o de “rastrear” o mundo em volta com toda a pele de seu corpo, pois ele está imerso na natureza diferentemente do homem civilizado que tem a natureza adiante. Por fim, podemos aproximar ainda o giro da pombagira à volta ao estado bruto no “aberto” nas palavras do poeta Rainer Maria Rilke, aqui explicadas por Heidegger: Na linguagem de Rilke, “aberto” significa aquilo que não apresenta obstáculo. Não apresenta obstáculo porque não limita. Não limita porque em si mesmo é livre de qualquer limite. O aberto é o grande inteiro de tudo aquilo que é livre de limites. Deixa entrar os seres arriscados na passagem da percepção pura, de forma que, multiplamente, um em direção ao outro, e sem encontrar obstáculo, eles continuam passando. Assim passando e repassando, desabrocham e se confundem no sem-limite, no in-finito. Não se diluem na nulidade de um nada, mas se cumprem na totalidade do aberto. (HEIDEGGER, 2004, p.341)

Antes de entrarmos em outros questionamentos, que tocam a uma concepção até então dita “metafísica” da realidade, vamos a algumas imagens de giro que foram aproximadas aqui com a finalidade de encontrar nelas algo em comum que possa nos fornecer pistas para a compreensão da revolta operada no girar da pombagira enquanto força feminina social e historicamente situada. A ideia subjacente à aproximação entre imagens inspira-se em Aby Warburg (2012) que, em seu Atlas Mnémosyne e em outros escritos, aproxima imagens, através de montagens, e identifica nelas a força de um pathos comum que lhes tenha determinado a forma: o pathosformel. Sendo assim, trata-se de imagens provindas de épocas e universos distintos, culturas distintas, em suportes e com finalidades distintas, linguagens distintas etc. O que importa nelas é apenas a recorrência do pathosformel e o método visa justamente encontrá-lo, explorá-lo. Qual será, então, o pathosformel contido no giro?

3.

Em busca do pathosformel do giro: transformação e transcendência Em busca de imagens de pessoas girando, além da pombagira quando toma o corpo de

um médium na Umbanda, encontramos três registros recorrentes que apresentaremos a seguir. Mas antes disso, é interessante citar o comportamento infantil de girar e tontear. Fazemos a hipótese que as crianças, ao girarem, voltam a um estado ainda muito recente de não saber andar nem falar, não conhecer nem reconhecer as formas, experimentando a tontura de ser no mundo. Supomos que, com isso, elas voltam e um estado de ingenuidade total, uma regressão às origens ainda tão próximas do ser selvagem, uno com a natureza em volta. Terá essa sensação que as crianças parecem apreciar tanto alguma relação com o giro proposto pela

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pombagira? E as outras imagens de giro, que relação possuem entre si? É o que tentaremos identificar agora.

3.1.

Heroísmo mítico:

A Mulher Maravilha, heroína de uma série de televisão estadunidense produzida entre os anos 1975 e 1979 e baseada no quadrinho também estadunidense da DC Comics criado em 1941. Wonder Woman se tornou popular no Brasil quando a série televisiva foi transmitida pela rede Globo no fim dos anos 1970. Na montagem “Wonderfull Woman spins” 8, é possível assistir a uma sucessão de transformações da personagem Diana Prince em Mulher Maravilha, o que equivale a uma sucessão de giros em que Diana Prince abre os braços e rodopia sobre si mesma. Seu cabelo preso então se solta e a imagem de Diana fica turva até se apagar enquanto a de uma nova mulher, caracterizada na heroína americana Mulher Maravilha se sobrepõe à primeira. Com o giro, opera-se uma transformação. A mulher comum, Diana, torna-se a heroína Wonder Woman, dotada de poderes mágicos e de uma força divina.

3.2.

Experiência extática:

Os dervixes, monges de uma ordem muçulmana mística também conhecida como sufismo, criada pelo poeta e filósofo místico Mevlana Jalaluddin Rumi no século XIII, efetuam uma dança ritualística na qual rodopiam. Seguindo o ritmo lento da música, os dançarinos começam descrevendo um círculo e, aos poucos, vão girando sobre si mesmos, os braços cruzados sobre o peito. Lentamente, seus braços se elevam em direção ao alto, sempre em perfeita harmonia com a música. E então eles giram cada vez mais rápido, como se estivessem entrando numa espécie de transe místico. Com a velocidade do movimento, sua longa túnica branca toma a forma de uma campânula. A dança dos dervixes (que significa “pobres”) é uma oração que conduz à união com o divino. De dimensão cósmica, imita a rotação dos planetas em torno do sol. Mas o círculo também é a lei religiosa que abraça a comunidade muçulmana. Em seu centro, encontra-se Deus, a verdade suprema, fundamento do Islão.

3.3.

Da vida à morte:

O giro do Corisco no filme Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha (1963), no momento de sua morte por Antônio das Mortes. Não há dúvida que a narrativa do filme, tanto 8

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Z-O2etMo_Yw Acessado em 15/07/2015.

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quanto a realidade histórica do cangaço nordestino que inspirou Glauber Rocha são, ao mesmo tempo, realistas e fabulares e, sobretudo, impregnados de misticismo e sacralidade. Corisco se diz armado por Deus (assim como os cavaleiros da Idade Média europeia de que os cancioneiros nordestinos são inspirados) na sua luta pelo bem e a defesa das populações oprimidas. Na cena final de sua morte, em um movimento surpreendente, e nesse sentido maravilhoso, Corisco, que recebeu vários tiros em seu corpo, abre os braços em cruz e efetua giros rápidos e vivazes sobre si mesmo antes de parar e cair morto ao chão. A passagem da vida à morte, para esse personagem violento e criminoso ao mesmo tempo em que justiceiro e defensor do povo, se dá pelo giro sobre si mesmo. Revolta? Conexão mística com o mundo? Redenção? Não saberemos. Apenas sentimos a gravidade da transformação e da passagem. Nos três casos, o giro opera uma mudança de estado: da personagem cotidiana à heroína mítica, do estado consciente ao êxtase místico, da vida à morte. Essa mudança de estado exige uma força de superação: de simples enfermeira da Força Aérea americana, Diana Prince torna-se Mulher Maravilha, uma heroína com superpoderes. Na narrativa ficcional de características fantásticas – ou seja, em que tudo é possível – o giro é, portanto, uma espécie de mágica que vai permitir a transformação. Algo bastante comum e familiar. No caso dos monges dervixes, estamos no universo do plano físico, real e material. Não se trata de ficção, nem de mágica, e sim de um fenômeno de alteração de estado de consciência obtido pelo giro harmônico e incessante. De um estado consciente, os monges elevam-se ao êxtase místico. Pouco sabemos sobre esse fenômeno senão que os monges experimentam o que chamam de “comunhão com o divino”. O caso de Corisco é um pouco mais complexo. Trata-se de um fenômeno intermediário entre ficção e realidade, uma vez que o filme de Glauber Rocha é uma ficção inspirada em fatos reais. O diretor fez uma longa pesquisa antes de realizar as várias versões de seu filme. De acordo com Josette Monzani (1996), “Recolheu, entre outros documentos importantes, um folheto de cordel, entrevistas e recortes de jornal e cantigas, de onde retirou elementos para compor seus personagens Corisco, Herculano e Antônio das Mortes” (p.290). “Glauber vai ao sertão e entrevista o matador do Corisco verdadeiro e moradores do Monte Santo que se recordavam desse cangaceiro” (p. 294). Quando narrou o fim de Corisco, Glauber Rocha tratava da morte de um dos poucos homens que resistira enquanto a maioria tinha se retirado do cangaço depois da morte do líder

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Lampião 9. Um homem que tinha jurado continuar matando e enviando cabeças decapitadas às autoridades, por onde passasse. Um homem enfurecido e revoltado pela morte do seu líder e amigo. No filme, quando Corisco é alcançado e atingido pelas balas de Antônio das Mortes, o traidor, ele se mostra enfurecido, fora de si, olhos reluzentes de raiva. Seu movimento repentino em giros sobre si mesmo antes de morrer é o de um homem fora de si que usa a revolta para entregar-se à morte. É também o movimento de um homem místico, um visionário, um homem que se diz, em vários momentos, empoderado por Deus e por São Jorge para matar. Há algo de desrazão nesse movimento inesperado do girar de Corisco. De qualquer forma, o giro lhe permite alcançar a própria morte contra a qual sempre lutara. Corisco, matador revoltado, torna-se Corisco morto. Mas antes, este entrega seus poderes ao povo e os amplia com a magia de seu verbo: “Mais fortes são os poderes do povo!”. A capacidade de superação com a finalidade de mudar seu próprio estado e sua própria condição, ampliando os próprios poderes, parece ser o motivo recorrente figurado no ato de girar sobre si mesmo. Com a pombagira, o sentido do girar não é diferente, o que se obtém também é uma superação de estado e uma transformação de ordem mística. Porém, existe uma particularidade ao ethos da pombagira: a forma como o giro se dá e o sentido/dessentido que se constrói no e pelo giro nos parecem próprios de uma concepção acêntrica/policêntrica de mundo, como veremos adiante. Retomando nosso exercício de busca de um pathosformel, temos dois esquemas diferentes nas formas analisadas: por um lado, a pombagira insinua um dessentido ao girar, assim como Corisco gira fora de si, num estado de revolta, como que possuído pela raiva de ter sido vencido. Por outro lado, o Dervixe gira dentro do círculo maior da divindade em movimentos harmônicos, compassados, delimitados pela coreografia do rito; e a Mulher maravilha gira dentro de um mesmo padrão para alcançar uma transformação determinada por uma lógica definida: de Diana Prince à Mulher Maravilha. Temos, portanto, por um lado o pathos do dessentido e desrazão; esse que chamamos de revolta do corpo. E por outro lado, uma outra vivência do pathos da desrazão e do dessentido mantida dentro do universo regrado das formas limitadas. Ou seja, enquanto o Dervixe e a Mulher Maravilha obedecem a uma ordem idêntica e repetitiva que os conduz a um estado de êxtase e de transformação mágica que amplia seus poderes dentro de uma definição, Corisco e a Pombagira ao girar desvinculam-se da ordem até então estabelecida, indo em direção a algo desconhecido pelas 9

Apelido de Virgulino Ferreira da Silva (1897-1938).

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vias da revolta, da desrazão e do dessentido. Desarrazoados, enlouquecidos ou tomados de dessentido, transformam-se.

4.

O giro da pombagira como modo de comunicação acêntrica/policêntrica Para aprofundar a temática do dessentido provocado pela revolta e pelo girar,

consideramos que é preciso admitir a possibilidade de um pensamento situado fora do domínio da razão e da certeza, fora, portanto, do domínio da proteção monoesférica da metafísica de base cristã. É disso que tratemos aqui, começando por falar do personagem nietzscheano do “Homem Louco” em A gaia ciência (2001). Der tolle Mensch (Le forcené, na tradução para o francês) é aquele que está fora de si, fora de sentido, enraivecido, aquele que perdeu a razão. O Homem Louco, fora de si, grita que busca a Deus. Os ateus então se riem dele. E este lhes responde, gritando: Para onde foi Deus? Eu vos direi! Nós o matamos! Vós e eu! Somos nós, nós todos, os assassinos! Mas como fizemos isso? Como esvaziamos o mar? Como apagamos o horizonte? Como tiramos a terra de sua órbita? Para onde vamos agora? Não estamos sempre caindo? Para frente, para trás, para os lados? Mas haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos vagando através de um infinito Nada? (p. 135)

O Homem Louco busca a Deus, gritando por ele, não com o pensamento da razão, e sim com o grito da desrazão e da loucura. Sobre isso, Heidegger (2004) esclarece: O Homem Louco é aquele que busca a Deus, gritando por Deus. Talvez, um pensador tenha ali realmente gritado de profundis? E o ouvido do nosso pensamento? Continua sem ouvir o grito? Não o ouvirá enquanto não tiver começado a pensar. E o pensamento só começa quando sentimos que a Razão, tão engrandecida há séculos, é a adversária mais teimosa do pensamento (p.322).

Vale repetir a última sentença: “E o pensamento só começa quando sentimos que a Razão, tão engrandecida há séculos, é a adversária mais teimosa do pensamento”. Declarar o fim da metafísica, como fez Nietzsche, equivalia então a dizer que a razão filosófica falhara em sua busca por Deus. Que ao contrário, ela matara a Deus. “Esvaziou o mar” ao procurar o absolutamente indubitável, o certo, a certeza. Engoliu o mar inteiro, e com ele, a inteireza de Deus. A razão “apagou o horizonte”, o mundo suprassensível. “Tirou a terra de sua órbita”, o sol. E tudo se tornou objeto. Objeto de conhecimento da subjetividade humana. Sol e terra apartados. Sujeito e objeto. Apenas o Homem Louco para acender lâmpadas em pleno dia. Mas quem o ouviu? Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 94

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Queremos arriscar aqui uma aproximação entre o Homem Louco da Gaia ciência, o girar repentino de Corisco enfurecido e o giro da pombagira. Para os três, já não há mais uma ordem única e protetora universal, mas um “infinito Nada”, sem abaixo nem acima; um vazio que sopra. Um vazio vivo, em movimento, fluxo. Um universo sem centro, sem poder central. Um fluxo de eventos. É o que o Homem Louco afirma. É também o que a pombagira propõe, ao girar: a volta a um estado anárquico, caótico, original e livre. A volta ao estado bruto das origens do corpo enquanto materialidade indefinida. Ao corpo vivo da não-dimensão, ao estado bruto no aberto. Circular é o giro, no universo aberto, ilimitado e não centralizado, ao contrário do que propôs a metafísica cristã, de acordo com Sloterdijk 10. O girar da pombagira, portanto, é um movimento excêntrico, que não busca a nenhum centro universal (diferentemente do giro do Dervixe), mas apenas ao centro de si mesmo, num universo acêntrico; uma proposta acêntrica/pluricêntrica 11 de mundo. Voltamos a Artaud que não busca por um modelo a ser copiado e representado para se viver, mas reconhece que tudo que existe é singular, dentro de um vasto infinito de multiplicidade de formas existentes. “O homem, quando não é reprimido, é um animal erótico, há nele um frêmito inspirado, uma espécie de pulsação que produz inumeráveis animais os quais são formas que os antigos povos terrestres universalmente atribuíam a Deus” (ARTAUD, 1974, p. 102). Nas práticas religiosas afro-brasileiras, especialmente na Umbanda, atribui-se à pombagira a forma feminina dessa pulsação erótica. E é pelo giro que ela pode se manifestar no médium, a fim de libertá-lo do recalque que a civilização lhe impôs. E dizemos mais: esse giro é feminino e, sendo feminino, é andrógino 12. Porque não obedece à lógica das dicotomias classificadoras e separadoras e sim a uma lógica das abjeções que reúnem e religam em concepções indefinidas, caóticas, sensíveis e suprassensíveis aquilo que o logocentrismo apartou. A pombagira gira porque convida a uma percepção acêntrica do mundo onde ser feminino é abandonar-se ao jogo incontrolado do fluxo de eventos de-centrados do universo e 10

Em seu livro Esferas II, Globes (2010), o filósofo alemão Peter Sloterdijk faz uma extensa crítica à perspectiva geométrica universal esférica, inaugurada pelos antigos acadêmicos gregos, e que, “enquanto símbolo da boa e forte fronteira do mundo, será indispensável aos futuros império-teólogos e aos criadores de redes” (p. 33). Assentada sobre o fundamento do Logos que “compreende o que nos compreende” (p.61), a concepção monoesférica do universo implica numa transição entre a visão sensorial e a representação intelectual do Todo. Nesse sentido, ela “pode assim ser descrita como a imagem mental metafísica por excelência” (p.72). 11 Referimo-nos aqui a Morin (1977) que defende o centrismo-policentrismo-acentrismo dos sistemas: “Os ecossistemas, organizações acêntricas tipo, são constituídos por seres egocêntricos, e, a este título, são policêntricos; comportam alguns pontos de controlo e hierarquias específicas. As organizações mais cêntricas combinam, de facto, centrismo/policentrismo/acentrismo de modo complexo e rico. (p.295) 12 Androginia é a combinação de (andro) masculino com (gyne) feminino. É definido como o que tem níveis e variáveis de sentimentos e de comportamentos, quer masculinos, quer femininos, quer ambos ou nenhum.

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a uma concepção filosófica pós-monoesférica, capaz de, eventualmente, superar a metafísica ocidental e renovar-se, dito de outra forma, superar o logocentrismo. Com efeito, no logocentrismo monoesférico, não há lugar para perder-se na excentricidade. Ou, talvez, “os únicos candidatos a ocupar esse lugar [sejam] Satã e os orgulhosos autores de pecados mortais que constituem sua escolta – a saber, essas existências fadadas deliberadamente ao modo de ser anárquico, teófugo, desprezando a redenção” (Sloterdijk, 2010, p.109); uma redenção que só poderia se dar na totalidade do abrigo esférico divino. São eles os abjetos, os excêntricos adeptos da tese ateia da exterioridade sem fundo, do vazio infinito desprovido de centro e de limite. Os capazes de abandonar-se ao jogo incontrolado do fluxo de eventos de-centrados do universo, os que dão lugar a uma concepção filosófica pós-monoesférica, capaz de, eventualmente, superar a metafísica ocidental e renovar-se. É justamente aí que reside a presente proposta de leitura do giro em suas correlações com a comunicação. Não mais na excentricidade satânica; tampouco na rede pluricêntrica interconectada. Mas numa outra possibilidade, ao mesmo tempo acêntrica e pluricêntrica (MORIN, 1977). Vale salientar que a pombagira aqui não é apenas parte do processo de comunicação excêntrica assumido pela Umbanda. Ela é a própria encarnação dessa proposta: o ser abjeto, o feminino do feminino, o absurdo que se manifesta pelo dessentido provocado pelo giro.

Considerações finais É para essa realidade apavorante e trágica, mas também libertadora, lúdica e alegre que a pombagira convida com seu giro e sua gargalhada. Um mundo onde não há mais abaixo e acima, dentro e fora, e onde, ainda assim é possível situar-se com a condição de admitir a incerteza e a abjeção de um sistema confuso e caótico. Um mundo andrógino, sem moral, habitado por corpos erótico-espirituais totais em permanentes revoluções. Pensar o feminino do feminino com o giro da pombagira nos conduz a esferas do pensamento onde se abrem possibilidades outras. Possibilidades que questionam a própria epistemologia e nos levam a uma ciência que adquire outra consciência e pede outra maneira de olhar para si mesma. Outra. Essa palavra é abertura, potencial, criatividade. Podemos dizer que a versão feminina do pensamento sistêmico acontece fora do círculo, fora da esfera e da proteção. No risco. Na abertura. No espaço desconhecido do continente negro. Pensar o

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feminino do feminino, a androginia, o giro e a espiral não poderia nos conduzir a outro lugar que ao aberto mais aberto, à abjeção e ao risco do dessentido.

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Uma possibilidade de diálogo entre a antropologia do imaginário e a ecolinguística A possible dialog between anthropology of immaginary and ecolinguistics Une possibilité de dialogue entre l'anthropologie de l'imaginaire et l'écolinguistique

Elza Kioko Nakayama Nenoki do COUTO 1 Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil Hildo Honório do COUTO 2 Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

Resumo Diálogo entre ecolinguística e imaginário é possível e desejável. A primeira é o estudo das relações entre língua e meio ambiente (natural, mental, social). O natural tem a ver com seu caráter biológico e por ela existir para os humanos comunicarem entre si sobre o mundo. O mental se deve ao fato de a língua nascer, estar armazenada e processada no cérebro. O social é onde tudo é sancionado. Na antropologia do imaginário, vê-se que a imaginação é uma faculdade que se realiza inicialmente pela observação, percepção, memorização e reprodução das coisas do mundo natural. O imaginário é a modalidade pela qual cada indivíduo e cada cultura manifestam essa faculdade. A antropologia do imaginário de Durand se concentra no estudo das imagens mentais cristalizadas em signos, ícones ou símbolos. Essas afinidades entre as duas áreas vêm sendo estudadas na UFG, complementando o que se faz em ecolinguística na UnB. Palavras-chave: ecolinguística; imagem; imaginário; transdisciplinaridade. Abstract A dialogue between ecolinguistics and imaginary is possible and desirable. The former is defined as the study of the relationships between language and environment (natural, mental, social). The natural environment has to do with language’s biological character and with its existing for humans communicate among themselves and between them and the world. In the mental environment it is born, stored and processed. The social environment sanctions all that. In anthropology of imaginary, imagination is a faculty that begins by the observation, perception, memorization and reproduction of aspects of the real world. The imaginary is the modality by which each individual and culture manifest themselves. It emphasizes mental images represented in signs, icons and symbols. These affinities between the two areas are being studied in UFG, complementing what is done in UnB in terms of ecolinguistics.

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Key words: ecolinguistics; image; imaginary; transdisciplinarity. Introdução Esta comunicação representa uma tentativa de mostrar que é possível estabelecer um produtivo diálogo entre ecolinguística e antropologia do imaginário. A despeito de serem ainda relativamente jovens, essas duas disciplinas representam modos de se abordarem fenômenos que têm a ver com nossa mente e cultura de maneira muito diferente da usual no status quo acadêmico. A primeira o faz no âmbito do estudo dos fenômenos da linguagem, encarando-os de maneira abrangente, holística e interdisciplinar, como acontece com toda e qualquer disciplina de base epistemológica ecológica. A segunda, no contexto da antropologia, filosofia e da psicologia, mais especificamente da psicologia analítica de Jung. A ecolinguística surgiu no início da década de setenta do século passado e deslanchou para valer no início da de noventa. A antropologia do imaginário surgiu no início da década de sessenta do mesmo século, sobretuto com a publicação de Les Structures anthropologiques de l'imaginaire Paris, Dunod (1ª edición Paris, P.U.F., 1960). No que segue, apresentaremos primeiramente a ecolinguística. Em seguida, falaremos da antropologia do imaginário. Por fim, faremos uma comparação entre ambas, salientando o que as une, não o que as diferencia.

Ecolinguística Desde a primeira proposta que lhe deu lugar (Haugen, 1972), a ecolinguística vem sendo definida como a disciplina que estuda as relações entre língua e meio ambiente (MA), embora o autor tenha usado apenas as expressões language environment e environment of language, não o termo 'ecolinguística propriamente dito, de modo que ele a definiu avant la lettre. Como acontece com qualquer proposta inovadora, a conceituação de Haugen tem sido alvo de algumas críticas, a despeito de ele ser considerado o pai da ecolinguística. A primeira crítica se dirige à restrição que ele apresenta logo após a definição, ou seja, de que o verdadeiro meio ambiente da língua é a sociedade que a fala. Ora, a língua se relaciona a pelo menos três meios ambientes, como se vê na Escola Ecolinguística de Odense, da Dinamarca (Bang & Døør, 2015) – que reconhece as “dimensões” bio-lógica (natural), ideo-lógica (mental) e sócio-lógica (social) – e na Linguística Ecossistêmica, com os ecossistemas linguísticos natural, mental e social (Couto, 2007; Couto, 2013; Couto, Couto & Borges, 2015).

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A segunda crítica tem a ver com o fato de a definição dar a entender que o objeto da ecolinguística seria o ambientalismo, o que está bem longe da verdade. Aliás, essa não era a intenção de Haugen, que estava preocupado principalmente com a ecologia das línguas, como o contato de línguas, o bi-/multilinguismo, a política e o planejamento linguísticos etc.). Pelo menos no que tange à versão da ecolinguística chamada de linguística ecossistêmica, ela encara os fenômenos da linguagem holisticamente, quer dizer, ela se interessa por todo e qualquer aspecto deles, embora na prática tenha que fazer recortes a fim de se fazerem estudos pontuais. Enfim, se a língua está relacionada a MA, essa vertente da ecolinguística identifica três deles, quais sejam, o MA natural (que abrange tudo que tenha a ver com o aspecto natural, biológico da língua), o MA mental (é no cérebro que a língua é armazenada processada) e o MA social (a esmagadora maioria das teorias linguísticas vêm a língua como um fenômeno social), todos fazendo parte dos ecossistemas linguísticos já mencionados. Para a linguística ecossistêmica, a língua é um fenômeno biopsicossocial. Sabemos pela ecologia biológica, que 'meio ambiente' é parte de um ecossistema. O MA de determinada população de organismos que nele convivem é chamado de habitat, meio ambiente, biótopo ou território. Daí a existência do ecossistema natural, do mental e do social da língua, cada um contendo um MA da língua. Se o conceito central da ecologia é o de ecossistema, o conceito central do ecossistema é o de interação. Se na ecologia biológica o que interessa não são os organismos em si nem seu território em si, mas as interações que se dão entre eles, na ecologia linguística (outro nome da ecolinguística) a língua é vista do mesmo modo. Ela não é um instrumento (coisa) para a comunicação e expressão do pensamento: ela é a própria comunicação e expressão do pensamento. Língua é o modo tradicional de os membros de determinada comunidade de fala interagirem verbalmente uns com os outros, vale dizer, língua é interação (verbal). As interações que constituem o que chamamos língua podem ser de caráter endoecológico (a 'linguística interna' tradicional) ou exoecológico (a 'linguística externa' tradicional). A endoecologia linguística se dedica ao que na tradição tem recebido nomes como "gramática", "estrutura" e outros. A diferença é que a linguística ecossistêmica encara esses fenômenos não como estruturas fechadas, rígidas, como um esqueleto, mas mais como um organismo, melhor, como uma rede orgânica, em sintonia com a visão de mundo que emergiu a partir de pelo menos a teoria da relatividade. A ecologia se insere no mesmo contexto, como se pode ver nos sistemas complexos estudados, entre outros, por Morin

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(2002). Esses sistemas orgânicos podem ser comparados também aos rizomas de Deleuze & Guattari (2000). Por outras palavras, ecolinguisticamente e, mais especialmente, linguísticoecossistemicamente não há estruturas rigidamente fechadas, mas redes de interações. É interessante notar que na própria tradição da linguística ocidental houve manifestações aqui e ali que vão nessa direção, como a teoria dos 'campos semânticos', cujas raízes recuam a Humboldt (1767–1835) e até a Herder (1744–1803), embora imediatamente se filiem aos 'campos lexicais' de Jost Trier, da terceira década do século passado.

Imaginário Na Apresentação do livro de Elza Kioko N. N. do Couto, Em busca da casa perdida (São Paulo: Annablume, 2005), Maria Thereza de Queiroz Guimarães Strôngoli lembra que a imaginação para a antropologia do imaginário de Gilbert Durand "é uma faculdade que se atualiza por meio da observação, percepção, memorização e reprodução das coisas e fatos do mundo natural; o imaginário, por sua vez, é a modalidade própria pela qual cada indivíduo ou cultura opera tal faculdade. A antropologia durandiana concentra-se no exame das imagens mentais e em sua tradução em signos, ícones ou símbolos que compõem os vários códigos que sustentam toda criação cultural". Como veremos mais abaixo, isso lembra os três meios ambientes da língua (natural, mental, social < cultural). A produção ou reprodução de toda imagem supõe a preexistência do mental, do que sustenta sua representação, ou seja, o surgimento da imagem implica o processo de percepção daquilo que é representado, processo que remete sempre para a objetividade de algum dado sensível e de sua manifestação material. O número e a variedade das imagens estão, portanto, segundo Wunenburger (1997 9), intimamente ligados ao corpo do indivíduo e dependem de suas atividades motoras, como gesto e voz, e dos cinco sentidos, dos quais se destacam o olho, como órgão, e a vista, como função biológica, privilegiados, por exemplo, na percepção visual e na constituição de imagens visuais, como quadros, estátuas, fotos, entre outras.

A função visual e a função linguageira constituem duas ramificações divergentes da natureza das imagens, cujas manifestações não implicam cesuras significativas entre elas, ao contrário, afirma Wunenburger (1997: 26), há sempre solidariedade entre visualização e verbalização, solidariedade que começa nas camadas mais profundas da psiquê. Wunenburger (1997: 27-53) categoriza também as imagens como mentais e não mentais. As primeiras, mentais, quando se diversificam segundo o tempo presente, passado e futuro, tornam-se representações específicas e assumem propriedades originais, distinguindo-se como imagem

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inconsciente ou matricial. Esta última também pode ser imagem verbal ou icônica, mas o conteúdo de sua informação não é facilmente apreendido, porque manifesta-se de forma velada, ou seja, como alusão, enigma, criptograma, ideograma e pode significar tanto um arquétipo, protótipo ou estereótipo, como um paradigma ou engrama. As segundas, não mentais, são originariamente um fato psíquico, pulsão ou inspiração, transformáveis em material concreto, externo e independente do sujeito. São elas que motivam as obras de arte (quadros, estátuas, música etc.), as fórmulas mágicas ou encantatórias para afastar malefícios ou atrair benefícios, os rituais religiosos ou culturais. A materialidade dessas imagens atualiza-se sempre segundo determinadas e rígidas normas de manifestação; entretanto, algumas podem estar articuladas ao homem sem que ocorra sua intervenção, como a imagem no espelho, o reflexo sobre a água, as formas miméticas na natureza ou o trompe-l’oeil. Se a imagem não é só uma atividade mental, mas também fisiológica e sustentada pela corporeidade do sujeito, a modalidade de (re)produzir imagens ilustra os valores do homem. É segundo essa perspectiva que as imagens deixam de ser vistas como signos para ser consideradas símbolo, a representação e o repositório de todas as flutuações psíquicas e passionais do sujeito, patrimônio tanto abstrato, interior, mental e sensível do sujeito, quanto legado cultural, concreto, exterior e inteligível que ele recebe na condição de sujeito eminentemente social que é.

A operacionalização das imagens é denominada por Durand de trajeto antropológico do imaginário. A razão do emprego do termo trajeto se deve ao fato de este antropólogo enfatizar o processo de o indivíduo, diante da multiplicidade de imagens recebidas e conservadas em sua memória, precisar escolher e combinar algumas delas no processo constante de sua organização, interior ou exterior, visto que, como já se viu, nós “pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos” (Deleuze & Guattari, 1991: 259). Assim, se a imagem é a matriz do pensamento racionalizado, a função do imaginário é eufemizante e se manifesta nos e pelos imperativos biopsicopulsionais do sujeito, os quais, revezando-se com as intimações do meio social, norteiam a escolha e a articulação dessas imagens, ou seja, criam a visão particular que cada indivíduo dá aos processos de actorialização, temporalização e espacialização do mundo. Durand denomina a manifestação do imaginário de trajeto antropológico não só para mostrar sua atividade dinâmica, mas, sobretudo, para evidenciar que existe uma continuidade nesse dinamismo e estruturação, continuidade que confirma realmente a imagem como matriz do pensamento racionalizado.

Ecolinguística e imaginário

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Samuel de Sousa Silva mostra de modo bastante apropriado como se poderia começar a discutir as afinidades e complementaridades entre ecolinguística, de um lado, e antropologia do imaginário, de outro. De acordo com ele, "a relação entre a antropologia do imaginário e a ecolinguística se dá pelo fato de as duas linhas construírem seus edifícios teóricos sobre um mesmo alicerce estrutural, que é a condição de existência por excelência da espécie humana, a sua relação corporal com o seu meio. Conforme afirma Umberto Eco, os únicos universais humanos presentes em todas as culturas são relativos ao posicionamento dos nossos corpos frente ao espaço a nossa volta". O autor continua afirmando que, "para a ecolinguística, essa relação de adaptação e conhecimento do mundo a nossa volta [se dá] por meio da afetação dos nossos corpos pelos outros corpos a nossa volta, assim como a afetação do nosso meio imediato pelo nosso corpo que se apresenta como elemento desse espaço, é entendida como o processo do nosso ajustamento ao ecossistema no qual estamos inseridos ou nascemos" (Silva, 2014, p. 227). Traduzindo as interações do interior do ecossistema para as interações linguísticas, aí temos a interação indivíduo-mundo (MA), ou seja, a denominação, referência ou significação, e a interação indivíduo-indivíduo, isto é, a comunicação. Silva continua ressaltando que "na antropologia do imaginário o símbolo, ou imagem, que é seu objeto de análise mínimo, é compreendido como uma inscrição na língua humana desse ‘vinculo afetivo-representativo que liga um locutor e um alocutário e que os gramáticos chamam ‘o plano locutório ou interjetivo’” (Durand 2001: 31), e que ocorre como evento na interação, no dialogo face a face. Nessa perspectiva, o símbolo seria esse rastro mais primitivo, ou mais representativo do evento em si, dessa relação entre locutores reais, ou entre pessoas e o mundo a sua volta, que na língua aparece apenas como representação" (idem, ibidem). Por fim, Samuel Silva assevera que "a antropologia do imaginário ao estudar os símbolos e imagens primordiais, assim como os mitos, entendidos como conglomerados de símbolos e imagens compostos em narrativas e que constituem o imaginário humano, estuda o como o ser humano significa e dá sentido a essas suas relações concretas com o meio a sua volta, ou, nos termos da ecolinguística, como o ser humano dá sentido as suas relações ecossistêmicas. Sendo assim, Durand irá demonstrar em seus estudos sobre os símbolos humanos como eles se agrupam e constroem seus campos semânticos a partir dessas primeiras reações do corpo humano ao meio no qual ele está inserido. Durand categoriza toda a constelação de símbolos e imagens produzidas pela espécie humana em três grandes

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conjuntos de imagens cuja razão magnética que agrupa essas imagens nesses conjuntos são os três principais reflexos do corpo humano frente às demandas do meio a sua volta" (Silva, 2014, p. 227). Diante de termos como "imagem", "imaginário" e "imaginação", o leitor pode ser induzido a pensar que só se pode pensar em afinidades entre ecolinguística e imaginário partindo do ecossistema mental da primeira, como Schmaltz Neto equivocadamente diz de Couto (2012). Mas, as coisas não são bem assim. Na verdade, as afinidades vão muito mais longe, mesmo que se comece pelo mental, porque, como sabemos há já muito tempo, o mental tem um pé firmemente fincado no natural e só se mantém se sancionado pelo social. Sabemos que, para a ecolinguística, o núcleo da língua é a interação comunicativa. Ora, para que haja atos de interação comunicativa eficazes é prototipicamente necessário que falante e ouvinte se posicionem fisicamente um frente ao outro. Isso é parte das regras interacionais. No entanto, só haverá interação comunicativa como objeto para a linguística, em geral, e para a ecolinguística, em especial, se o falante tiver algum conteúdo mental a transmitir ao ouvinte, mesmo que se trate de uma interação apenas fática. Em qualquer situação, a interação só será comunicativamente eficaz se algumas condições sociais forem obedecidas. Primeiro, é necessário que falante e ouvinte entrem em comunhão de alguma forma. Segundo, é necessário que o falante fale como é costumeiro falar em sua sociedade, mesmo quando cria algo no próprio ato de interação comunicativa. Nesse caso, ele o criará obedecendo aos padrões locais de inovações. Isso mostra que os três ecossistemas da ecolinguística (natural, mental, social) têm equivalentes perfeitos na antropologia do imaginário. Tanto que, como já salientado acima, a antropologia do imaginário distingue imaginação de imaginário. A imaginação parte da observação, percepção, memorização e reprodução das coisas e fatos do mundo natural. Com isso se parte do natural (o mundo), capta-se imagens dele pela percepção, imagens que são processadas no cérebro, num processo que começa pelo natural e chega até o início do mental. O imaginário, por seu turno, é a operacionalização das imagens, da imaginação, não só no nível individual (mental) mas também no coletivo (social). Enfim, a tradução de tudo isso em ícones, signos e símbolos compõe o mundo cultural, vale dizer o social. É interessante lembrar que "os imperativos biopsicopulsionais do sujeito" lembram muito o caráter holístico da ecolinguística. Para algumas correntes da filosofia da linguagem, a língua seria um fenômeno "natural", ligado ao mundo natural, que existe para a interação

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com ele. Para outras, ela seria algo exclusivamente mental. Para outras, por fim, que são a maioria, ela seria algo exclusivamente social. Para a ecolinguística, sobretudo sua vertente brasileira chamada de linguística ecossistêmica, e seguindo a Escola da Ecolinguística Dialética de Odense (Dinamarca), a língua não é só biológica (natural), nem só psíquica (mental) nem só coletiva (social). Ela é biopsicossocial. O processo de formação de imagens e da linguagem que se vê na antropologia do imaginário e na ecolinguística, respectivamente, segue uma trajetória que foi sintetizada por Couto (2007, p. 128) e reutilizada por Silva (2015, p. 92), como se pode ver na figura a seguir, com as devidas adaptações, é claro:

Figura 1

A figura mostra que tudo começa pela percepção, que pode ser desdobrada no momento inicial da sensação física que, se repetida, pode se transformar em identificação. Até aqui trata-se de algo exclusivamente individual, cujo resultado é o percepto. Depois que determinado fenômeno do mundo é identificado pelo indivíduo, pode ser compartilhado com outro, ou outros, da comunidade, momento em que começa a conceptualização, que começa pelo mero compartilhamento em tentativas de interação comunicativa e pode ser coroado pela lexicalização, ou seja, a associação a determinado som. O resultado de tudo é o conceito. Aliás, etimologicamente "conceito" vem de cum+captum, ou seja, captado com. O primeiro processo, ascendente, se dá no falante. O processo inverso, descendente, é o que se vê no ouvinte, quando o ato de interação comunicativa é eficaz. A ecolinguística surgiu no Brasil na Universidade de Brasília, onde é parte integrante da grade curricular da pós-graduação em linguística. Várias dissertações de mestrado e teses de doutorado já foram defendidas. Em 2012 foi promovido aí o I Encontro Brasileiro de Ecolinguística (I EBE), tendo uma seleção dos trabalhos apresentados sido publicada em Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 106

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Cadernos de linguagem e sociedade volume 14, número 1, 2013, disponível na modalidade impressa e online (http://periodicos.unb.br/index.php/les/issue/view/833). O II EBE aconteceu na UFG, em 2014, sendo uma seleção de trabalhos publicada em Couto & Albuquerque (2015). Ainda no ano de 2015, e até antes da publicação desse livro, foi criada a revista de ecolinguística intitulada Ecolinguística: Revista brasileira de ecologia e linguagem (ECOREBEL),

disponível

apenas

online,

e

cujo

endereço

é:

http://periodicos.unb.br/index.php/erbel/index . Não é para menos que se tem falado em Escola Ecolinguística de Brasília, liderada pelo primeiro autor deste ensaio. Na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, houve um casamento perfeito entre as duas áreas. O antigo NUPLIN (Núcleo de Pesquisas: Língua, Imaginário e Narratividade), criado na PUC-SP por Maria Thereza Strôngoli em 1995, foi trazido levado para a UFG com a contratação de Elza Kioko N. N. do Couto e redenominado NELIM (Núcleo de Estudos de Linguagens e Imaginário), em 2008. Pouco depois, o nome por extenso do núcleo passou a ser Núcleo de Estudos de Linguagens, Línguas Minoritárias e Imaginário", mantendo-se a sigla NELIM. Em 2009, Elza iniciou um programa de pós-doutorado em ecolinguística com Hildo Couto na UnB e, a partir daí, houve nova alteração na descrição do núcleo, que virou Núcleo de Estudos de Ecolinguística e Imaginário, de novo mantendo-se a sigla. Enfim, o NELIM foi se adaptando às novas situações que se apresentavam, sem se descaracterizar, em perfeita sintonia com a visão ecológica de mundo, que o vê continuamente evoluindo, ou seja, adaptando-se às novas situações. No ano de 2013, foi realizado na UFG o I Encontro Brasileiro de Imaginário e Ecolinguística (I EBME). Esse encontro mostrou, na prática, que é possível e desejável estabelecer-se um profícuo diálogo entre ecolinguística e antropologia do imaginário. Isso pode ser visto na seleção dos trabalhos que foi publicada no ano seguinte (Couto, DunckCintra & Borges, 2014), sobretudo no Prefácio de Maria Zaíra Turchi, na Introdução e nos capítulos de Silva (2014) e Schmaltz Neto (2014). O segundo chamou a atenção para o fato de que as afinidades entre as duas áreas não se dão apenas pela faceta mental. O II EBIME está previsto para os dias 11 a 13 de novembro na UEG de Formosa (GO). Como se vê, diferentemente da UnB, em que só se trata de ecolinguística, na UFG se faz o casamento dela com a antropologia do imaginário de modo bastante harmonioso. Tanto que têm surgido trabalhos de PROLICEN, PIBIC, PCC e, é claro, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Um fato a ser ressaltado é que o interesse pelas duas áreas tem atingido

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outros professores da instituição. A UFG é hoje provavelmente a única universidade brasileira em que a antropologia do imaginário vem sendo aplicada aos fenômenos da linguagem por linguistas, além da associação com os estudos ecolinguísticos. Sem nenhuma sombra de dúvida se pode dizer que o eixo Brasília-Goiânia é um foco de irradiação de ecolinguística para outras regiões do Brasil, tais como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Bahia, Maranhão, Roraima, Rondônia, São Paulo e Minas Gerais, pelo menos até onde pudemos averiguar. A antropologia do imaginário aplicada a questões de linguagem também tem se propagado a partir da UFG, já tendo atingido o Distrito Federal, alguns campi da UEG etc. A ecolinguística e a antropologia do imaginário têm origens diferentes. A primeira nasceu, obviamente, no seio da linguística, mais especificamente, da sociolinguística, uma vez que seu criador, Einar Haugen, era um renomado sociolinguista. Embora seu principal impulsionador, Alwin Fill (1993), seja da área de linguística aplicada. A antropologia do imaginário emergiu no contexto da antropologia e da filosofia, com os trabalhos de Gilbert Durand, que era discípulo de Gaston Bachelard (1884-1962), Henry Corbin (1903-1978), Carl Gustav Jung (1875-1961). Este último é psiquiatra, psicoterapeuta e criador da psicologia analítica. Durand foi também professor de Michel Maffesoli. Mas, como vimos acima com Samuel Silva, ecolinguística e antropologia partem aproximadamente de um mesmo ponto, os humanos no mundo natural, e caminham aproximadamente na mesma direção, a criação de um mundo mental e, sobre ele, um mundo social.

REFERÊNCIAS BANG, Jørgen Chr. & DØØR, Jørgen. Ecolinguística: Um enquadramento conceitual. In: COUTO, Hildo H. do; COUTO, Elza Kioko do; ARAÚJO, Gilberto P.; ALBUQUERQUE, Davi B. (orgs.). O paradigma ecológico para as ciências da linguagem: Ensaios ecolinguísticos clássicos e contemporâneos. Goiânia: Editora da UFG, 2015 (a sair). COUTO, Elza Kioko N.N. do. Ecolinguística e imaginário. Brasília: Thesaurus, 2012. _______. Ecolinguística: Um diálogo com Hildo Honório do Couto. Campinas: Pontes, 2013. COUTO, Elza Kioko N.N; ALBUQUERQUE, Davi B. (orgs.). A análise do discurso ecológica no contexto da ecolinguística: Teoria e aplicações. Brasília: Thesaurus, 2015.

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A filosofia de vida em Gaston Bachelard hoje Gaston Bachelard’s Philosophy of life today La philosophie de la vie chez Gaston Bachelard aujourd’hui Maria Noel LAPOUJADE 1

Resumé: Sous ce titre je propose la création d’un parcours possible de la pensée bachelardienne, sur la base de passages de certaines de ses œuvres. 2 A cet égard il faut préciser que dans cet essai il ne s’agit pas d’une recherche historique ni philologique de la pensée de Bachelard. Les passages choisis, enlacés dans le tissu que je construis dans cette présente étude, deviennent des sortes d’« épisodes » d’une philosophie de la vie chez notre auteur. Le texte cherche à mettre en évidence que cette philosophie de la vie, comme genre proche (je paraphrase Aristote) a pour différence spécifique que c’est une philosophie de la vie saine, une conception de la santé. Finalement, jetons un pont entre la pensée occidentale et la pensée orientale sur les thèmes que nous abordons. Mots-clés : Bachelard ; philosophie de la vie ; vie saine. Abstract: This title proposes the creation of a possible course of Bachelard's thought, on the basis of certain passages of his works. It should be noted that in this article we do not present a historical or philological research of the thought of Bachelard. Selected passages of this study are sort of "episodes" of a philosophy of life according our author. The text seeks to highlight this philosophy of life, such as close (we paraphrase Aristotle) has the specific difference that this is a philosophy of healthy life, a conception of health. Finally, let's take a bridge between Western thought and Eastern thought from the issues of our approach. Keywords: Bachelard; philosophy of life; healthy life. Revenir sur les choses anciennes et en apprendre de nouvelles Confucius 3 L’hygiène alors est un poème G. Bachelard 4

1

[email protected] J’ai réalisé une analyse in extenso de la poétique de Bachelard in Maria Noel Lapoujade, Dialogos con Gaston Bachelard acerca de la poética, Universidad Autonoma de México, Mérida, 2011. 3 Roger Darrobers, Proverbes Chinois, Editions du Seuil, Paris 1996, p.148. 4 G. Bachelard, L’eau et les rêves, Librairie José Corti, 1942, p. 168. 2

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Moment initial: l’oubli cathartique La catharsis (purge), comprise comme purification, est un point initial, la sortie des très nombreuses trajectoires qui, dans leur « course », assemblent chaque vie. Le « signal du départ » se trouve dans La Poétique d’Aristote 5. A partir de là, la catharsis est un moment nécessaire, en général, pour conserver la vie, une vie saine, en équilibre. La catharsis initiale est un moment indispensable dans les systèmes philosophiques en général ; pensons à la réfutation socratique, aux idoles chez Francis Bacon, au doute méthodique, hyperbolique cartésien, à la critique chez Kant, laquelle, entre autres nuances, implique de « nettoyer et aplanir le terrain », l’épochè chez Husserl, qui laisse en suspens, entre parenthèses les connaissances, etc. Plus spécifiquement, l’éthique, l’esthétique, la bioéthique-esthétique, etc. Dans cette longue trajectoire, Bachelard introduit le besoin de l’oubli cathartique du savoir. L’oubli fonctionne comme le revers du souvenir, envers er revers des opérations de la mémoire. L’oubli peut être, sans doute, cathartique. La mémoire a besoin de « se vider » pour pouvoir se remplir à nouveau, comme le montre bien l’informatique. L’oubli, avec certaines caractéristiques qu’il ne convient pas d’analyser ici, est alors salutaire. Bachelard afirme: Un philosophe qui a formé toute sa pensée en s’attachant aux thèmes fondamentaux de la philosophie des sciences… doit oublier son savoir, rompre avec toutes ses habitudes de recherches philosophiques s’il veut étudier les problèmes posés par l’imagination poétique (1994, p. 1)

Il poursuit: Ici le passé ne compte pas, dans cette attitude-perspective, il faut être présent à l’instant de l’irruption de l’image. Sans le mentionner, il fait allusion à L’intuition de l’instant où il développe ce thème (1992). Bachelard affirme que « la vie de l’image est toute dans sa fulgurance » (1994, p. 12). La vie de l’image est éphémère, puisqu’elle ne dure pas, elle est instantanée, ce qui la rend également éternelle, car elle est terminée, isolée, telle la monade de Leibniz qui est fermée, « sans fenêtres ».

5

Aristote, Poétique, Guillaume Budé, Belles Letrres , Paris, 1961, 1452a, 1453a .J’ai développé ce thème dans MN Lapoujade, Catarsis: encrucijada del pensar. Revista Relaciones. N) 92-93, Montevideo, 1992. P. 11-12. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 111

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En conséquence l’oubli cathartique épistémologique a son partenaire dans la poétique, dans l’instantanéité de l’image, de façon que l’image entre dans une succession d’images dans le mouvement perpétuel de la psyché. Laisser passer les images de manière que, qu’on l’appelle esprit ou subjectivité, l’image ne reste pas collée, stoppée dans une image obsessive, dominante, est une attitude vitale saine et libre. Voici un départ salutaire, pour ce que nous avons appelé « philosophie de la vie », que je considère centrale de la pensée bachelardienne. Or, cette attitude tournée vers la vie est valide et nécessaire de nos jours.

Philosophie de la lenteur et du repos Le terrain propice à l’oubli cathartique est une attitude de lenteur, voire de repos. En d’autres termes, ce que nous venons d’évoquer implique une écoute de soi, sans adhérences à soi-même, sans liens, qui émerge d’une manière particulière d’exercer ce que Bachelard appelle: le retentissement et la répercussion. Le retentissement est l’impact résonnant des images-stimuli dans la subjectivité, le mouvement centripète. C’est ce qui dans l’esthétique kantienne donne lieu au jugement esthétique, équivalent, pour ainsi dire, au mouvement de répercussion dans la poésie bachelardienne. La répercussion signifie le rendu de l’effet sous différentes formes, dans un mouvement centrifuge. Ce processus partage avec l’ « écho » le fait d’être le retour (« la réaction ») de l’impact (« action »), avec la différence fondamentale que le produit « fini » n’est pas la simple répétition de l’initial. Mais cette écoute silencieuse de soi requiert de faire une pause dans l’accélération de la vie actuelle. Nous vivons dans l’éloge de la vitesse, elle règne comme modèle de la vie quotidienne. Le vertige de la vitesse a eu au début du XXème siècle son esthétique concomitante dans ce qui a été appelé le « futurisme » de Marinetti, et actuellement dans l’esthétique de Virilio, entre autres 6. Quant à ces manifestes et modèles, la philosophie vitale de Bachelard pose ce qui, à mes yeux, est une nécessité salutaire aujourd’hui, comme contrepoids de la balance: une philosophie de la lenteur et même, du repos. La philosophie de la vitesse intensifie encore davantage le stress de la vie quotidienne et accentue les difficultés du vivre ensemble. Un

6

Le Futurisme, textes et manifestes (1909-1944) Lista, Giovanni, Editions Champ Vallon, (Seyssel), France, 2015. Paul Virilio, Esthétique de la disparition, Editions Galilée, Paris, 1989. J’ai analysé le futurisme de Filippo Marinetti dans « Auroras de la imaginacion en algunas perspectivas contemporaneas I », dans M. N. Lapoujade, Homo Imaginans, vol.I, FFYL, Benemérita Universidad Autonoma de Puebla, México, 2014, p. 266-285. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 112

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antidote possible est la revendication d’une philosophie de la lenteur, un éloge de la lenteur et du repos. Notre philosophe se pose une question cruciale: « comment provoquer des métamorphoses vraiment humaines, vraiment anagénétiques, vraiment ouvertes ? » Il répond: « … remplacer la philosophie de l’action, qui est trop souvent une philosophie de l’agitation, par une philosophie du repos, puis par une philosophie de la conscience du repos, de la conscience de la solitude… » (BACHELARD, 1939, p. 154-155). Par la suite, il publie La terre et les rêveries du repos. Essai sur les images de l’intimité, titre vraiment suggestif par rapport au thème qui nous occupe. Bachelard affirme que l’imagination permet de se jeter au fond des choses, mais je pense qu’il faut ajouter que, comme le sait bien Kant, il est impossible de connaître, déterminer en concepts, la chose en soi, c’est-à-dire sans la médiation d’un sujet épistémique. La rêverie de cette intimité permet d’atteindre le repos de l’être. Il s’agit d’un repos intime et intense, pas nécessairement inerte, affirme notre auteur. Il faut construire une « métaphysique du repos ». Le repli sur soi-même apporte avec lui une pléiade d’images. Ce monde est celui que Bachelard se propose de travailler dans cette œuvre.

7

Le Zen japonais propose avec son langage, sa logique et sa

pratique spécifiques, une attitude similaire. Pour ma part je soutiens que pour l’espèce humaine un modèle de repos sage et éthique est le modèle des pierres, qu’il faudrait prendre en exemple. J’évoque un passage dans lequel je revendique la profonde nécessité du repos car Ces patients habitants de la planète sont des présences de l’équité et de la justice ; en effet les pierres ne s’oppriment pas, ne s’assujettissent pas, ne se maltraitent ni se dévorent… Toute pierre et son modèle, le diamant, cet être centré sur soi, dans la lenteur de son « impassibilité », la lenteur de son « impénétrabilité » est la concrétion matérielle de l’idéal du sage ; c’est l’image de la parfaite sérénité dans la lenteur de son « immuable » dureté. Le sage au-delà de toute vicissitude et contingence reste patient, écuanime, libre… Les pierres sont le calme du monde. Inébranlables dans le respect, la quiétude, le recueillement et le silence (LAPOUJADE, 2000, p. 113-114).

La respiration Dans le cadre construit je place la pensée de Bachelard par rapport à la respiration. C’est-à-dire, l’exercice de l’oubli cathartique, en repos, est le terrain idéal pour l’exercice de la respiration. 7

G. Bachelard, La terre et les rêveries du repos. Essai sur les images de l’intimité, vol. II, Librairie José Corti, Paris, 1948, p. « -(. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 113

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L’Orient et l’Occident, dans leurs traditions extrêmement complexes, variées et remontant à des temps immémoriaux, (encore plus l’Orient), n’ont jamais cessé d’intégrer la fonction de la respiration à leurs discours les plus variés, religieux, philosophiques, scientifiques, littéraires, poétiques. Cependant ce n’est jamais trop de se rappeler la « grandeur » du fait élémentaire de la vie, l’action de respirer. Respirer, l’action biologique rythmique d’inhaler et d'exhaler de l’air. Plus précisément, l’action d’inhaler de l’oxygène et d’exhaler de l’air carbonique est une action vitale sine qua non. La pression de l’arythmie vertigineuse de la vie quotidienne actuelle érode la santé, raison pour laquelle nous invoquons les intervalles nécessaires de lenteur et repos apaisants et qui permettent de retrouver l’équilibre vital perdu. La lenteur et le repos atteignent leur plénitude, vécus avec une respiration profonde, sereine. En Occident, du point de vue philosophique, le rideau s’ouvre avec les présocratiques, qui dirigent la réflexion vers l’élément air. Anaximène de Milet considère l’air comme principe de l’univers, ainsi que notre âme qui est air. L’air, qui s’appelle aussi souffle, nous constitue, selon le physiologue-cosmologue ; c’est pourquoi c’est une conviction - ancienne dans l’histoire mais valide comme constatation – du rôle déterminant du souffle comme principe de vie. 8 Depuis la perspective de l’imagination et ses imaginaires l’élément air est symbole du spirituel. L’air sous l’aspect de souffle a une longue histoire en Occident et en Orient. Je reprends un deuxième moment, où le rôle de la respiration est primordial, mais considéré à un autre niveau de réflexion, dans le cadre de la foi chrétienne. En ce sens, il est important d’avoir présent à l’esprit les Récits d’un pèlerin russe, d’un auteur inconnu, dont la première édition correcte date de 1881. Il s’agit de textes recueillis de la tradition patristique, la Philocalia, liés au mouvement littéraire russe du dix-neuvième siècle. En ce qui nous concerne, dans cette œuvre, guide d’enseignement spirituel, la respiration dans le calme, le silence, la concentration, est considérée comme la voie royale de la prière, de réaffirmation de la foi, conduisant à une expérience intime de Dieu. Demeure assis dans le silence et dans la solitude, incline la tête, ferme les yeux ; respire plus doucement, regarde par l’imagination à l’intérieur de ton cœur, rassemble ton intelligence, c’est-à-dire ta pensée, de ta tête dans ton 8

Penseurs grecs avant Socrate, de Thalès de Milet à Prodicos, Jean Voilquin, GF Flammarion, Paris, 1964, Anaximène, p. 56-57. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 114

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cœur. Dis sur la respiration: « Seigneur Jésus-Christ, ayez pitié de moi », à voix basse ou simplement en esprit. Efforce-toi de chasser toute pensée, sois patient et répète souvent cet exercice (AUTEUR INCONNU, 1978, p. 3031).

Ce passage présente un riche condensé des traits fondamentaux de la fonction respiratoire, dans ce cas dirigée par et vers l’expérience religieuse, chrétienne. Pour le moment il faut avoir présent dans ce passage les aspects suivants auxquels nous faisons référence ci-dessous: le silence, la solitude, les yeux fermés, la respiration posée, calme, l’imagination dirigée vers le cœur, ainsi que l’intelligence. Il s’agit de maintenir dans le plus grand recueillement l’imagination créatrice d’images et l’intelligence, productrice de concepts, tant que la prière se répète comme un mantra. C’est en ceci que consiste l’exercice, c’est-à-dire que c’est la proposition de la répétition d’une pratique. Au dix-neuvième siècle, dans le premier quart, vers 1830, Goethe intègre la respiration dans un autre univers discursif, très propre au naturaliste-poète: Je me figure la terre avec son atmosphère comme un grand être vivant qui, sans cesse, réalise des mouvements d’inspiration et d’expiration… Quand la Terre respire vers l’intérieur, elle tire de l’atmosphère … et se condense en nuages et pluie … Mais ensuite la Terre respire à nouveau vers l’extérieur et dégage en hauteur les vapeurs d’eau. (GOETHE, 1990, p. 1151)

De même au dix-neuvième siècle Nietzsche, dans de nombreux passages de Ainsi parlait Zarathoustra, rappelle l’importance, le bienfait et le plaisir de respirer de l’air pur. Dans le poème « Parmi les filles du désert », il s’exclame: Respirant cet air le plus beau Les narines gonflées comme des coupes Sans avenir, sans souvenirs, Me voilà assis... (NIETZSCHE, 1983, p. 360)

Cette strophe est digne du « moine taoïste » que Nietzsche couvre dans sa complexe personnalité (LAPOUJADE, 2002). Pour sa part, Gaston Bachelard évoque la pensée de Goethe et celle de Nietzsche. Quant à Nietzsche, dans un bref passage de L’eau et les rêves, il fait référence à la marche contre le vent dans la montagne, « où souffle un vent rude et fort » (BACHELARD, 1942, p. 184). Dans L’air et les songes, dans un paragraphe incontournable pour notre thème, Bachelard approfondit et élargit la portée de la réflexion sur l’air, le vent et la respiration. Il

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est conscient de la longue étude qu’il faut entreprendre pour mettre en place cette « physiologie aérienne ». Celle-ci joue un rôle essentiel dans la pensée de l’Inde, où les exercices respiratoires qui relient l’individu à l’univers ont, en outre, une portée morale, le vent pour le monde, le souffle pour l’homme. Dans les Upanishads, évoqués par Bachelard, le vent et le souffle absorbent tout. Pour ma part je considère incontournable l’œuvre de Mircea Eliade sur le Yoga (1951) De même je signale le lien de ces passages de Bachelard avec la pensée présocratique d’Anaximène mentionné ci-dessus. L’expérience intime du vent et du souffle « prépare vraiment les synthèses salutaires de la gymnastique respiratoire ». Voire, poursuit Bachelard, cette pratique respiratoire exerce une influence salutaire sur la vie inconsciente. De même la respiration a une portée cosmique fondamentale. Il ajoute: ...la hauteur, la lumière, le souffle dans l’air pur peuvent être dynamiquement associés par l’imagination. Monter en respirant mieux, respirer directement non seulement de l’air, mais de la lumière, participer au souffle des sommets, ce sont là des impressions et des images qui échangent sans fin leur valeur et qui se soutiennent l’une à l’autre (BACHELARD, 1943, p.306-308).

Dans le paragraphe suivant, Bachelard revendique le texte d’un médecin à ce sujet et poursuit avec l’importance de l’étude des métaphores littéraires dans le domaine de l’imagination de l’air. La réflexion bachelardienne autour de la respiration se prolonge dans La poétique de la rêverie, œuvre dans laquelle il consacre à ce thème un paragraphe germinal. (BACHELARD, 1961, p. 153-156). Dans ce passage que j’expose de manière succincte, il commence par la référence scientifique sur la respiration comme un exemple de la « santé cosmique », à travers la citation d’un psychiatre, J. H. Schultz, qui a constaté les bienfaits e la bonne respiration chez ses patients. L’expression en allemand est intéressante, « es atmet mich », littéralement « ça me respire » ; autrement dit, le patient se sent participer à la respiration du monde. Tout respire dans le monde, et la respiration cosmique de l’individu la voie de la guérison (ibid, p. 154). Sans coupure ni rupture il poursuit la réflexion dans le domaine de la poétique, passant par Jules Supervielle, par Rainer-Maria Rilke et par Goethe qu’il qualifie de « grand respirant ». Quant à Goethe, le discours bachelardien unit le Goethe météorologue au poète et

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il affirme: « ici c’est Goethe qui parle, c’est Goethe qui raisonne, c’est Goethe qui imagine » (ibid. p. 155). Autrement dit, selon notre auteur, Goethe qui raisonne est le scientifique et épistémologue ; Goethe qui imagine est le poète et l’esthète. Bachelard conclut de nouveau en cette confluence d’épistémologie et de poétique qui, par ailleurs, est ma propre perspective: « Quel agrandissement du souffle quand ce sont les poumons qui parlent, qui chantent, qui font des poèmes ! La poésie aide à bien respirer » (ibid. p. 156). C’est le second épigraphe. Comme je l’ai exposé dans mes recherches, la voie épistémologique et la voie poétique apparaissent de nouveau intimement liées dans ses œuvres, par Bachelard lui-même, bien qu’en même temps il déclare leur divergence, ce qui n’invalide pas ce qui précède, mais plutôt vient en complément- (LAPOUJADE, 2011, p. 20). Je répète que les réflexions bachelardiennes sur la respiration ont la cruciale importance d’être éminemment actuelles.

Ponts Occident-Orient Dans des travaux précédents nous avons recherché d’autres aspects de ces pensées occidentales et orientales (LAPOUJADE, 2012, p.111-130). Dans ce présent essai, depuis la même perspective, je mentionne brièvement quelques références et je mets en relief d’autres éléments de cette confluence humaine de la pensée de l’espèce. En Orient, c’est le cas de la méditation avec le yoga, ou le Zen japonais, qui demande un début similaire à l’oubli cathartique de Bachelard. Dans le Zen, la pratique consiste à s’asseoir, sans finalité ni profit, en silence, sans « ruminer » des idées, dans une attitude d’oubli total. Le Maître Dogen, qui a introduit le Chan chinois et a fondé le Zen au Japon, affirme que dans l’exercice du Zen nous nous révélons et « nous révéler est nous oublier » (DESHIMARU, 1996, p. 23). En oubliant toutes les connaissances et ce que nous sommes, et ainsi en laissant couler les pensées et les images en une rhapsodie libre, en n’étant collé à rien, l’individu revient à son origine, à son originaire être-vide, indéterminé. La philosophie de la lenteur et du repos, lieu de la rêverie cosmique de Bachelard, trouve son partenaire en Orient dans la pensée Zen, entre autres. Dans le Zen en particulier, c’est la pratique du Zazen. Il faut tout abandonner, même le Zen, et seulement s’asseoir, dans la position aurorale, se concentrer en silence dans une attitude de repos et de calme. En ce sens Deshimaru affirme: « Oubliez tout, abandonnez tout, sans objectifs ni fin déterminée,

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asseyez-vous en silence (ibid. p. 34)». Dans cet intervalle, le rôle principal inducteur: la respiration, comme aussi chez Bachelard. En général, la pensée hindoue (mentionnée par Bachelard), le bouddhisme dans ses diverses orientations et géographies, Inde, Chine, Japon, etc., promeuvent la respiration comme centrale dans leurs pratiques doctrinaires. En particulier lors de chaque session de la pratique du Zazen, la respiration est fondamentale. Morishei Ueshiba, fondateur de l’Aikido, dans L’art de la paix, l’explique en ces termes: Inspire et laisse-toi élever aux confins de l’univers, expire et laisse le cosmos rentrer en toi. Puis aspire toute la fécondité et la vitalité de la terre. Enfin, combine le souffle du ciel et le souffle de la terre avec le tien propre, en te transformant en le souffle-même de la Vie… Tout dans le ciel et la terre respire. La respiration est le fil qui attache la création et la maintient unie (UESHIBA,1998, p. 25-26).

En somme: Orient. Pour le dire avec Deshimaru: « nous ne vivons pas par nous-mêmes, nous sommes vécus par le système cosmique » (DESHIMARU, 1996, p. 36). Occident. J’évoque une phrase de Théodore Monod qui nous interpelle: L’homme préhistorique était plus sage que celui de la cybernétique. Ce prédateur, ce champion de la destruction et du bénéfice, saccage les ressources naturelles et accumule des stratagèmes belliqueux… Je déplore la méthode fractionnée de notre époque. Les tâches coupées en rondelles, privées de leurs racines. L’homme s’est éloigné du cosmique, de la fascination pour l’universel, la totalité. Des valeurs propres aux poètes, aux artistes, aux mystiques (MONOD, 2000, p. 66-67)

Points finaux: la récolte 1. L’imagination, que je considère « la Pénélope du psychisme », sécrète et tisse les images de la hauteur, la lumière, le souffle. Le travail de l’imagination humaine, dans la création de ces tissus d’images, prend l’importance et la validité de réunir les sciences de la respiration telles que la physiologie, la médecine, l’hygiène, sciences au service d’une vie saine. Sciences dont les constats se mettent en pratique, se réalisent en exercices et techniques respiratoires ; d’autre part si répandues actuellement, dans la vie contemporaine, peuplée d’individus et même de populations avides de récupérer l’équilibre et la paix perdus.

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2. A ce sujet il est possible de prouver une fois de plus l’une des thèses de ma perspective philosophique implicite dans cet essai, qui consiste à avoir présent à l’esprit que la dernière des nouveautés, si ce n’est pas un simple snobisme, montre l’alliance des traditions les plus enracinées, le « vieux », avec la nouveauté, le « neuf ». C’est l’épigraphe de Confucius. 3. Le thème du présent texte a fait éclosion dans la vie actuelle sous diverses latitudes en Occident. Si au niveau philosophique nous faisons encore un pas en arrière, vers le plus originaire,

(la « synthèse régressive » kantienne), cette thèse dérive d’une antérieure,

consistant à soutenir que l’être humain est une espèce parmi les autres espèces de la planète ; et que c’est une espèce. C’est pourquoi il est possible de montrer dans les plus diverses cultures, langues, époques, des coïncidences supra-historiques ; coïncidences qui résident dans l’unité de l’espèce nonobstant les différences les plus évidentes. 4. Enfin, depuis que notre espèce est apparue sur la terre, le cosmos que nous habitons et qui nous habite se manifeste comme rythme. Rythme des orbites des planètes, les phases de la lune, les saisons, les mouvements stellaires. Rythme est la vie même. Rythme est la vie humaine: vie-mort, enfant-vieillard, veille-sommeil, faim-satiété, pouls, etc. Dans ces rythmes multiples s’inscrit notre respiration individuelle infime et cosmique. 9. La respiration est rythme. Elle est constituée par le rythme binaire inspirationexpiration. L’alternance posée, profonde, des mouvements d’inhaler et d’exhaler, qui physiologiquement impliquent l’oxygénation et l’élimination de résidus, a ses correspondants signifiés symboliques comme processus d’hygiène, propreté, purification. L’acte de respirer en tant que tel, réalisé en silence et avec l’attention centrée dessus, mène peu à peu l’être depuis l’extériorité, la périphérie, vers l’intériorité, le centre. La respiration est une porte sur le cosmos, par laquelle le cosmos entre en notre intérieur et devient intime. Ainsi, dans le centre le plus intime de soi-même, le fini, le fermé, bat l’extériorité, l’infini, l’ouvert. Enfin, il est devenu philosophiquement visible que la vie passe dans le domaine de la libre nécessité que chacun incarne.

9

M.N.Lapoujade, De la nature sauvage aux catastrophes, en Symbolon Nro 6 sur L’imaginaire des catastrophes, édition Université de Craiova, Centre d’études sur l’imaginaire, et Université de Lyon 3, Institut de recherches philosophiques, 2010, p.69-79. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 119

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Références ANAXIMENE dans Penseurs grecs avant Socrate, de Thalès de Milet à Prodicos, Jean Voilquin, Paris : GF Flammarion, 1964. ARISTOTE. Poétique, Paris : Guillaume Budé, Belles Letrres, 1961. AUTEUR INCONNU. Récits d’un pèlerin russe, Suisse : Baconnière/Seuil, 1978. BACHELARD, Gaston. L’intuition de l’instant (1932), Paris : Livre de poche, BiblioEssais, Stock, 1992. ______. Lautréamont (1940), Paris : Librairie José Corti, 1939. ______. L’eau et les rêves. Essai sur l’imagination de la matière (1942), Paris : Librairie José Corti, 1942. ______. L’air et les songes. Essai sur l’imagination du mouvement (1943), Paris : Librairie José Corti, 1943. ______. La terre et les rêveries du repos. Essai sur les images de l’intimité (1948), Paris : Librairie José Corti, 1948. ______. La poétique de l’espace (1957), Paris : Presses Universitaires de France., (P.U.F.), 1994. ______. La poétique de la rêverie (1961), Paris : P. U. F. 1961. DARROBERS, Roger. Proverbes Chinois, Paris : Editions du Seuil, 1996. DESHIMARU, Taisén. La práctica del Zen, Barcelona: Editorial Kairós, 1996. ELIADE, Mircea, Le Yoga, immortalité et liberté, Paris : Payot, 1951. GOETHE, Johann W., Obras Completas, vol. II, Madrid: Aguilar, 1990. LAPOUJADE, María Noel. Catarsis : encrucijada del pensar. Revista Relaciones 92, Montevideo, 1992. ______. L’imaginaire et les pierres dans M. N. Lapoujade (dir), Imagen, signo y simbolo, México: F.F y L., Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2000. ______. Desde la fisica y la fisiologia a la metafisica biologica del arte, dans Perspectivas nietzscheanas. Reflexiones en torno al pensamiento de Nietzsche. México, UNAM 2002. Tvorchestvoto na Nietzsche v Bulgaria, Svetla Devkova, Sofia: Bulgarie, 2003. ______. De l’esthétique en perspective à l’existence esthétique, dans Esthétiques de l’espace, Occident et Orient, J.J.Wunenburger et V.Tirloni (dir), Paris : Ed. Mimesis, 2010, ______. De la nature sauvage aux catastrophes, dans L’imaginaire des catastrophes, Symbolon 6, Roumanie-France, Edition Université de Craiova, Centre d’études sur l’imaginaire, et Université de Lyon 3, Institut de recherches philosophiques, 2010. ______. Diálogo con Gaston Bachelard acerca de la Poética, México: Universidad Autónoma de México, 2011. ______. Bachelard et le Zen, dans Bachelard: Art, Littérature, Science, Symbolon 8, Roumanie-France : Universitatea Din Craiova et Université de Lyon III, 2012. ______. Homo Imaginans, Essais complets, vol. I, México: FFYL, Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2014. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 120

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A subversão do imaginário: o caso da literatura romena The subversion of the imaginary: the case of Romanian literature La subversion de l’imaginaire : le cas de la littérature roumaine

Alina Ioana BAKO 1 Université Lucian Blaga, Sibiu, Roumanie

Résumé : Le thème de mon étude porte sur les contraints politiques qui ont déterminé une certaine manière de „faire littérature” et la subversion esthétique de ces écritures narratives. La période historique de la Roumanie, comprise entre 1945-1989, a été caractérisée par l’usage des certaines techniques narratives subversives pour exprimer le système totalitaire. Des écrivains comme Virgil Gheorghiu, Augustin Buzura, Nicolae Breban, Dumitru Tsepeneag ont été censurés, mais ils ont réussi à publier aussi des œuvres qui contiennent un sous-texte subversive. Ils ont trouvé des paradigmes de la science qui puissent exprimer, pour le lecteur avisé, le marasme et la fermeture de la conscience que l’individu devait vivre. Des images comme l’asile, l’hôpital, la prison, le système militaire deviennent une double métaphore pour symboliser la claustration physique et psychique. Notre point de vue se dirige vers une mise en question des particularités de la littérature roumaine écrite dans cette période-là et la subversion de l’imaginaire. Mots-clés: imaginaire, politique, roman, subversion, personnage

La littérature roumaine a subi pendant le période du régime communiste des contraints d’ordre idéologique et politique. Ce manque de liberté de l’évolution normale du processus de la création littéraire a été reflété dans les œuvres par des formules qui, par analogies, peuvent exprimer des hypostases de la subversion envers le système totalitaire. Les textes qui ont saisi le disfonctionnement de la société sont les romans publiés pendant les années d’après la deuxième guerre mondiale. L’imaginaire des auteurs a été transposé dans des livres pour pouvoir établir avec le lecteur une convention de lecture (au sens de Umberto Eco) de type déchiffrement. La complicité qui s’établit entre le narrateur et le lecteur fait partie de la subversion de l’imaginaire et devient le terme clé de notre discours. Il est connu le fait que les deux voies essentielles de la manière dont fonctionne l’imagination sont: la voie mimétique, d’origine empirique, et la voie créatrice, qui détermine 1

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des images insolites. L’imaginaire subversif suppose l’existence des formes qui peuplent l’inconscient collectif (les archétypes jungiennes) et l’inconscient individuel, avec les obsessions figurales, imaginatives. Le mélange des archétypes et l’individuel représente l’élément essentiel dans le décryptage du texte à valeur subversive. L’image peut être perçue seulement ayant en vue les aspects fondamentaux de la réalité, dans laquelle elle trouve le matériel pour sa substance. Celle-ci est liée à la définition classique de l’imagination comme productrice d’images, de classes, d’objets réels ou irréels. La fonction de représentation est la plus importante, en tenant compte du fait que les images survivent et deviennent formes expositoires du système social et politique. Celles-ci se constitueront par rapport à la relation que chaque type d’image entretiendra avec l’intellect ou, plus exactement, avec la conscience. L’image comme type de conscience servira comme point de départ pour démontrer que la réalité ne la contraint pas, elle ne lui impose pas ses règles. Une définition classique de Sartre observait que „l’imagination n’est pas un pouvoir empirique et surajouté de la conscience, c’est la conscience tout entière en tant qu’elle réalise sa liberté.” 2 Cette image suppose un jeu complexe par lequel on peut invoquer une réalité dans son absence. Elle est le produit de la conscience qui contemple esthétiquement la réalité quand l’objet de son regard est absent. Jean-Jacques Wunenburger introduisait le terme d’imagerie, qu’il définit comme: „l’unité de toutes les images qui nous habitent, nous entourent, et avec lesquelles nous vivons, dans le bonheur ou l’angoisse.” 3 Aussi, il propose un réseau très articulée des images: Les images forment, en effet, des ensembles vivants qui se structurent, se transforment, interagissent, et par là sont à même de solliciter notre attention, d’aiguillonner nos affects, d’infléchir notre pensée. Loin de n’être que des matériaux accidentels et isolés de notre vie psychique, les images, dans leur variété, participent d’une totalité vivante, à travers laquelle nous prenons conscience de nous-mêmes et percevons le réel (WUNENBURGER, 1995, p.7)

L’image-archétype, telle qu’elle est conçue par Jung contient en soi l’idée de mythe, de rêves et de phantasmes qui s’apparente à l’inconscient collectif. L’activité de l’imaginaire peut camoufler le rationnel du monde. Elle est un refuge de la pensée symbolique et en liaison avec l’âme archaïque.

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Jean Paul Sarte, L’imaginaire,Paris : Gallimard, 2005, p.145. Jean-Jacques Wunenburger, La Vie des images, Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2002, p.7.

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Pour Henry Corbin l’image est un corps magique. L’imagination devient une faculté magique, et la distinction imaginal/imaginaire concerne la différence entre l’irréel et le magique. Elle est créatrice, théophanique et épiphanique en même temps. Pour Jean Jacques Wunenburger l’important c’est le rapport entre l’image et la conscience. La substance métaphysique de l’image détermine la réalisation d’une structure invisible du monde, de la catégorie du sensible qui est transposée dans la réalité. De ce point de vue, nous trouvons comme démarche pratique ce que Pierre Hamon nommait « référents textuelles constituant un modèle de lecture », c’est-à-dire la manière dont la réalité se reflète dans l’imaginaire et sa transposition dans l’œuvre littéraire.

Exil et subversion par image Mieux connu par le film d’Henri Verneuil: « la 25e heure » (1966) ou le personnage était incarné par Anthony Quinn, le roman de Constantin Virgil Gheorghiu (1916-1992),

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présente les signes d’un monde qui souffre, une souffrance extérieure causée par les traumas de la guerre, mais aussi par les changements spirituels de l’être humain, enferme dans une liberté illusoire. L’écrivain est né en 1916 et il est resté pendant 50 ans en exil en France. Ses nombreux volumes (environ 40) sont le témoignage d’une souffrance collective du peuple roumain, pendant la période communiste. Parti en exil, lui comme les autres Cioran, Ionesco, Eliade, ses œuvres parlent d’une existence schizoïde, jamais accompli, une forme d’imposture masquée par une vie vécue ailleurs. Publié en 1949 à la Maison d’Edition Pion, le roman « la 25e heure » est apparu en roumain seulement en 1991, à cause de la censure imposée par le système politique. Mircea Eliade le considérait « la première œuvre littéraire où est reflétée la terreur de l’histoire, une histoire qui signifie, pour la plupart du monde, soit la mort, soit la transformation dans une machine, la dépersonnalisation, la déshumanisation ». 5

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„Un exilé doit se conformer aux coutumes étrangères, dormir dans les lits étrangères, manger une nourriture étrangère. La terre, sous ses pieds toujours différente de la terre qu’il est habitué à fouler. L’eau et le pain ont un autre goût. Les fruits et les fleurs ont une autre odeur. Si un exilé réclame quelque chose, s’il offre quelque chose, s’il crie de douleur ou s’il se lamente, c’est en mots étrangers, avec des phrases étrangères qu’il doit le faire...Jamais une vie de second hand , une vie qu’on a reçue par charité, ou qu’on a achetée d’occasion, n’est pareille à la vie naturelle, initiale d’un homme.” Constantin Virgil Gheorghiu. La seconde chance. Paris: Editions du Rocher, 1990, p. 37. 5 M. Eliade dans la revue Uniunea română n.6 janvier – mars 1949 « în fond prima opera literara în care se oglindește teroarea istoriei contemporane, istorie care însemnează, pentru imensa majoritate a globului, fie moartea, fie transformarea în maşina, depersonalizarea, dezumanizarea » article « Destinul culturii românești » / « Le destin de la culture roumaine », p. 15. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 124

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Contesté et admiré en même temps, le roman nous sert comme support pour l’étude de la subversion des images dans le texte littéraire : l’idéologie mal appliquée et mal comprise. Les théories littéraires qui seront appliquées appartient à Pierre Zima dans Pour une sociologie du texte littéraire, publié en 2000, en reprenant les idées de la sociocritique des années 80, mettait en évidence la cohérence du discours romanesque, en appréciant les éléments narratifs et sémiotiques qui sont le fondement de la construction du social dans le roman. Les techniques narratives nous aident à déceler l’observation de l’image de la société. Aussi, Claude Duchet parle sur la « société du roman »: « interroger les pratiques romanesques en tant que productrices d’un espace social, que j’ai proposé à appeler société du roman» 6. Par contre, Edmond Cros se propose d’étudier le texte littéraire du point de vue de l’insertion de l’histoire au niveau de la forme : « mettre en œuvre les modalités d’incorporation de l’histoire au niveau du texte littéraire non pas au niveau de contenu, mais au niveau des formes » 7. En tenant compte de l’articulation de l’image, on constate le reflet de la réalité dans ses formes les plus dures. Les éléments de la narration ne sont que de matérialisations des images, reprises par une transformation créatrice individuelle. Le roman de de Vintilă Horia, La Vingt-cinquième Heure propose l’histoire d’un homme d’origine roumaine Iohann Moritz, qui est dénoncé comme étant juif même s’il ne l'était pas, par le chef de la police locale, amoureux de sa femme. On observe le motif de la culpabilité nietzschéenne, l’homme qui est toujours coupable. Moritz est alors emprisonné. Sa femme Suzanna est contrainte de demander le divorce pour pouvoir garder ses fils. Il s'évade en Hongrie, mais il est capturé et il est considéré un espion pour l’état roumain. Ensuite, son mésaventure continue en Allemagne, où il est enrôlé dans l’armée, car son origine est considérée comme appartenant à la race aryenne. 8 Il épouse une femme Allemande, mais il est encore une fois emprisonné. Libéré après treize ans de souffrance et des privations dans les camps de travail, le personnage se retrouve dans l’année 1949 qui devient la fin de son expérience. Le contexte décrit par le roman de Constantin Virgil Gheorghiu est soumis à l’image de la deuxième guerre mondiale, une plaie qui a bouleversé le monde entier. Dans un dialogue entre le préfet et le pope, le lecteur enregistre le rôle insignifiant de l’individu dans

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Claude Duchet. Sociocritique. Paris: Nathan, 1979, p. 448. Edmond Cros. Le sujet culturel, sociocritique et psychanalyse. Paris: L’Harmattan, 2005, p. 39. 8 Voir plus de références sur eugénisme et modernité dans le livre de Marius Turda. Modernisme et eugenisme. Paris: Le Harmattan, 2013. 7

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le grand mécanisme de l’histoire. La conscience humaine est malade, parce qu’elle ne possède plus le respect pour l’être humain: « Nous sommes en guerre ! Nous nous battons pour la patrie et pour l’Eglise, le poison de l’Antéchrist. Vous affirmez que c’est une injustice le fait qu’un individu quelconque a été envoyé à travailler aux fortifications pour notre cause sainte ? ». 9 Il s’agit, finalement, d’une attitude qui manque d’humanité. C’est un recours à l’animalité de l’homme, dépourvu de toute essence. L’image subversive renvoie à la punition et à la révolte en même temps. L’individu devient l’image d’une humanité dépourvue d’humain.

« Mon roman sera le livre de cet épilogue » Les deux personnages principaux Iohann Moritz et Traian Koruga représentent deux attitudes envers le mal de l’histoire. Traian est un alter-ego de l’écrivain, une image fidèle, un commentateur lucide des faits historiques et celui qui entame un roman qu’il ne finira jamais : Traian Koruga écrivait. Johann Moritz demeurait auprès de lui et regardait comme il tenait son crayon, les doigts serres, et comme il traçait les lettres minutieusement, tout comme s’il enfilait des perles. Johann Moritz n’avait pas la patience d’écrire. Et il n’aimait pas écrire. Mais il eut été capable de regarder des heures durant, sans s’ennuyer, Traian Koruga écrire. (GHEORGHIU, 1949, p. 333)

Il y a dans la description de l’acte d’écrire une profondeur issue de l’enregistrement du détail. Les deux personnages se trouvent l’un près de l’autre comme dans une rencontre secrète. Le corps du texte devient presque un corps de chair, qui souffre et qui est sous l’influence du regard d’Iohann. Une double structure narrative symbolise le processus multiple de la création. Le personnage presque regarde l’auteur, comme dans le réalismemagique de l’écriture sud-américaine. Traian avoue sa préférence pour l’univers intime, pour les évènements qu’il a vécu lui-même, comme Gheorghiu : Ce sont des évènements auxquels aucun être humain ne saurait échapper. Je n’ai pas besoin de personnages héroïques. Je les prendrai au hasard. Je choisirai donc parmi les deux milliards d’êtres, ceux que je connais le mieux. Toute une famille : ma propre famille ». (GHEORGHIU, 1949, p. 49)

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Virgil Gheorghiu. La vingt-cinquieme heure. Paris: Librairie Plon, 1949. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 126

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Cette descente dans l’univers concret renvoie à l’idée d’une appropriation élémentaire envers les êtres connus. La maladie inconnue qui change la structure spirituelle de l’homme détermine sa transformation dans un citoyen. La profession d’écrivain que Traian confie nettement devient une manière de se rapporter à l’univers. L’acte d’écrire est une manière d’échapper à la terreur de l’histoire. Il est forcé de renoncer à la vérité et à la beauté, car ces valeurs ne sont plus valables dans son monde. Je suis écrivain, dit Traian. D’après moi, un écrivain est un dompteur. En montrant aux êtres humains le Beau, c’est-a-dire la Vérité, ils s’adoucissent. Quant à moi, je veux dompter les Citoyens. J’avais commencé à écrire un livre. J’en étais arrive au cinquième chapitre. Puis les Citoyens m’ont emmené en captivité et je n’ai plus pu écrire. Le cinquième chapitre n’a pas été commencé. Maintenant, il n’y a plus raison pour que je l’écrive. Je ne publierai jamais plus de livres. A la place du cinquième chapitre, je veux écrire quelque chose pour dompter les Citoyens. (GHEORGHIU, 1949, p.

334) « Dompter les citoyens » signifie rendre les individus, parties de la société, humains, leurs redonner la vie, la spiritualité. Le déroulement des évènements est enregistré comme dans un compte-rendu. Iohann Moritz se rappelle les dates les plus importantes de son éloignement : « En 1938 j’étais dans un camp de juifs en Roumanie. En 1940 dans un camp de Roumains en Hongrie. En 1941 en Allemagne dans un camp de Hongrois. En 1945 de Dachau. Treize ans de camps. J’ai été libre pendant dix-huit heures. Puis ils m’ont emmené ici... » (GHEORGHIU, 1949, p.501). Le personnage dont la création est vue aussi par les lecteurs, constate le déracinement et il vit très fortement le dépaysement, partout il n’est pas libre, mais en prison. C’est une métaphore de la claustration de l’homme moderne, attrapé par le système. Paul Ricœur conçoit le passé comme image : La présence en laquelle semble consister la représentation du passé paraît bien être celle d’une image. On dit indistinctement qu’on se représente un événement passé ou qu’on en a une image, laquelle peut être quasi visuelle ou auditive. Par-delà le langage ordinaire, une longue tradition philosophique, qui conjoint de façon surprenante l’influence de l’empirisme de langue anglaise et le grand rationalisme de facture cartésienne, fait de la mémoire une province de l’imagination [...]. Il semble bien que le retour du souvenir ne puisse se faire que sur le mode du devenir-image. (RICOEUR, 2003, p.6)

Aussi, pour le personnage, les souvenirs envahissent son existence même dans le présent. Leur réseau devient un contrefort de l’échafaudage narratif, car les images du passé dirigent la représentation de la réalité vécue. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 127

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Il y a une question « C’est à cause de cela que vous m’avez arrêté ? » (GHEORGHIU, 1949, p.501) qui revient tout le temps, comme une obsession qui accentue la pathologie de la société. Les trois expériences sont aussi des questions, car le personnage est trompé par le destin : Les Roumains ont envoyé le gendarme pour me réquisitionner — comme on réquisitionne les choses et les animaux. Je me suis laissé réquisitionner. Mes mains étaient vides et je ne pouvais lutter ni contre le roi ni contre le gendarme qui avait des fusils et des pistolets. Ils ont prétendu que je m’appelle Iacob et non Ion comme m’avait baptisé ma mère. Ils m’ont enfermé avec des juifs dans un camp entouré de barbelés, — comme pour le bétail — et m’ont obligé à faire des travaux forcés. Nous avons dû coucher comme le bétail avec tout le troupeau, nous avons dû manger avec tout le troupeau, boire le thé avec tout le troupeau et je m’attendais à être conduit à l’abattoir avec tout le troupeau. Les autres ont dû y aller. (GHEORGHIU, 1949, p. 307)

Les identités que le personnage reçoit au fur et à mesure qu’il est emprisonné par plusieurs autorités sont mises en évidence par les changements des noms. Le traitement en prison est décrit en mettant en évidence l’image de la mort imminente. Le personnage est malade de mort, c’est une menace permanente pour une coulpe qu’il ne connaitra jamais. Si au début il est condamné d’être juif par les roumains, ensuite d’être roumain par les hongrois, d’être hongrois par les allemands, Ion devient Iohann, un soldat dans l’armée allemande. On observe aussi des implications de la biopolitique et des expériences raciales. Les méthodes des théories eugénistes ont démontré que le personnage n’appartient plus au monde qu’il connaissait. Les Hongrois ont prétendu que je ne m’appelais pas Iacob mais Ion et ils m’ont arrêté parce que j’étais Roumain. Ils m’ont torturé et m’ont fait souffrir. Ensuite ils m’ont vendu aux Allemands. Les Allemands ont prétendu que je ne m’appelais ni Ion ni Iacob, mais Ianos et ils m’ont torturé à nouveau, parce que j’étais Hongrois. Puis un colonel est venu qui m’a dit que je ne m’appelais ni Iacob ni Iankel — mais Iohann — et il m’a fait soldat. D’abord il a mesuré ma tête, il a compté mes dents et mis mon sang dans des tubes en verre. Tout cela pour démontrer que j’ai un autre nom que celui dont m’a baptisé ma mère. (GHEORGHIU, 1949, p. 89)

La maladie qui a envahi le corps des êtres humains ressemble à la rhinocérite décrite par Eugène Ionesco, le créateur des pièces du théâtre absurde. Le personnage est toujours sur le point d’échapper, mais chaque fois il est emprisonné par des nouveaux ennemis. Iohann est le modèle de la victime innocente, qui se demande tout le temps pourquoi lui. Il ne

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connait pas les raisons par lesquelles cette machinerie immense de l’histoire domine son destin. Les espaces fermés deviennent des cliniques : la maladie est déterminée par l’existence humaine, par la manière dont la société conçoit ses individus « elle est la vie se modifiant dans un fonctionnement infléchi […] une déviation intérieure de la vie ». (GHEORGHIU, 1949, p.189). Les formes de cette pathologie – dit Foucault – font partie de la vie, l’homme étant puni pour son existence même : « la vie […] avec ses marges finies et définies de variation, va jouer dans l’anatomie pathologique le rôle qu’assurait dans la nosologie la notion large de nature : elle est le fond inépuisable mais clos où la maladie trouve les ressources ordonnées de ses désordres » (GHEORGHIU, 1949, p.57). Les axes de l’univers narratif sont dirigés par l’ordre et le désordre : la guerre a pris fin et que j’ai cru que j’aurais, moi aussi, droit à la paix, les Américains sont venus et ils m’ont donné, comme à un seigneur, du chocolat et des aliments de chez eux. Puis, sans dire un mot, ils m’ont mis en prison. Ils m’ont envoyé dans quatorze camps (GHEORGHIU, 1949, p. 334)

La prison représente un espace fermé, une punition pour un crime qu’Iohann n’a pas commis. L’image de l’armée américaine salvatrice, figée par « chocolat et aliments » se tourne vers un nouvel emprisonnement. C’est un cercle sans fin, une manière presque absurde de concevoir l’existence. Des lunettes pour voir la mort et la vie Le roman est parfois surchargé des métaphores et des symboles. L’écriture dense construit des phrases inattendues, qui servent à un déchiffrement des noyaux narratifs. Le symbole des lunettes concentre le regard du lecteur vers une autre possibilité de regarder la vie : C'est avec ces lunettes que j'ai aperçu la première fois ma femme. C'est avec elles que j'ai vu mille et mille belles filles. Avec elles j'ai contemplé des tableaux, des statues, des musées, des villes... C'est avec elles que j'ai regardé le ciel, la mer, les montagnes. Que j'ai lu, des nuits durant, des centaines et des centaines de livres. C'est avec ces lunettes que j'ai vu mon père mourir. Avec elles que je vous ai vu, toi et tous mes amis. C'est avec ces lunettes que j'ai vu l'Europe s'écroulée, et les hommes mourir de faim, être faits prisonniers, torturés, s'éteindre dans les camps de concentration (GHEORGHIU, 1949, p. 450)

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Toute l’histoire est vue par ses lentilles, une histoire personnelle : la femme, des belles filles, ou des objets, des espaces, des coordonnées spatiales et temporales et l’histoire même : l’Europe en guerre, les camps de concentration, les prisons. Le geste de renoncer aux lentilles devient une forme de renoncer à soi-même. Le regard amène la connaissance des images des ruines qui se trouvaient partout au monde. La relation entre l’idéologie et la littérature, constate aussi Pierre Macherey « elle est brisée, retournée, mise à l’envers d’elle-même, dans la mesure où la mise en œuvre lui donne un autre statut que celui d’état de conscience ». 10 Le personnage détruit toute vision idéale sur le monde : « Dédaignant par nature le point de vue naïf sur le monde, l’art, ou, au moins la littérature, installent le mythe et l’illusion dans leur rôle d’objets visibles. » 11 Le geste de renoncement aux lentilles confirme la déchirure intérieure déterminée par la ruine pas seulement du pays natale - Roumanie, mais aussi la dégradation de l’Europe. Si je les gardais encore, je ne pourrais voir que des ruines, des villes en ruine, des hommes en ruine, des pays en ruine, des églises en ruine et des espérances en ruine. C’est avec elles que je vois ma propre ruine. Les ruines des ruines. Je ne suis pas un sadique. Je ne peux pas les regarder. Je ne peux plus supporter de ne voir que des ruines partout. (GHEORGHIU, 1949, p. 450)

Les ruines représentent le corps malade de la vie, la décadence, l’inutilité de la vie envers l’histoire. Il y a une correspondance entre l’ébranlement des choses et le fracassement de son existence : « Je n’ai pas la permission de regarder autre chose que des camps, des maisons de fous, des prisons, des soldats, des kilomètres de barbèles. Et c’est pourquoi je renonce aux lunettes » (GHEORGHIU, 1949, p.451). On constate un rapprochement entre Traian Koruga et le personnage C. décrit par Czeslaw Milosz. Comme celui-ci, il constate une terreur de l’histoire qui pèse sur les destins et les individus humains. C’est un retour vers les valeurs de la liberté et de la spiritualité : Après les années qu'il avait passées en Russie, il avait acquis la conviction que l'histoire est le domaine exclusif du diable et que quiconque se met au service de l'histoire signe de son sang un pacte avec lui. Il en savait trop long pour conserver encore des illusions, et il détestait ceux qui étaient assez naïfs pour en conserver. Amener de nouveaux damnés au triste troupeau était pour lui le seul moyen de diminuer le nombre des hommes intérieurement libres qui, du fait même de leur existence, le jugeaient. (MILOSZ, 1988, p. 214) 10 11

Pierre Macherey. Pour une théorie de la production littéraire. éd. Maspéro, coll. Théorie, 1966. Pierre Macherey. Op.cit., p. 157. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 130

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A la suite des désastres causés par la guerre et les politiques des états, les contraints imposés par des idéologies déterminent la mise en question même du statut de l’être humain. Aussi, le recours à la religion n’est pas une solution qui puisse sauver, mais un essai inachevé de réhabilitation de la spiritualité : « L’église ne peut pas sauver les sociétés, mais elle peut assurer le salut des individus qui la composent » (GHEORGHIU, 1949, p.49). La croyance et la divinité peuvent sauver seulement les individus, chacun à son tour, pas les sociétés – affirme Traian, le personnage qui devient la porte-parole de l’écrivain. Pour lui, Les hommes peuvent dompter toutes les bêtes sauvages. Mais, depuis quelque temps, une nouvelle espèce d'animal est apparue sur la surface du globe. Cette espèce a un nom: les Citoyens. Ils ne vivent ni dans les bois ni dans la jungle, mais dans des bureaux. Ils sont nés du croisement de l'homme avec les machines. C'est une espèce bâtarde. La race la plus puissante actuellement sur toute la surface de la terre. Leur regard ressemble à celui des hommes, et souvent, on risque même de les confondre avec eux. Mais, sitôt après, on se rend compte qu'ils ne se comportent pas comme des hommes, mais comme des machines. Au lieu de cœurs, ils ont des chronomètres. Leur cerveau est une espèce de machine. Ce ne sont ni des machines ni des hommes. Leurs désirs sont des désirs de bêtes sauvages. Mais ce ne sont pas des bêtes sauvages. Ce sont des citoyens ... Etrange croisement. Ils ont envahi toute la terre (GHEORGHIU, 1949, p. 334)

Le corps du personnage comme « facteur d’individuation » (Durkheim), mais aussi une structure sociale, c’est le lien entre imaginaire et littérature, objet pharmakon (Derrida), pour l’articulation de l’imaginaire narratif. La problématique est complexe, surtout de la perspective des multiples rapproches transdisciplinaires qu’elle suppose. Les références se dirigent vers des champs disciplinaires comme la littérature, la philosophie, l’anthropologie, la psychologie, l’histoire. La vision de Gheorghiu porte sur une conception techniciste de l’être humain, un sorte d’hybride entre l’homme et la machine, car il lui manque l’âme. L’écrivain réduit l’homme à l’animalité, à l’instinct, en retrouvant dans la barbarie qu’il a vécu une vie sans but, dépourvue de spiritualité et sans sens. L’absurde de l’existence suppose un renoncement à soi-même, car Iohann et Traian deviennent des victimes de l’histoire trop bouleversée pour ne pas engrener l’homme dans le vortex qui détruit l’essence de l’humanité. C’est un point de vue issu d’une expérience personnelle et fictionnelle en même temps, un enregistrement lucide de la maladie universelle de la guerre et de la bestialité, par l’intermédiaire des images subversives enregistrées pendant tout le déroulement narratif.

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A Ideologia do progresso no imaginário científico do século XIX: o credo do Doutor Pascal no romance epônimo de Emile Zola (1893) The Idea of progress in the 19th Century scientific imaginary: Dr Pascal’s creed in Emile Zola’s eponymous novel (1893) L'idéologie du progrès dans l'imaginaire scientifique du XIXe siècle : le credo du docteur Pascal dans le roman éponyme d'Émile Zola (1893)

Vanessa Costa e Silva SCHMITT 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Resumo: O presente artigo propõe-se a analisar alguns elementos referentes à ideologia do progresso no imaginário científico do século XIX a partir de um estudo de O Doutor Pascal, romance de Emile Zola publicado em 1893. Nessa obra, o escritor símbolo da corrente naturalista francesa constrói seu protagonista, um médico-pesquisador, como sendo um portavoz do pensamento científico de seu tempo e cujo credo constitui a manifestação especular da fé inabalável de Zola na ciência. Palavras-chave: progresso (ideologia); imaginário científico; literatura e ciência; século XIX; Zola (Emile). Abstract: This paper aims to analyze some aspects of the idea of progress in the 19th Century scientific imaginary as conceived by Emile Zola in his novel Doctor Pascal (published in 1893). In this work, the greatest theorist of French Naturalism envisages his protagonist, a physician, as a spokesman of the scientific thought at his time, whose creed is the specular manifestation of Zola's unflagging faith in science. Keywords: progress (idea); scientific imaginary; literature and science; 19th Century; Zola (Emile

Le XIXe siècle est traversé par de nombreuses théories scientifiques, notamment dans le domaine des sciences naturelles. De nouvelles approches sur la géologie, la biologie naissante et les théories portant sur l’évolution des êtres vivants gagnent du terrain. Les savants s’interrogent sur l’origine de l’homme et sur la transmission des caractères, c'est-àdire l’hérédité. De même, le rapport entre l’homme et son milieu intéresse les chercheurs, favorisant la montée des idées hygiénistes, tandis que la menace de la dégénérescence de 1

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l’espèce humaine, de la dégradation de celle-ci inquiète et se transforme dans une des grandes préoccupations du siècle. Porte-parole des philosophies rattachées à ce bouillonnement scientifique qui caractérise l'aube du XXe siècle et de ce que l'on pourrait désigner comme l'idéologie du progrès, Pascal est le protagoniste du roman éponyme Le Docteur Pascal d’Émile Zola. Publié en 1893, il clôt la grande saga des Rougon-Macquart ou l’Histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Second Empire. Retiré à Plassans, sa ville natale provençale, le docteur Pascal Rougon est un chercheur qui, désintéressé de tout ce qui a trait à la médecine de la bourgeoisie, se consacre au complet à ses études sur l’hérédité et sur la dégénérescence. Ceci dit, notre article tient à comprendre l’idée de progrès dans l'imaginaire scientifique du XIXe siècle. Cela se justifie puisque, dans les années 1870 et 1880, l’idée de progrès devient un article de foi. Son rapport avec la science, le rationalisme et la lutte pour la liberté politique et religieuse est indéniable 2. Pendant le XIXe siècle, l’essor de plusieurs techniques semble justifier les espoirs de l’homme dans la science. Le sujet inspire maints philosophes et penseurs ; il inspire aussi Marcelin Berthelot (1827-1907), chimiste et homme politique, d’après qui « la science est la bienfaitrice de l’humanité [...]. Sous son impulsion, la civilisation moderne marche d’un pas de plus en plus rapide » 3. Pour Becker, GourdinServenière et Lavielle, « le mythe du Progrès est le mythe le plus fort de la seconde moitié du XIXe siècle », et Zola y adhère totalement, croyant « au progrès indéfini, malgré les échecs et les obstacles » 4. La Revue hebdomadaire commence de publier Le Docteur Pascal en feuilleton le 18 mars 1893, avant son achèvement. Trois jours plus tard, Zola prononce devant l’Association générale des étudiants de Paris un discours; il le présente comme « un raccourci du dernier chapitre du Docteur Pascal, qui n’est, lui aussi, qu’un long cri d’amour en l’honneur de la science » 5.

2

BURY, J. B. The Idea of progress: an inquiry into its origin and growth. (1932). New York: Dover, 1960. p. 348 3 BERTHELOT, cité par SCHNERB, Robert. SCHNERB, Robert. Le XIXe siècle. Paris: PUF, 1954. Il s’agit du vol. 6 de: CROUZET, Maurice (dir). Histoire générale des civilisations. Paris: PUF. p. 478 4 BECKER, Colette ; GOURDIN-SERVENIÈRE, Gina ; LAVIELLE, Véronique. « Progrès ». In : Idem. Dictionnaire d’Émile Zola : sa vie, son œuvre, son époque, suivi du Dictionnaire des « Rougon-Macquart ». Paris : Robert Laffont, 1993. p. 334-335) 5 ZOLA, cité par MITTERAND, Henri. « Étude du Docteur Pascal ». In : ZOLA, Émile. Le Docteur Pascal. In : Idem. Les Rougon-Macquart : Histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Second Empire. Tome V. Études, notes et variantes par Henri Mitterand. Paris : Fasquelle, Gallimard, coll. « Pléiade », 1967. p. 1609 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 135

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De ce fait, le présent travail propose d'examiner l'idéologie du progrès à l'aune de l'imaginaire scientifique du XIXe siècle, ainsi que les théories qui en découlent et auxquelles, en tant que porte-parole de cette foi qui se propage à l'époque, Pascal se rattache. Si les théories scientifiques qui traversent le roman sont envisagées en grands traits, il ne faut pas oublier les convictions personnelles de Pascal qui en sont intimement liées, et l'usage qu'il en fait. Notre clôture va dans le sens d'une invitation à la réflexion sur les répercussions de ces théories dans le credo scientifique de Pascal, d'autant plus que celui-ci s'avère être un représentant de l'essor et des espérances nourries de l'idéologie du progrès et de la nature.

1 L'intrigue C’est l’été 1872. Retiré à Plassans, sa ville natale provençale, le docteur Pascal Rougon est un chercheur qui se consacre à ses études sur l’hérédité et sur la dégénérescence. À l’âge de cinquante-neuf ans, ce médecin croit avoir découvert un sérum novateur, sorte de panacée universelle contre les maux dégénératifs. Il s’agit d’une solution préparée à partir de la substance nerveuse des moutons et utilisée sous forme d’injection. Tout d’abord, certains de ses patients présentent une amélioration incontestable de leur état de santé après les piqûres. Dans son quotidien de chercheur, Pascal peut compter sur l’aide de sa nièce Clotilde, une précieuse collaboratrice. Elle a été élevée par lui et par leur servante Martine depuis l’âge de sept ans. Un grand conflit entre Clotilde et Pascal se produit. Elle, éprise de passion religieuse, se met contre lui qui, bien qu’incroyant, l’a laissé libre de professer sa foi. Influencée par sa grand-mère, Félicité, et par Martine, Clotilde croit que seule la conversion de Pascal au catholicisme peut sauver l’âme de celui-ci. De ce fait, elle s’assigne pour but de détruire les dossiers et les manuscrits que Pascal a réunis au long de son existence : cela le conduirait alors au paradis. Tourmenté, il tombe malade : il se considère atteint d’une crise névrotique inguérissable. Une certaine nuit, Pascal, effaré, dévoile à Clotilde tous les secrets des RougonMacquart, toute son analyse de l’hérédité familiale. Cette mise à nu de leur famille et de ses tares provoque un grand bouleversement chez Clotilde. Puis, sans qu’ils puissent nier leur amour, oncle et nièce cèdent au désir, dans une liaison très rajeunissante pour lui. Mais un coup de mauvais sort vient frapper leur idylle : le notaire chez qui Pascal place ses rentes s’enfuit et la misère survient. Le cœur chagriné, il envoie Clotilde à Paris vivre avec le frère

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de celle-ci, Maxime. Quand elle y arrive, elle est enceinte. Ayant été communiqué par Clotilde de sa grossesse, Pascal l’appelle pour qu’elle revienne. Atteint d’une sclérose cardiaque, Pascal meurt avant la naissance de l’enfant qu’ils ont engendré et dont la conception a été ardemment souhaitée. Seize mois environ s’écoulent entre le début du roman (pendant l’été 1872, probablement en juillet) et le décès de Pascal en novembre 1873. Après la mort du savant, tandis que Clotilde veille son corps, tous ses manuscrits et tous les dossiers sur l’hérédité qu’il a réunis au long de sa vie sont brûlés par Félicité Rougon et par Martine. Comme les tares de sa propre famille ont été l’un des sujets d’étude de Pascal pendant trente ans environ, Félicité craint que les archives de son fils ne suscitent l’éclosion d’un scandale qui éclabousserait le nom des Rougon. Ainsi se confirme l’une des craintes de Pascal, la plus angoissante: la destruction de son legs scientifique. À la fin du roman, néanmoins, l’enfant qui tète paisiblement le sein de Clotilde est l’incarnation de l’espoir qui animait le docteur: son fils sera « la continuation, la vie léguée et perpétuée, l’autre soi-même » 6.

2 L'idéologie du progrès Tout en traçant la voie de l’idée de progrès au XIXe siècle, nous pouvons mieux comprendre le rôle de la science dans la pensée du personnage de Pascal, qui est en accord avec la philosophie générale de l’époque. Inspiré de l'épistémologie qui aiderait l'homme à lire le monde qui l'entoure, Zola inscrit son roman de clôture de la saga des Rougon-Macquart dans la lignée d'ouvrages capables de faire miroiter le progrès à son époque et à celles à venir. 2.1 Des Lumières au début du XIXe siècle Selon Robert Schnerb, le XVIIIe siècle, ou siècle des Lumières, a vécu « la passion pour la connaissance » : il s’est adonné aux recherches mathématiques, botaniques et chimiques, a élaboré une explication mécaniste assez grandiose de l’univers, a sondé les constellations, a exploré les mers lointaines 7. Le progrès, « en tant que loi objective inscrite dans les choses, étendue du domaine scientifique et technique au plan moral et social […] », reçoit sa dimension proprement 6

ZOLA, Émile. Le Docteur Pascal. (1893). Édition présentée, établie et annotée par Henri Mitterand. Paris: Gallimard, coll. « Folio classique », 1993. p. 364. Dorénavant, les références au Docteur Pascal renvoient toutes à cette édition; le numéro des pages des citations de cette œuvre seront données directement dans le texte entre parenthèses. 7 SCHNERB, Robert. Op. cit. p. 21 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 137

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sociologique dans la France des Lumières. Cependant, à l’exception de Turgot et Condorcet, il n’y a pas chez les auteurs du XVIIIe siècle de théorie générale du progrès. Selon Valade, le siècle dans son ensemble « pense que le progrès est cumulatif, que la raison se développe, que le bien, la vertu, le bonheur sont devant nous. L’éducation, de nouvelles lois rendront les hommes meilleurs. Enfin le Moyen Âge est perçu par le XVIIIe siècle comme une coupure — ce qui met en question la linéarité et la continuité du progrès ». Toujours d’après Valade, Turgot (1727-1781) est le seul à n’avoir vu ni dans cette période des siècles d’ignorance ni dans le christianisme un adversaire des Lumières. Son Second discours (1750) porte sur les progrès successifs de l’esprit humain. Il ne faut pas oublier, pourtant, que dans l’Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain (1795), Condorcet (1743-1794) établit également un lien entre l’ignorance et le vice, les lumières et la vertu. Pour lui, le progrès est historique, et l’histoire échappe à la dégénération 8. D’après Bury, dans la période après la Révolution, ressurgissent des forces qui ont été étouffées au long du XVIIIe siècle. Une réhabilitation du christianisme a lieu, notamment par la plume de quatre penseurs : Chateaubriand (1768-1848), De Maistre (1753-1821), Bonald (1754-1840) et Lamennais (1782-1854). Dans leur littérature, émerge la doctrine de la providence, qui était décadente avant l’établissement d’une doctrine du progrès. Ils soutiennent fermement le dogme d’un âge d’or original et de la dégradation de l’homme, tandis qu’ils dénoncent la tendance d’une pensée progressive de Bacon à Condorcet 9. Pendant la Restauration, Cousin (1792-1867) propage l’idée selon laquelle l’histoire humaine a connu un développement progressif. Jouffroy (1796-1842) partage cet avis 10. Mais c’est chez Guizot (1787-1874) que s’amorce véritablement la médiation sur les rapports qu’entretiennent la civilisation et le progrès 11. Selon Bury, il est à noter que, dans ses Études historiques (1831), Chateaubriand accepte l’idée du progrès, dans la mesure où celle-ci peut être acceptée par un fils orthodoxe de l’Église. Chateaubriand croit que l’avancement des connaissances conduira au progrès

8

VALADE, Bernard. « Progrès (idée de) ». In : Encyclopædia Universalis. Corpus X. Paris : Encyclopædia Universalis, 1986. p. 209 9 BURY, J. B. The Idea of progress: an inquiry into its origin and growth. (1932). New York: Dover, 1960. p. 260-265 10 BURY. Ibidem, p. 272 11 VALADE. Ibidem, p. 209 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 138

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social. De même, si la société semble parfois marcher à reculons, elle est toujours en train d’aller en avant 12.

2.2 Fourier, Saint-Simon et Comte Toujours d’après Bury, trois penseurs soutiennent avoir découvert le secret du développement social, ayant pour but de restructurer la société sur des bases scientifiques : Fourier, Saint-Simon et Comte. Tous les trois annoncent une ère nouvelle du développement en tant que séquelle nécessaire du passé, c’est-à-dire un inévitable et un souhaitable degré dans la démarche de l’humanité 13. Claude-Henri de Saint-Simon (1760-1825) croit que l’histoire est gouvernée par la loi du progrès. Mais celui-ci n’est pas linéaire et l’histoire humaine est constituée des alternances entre des périodes qu’il nomme organiques et des périodes appelées critiques. Contrairement à la plupart de penseurs des Lumières, il voit dans le Moyen Âge une période organique et stable, dirigée par la foi. Mais l’époque moderne, en revanche, est une période critique dont le chaos spirituel et social est le fruit de la déchéance des valeurs du Moyen Âge. Ce faisant, il ne s’agit pas de marcher à reculons, mais de progresser en direction d’une nouvelle époque organique, gouvernée par le principe de la science positive. Le progrès scientifique aurait ainsi détruit les doctrines théologiques et les idées métaphysiques qui étaient le fond du Moyen Âge en tant que période organique. Désormais, le monde de l’homme ne pourra être conçu et réorganisé que sur les bases de la science positive 14. L’organisation sociale et la doctrine générale deviendront scientifiques et non plus religieuses. Le pouvoir spirituel subsistera dans la figure du savant. C’est lui qui dirigera le progrès de la science et de l’éducation publique. Un pouvoir central se fera nécessaire afin de promouvoir les innovations exigées par le progrès 15. Selon Saint-Simon, celui-ci est inévitable. Dans la nouvelle société, semblable à celle du christianisme primitif, la science constituera le moyen pour atteindre la fraternité universelle 16. La secte saint-simonienne connaît un retentissement significatif à

12

BURY. Ibidem, p. 276 BURY. Ibidem, p. 279 14 REALE, Giovanni ; ANTISERI, Dario. História da filosofia. v. III: Do Romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991. p. 175 15 BURY. Ibidem, p. 286 16 REALE ; ANTISERI. Ibidem, p. 177 13

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l’époque : elle propage la foi dans le progrès comme la seule clé de l’histoire et comme la loi de la vie collective 17. Charles Fourier (1772-1830) est d’abord disciple de Saint-Simon. Ses écrits, tenus pour extravagants et géniaux, présentent des éléments qui conduisent à une réflexion historique et morale. Sa théorie principale prône qu’il y a dans l’histoire un plan grandiose de la providence, qui inclut l’homme, son travail et la forme de constitution de la société. Selon Fourier, la loi newtonienne de l’attraction peut être associée à la vie des hommes : les passions humaines seraient des systèmes d’attraction et, partant, devraient être satisfaites. Mais ce ne pas cette conception qui attire le plus l’attention, mais la structure sociétaire qu’il propose où les passions ne seraient pas réprimées mais orientées vers leur apogée 18. Cette société a pour centre la phalange, un groupe de travailleurs auto-suffisants, un mélange de riches et de pauvres, qui vivent dans un phalanstère, unité où la propriété privée n’est pas abolie, mais où tous les produits sont partagés selon le labeur, les talents et le capital de chacun (une valeur minimum est assurée à tous). Malgré l’excentricité de ses propositions, Fourier contribue à la diffusion de l’idée d’un progrès indéfini 19. Auguste Comte (1798-1857) est le grand collaborateur de Saint-Simon qui, malgré leur rupture, contribue beaucoup à la pensée de celui-là. Comte est redevable à Saint-Simon en ce qui concerne l’une des bases de son système, c’est-à-dire l’idée que le phénomène social d’une certaine période et le degré intellectuel de la société coexistent et se correspondent. Le fond de la théorie de Comte est le progrès dont la détermination des lois constitue le problème principal qu’il se propose de résoudre 20. La grande loi conçue et énoncée par Comte dans son Cours de philosophie positive (paru entre 1830 et 1842) est la loi des trois états, selon laquelle l’humanité, telle que le psychisme des individus, connaît trois états : l’âge théologique, l’âge métaphysique et l’âge positif qui s’excluent réciproquement. Le premier (théologique ou fictif) est le point de départ de l’intelligence humaine ; le troisième (positif ou scientifique) constitue son état définitif, tandis que le deuxième (métaphysique ou abstrait) ne sert qu’à être considéré comme une étape de transition 21. Il ne faut pas oublier, pourtant, que toutes les branches de la connaissance ne se trouvent pas dans le même état simultanément. 17

BURY. Ibidem, p. 289 REALE ; ANTISERI. Ibidem, p. 179-180 19 BURY. Ibidem, p. 280-281 20 BURY. Ibidem, p. 290-291 21 REALE ; ANTISERI. Ibidem, p. 298-299 18

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Pour Comte, tous les phénomènes de la vie sociale de l’homme sont solidement joints, comme Saint-Simon l’a énoncé. En raison de cette cohésion, le progrès politique, moral et intellectuel est inséparable du progrès matériel, de sorte que les phases de ce développement matériel correspondent à des changements intellectuels 22. D’après Reale et Antiseri, il y a des aspects centraux de la sociologie 23 comtienne qui doivent être soulevés. La statique sociale s’interroge sur les conditions de l’ordre, tandis que la dynamique étudie les lois du progrès. Celui-ci, dans son ensemble, s’est toujours concrétisé selon des étapes obligatoires, parce que naturellement nécessaires : l’histoire de l’humanité correspond au développement consécutif de la nature humaine. À l’instar des phénomènes naturels, les phénomènes sociaux ne peuvent être modifiés que si nous connaissons leurs lois 24. L’étude de ces phénomènes constitue une science positive 25. Selon Bury, la synthèse de Comte sur le progrès humain est semblable à celle de Hegel, un système clos. Si pour Hegel, sa philosophie absolue symbolise le dernier terme du développement humain, pour Comte, la société qu’il idéalise et qu’il croit à venir correspond elle aussi au terme final de l’humanité. Cela prendrait encore du temps, et la période d’attente pourrait témoigner un avancement continu du savoir, mais les caractéristiques principales seraient définitivement déterminées, de sorte qu’il n’y aurait aucune surprise dans l’avenir 26. Comte jette les bases de la sociologie, en convainquant de nombreux penseurs que l’histoire de la civilisation dépend de lois générales, c’est-à-dire qu’une science de la société est possible. En Angleterre, cette idée est encore une nouveauté quand paraît le System of logic (1843) de John Stuart Mill 27.

2.3 Stuart Mill, les socialistes, Proudhon et Spencer Dans cet ouvrage, Stuart Mill (1806-1873) traite, lui aussi, de la progressivité de l’homme en société, et d’une méthode qui doit permettre « de voir très loin dans l’histoire

22

BURY. Ibidem, p. 293 Le mot sociologie est créé par Comte en 1830, d’après des mots savants tels que géologie, etc. (BLOCH, Oscar ; WARTBURG, Walther von (dir.). Dictionnaire étymologique de la langue française. Paris : Quadrige, P.U.F., 2008. p. 595). 24 REALE ; ANTISERI. Ibidem, p. 302 25 Les sciences positives sont “hierarquizadas segundo grau decrescente de generalidade e crescente de complicação: astronomia, física, química, biologia e sociologia” (REALE ; ANTISERI. Ibidem, p. 303). De ce fait, la sociologie atteint le degré le plus haut dans la hiérarchie des sciences (BURY. Ibidem, p. 299). 26 BURY. Ibidem, p. 304-305 27 BURY. Ibidem, p. 307 23

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future de l’être humain » 28. Il affirme que si les penseurs qui touchent au sujet réussissent à découvrir une loi empirique à partir des données de l'histoire, cela peut être converti en une loi scientifique en le déduisant a priori à partir des principes de la nature humaine. Il soutient également que ce qui est déjà connu de ces principes justifie une importante conclusion : l'ordre de la progression humaine générale dépendra principalement de l'ordre de la progression dans les convictions intellectuelles de l'humanité 29. Lors de son exposé, Stuart Mill se vaut du mot progrès dans un sens neutre, sans qu’il signifie obligatoirement amélioration. À son avis, la science sociale a déjà démontré que les modifications provoquées par la nature humaine correspondent à un perfectionnement. Mais, en avertissant son lecteur, il s’avère lui-même optimiste, quelqu’un qui croit que la tendance générale, sauf exceptions temporaires, s’achemine vers un état meilleur et plus heureux 30. En 1840, Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) publie son Qu’est-ce que la propriété ? Son hostilité à la religion, sa notoire maxime La propriété, c’est le vol !, son évangile d’anarchie et ses phrases défiantes avec lesquelles il revêt ses idées font de lui un révolutionnaire. Il ne peut pas être considéré comme un utopiste, parce que la transformation sociale qu’il propose exige un long et très lent processus. Ce faisant, il condamne Saint-Simon et Fourier, car ils imaginent qu’un millénaire pourrait être organisé immédiatement par un changement d’organisation. Selon lui, ses propres spéculations et ses activités controversées sont pénétrées par l’idée de progrès, qu’il décrit comme les chemins de fer de la liberté. Peutêtre sa critique radicale des théories sociales de l’époque signifie qu’il ne considère pas sérieusement le progrès, quoiqu’il l’invoque : What dominates in all my studies, what forms their beginning and end, their summit and their base, their reason, what makes my originality as a thinker (if I have any), is that I affirm Progress resolutely, irrevocably, and anywhere, and deny the Absolute. All that I have ever written, all I have denied or affirmed, I have written, denied or affirmed in the name of one unique idea, Progress […]. 31

En somme, il faut tenir compte du fait que le XIXe siècle correspond au surgissement des manifestations d’individus qui, seuls ou collectivement, croient qu’un autre type de disposition sociale est possible. D’abord ce sont les socialistes utopiques du début du siècle, ceux qui élaborent des doctrines fondées sur la perspective du progrès et de la foi dans 28

STUART MILL cité par VALADE. Ibidem, p. 210 BURY. Ibidem, p. 309 30 BURY. Ibidem, p. 309 31 PROUDHON cité par BURY. Ibidem, p. 317 29

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l’humanité, notamment Saint-Simon et Fourier. Ils jugent que le progrès social n’est pas impossible, dans ses formes les plus diversifiées : morale, religieuse, intellectuelle, matérielle. Puis surgit le socialisme proprement dit qui veut promouvoir une société égalitaire ou communiste (ce sont des synonymes tout au début) par une action politique, organisée et par une révolution socio-politique. Ayant Marx et Engels comme leurs théoriciens principaux, le socialisme aspire à une société plus juste, ou simplement juste, dans laquelle le système des classes n’aura plus lieu. Les aspirations socialistes comprennent également une croyance dans le progrès. Encore selon Bury, l’idée de progrès connaît trois phases ou périodes au XIXe siècle. Pendant la première, immédiatement après la Révolution, la notion de progrès est traitée assez rarement, sans que soient faits de grands examens de la part des philosophes. Ensuite, dans la deuxième période, l’on saisit son sens et s’entament des quêtes afin d’établir une loi générale qui puisse le définir. L’étude de la sociologie est fondée. De même, la notion de développement voit le jour. Des socialistes et d’autres réformateurs politiques invoquent le progrès comme un évangile 32. Vers 1850, quoique cette idée soit familière dans toute l’Europe, elle n’est pas tenue pour une vérité évidente. La notion de progrès social se fait accompagner de la notion de développement biologique. Les travaux de Spencer et de Darwin conduisent l’idée de progrès à sa troisième période. D’après Valade, en Angleterre se développe une philosophie du progrès conçue à la fois comme loi historique et loi cosmologique. L’article d’Herbert Spencer, Le progrès : loi et cause du progrès (1857), en résume les aspects primordiaux 33. Dans cet écrit, Spencer introduit pour la première fois dans le vocabulaire philosophico-scientifique le terme évolution, dans le cadre de l’évolution de l’univers 34. Mais, selon toujours selon Valade, il n’est qu’une esquisse grossière comparée à la richesse du contenu des Premiers principes. Dans ses travaux, Spencer (1820-1903) s’avère un philosophe optimiste. Le progrès y apparaît comme la base d’une théorie de l’éthique. Selon lui, la nature, dans sa complexité infinie, s’achemine toujours vers un développement nouveau. La civilisation représente les adaptations qui ont été effectuées jusqu’alors, tandis que le progrès signifie les pas successifs

32

BURY. Ibidem, p. 334 VALADE. Ibidem, p. 209-210 34 REALE ; ANTISERI. Ibidem, p. 329 33

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nécessaires à ce processus 35. Ce faisant, la progression actuelle de l’humanité est vue comme un fait nécessaire, une séquelle du mouvement cosmique général, gouvernée par les mêmes principes. Si à cette progression correspond une montée du bonheur, alors la théorie du progrès est définitivement établie 36.

3 Les théories scientifiques qui nourrissent la pensée de Pascal L'œuvre zolienne s'est édifiée sur des bases scientifiques, notamment sur celles des sciences naturelles qui, par le biais de l’hérédité naissante, traversent les volumes des Rougon-Macquart, cette Histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Second Empire. Roman de clôture de cette saga, Le Docteur Pascal n’a pas échappé à la règle, il servant même de résumé de la conception scientifique de Zola. Par la bouche de Pascal, surtout dans la première moitié du récit, défilent quelques idées propres au scientisme caractéristique du siècle, mais, ne l’oublions pas, par instants il devient sceptique et constate l’incertitude de son art dont les fondements sont instables et muables.

3.1 Pascal et ses études sur l’hérédité Dans la première page du récit, l’on apprend que Pascal se dédie depuis trente ans environ à des travaux sur l’hérédité. C’est l’année 1872. Sans doute épris de transformisme lamarckien, mû par des travaux sur la gestation (p. 87), il a commencé tout au début de sa carrière à collectionner des notes, des manuscrits, des papiers portant sur l’hérédité qu’il fait entasser dans une solide armoire de chêne du XVIIIe siècle. Les générations successives de la famille des Rougon-Macquart sont la source capitale de ses études. Sur l’hérédité, Pascal construit sa thèse personnelle, faisant une brève référence aux auteurs qu’il a pu lire ou qui lui ont servi de base, comme Darwin, Haeckel et Galton. Pascal s’intéresse depuis longtemps aux lois de l’hérédité : d’abord curieux des mystères qui entourent la gestation, il entreprend une investigation anatomique sur une série de cadavres des femmes enceintes mortes lors d’une épidémie de choléra 37. Une fois les divers stades embryologiques observés, il complète peu à peu « la série, comblant les lacunes, pour arriver à connaître la formation de l’embryon, puis le développement du fœtus, à chaque jour de sa

35

BURY. Ibidem, p. 337-338 BURY. Ibidem, p. 341 37 Probablement en 1849 ou 1854, des années où l’épidémie sévit fatalement en France (FAURE, Olivier. Histoire sociale de la médecine (XVIIIe-XXe siècles). Paris : Anthropos-Econome, 1994. p. 136) 36

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vie intra-utérine », dressant ainsi « le catalogue des observations les plus nettes, les plus définitives » (p. 87). Dès lors, c’est le problème de la conception même qui l’intrigue, dans son « irritant mystère » (p. 87). En bon dissecteur et anthropologue, il élargit son objet d’observation vers l’humanité entière, essayant de répondre à certains doutes métaphysiques et scientifiques (« Pourquoi et comment un être nouveau ? Quelles étaient les lois de la vie, ce torrent d’êtres qui faisaient le monde ? », p. 87). À partir de l’étude de sa propre famille, devenue « son principal champ d’expérience, tellement les cas s’y présent[ent] précis et complets » (p. 87), il conçoit une théorie générale de l’hérédité. Ce faisant, il formule son hypothèse : selon lui, il y a deux types fondamentaux de transmission des caractères de l’être vivant : l’hérédité ou « reproduction des êtres sous l’empire du semblable » et l’innéité ou « reproduction des êtres sous l’empire du divers » (p. 88) :

Pour l’hérédité, il n’avait admis que quatre cas : l’hérédité directe, représentation du père et de la mère dans la nature physique et morale de l’enfant ; l’hérédité indirecte, représentation des collatéraux, oncles et tantes, cousins et cousines ; l’hérédité en retour, représentation des ascendants, à une ou plusieurs générations de distance ; enfin, l’hérédité d’influence, représentation des conjoints antérieurs, par exemple du premier mâle qui a comme imprégné la femelle pour sa conception future, même lorsqu’il n’est est plus l’auteur. Quant à l’innéité, elle était l’être nouveau, ou qui paraît tel, et chez qui se confondent les caractères physiques et moraux des parents, sans que rien d’eux semble s’y retrouver. (p. 88)

Pascal va encore plus loin, il reprend et subdivise les deux termes, hérédité et innéité. Il partage l’hérédité en deux cas, « l’élection du père ou de la mère chez l’enfant, le choix, la prédominance individuelle, ou bien le mélange de l’un et de l’autre, et un mélange qui pouvait affecter trois formes, soit par soudure, soit par dissémination, soit par fusion, en allant de l’état le moins bon au plus parfait […] », mais l’innéité ne comporte qu’un seul cas, la combinaison, « cette combinaison chimique qui fait que deux corps mis en présence peuvent constituer un nouveau corps, totalement différent de ceux dont il est le produit » (p. 88). Voilà le résumé que fait Pascal de ses propres observations, « non seulement en anthropologie, mais encore en zoologie, en pomologie et en horticulture », à la manière d’autres savants de l’époque. Mais une vraie synthèse s’avère difficile, voire impossible, de sorte qu’il se sent alors « sur le terrain mouvant de l’hypothèse, que chaque nouvelle découverte transforme » (p. 89).

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Les sources qui le nourrissent vont de Darwin (ses gemmules et sa pangenèse) à Haeckel (sa perigenèse), en passant par Galton. Précurseur fictif de la pensée de Weismann, il conçoit l’idée du plasma germinatif « dont une partie reste toujours en réserve dans chaque nouvel être, pour qu’elle soit ainsi transmise, invariable, immuable, de génération en génération ». Conscient de son impuissance et de l’incomplétude de sa théorie, il anticipe qu’elle sera un jour « caduque » face au développement de la science (p. 89) 38. De même, la réalité vivante dément sa théorie, puisque l’hérédité, « au lieu d’être la ressemblance, n’était que l’effort vers la ressemblance, contrarié par les circonstances et le milieu ». Cette pensée le conduit à postuler l’avortement des cellules :

La vie n’est qu’un mouvement, et l’hérédité étant le mouvement communiqué, les cellules, dans leur multiplication les unes des autres, se poussaient, se foulaient, se casaient, en déployant chacune l’effort héréditaire ; de sorte que si, pendant cette lutte, des cellules plus faibles succombaient, on voyait se produire, au résultat final, des troubles considérables, des organes totalement différents. (p. 90)

Parmi ses quelques convictions, des doutes intrinsèques surgissent, sans qu’il y ait encore des réponses plausibles : « Existait-il un progrès physique et intellectuel à travers les âges ? Le cerveau, au contact des sciences grandissantes, s’amplifiait-il ? Pouvait-on espérer, à la longue, une plus grande somme de raison et de bonheur […] comment un garçon, comment une fille, dans la conception ? n’arriverait-on jamais à prévoir scientifiquement le sexe, ou tout au moins à l’expliquer ? » (p. 90-91).

38

Ces indications, Zola les extrait de l’ouvrage du docteur Jules Déjerine, L’Hérédité dans les maladies du système nerveux (1886). D’après Mitterand, dans la note I de la page 946 du Docteur Pascal, « La théorie des gemmules ou pangenèse, qui figure dans La Descendance de l’homme et la sélection sexuelle (1871), expose que les cellules vivantes ont la propriété de produire des particules infiniment petites, les gemmules, qui les représentent dans leur ensemble. Les gemmules sont le véhicule héréditaire des propriétés de la cellule. Les cellules des organes génitaux contiennent au moins une gemmule de toutes les cellules de l’organisme. Dans l’œuf il y a des représentants de toutes les cellules du père et de la mère, dont les caractères sont ainsi transmis au nouvel individu — Cette théorie fut critiquée par Galton en 1871. Ernest Haeckel (1834-1919) : biologiste allemand, disciple de Darwin, auteur de l’Histoire de la création des êtres organisés d’après les lois naturelles (traduction française, 1865) et de l’Histoire de l’évolution humaine (id., 1877), était partisan du transformisme. La théorie de la périgenèse explique la détermination de la forme de l’organisme, ainsi que l’hérédité et l’évolution, par la nature du mouvement vibratoire des plastidules, ou granulations formant la partie filamenteuse du protoplasme de la cellule » (MITTERAND, Henri. « Notes et variantes du Docteur Pascal ». In : ZOLA, Émile. Le Docteur Pascal. In : Idem. Les Rougon-Macquart : Histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Second Empire. Tome V. Études, notes et variantes par Henri Mitterand. Paris : Gallimard, coll. « Bibliothèque de la Pléiade », 1967. p. 1636

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Pascal croit à la vie, qui, dans son processus de sélection naturelle, « élimine sans cesse les corps nuisibles », qui, régénératrice, « refait de la chair pour boucher les blessures, qui marche quand même à la santé, au renouvellement continu, parmi les impuretés et la mort » (p. 155).

3.2 La famille Rougon-Macquart et les lois de l’hérédité Toutes ses théories, il les applique sur les Rougon-Macquart. Cette famille, il l’épluche jusqu’à l’épuisement dans ses dossiers et ses notes, en y voyant les tares et les dégénérescences. D’abord il se croit indemne de leurs tares physiologiques (p. 158), puis, il se croit malade et frappé du lourd poids héréditaire de sa famille, cherchant dans ses écrits quel serait le mal (et la source de celui-ci) qui s’approprierait de lui au point de le rendre à demifou (p. 199-200). Fier de son classement minutieux, Pascal dévoile à sa nièce tous les troubles héréditaires des Rougon. Tous les dossiers, il les révèle et explique chacun d’eux, d’où sortent les types les plus divers de l’hérédité dans l’arbre généalogique :

Tu vois, en bas, voici le tronc, la souche commune, Tante Dide. Puis les trois branches en sortent, la légitime, Pierre Rougon, et les deux bâtardes, Ursule Macquart et Antoine Macquart […]. ‘Et je te répète qui tout y est… Vois donc, dans l’hérédité directe, les élections : celle de la mère, Silvère, Lisa, Désirée, Jacques, Louiset, toi-même ; celle du père, Sidonie, François, Gervaise, Octave, Jacques-Louis. Puis, ce sont les trois cas de mélange ; par soudure, Ursule, Aristide, Anna, Victor ; par dissémination, Maxime, Serge, Étienne ; par fusion, Antoine, Eugène, Claude. J’ai dû même spécifier un quatrième cas très remarquable, le mélange équilibre, Pierre et Pauline. Et les variétés s’établissent, l’élection de la mère par exemple va souvent avec la ressemblance physique du père, ou c’est le contraire qui a lieu ; de même que, dans le mélange, la prédominance physique et morale appartient à un facteur ou À l’autre, selon les circonstances… Ensuite, voici l’hérédité indirecte, celle des collatéraux : je n’en ai qu’un exemple bien établi, la ressemblance physique frappante d’Octave Mouret avec son oncle Eugène Rougon. Je n’ai aussi qu’un exemple de l’hérédité par influence : Anna, la fille de Gervaise et de Coupeau, ressemblait étonnamment, surtout dans son enfance, à Lantier, le premier amant de sa mère, comme s’il avait imprégné celle-ci à jamais… Mais où je suis très riche, c’est pour l’hérédité en retour : les trois cas les plus beaux, Marthe, Jeanne et Charles, ressemblant à Tante Dide, la ressemblance sautant ainsi une, deux et trois générations. L’aventure est sûrement exceptionnelle, car je ne crois guère à l’atavisme ; il me semble que les éléments nouveaux apportés par les conjoints, les accidents et la variété infinie des mélanges doivent très rapidement effacer les caractères particuliers, de façon à ramener l’individu au type général… Et il reste l’innéité, Hélène, Jean, Angélique. C’est la combinaison, le mélange Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 147

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chimique où se confondent les caractères physiques et moraux des parents, sans que rien d’eux semble se retrouver dans le nouvel être. (p. 163-165)

Il soutient ensuite que tout cela est « aussi scientifique que possible ». Pascal n’ignore pas les lois mathématiques qui pèsent sur l’hérédité. Selon lui, seuls les membres de la famille sont considérés dans cet ensemble, mais il aurait dû « donner une part égale aux conjoints, aux pères et aux mères, venus du dehors, dont le sang s’est mêlé au nôtre et l’a dès lors modifié ». Il a même dressé un arbre mathématique, où le père et la mère lèguent par moitié à l’enfant, de génération en génération. Prenant Charles (le neveu de Clotilde) comme exemple, il tient cette constatation pour absurde, puisque la part de Tante Dide (la trisaïeule du garçon) ne serait qu’un douzième, tandis que la ressemblance physique y est absolue (p. 165). Sans réserve, il croit que son analyse de l’arbre généalogique des Rougon-Macquart et de la transmission héréditaire dans cette famille embrasse tout un monde, une civilisation, la vie entière. Selon lui, sa famille « pourrait, aujourd’hui, suffire d’exemple à la science, dont l’espoir est de fixer un jour, mathématiquement, les lois des accidents nerveux et sanguins qui se déclarent dans une race, à la suite d’une première lésion organique, et qui déterminent, selon les milieux, chez chacun des individus de cette race, les sentiments, les désirs, les passions, toutes les manifestations humaines, naturelles et instinctives, dont les produits prennent les noms de vertus et des vices » (p. 174). De même, il répète à Clotilde « que tous les cas héréditaires s’y rencontrent ». Il n’a eu « pour fixer [s]a théorie, qu’à la baser sur l’ensemble de ces faits… » (p. 179).

4 Le credo scientifique de Pascal La science est la muse du docteur Pascal, elle doit permettre à tous de mieux comprendre la nature et l’être humain. D’après lui, seule la science sera capable de conduire à l’élucidation des mystères de la vie et de la mort, d’où résulteront la prévention et la guérison des maladies. Il croit que « l’avenir de l’humanité est dans le progrès de la raison par la science » (p. 97-98). La pensée de Pascal sur la primauté de la science est à l’unisson de l’enthousiasme général de l’époque pour le progrès. Zola fait de lui son porte-parole, inscrivant sa propre pensée dans le discours de Pascal. Son adhésion à une science capable de saisir les mystères de la nature et de l'être humain, il en fait preuve dans le discours prononcé aux étudiants parisiens, dont certains extraits nous reproduisons ici:

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Messieurs, j’entends dire couramment que le positivisme agonise, que le naturalisme est mort, que la science est en train de faire faillite, au point de vue de la paix morale et du bonheur humain qu’elle aurait promis. Vous pensez bien que je n’entends pas résoudre ici les graves problèmes que ces questions soulèvent. Je ne suis qu’un ignorant, je n’ai aucune autorité pour parler au nom de la science et de la philosophie. Je suis, si vous le voulez bien, un simple romancier, un écrivain qui a deviné un peu parfois, et dont la compétence n’est faite que d’avoir beaucoup regardé et beaucoup travaillé […]. Ma génération, en effet, après d’illustres aînés dont nous n’avons été que les continuateurs, s’est efforcée d’ouvrir largement les fenêtres sur la nature, de tout voir, de tout dire. En elle, même chez les plus inconscients, aboutissait le long effort de la philosophie positive et des sciences d’analyse et d’expérience. Nous n’avons juré que par la science, qui nous enveloppait de toutes parts, nous avons vécu d’elle, en respirant l’air de l’époque. À cette heure, je puis même confesser que, personnellement, j’ai été un sectaire, en essayant de transporter dans le domaine des lettres la rigide méthode du savant. […] quel enthousiasme et quel espoir étaient les nôtres ! Tout savoir, tout pouvoir, tout conquérir ! Refaire par la vérité une humanité plus haute et plus heureuse ! […] Donc, messieurs, on nous affirme que votre génération rompt avec la nôtre. Vous ne mettriez plus dans la science tout votre espoir, vous auriez reconnu, à tout bâtir sur elle, un tel danger social et moral que vous seriez résolus à vous rejeter dans le passé, pour vous refaire, avec les débris des croyances mortes, une croyance vivante. Certes, il n’est pas question d’un divorce complet avec la science, il est entendu que vous acceptez les conquêtes nouvelles et que vous êtes décidés à les élargir. On veut bien que vous teniez compte des vérités prouvées, on tâche même de les accommoder aux anciens dogmes. Mais, au fond, la science est mise à l’écart de la foi, on la repousse à son ancien rang, un simple exercice de l’intelligence, une enquête permise, tant qu’elle ne touche pas au surnaturel de l’au-delà. L’expérience, dit-on est faite, et la science est incapable de repeupler le ciel qu’elle a vidé, de rendre le bonheur aux âmes dont elle a ravagé la paix naïve. Son temps de triomphe menteur est fini, il faut qu’elle soit modeste, puisqu’elle ne peut pas tout savoir en un coup, tout enrichir et tout guérir […]. À quoi bon savoir, si l’on ne doit pas savoir tout ? Autant garder la simplicité pure, la félicité ignorante de l’enfant. Et c’est ainsi que la science, qui aurait promis le bonheur, aboutirait, sous nos yeux, à la faillite. La science a-t-elle promis le bonheur ? Je ne le crois pas. Elle a promis la vérité. […]. La nature est injuste et cruelle, la science paraît aboutir à la loi monstrueuse du plus fort : dès lors, toute morale croule, toute société va au despotisme. Et, dans la réaction qui se produit, dans cette lassitude de trop de science que je signalais, il y a aussi ce recul devant la vérité, incapables de pénétrer et de saisir toutes les lois. Entre les vérités acquises par la science, qui dès lors sont inébranlables, et les vérités qu’elle arrachera demain à l’inconnu, pour les fixer à leur tour, il y a justement une marge indécise, le terrain du doute et de l’enquête, qui me paraît appartenir autant à la littérature qu’à la science […]. À mesure que la science avance, il est certain que l’idéal recule, et il me semble que l’unique sens de la vie, l’unique joie qu’on doit mettre à la vivre, est dans cette

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conquête lente, même si l’on a la mélancolique certitude qu’on ne saura jamais tout. […] 39.

Mais, contrairement à l’écrivain qui demeure fidèle à la science, le credo du personnage de Pascal oscille au long du récit. D’abord adhésion inconditionnelle à la capacité résolutive de la science (bien que celle-ci marche à pas ralentis), la foi du médecin perd sa force à cause de l’empirisme et des échecs de la médecine devant le cycle inexorable de la vie et de la mort. De ce fait, il s’interroge sur la validité de ses interventions:

Corriger la nature, intervenir, la modifier et la contrarier dans son but, est-ce une besogne louable? Guérir, retarder la mort de l’être pour son agrément personnel, le prolonger pour le dommage de l’espèce sans doute, n’est-ce pas défaire ce que veut faire la nature ? Et rêver une humanité plus saine, plus forte, modelée sur notre idée de la santé et de la force, en avons-nous le droit ? […] le doute m’a pris, je tremble à la pensée de mon alchimie du vingtième siècle, je finis par croire qu’il est plus grand et plus sain de laisser l’évolution s’accomplir. (p. 260)

Physiquement débile, psychologiquement affaibli, Pascal veut reprendre ses forces dans le travail ardu. Il y redécouvre sa conviction dans la science, et même sa foi dans le soulagement de la souffrance qu’offre l’art médical. Ainsi il se remet fébrilement à ses théories, essayant de les compiler dans un legs scientifique: « Il semblait ressaisi par cet amour de la science, qui, jusqu’à son coup de passion pour elle [Clotilde], avait seul dévoré sa vie » (p. 331). Au seuil de la mort, il expose à Ramond son testament scientifique:

Il avait la nette conscience de n’avoir été, lui, qu’un pionnier solitaire, un précurseur, ébauchant des théories, tâtonnant dans la pratique, échouant à cause de sa méthode encore barbare. Il rappela son enthousiasme, lorsqu’il avait cru découvrir la panacée universelle, avec ses injections de substance nerveuse, puis ses déconvenues, ses désespoirs […]. Aussi s’en allait-il plein de doute, n’ayant plus la foi nécessaire au médecin guérisseur, si amoureux de la vie, qu’il avait fini par mettre en elle son unique croyance, certain qu’elle devait tirer d’elle seule sa santé et sa force. Mais il ne voulait pas fermer l’avenir, il était heureux au contraire de léguer son hypothèse à la jeunesse. Tous les vingt ans, les théories changeaient, il ne restait d’inébranlables que les vérités acquises, sur lesquelles la science continuait à bâtir. Si même il n’avait eu le mérite que d’apporter l’hypothèse d’un moment, son travail ne serait pas perdu, car le progrès était sûrement dans l’effort, dans l’intelligence toujours en marche. (p. 375) 39

ZOLA cité par MITTERAND, Henri. « Étude du Docteur Pascal ». In : ZOLA, Émile. Le Docteur Pascal. In : Idem. Les Rougon-Macquart : Histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Second Empire. Tome V. Op. cit. p. 1610-1616 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 150

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Ouvrier du savoir et libre penseur, Pascal sait que son mal, la sclérose cardiaque, aboutira à la mort. Il a beau être impuissant devant la nature de cette maladie, son legs atteste son espoir dans la science. Celle-ci, quoiqu’imparfaite, traduit la quête incessante menée par l’homme pour la compréhension intégrale de son être et pour la résolution des mystères qui demeurent fréquemment insondables pendant maintes générations.

REFERÊNCIAS BECKER, Colette ; GOURDIN-SERVENIÈRE, Gina ; LAVIELLE, Véronique. Progrès. In : Idem. Dictionnaire d’Émile Zola : sa vie, son œuvre, son époque, suivi du Dictionnaire des Rougon-Macquart. Paris : Robert Laffont, 1993. p. 334-335 BURY, J. B. The Idea of progress: an inquiry into its origin and growth. New York: Dover, 1960. CNOCKAERT, Véronique (dir.). Émile Zola : mémoire et sensations. Montréal : XYZ, 2008. LAVIELLE, Véronique. Le cycle des Rougons-Macquart, la science et l’imaginaire. Les Cahiers naturalistes, 1994. MALINAS, Yves. Zola et les hérédités imaginaires. Paris : Expansion scientifique française, 1985. ______. Zola, précurseur de la pensée scientifique du XXe siècle. Les Cahiers naturalistes, n. 40, v. 16, 1970. MITTERAND, Henri. Étude du Docteur Pascal. In : ZOLA, Émile. Le Docteur Pascal. In : Idem. Les Rougon-Macquart : Histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Second Empire. Tome V. Études, notes et variantes par Henri Mitterand. Paris : Fasquelle, Gallimard, coll. Pléiade, 1967. SCHMITT, Vanessa C. S. Littérature et histoire des sciences: la médecine dans trois romans français du XIXe siècle. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto alegre, 2012. SCHNERB, Robert. Le XIXe siècle, l’apogée de l’expansion européenne (1815-1914) Paris: PUF, 1955. p. 104. Il s’agit du vol. 6 de : CROUZET, Maurice. Histoire générale des civilisations. Paris: PUF. VALADE, Bernard. Progrès (idée de). In : Encyclopædia Universalis. Corpus X. Paris : Encyclopædia Universalis, 1986. ZOLA, Émile. Le Docteur Pascal. (1893). Édition présentée et annotée par Henri Mitterand. Paris: Gallimard, coll. Folio, 1993.

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______. Le Docteur Pascal. (1893). In : Idem. Les Rougon-Macquart : histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Second Empire. Tome V. Édition établie par Colette Becker avec la collaboration de Gina Gourdin-Servenière et Véronique Lavielle. Paris : Robert Laffont, coll. Bouquins, 2002. ______. Le Docteur Pascal. (1893). In : Idem. Les Rougon-Macquart : histoire naturelle et sociale d’une famille sous le Second Empire. Tome V. Édition intégrale publiée sous la direction d’Armand Lanoux. Études, notes et variantes et index établis par Henri Mitterand. Paris : Gallimard, coll. Bibliothèque de la Pléiade, 1967. ______. Le Roman expérimental. Édition établie et présentée par François-Marie Mourad. Paris: Flammarion, coll. GF, 2006.

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Mesa-redonda 2: Imaginação simbólica: mídia, culto e religiosidade Table-ronde 2 : imagination symbolique : medias, culte et religiosité

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Mitodologia durandiana - A mitocrítica Mythodology by Gilbert Durand - The mythcriticism Mythodologie de Gilbert Durand - La mythocritique

Marco Antônio DIB 1 CICE-FEUSP 2, São Paulo, Brasil

Resumo: Apresentamos três exercícios de mitocrítica que realizamos em versões canônicas de mitos clássicos, tendo como referencial teórico a Mitodologia de Durand e contribuições de outros autores, particularmente as concepções de etapas e passos de um mito, de Joseph Campbell. O objetivo é contribuir para uma melhor apreensão e compreensão, interpretação e operacionalização do referencial teórico, conceitual e metodológico, durandiano. Prezando pela pluralidade, a diversidade metodológica, sabemos claramente que não existe receita, mas, por outro lado, há sim propositura(s) de método(s). Pois não se trata apenas de uma questão relativa ao “rigor científico tradicional, em busca da verdade absoluta”, mas principalmente ética e estética, em consonância com o novo espírito antropológico e científico: “a bela e boa forma”, de composições, em precisão de sintonia fina, como na música e na poesia. Palavras-chave: Mitos Canônicos; Mitodologia; Mitocrítica; Mitemas; Mitologemas Abstract: We present three mythcriticism exercises that we conducted in canonical versions of classic myths, with the theoretical Mythodology by Durand and contributions from other authors, particularly the conceptions of stages and steps of a myth, of Joseph Campbell. The objective is to contribute to a better apprehension and understanding, interpretation and implementation of the theoretical, conceptual and methodological, by Durand. By valuing plurality, methodological diversity, we know clearly that there is no recipe, but, on the other hand, there is proposition (s) of method (s). Because it is not just a matter concerning "scientific rigour in pursuit of absolute truth", but especially ethics and aesthetics, in line with the new anthropological and scientific spirit mean: "the beautiful and good shape", essay on accuracy of fine tuning, as music and poetry. Keywords: Canonical Myths; Mythodology; Mythcriticism; Mythems; Mythologems

Apresentamos neste estudo três exercícios de leitura mitocrítica, que realizamos em versões canônicas de mitos clássicos, e alguns quadros-sínteses elaborados para apontarmos

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[email protected] -Centro de Estudos do Imaginário, Cultura e Educação - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

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inicialmente possíveis aproximações e comparações, com trabalhos de Campbell (2002) sobre as concepções de etapas e passos dos mitos de heróis. Leituras mitocríticas e estudos que estamos desenvolvendo e utilizamos em pesquisas sobre as sagas 3 de Lyra Belacqua 4 (Picchia, Dib, Farah, 2013) e de Harry Potter (Porto e Dib, 2014). Para a leitura em profundidade dos mitos em análise adotamos o referencial teórico e metodológico da Mitodologia de Gilbert Durand (1982, p. 64-5, 73-4, 87-9; 1983; 1988, p. 38, 60-3, 110-1; s/d), “Ciência do Mito” e ou “Ciência do Homem”, composta pela Mitanálise e a Mitocrítica, como métodos de leituras críticas profundas, pois simbólicas, míticas e arquetipais, de contextos e textos, respectivamente. Consideramos ainda contribuições de outros autores como Araújo (1996), Araújo e Silva (1997, 1999, 2000), Dib (2002) e Teixeira (1998, 1999, 2000). O propósito geral é desvelar o valor simbólico-cultural da mitologia clássica ocidental assim como ressaltar as questões existenciais e antropolíticas (Morin, 1969, 1970, 2007a, 2007b) que abarcam. Mais especificamente, temos por objetivo contribuir para uma melhor apreensão e compreensão, interpretação e operacionalização do referencial teórico, conceitual e metodológico durandiano, em especial, a mitocrítica. Prezando pela pluralidade, a diversidade metodológica, sabemos claramente que não existe receita, mas, por outro lado, há sim propositura(s) de método(s) a serem considerados e utilizados, pois já firmemente validados e consolidados, sendo adequados, valiosos e profícuos instrumentos de pesquisa. Ressaltamos que a aplicação da mitocrítica não é fácil, dá muito trabalho fazê-la, seja diretamente nos mitos (ainda que neles pareça mais fácil, pois aí as imagens vigoram, abundam e saltam aos olhos) ou mesmo em textos com alto grau de racionalização, denominados textos duros - textos legais, político-ideológicos, pedagógicos, científicos, etc. (Araújo e Silva, 1997, 1999, 2000; Teixeira, 1999, 2000; Dib, 2002). Em ambos os casos, ao realizá-la é fundamental considerar que a mitocrítica não é um procedimento metodológico mera e puramente intuitivo, que se manifesta no “eu sinto-creio-intuo que” os mitemas (e, 3

-Compreendendo saga como “narrativa heroica de percursos de vida, jornada que se desenrola em aventuras e desafios face à necessidade de transposição-superação de situações-limites da condição humana. ” (Picchia, Dib, Farah, 2013, p. 5-6) 4 -Protagonista, heroína principal da trilogia de literatura fantástica “Fronteiras do Universo”, do escritor inglês Philip Pullman. 155

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correlativamente, redundâncias míticas e mitologemas) do mito "são...”. Também é importante destacar que não é qualquer redundância e mesmo redundância significativa que será imediata e diretamente identificada como um mitema, a unidade mínima que compõe um mito, ou como um mitologema, o esquema-resumo mais abstrato do mito (Durand, 1983, p. 29-32; Araújo,1996, p. 466), pois é necessário normalizá-los (formular e denominá-los), o universo das tradições míticas estudado, como veremos. E os mitemas e mitologemas não são derivados direta e imediatamente dos atributos dos personagens míticos (aliás, ao contrário), ainda que vinculados a eles e mesmo a outros elementos indicativos de suas presenças, como os emblemas, os epítetos etc. Sobre a normalização necessária na formulação e denominação dos mitemas e mitologemas esclarecemos que as prováveis variações dependem do esquema de ação e, portanto, do regime e estruturas de imagens, de quem as faz (Dib, 2002, p. 150). Ao lidar com a escolha de vocabulário, palavras e expressões que melhor os descrevam e os sintetizem, envolvem assim a visão de mundo do pesquisador, seus conhecimentos - repertório - de tradições e universos míticos, dos próprios mitos etc. No cerne das problemáticas levantadas, não se encontra apenas questões relativas ao “rigor científico tradicional, em busca da verdade absoluta”, mas principalmente ética e estética, em consonância com o novo espírito antropológico e científico: “a bela e boa forma”, de composições, em precisão 5 de sintonia fina, refinada, como na música e na poesia. Deste modo, alicerçados nas orientações de Durand (1982) de que a determinação de mitemas se dá através do que é “aberta e obsessivamente repetido”, num primeiro momento, buscamos nos textos míticos em estudo, lidos linear e diacronicamente, os núcleos de redundâncias, reiterados em diversos pontos do texto, o que resultou em um inventário extensivo e exaustivo, como veremos adiante. Conseguimos assim, compor, selecionar e identificar nos referidos textos, determinados conjuntos, séries, famílias ou, como denominados por Durand (op. cit., p. 75), pacotes ou constelações de imagens. Agrupamentos diversos, mas que nos remetem a um mesmo significado. Em seguida, fizemos uma leitura sincrônica do texto, criteriosamente observando as várias redundâncias localizadas, e selecionamos aquelas mais significativas e míticas. Assim, percorremos passo-a-passo as duas primeiras etapas da leitura mitocrítica, a leitura diacrônica e a sincrônica. E posteriormente, 5

-Precisão: “pré-cisão”, como estado de apreensão e compreensão da totalidade, de captação das conexões entre o todo e as partes, entre as partes e o todo. 156

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pretendemos realizar o terceiro passo, a leitura isotópica, a identificação da orientação dos mitos estudados em regimes e estruturas de imagens (DURAND, 1997), mais aprofundada - a qual, nesse momento do trabalho, só a indicaremos. Visando uma melhor compreensão do procedimento metodológico, assinalamos que, conforme características imanentes ao símbolo, “para um significado temos uma infinidade possível de significantes” (THOM apud DURAND, 1982, p. 75). Os quais, por sua vez, possuem homologia e coerência internas de sentido, o que nos permite agrupá-los e classificálos por seus traços comuns. Cabe ainda destacar que tais pacotes significativos são constituídos, de acordo com Durand, “de imagens, de símbolos, de situações, de lugares, de emblemas, tudo o que quisermos, e que seja de algum modo coalescente ou homólogo, onde haja um traço de homologia. ” (op. cit., p. 76). A determinação de mitologemas ocorre também por meio da leitura profunda, simbólica e arquetipal, dos mitemas identificados, agrupando-os novamente em conjuntos ou constelações de imagem, observando a dinâmica a que remetem. Enfim, basicamente o percurso dos procedimentos metodológicos executados, seguiu o seguinte roteiro de trabalho: I-Leitura diacrônica: a) primeiro localizar, identificar e apontar as redundâncias significativas, de acordo com a sequência linear na qual aparecem no texto; b) realizar a leitura diacrônica, propriamente dita, percebendo as rupturas, saltos, as descontinuidades na narrativa, causadas pelas redundâncias, enfim as diacronicidades que representam as redundâncias, e que já nos permitem aproximá-las, agrupar e formar pacotesenxames-constelações de redundâncias (e, também, nesta 2º leitura, já aproveitamos para fazer uma sintetização, sistematização e normalização, no sentido de “reduzir vocábulos, mas concentrando o sentido-significados” e de nomear o mais precisamente possível os mitemas). II-Leitura sincrônica: a) organização e sistematização das redundâncias significativas agrupadas em “constelações” (pacotes, enxames etc.), de acordo com a homologia de sentido já constelando e identificando, formulando e nomeando definitivamente os mitemas; b) analisar, identificar, formular e nomear também os mitologemas. Conforme acima exposto, assim temos:

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I- O Mito do Andrógino, narrado n’ O Banquete, de Platão [189d-191a] (1989) .Redundâncias significativas míticas e mitemas 6: 1-“três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa” 2-“andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino” 3-“inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo” 4-“como os que cambalhotando e virando as pernas para cima fazem uma roda, (...), rapidamente eles se locomoviam em círculo. ” 5-“eram três os gêneros, e tal a sua constituição, (...) eram assim circulares” [mitema da totalidade primordial]

6-“Eram, por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; (...) mas voltaram-se contra os deuses, (...) [n]a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os deuses. ” [mitema da transgressão da ordem divina]

7-“Zeus então e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles,... [para não] (...) permitir-lhes que continuassem na impiedade. ” [mitema da punição divina]

8-“diz Zeus: (...) tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. ” 9-“[diz Zeus] (...) os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, (...). Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-

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-Se cotejarmos a integra das versões deste e dos outros dois mitos canônicos estudados e aqui apresentamos, será possível observar que, quando possível, eliminamos as redundâncias menos significativas. A ordenação numérica corresponde a leitura na sequência linear do mito. Os respectivos mitemas e mitologemas que os configuram serão apresentados em quadros-sínteses (I, II e III, adiante). 158

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se, de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando. ” [mitema da fragilidade da condição humana]

10-“ [Zeus] (...) pôs-se a cortar os homens em dois” [mitema da punição divina]

11-“a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava curar. ” [mitema da fragilidade da condição humana]

12-“Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo.”

13-“As outras pregas, numerosas, ele [Apolo] se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos” [mitema da previdência / providência divina - a prudência divina]

14- “umas poucas [pregas] ele [Apolo] deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição. ” [mitema da nostalgia da condição primordial perdida]

15-“desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. (...); e assim iam-se destruindo. ”

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16-“E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que era mulher - o que agora chamamos mulher — quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo. ” [mitema da fragilidade da condição humana]

17-“Tomado de compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para a frente” [mitema da previdência / providência divina - a prudência divina -]

18- “E então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana. ” [mitema do resgate da condição primordial perdida]

19-“Cada um de nós portanto é uma téssera complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de um só em dois” [mitema da totalidade primordial perdida]

20- “e procura então cada um o seu próprio complemento. ” [mitema da nostalgia da condição primordial perdida]

II- O Mito de Prometeu e Epimeteu, narrado no Protágoras, de Platão [320c6 a 322d4] (1972)

.Redundâncias significativas míticas e mitemas: 1-“ [os deuses] determinaram [a] Prometeu e Epimeteu enfeitá-los e distribuir a cada um deles [dos gêneros mortais] as qualidades convenientes. ” 2-“Epimeteu pede a Prometeu que o deixe fazer a distribuição. (...) [e que depois venha] examinar. ” 3- “ [Epimeteu] convenceu [Prometeu] e fez a distribuição. ”

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4- “ [Epimeteu] fez a distribuição com o mesmo equilíbrio. (...) providenciava (...) tendo o cuidado de que nenhuma espécie desaparecesse. (...) ele providenciou defesa diante das estações de Zeus (...). (..) providenciou alimentos diferentes a cada um (...). / (...) ele concedeu (...) descendência (...) [para a] salvação da espécie. ” 5- “e, roubando a arte do fogo de Hefesto e a outra de Atena, ele dá ao homem” 6- “[Prometeu] presenteia o homem [com a arte do fogo e a sabedoria artesanal]. / (...) [Prometeu] dá ao homem [a arte do fogo e a sabedoria artesanal]. ” 7- “Zeus (...) envia Hermes trazendo aos homens pudor e justiça” 8- “Hermes pergunta a Zeus de que maneira ele daria aos homens justiça e pudor” 9-“[Zeus disse que Hermes repartisse pudor e justiça] sobre todos (...) e que todos tenham parte delas, pois não poderia haver cidade se poucos delas participassem como de outras artes” [mitema da previdência / providência divina - a prudência divina]

10- “Epimeteu não sendo lá muito sábio, sem perceber, gastou as qualidades com os irracionais; fica-lhe ainda abandonado e desnudado o gênero humano e ele não sabia que iniciativa tomar. ” 11-“chega Prometeu para fiscalizar a distribuição e vê que os outros seres têm cuidadosamente de tudo e que o homem está nu, descalço, desprotegido e desarmado. ” [mitema da fragilidade da condição humana]

12- “. Prometeu rouba de Hefesto e Atena a sabedoria artesanal com o fogo”. 13-“[Prometeu] entra sem ser percebido [na habitação de Atena e Hefesto] e, roubando a arte do fogo de Hefesto e a outra de Atena, ele dá ao homem” [mitema da transgressão da ordem divina]

14-“o homem passou a possuir a sabedoria a respeito da vida, mas a política ele não possuía pois que estava junto a Zeus. ” 15- “e a partir daí vem ao homem a facilidade da vida. ” 16- “E porque o homem passou a participar da divindade (...) [e] a reconhecer os deuses e se pôs a erigir altares e imagens dos deuses. ” 161

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17- “[o homem] se pôs a articular a arte dos sons e nomes e inventou as casas, as roupas, os calçados, os cobertores e da terra os alimentos. ” [mitema da elevação contínua da condição humana]

18-“Um processo por roubo atingiu Prometeu. ” 19-[Zeus disse ainda a Hermes que fixe] uma lei em seu nome, de matar, como uma doença da cidade, o que é incapaz de participar de pudor e justiça. ” [mitema da punição divina]

III- O Mito de Adão e Eva, narrado na Bíblia, em Gênesis [3, 1-24] (CNBB, 2015)

.Redundâncias significativas míticas e mitemas: “1. A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus vos disse: ‘Não comais de nenhuma das árvores do jardim? ’” [mitema da tentação demoníaca na ordem paradisíaca original] 2. A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. 3. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus nos disse: ‘Não comais dele nem sequer o toqueis, do contrário morrereis. [mitema da ordem paradisíaca original]

4. Mas a serpente respondeu à mulher: “De modo algum morrereis. ’” 5. Pelo contrário, [mitema da tentação demoníaca na ordem paradisíaca original]

[5.] Deus sabe que, no dia em que comerdes da árvore, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal”. “6. A mulher viu que seria bom comer da árvore, pois era atraente para os olhos e desejável para obter conhecimento. [mitema da culpa original]

[6.] [A mulher] Colheu o fruto, comeu dele e o deu ao marido a seu lado, que também comeu. ” 162

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[mitema do pecado original]

7. Então os olhos de ambos se abriram, e, como reparassem que estavam nus, teceram para si tangas com folhas de figueira. 8. Quando ouviram o ruído do Senhor Deus, que passeava pelo jardim à brisa da tarde, o homem e a mulher esconderam-se do Senhor Deus no meio das árvores do jardim. 9. Mas o Senhor Deus chamou o homem e perguntou: “Onde estás? ” 10. Ele respondeu: “Ouvi teu ruído no jardim. Fiquei com medo, porque estava nu, e escondime”. 11. Deus perguntou: “E quem te disse que estavas nu? Então comeste da árvore, de cujo fruto te proibi comer? ” [mitema da culpa original]

12. O homem respondeu: “A mulher que me deste por companheira, foi ela que me fez provar do fruto da árvore, e eu comi”. 13. Então o Senhor Deus perguntou à mulher: “Por que fizeste isso? ” E a mulher respondeu: “A serpente enganou-me, e eu comi”. [mitema da tentação demoníaca na ordem paradisíaca original]

14. E o Senhor Deus disse à serpente: “Porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais domésticos e entre todos os animais selvagens. Rastejarás sobre teu ventre e comerás pó todos os dias de tua vida. 15. Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”. 16. À mulher ele disse: “Multiplicarei os sofrimentos de tua gravidez. Entre dores darás à luz os filhos. Teus desejos te arrastarão para teu marido, e ele te dominará”. 17. Ao homem ele disse: “Porque ouviste a voz da tua mulher e comeste da árvore, de cujo fruto te proibi comer, amaldiçoado será o solo por tua causa. Com sofrimento tirarás dele o alimento todos os dias de tua vida. 18. Ele produzirá para ti espinhos e ervas daninhas, e tu comerás das ervas do campo. 19. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até voltares ao solo, do qual foste tirado. Porque tu és pó e ao pó hás de voltar”. 20. O homem chamou à sua mulher “Eva”, porque ela se tornou a mãe de todos os viventes. [mitema do castigo divino]

21. E o Senhor Deus fez para o homem e sua mulher roupas de pele com as quais os vestiu. 163

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[mitema da previdência / providência - a prudência - divina]

22. Então o Senhor Deus disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós, capaz de conhecer o bem e o mal. Não ponha ele agora a mão na árvore da vida, para dela comer e viver para sempre”. [mitema da culpa original]

23. E o Senhor Deus o expulsou do jardim de Éden, para que cultivasse o solo do qual fora tirado. 24. Tendo expulso o ser humano, postou a oriente do jardim de Éden os querubins, com a espada fulgurante a cintilar, para guardarem o caminho da árvore da vida. ” [mitema da expulsão do paraíso original ou mitema do castigo divino]

Na impossibilidade de aqui retomar as principais tradições dos mitos canônicos em estudo e os respectivos universos mítico-simbólicos que os envolvem, já expostos detalhadamente em estudo anterior, a ele remetemos (Dib: 2002, p. 141-174) 7. Por ora, apenas sinalizamos os regimes de imagem e estruturas a que estão subsumidos e explicitamos a família mítica a que são filiados bem como seus atributos, e identificamos os mitemas e mitologemas que os configuram, conforme a mitocrítica que realizamos (quadros I, II e III):

7

-Ver também Araújo, 2000, p. 5-9. 164

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I - Mito canônico: o Mito do Andrógino, narrado n’O Banquete, de Platão M I mitema mitema mite- mitema T da da ma da da E totalitrans- puni- fragilida M dade gressão ção -de da A primor da divi- condição S -dial ordem na humana divina

M I T O L O G E M A S

mitema da totalidade primordial perdida

MITOLOGEMA DA DEGENERAÇÃO

165

mitema da previdência / providência - a prudência divina

mitema da nostalgia da condição primordial perdida

mitema do resgate da condi-ção primor-dial perdida

MITOLOGEMA DA REGENERAÇÃO

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QUADRO II – Mito canônico: o Mito do Prometeu e de Epimeteu, narrado no Protágoras, de Platão MITEMAS

mitema da fragilidade da condição humana

mitema da transgressão da ordem divina

mitema da punição divina

MITOLOGEMAS MITOLOGEMA DA DEGENERAÇÃO

mitema da previdência / mitema da providência – a prudência elevação contínua divina da condição humana MITOLOGEMA DA REGENERAÇÃO

QUADRO III – Mito canônico: Mito de Adão e Eva, narrado na Bíblia, “Gênesis 3, 1-24”

M I T E M A S MITOLOGEMAS

mitema da ordem paradisíaca original

mitema da tentação demoníaca na ordem paradisíaca original

mitema do pecado original

mitema da culpa original

MITOLOGEMA DA QUEDA

166

mitema do castigo divino e ou mitema da expulsão do paraíso original

mitema da previdência / providência – a prudência divina

MITOLOGEMA DA ASCENSÃO

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O Mito do Andrógino, na tradição de Platão 8, através de Aristófanes, é um mito do regime noturno, estrutura sintética e está filiado, em suas origens, à família mítica titanesca. O Andrógino tem por principais atributos aqueles que gravitam em torno da ideia de perfeição: total, pleno, completo, integral, enfim, perfeito. Como podemos observar (quadro-síntese I) tais atributos não são imediata e diretamente os mitemas (com exceção do primeiro) e mitologemas deste mito; ao contrário, é de seu primeiro mitema que derivam os atributos. Lembramos que o universo das tradições míticas que abarcam o Mito do Andrógino remete-nos também aos Mitos da Idade de Ouro, da Ilha da Bem-Aventurança, do Paraíso 9 etc.; mitos do regime noturno, estrutura mítica. E que, por isso, acabam por ter como atributos os mesmos que são recorrentemente atribuídos ao Andrógino, derivando-os (acentuado pela visão mística) em outros, tais como: felicidade, satisfação, bem-estar, abundância, tranquilidade, paz, justiça, harmonia, equilíbrio, conciliação etc. Todos, de algum modo, expressões do mitema da totalidade primordial. Segundo Araújo e Silva (2000, p. 190) os mitemas do Mito da Idade do Ouro (e, pressupomos, de seus correlatos) são: os mitemas da paz, da abundância, da justiça, também expressões do mitema da totalidade primordial. Considerando que neste universo de tradições míticas há muitas versões de mitos que apresentam processos de corrupções e decadências, por exemplo, o Mito das Raças Humanas, também pressupomos, assim, que provavelmente seus mitologemas sejam a degeneração e regeneração. Os quais poderiam ser expressos (formulados e denominados) como mitologema do mundo outro e ou mundo novo – seja “o mundo” todo ou o que há nele: a sociedade, a humanidade, o próprio ser humano e todas as suas instituições etc. Portanto, o denominamos de modo mais amplo que apenas tema ou mitologema do “homem novo” (Araújo, 1996, p. 465-7 e Araújo e Silva, 1999, p. 93). Pois, considerando seu contrário, exprime claramente a eterna dinâmica entre “o velho” x “o novo” e ou entre “o mesmo” (identidade, “eu constante”, ser o mesmo) x “o outro” (alteridade, ser outro); trata-se da dinâmica da constituiçãoinstituição do ser de todas as coisas, das próprias “coisas” em seres, assim remetendo-nos também aos Mitos de Origem. Enfim, é o movimento do Tempo (Cronos, que a tudo devora, mas também dá origem), que expressa a dinâmica de tudo que é ciclicamente aniquilado e 8

-Sobre a mitologia de Platão e a condição humana ver Droz (1997). -E, interessantemente, sob diversos aspectos, incluído a Literatura, ao Mito do Duplo, conforme Bravo (1998, p. 261-87). Mitos os quais ainda não realizamos uma leitura mitocrítica, mas que pretendemos realizá-las futuramente. 9

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reconstruído, terminado e reiniciado – recomeçado, reconstituído, recuperado, resgatado, ressurgido, renascido -, em uma temporalidade cíclica. O que, por sua vez, nos remete ao universo e tradições míticos do Mitos do Dilúvio, do Mito de Pigmalião e Pirra, e outros correlatos. Também o Mito de Epimeteu Prometeu, mito do regime diurno, estrutura heroica, é filiado à família mítica titanesca. Prometeu 10 tem por principais atributos, o ser: revoltado, desobediente, revolucionário - e, em decorrência destes - corajoso, destemido e altivo - todos estes atributos, como podemos observar, fundam-se na sua origem, em seu parentesco com os Titãs (Dib, 2002, p. 150-1). Ainda, ele é filantropo, amigo, altruísta, solidário, pai generoso, previdente e providente, prudente, reflexivo, consciente, e também herói, triunfante, benfeitor/civilizador da humanidade, crente nas potencialidades e capacidades humanas. Como vimos (quadro-síntese II), novamente, os atributos não são imediata e diretamente os mitemas e mitologemas do mito em questão, mas a eles estão intrinsicamente vinculados, e deles são derivados. Já o Mito de Adão e Eva é um mito do regime diurno, estrutura heroica, e também, por mitos correlatos antecedentes, filiado à família mítica titanesca. Os principais atributos de Adão e Eva são: transgressores, erráticos, decaídos, pecadores, enfim ordinários 11, pois expulsos do paraíso, para a mundo da temporalidade corruptível, perdendo sua condição primordial extraordinária – atributos que também não definem direta e imediatamente, os mitemas e os mitologemas que o configuram, conforme a leitura mitocrítica (quadro-síntese III), mas deles também são derivados. A análise minuciosa do que subjaz aos três grandes mitos canônicos estudados (e demais mitos a eles vinculados) mostra que são as grandes questões básicas da existência humana, a condição existencial humana, com a “entrada” ou “queda” do homem na temporalidade corruptível: a existência, a Vida e a Morte, a luta pela sobrevivência 12 em sociedade, em todos seus desdobramentos, e a fragilidade humana - a mortalidade, o desejo vital e a aspiração de alcançar a imortalidade, de superar e ou transcendê-las. Assim como

10

-E, talvez, só Prometeu, lembrando aqui o ocultamento e ou negativação da figura de Epimeteu na modernidade e na contemporaneidade. 11 -Em contraponto ao extraordinário, mas também com todos seus sentidos negativos. 12 -Cujo próprio fundamento mítico seria a arte política (Barros, 1996, p. 101-2). 168

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questões pertinente à politização e eticização da condição humana 13, tão bem (re)postas contemporaneamente por Edgar Morin em sua vasta e profundas reflexões. Lembramos como toda narrativa e ou discursividade têm suas raízes profundas nos mitos, o mesmo ocorre com os mitos políticos (Rezler, 1984; Durand, 2004; Sironneau,1985 e 2000, entre outros).

Temos, assim, as convergências e confluências dos universos e tradições míticos a que nos referimos, na constituição de uma mitologia do herói (Campbell: 2002), do Mito do Herói, mitos do regime diurno, estrutura heroica, também filiados à família mítica titanesca. Seus atributos são aqueles derivados dos atributos como do Andrógino, de Prometeu e de Adão e Eva (antes da queda, ou por inversão, após a queda), conforme apontados anteriormente. Como podemos observar, tais convergências configuram o protótipo, ou melhor, o arquétipo do herói, seja o herói sagrado-religioso do mundo extraordinário ou o profanosecularizado do mundo cotidiano temporalizado, vivenciando suas aventuras arquetípicas, sagas, buscas, enfim, jornadas heroicas, tal como em um mito. Para Campbell, baseando-se em estudos comparativos das mitologias de toda a humanidade, principalmente os temas e motivos comuns a todas elas (Campbell, 2006, p. 163), a jornada do herói, é compreendida como uma narrativa simbólica, mítica e arquetipal e, deste modo, se estrutura em um monomito (Campbell, 2002: 36) - a estrutura básica de um mito, definida em estágios e ou fases, considerando suas diferentes versões. O que, segundo Porto e Dib (2014, p. 2) “nos conduz inevitavelmente a uma fenomenologia do sagrado, à busca de uma experiência numinosa, que nos introduz em outro tempo e espaço” (tempo mítico, tempo cíclico, do eterno recomeço, onde tudo é possível, e numa terra ao mesmo tempo distante e íntima). Pois, “decorre no illo tempore, e ruma para a completude do existir”. Assim, ela “é sempre uma aventura mitológica, a qual, para algumas correntes junguianas, pode corresponder ao próprio processo de individuação”. De acordo com Campbell (2002, p. 36; 2006, p. 163), o percurso padrão dessa aventura, em sua estrutura elementar, é representado pela fórmula presente nos rituais de 13

-Cabe aqui relembrar os vínculos intrínsecos entre a condição humana (Arendt, 1981) e o gregarismo vital, ressaltando a etimologia polis-demo-comunidade-cidade e a necessária reflexão sobre a reparadigmatização, a recondução da razão aos seus limites e os mitos políticos em um novo paradigma. 169

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passagem - e que se fazem presente também na configuração do mito - sendo composta por passos e, como desdobramento destes, etapas (Porto e Dib, 2014: 6), as quais algumas são absolutamente necessárias e outras apenas contingenciais, que consistem em:

QUADRO IV-Etapas e passos da jornada do herói o mundo cotidiano o caminho das o caminho de volta provas iniciáticas E T A P A S

o chamado à aventura a recusa ao chamado o auxílio do sobrenatural a travessia do primeiro limiar o ventre da baleia

PASSOS 14

A PARTIDA

o encontro com o Mestre a preparação para a provação suprema o aprendizado a provação suprema a bênção última A INICIAÇÃO

a fuga mágica (voo mágico) o resgate com auxílio externo a passagem pelo limiar do retorno a ressurreição a dádiva para o mundo O RETORNO

14

-Denominados originalmente por Campbell (2002; 1990, p. 145; 2006: p. 163-186) de separaçãoiniciação-retorno ou partida-realização-remissão. 170

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ETAPAS (OU M I T E M A S)

PASSOS (OU MITOLOGEMAS )

QUADRO V – Mito do Herói DA JORNADA DO HERÓI o mundo o caminho das o caminho de volta cotidiano provas iniciáticas o chamado à o encontro com o a fuga mágica (voo aventura Mestre mágico) a preparação a recusa ao para a provação o resgate com chamado suprema auxílio externo o auxílio do o aprendizado a passagem pelo sobrenatural limiar do retorno a travessia do a provação a ressurreição primeiro limiar suprema o ventre da baleia a bênção última a dádiva para o mundo A PARTIDA

A INICIAÇÃO

171

O RETORNO

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QUADRO VI-Mitemas e mitologemas dos mitos canônicos analisados (I, II, III) e etapas e passos da jornada do herói (IV e V) mitema da totalidade primorM dial I T E MITO I M A S

MITO II mitema da ordem paradisía ca original

mitema da tentação demoníaca na ordem paradísiaca original

mitema da transgressão da ordem divina

mitema da punição divina

mitema da fragilidade da condição humana

mitema da transgressão da ordem divina

mitema mitema da da puni- fragilida ção de da divina condição humana

mitema mitema mitema do da do pecado culpa castigo origiorigidivino nal nal [e ou* ...

mitema da totalidade primordial perdida

mitema da previdência / providência – a prudência divina ... *e ou mitema da expulsão do paraíso original]

MITO III

172

mitema da previdência / providência – a prudência divina

mitema da previdência / providência – a prudência divina

mitema da nostalgia da condição primordial perdida

mitema do resgate da condição primordial perdida mitema da elevação contínua da condição humana

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M I MITOLOGEMA DA DEGENERAÇÃO T O MITOLOGEMA DA DEGENERAÇÃO L MITOLOGEMA DA QUEDA O G MITOS I, II E III E M A MITOLOGEMA OU PASSO S DA PARTIDA 15

MITOLOGEMA DA REGENERAÇÃO MITOLOGEMA DA REGENERAÇÃO MITOLOGEMA DA ASCENSÃO

MITOLOGEMAS OU PASSOS DA INICIAÇÃO

DO RETORNO

o caminho das provas iniciáticas o encontro com o Mestre a preparação para a provação suprema o aprendizado a provação suprema a bênção última

o caminho de volta a fuga mágica (do voo mágico) o resgate com auxílio externo a passagem pelo limiar do retorno a ressurreição a dádiva para o mundo

MITO OU JORNADA DO HERÓI IV E V E T A P A S

o mundo cotidiano o chamado à aventura a da recusa ao chamado a do auxílio do sobrenatural a travessia do primeiro limiar o ventre da baleia

16

MITO OU JORNADA DO HERÓI IV E V

15 16

- Ou PASSOS, conforme Campbell. - Ou MITEMAS, conforme Durand. 173

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Considerando os três mitos canônicos analisados, temos no total vinte mitemas que, não computadas as repetições, as coincidências, compõem um repertório de onze mitemas essenciais estruturalmente articulados (quadro-síntese VI, p. 18). Significativamente, entre os onze essenciais, oito deles são originários do Mito do Andrógino, um do Mito de Prometeu e Epimeteu (cujo outros quatros mitemas também coincidem com os do mito anterior) e dois do Mito de Adão e Eva (do qual outros dois não se encontram originalmente no Mito do Andrógino, tampouco no de Prometeu e Epimeteu; justamente aqueles que expressam a cultura e a visão judaico-cristã). Se como um todo, o repertório mitêmico explicitado parece ser, ao que tudo indica, a matriz instituinte da grande narrativa e discursiva sobre a condição existencial humana, evidenciamos que abarcam o universo e tradições míticas ocidentais, as culturas: a) judaico-cristã, destacando-se aí dois mitemas: a tentação demoníaca na ordem paradisíaca e a culpa originais, que expressam a perturbação – instabilidade - na ordem, nos sentidos de organização dada, imposta, e de interdição e (des)obediência (a ordem inicial, a tentação, o pecado, a culpa, o castigo e ou expulsão do paraíso). Está nela pressuposta a (super)visão de um deus-pai criador sobre suas criações na ordem paradísiaca original, os interditos e o maniqueísta entre bem e mal, reafirmando a visão religiosa cristã e despolitizando o mito. Segundo Campbell (2006, p. 102), é “baseada numa mitologia de culpa universal. Houve aquela Queda lá no começo, no Jardim e desde aquela época temos sido todos pecadores inatos. ” b) grega clássica, prometeica, e posteriormente, também latina, destacando-se o mitema da elevação contínua da condição humana, que expressa a profunda crença nas capacidades do ser humano e seu contínuo progresso, em desenvolvimento constante, “contra a fé nos deuses” (Araújo, 1996, p. 472-4; Araújo, 2000, p. 6) e a favor da politização do mito e sua secularização. Mitema este que, observamos, trata-se da enandiodromia 17 da “queda contínua da condição humana” e também de derivação, do mitema da fragilidade humana da condição humana: a grandiosidade – no sentido de força, independência, autonomia, 17

-Inversão radical de sentido, fenômeno estudado por Carl Jung. Aliás, os Mitos do Andrógino e de Prometeu e Epimeteu são exemplares clássicos ocidentais de extrema polarização enandiodrômica, em consonância com os regimes e estruturas de imagens de Durand (1997). E configuram as posturas básicas do ser humano diante da fuga do Tempo e da Vida-Morte (dominantes posturais): de adesão (o instinto de realização plena: dissolver-se no todo, fundir-se, confundir-se na totalidade) ou de combate (em consonância com o instinto de sobrevivência e conservação: existir, insistir, “re-existir”, resistir). 174

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emancipação, liberdade etc., rumo à plenitude, integralidade, completude, perfeição (Araújo, 1996, p. 467; Araújo, 2000, p. 5-9). O que nos remete à temática do heroísmo e triunfalismo, com deleite e ênfase na culminância do ideal de perfeição (Campbell: 1990, p. 145), que se faz muito presente na cultura clássica grega. Os mitologemas identificados nos três mitos analisados, seis no total (quadro-síntese VI, p. 18), não computadas as coincidências, compõem um repertório de quatro mitologemas essenciais, que por sua vez, articuladamente estruturados, podem ser agrupados dois a dois, sob os sentidos da dinâmica temporal, seja cíclica ou linerar: a degeneração e regeneração, a queda e a ascensão. Observamos ainda que o passo da partida (ou separação, segundo Campbell) é equivalente ao mitologema da degeneração ou queda (quadro-síntese VI, p. 19), pois desde a etapa do “o mundo cotidiano” até a etapa do” ventre da baleia”, temos um processo degenerador e descensional: a “descida nas trevas” ou “queda no ventre da baleia” (Campbell: 1990, p. 155). Também, os passos da iniciação e do retorno, juntos, são equivalentes desdobrados do mitologema da regeneração ou ascensão, pois desde as etapas do ”o caminho das provas iniciáticas” até a etapa da “a dádiva para o mundo” (última parte do quadro VI, p. 18), temos um progressismo de elevação, regenerador e ascensional. A leitura profunda e detalhada dessas etapas e passos do mito do herói em sua jornada, nos permitiu, seja a partir de uma análise psicológica profunda de suas qualidades essenciais, como indica Campbell, ou da mitocrítica de Durand, nos abre a possibilidade de aproximações e comparações entre eles, pois ambos lidam com elementos estruturais, configurativos, da narrativa mítica. Assim, além das perspectivas filosóficas existenciais e profundamente humanísticas de ambos os autores convergirem (bem como com Morin), as concepções de mito-mitologemas-mitemas e jornada-passos-etapas, não só dialogam como são estruturalmente comutáveis, intercambiáveis, como apresentamos e mostramos acima. É importante ressaltar, como já sinalizado anteriormente, que todo o repertório mítico que nos referimos, em suas configurações e estruturas (mito-mitologemas-mitemas e ou jornada mítica-passos-etapas) nos possibilita, por evidências diretas e indiretas, remontar reconstituir - toda uma grande matriz narrativa e ou discursiva mítica, religiosa, mística, teológica, etc. e até mesmo filosófica. Matriz que abarca as grandes questões da existência e condição humanas – sua existência, sua fragilidade e grandiosidade, sua rebeldia e luta contra 175

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o Tempo e a mortalidade: a aventura humana (Greco, 1984), a grande saga da humanidade, que como uma jornada heroica, é uma luta perpétua da vida contra a morte (Morin, 1970, p. 172-3 e 255-6). Como bem expressa Durand (1988, p. 71), a “dialética interior ao devaneio dialogado reequilibra continuamente [a] (...) humanidade e, por uma espécie de pilotagem automática, conduz continuamente o conhecimento à problemática da condição humana”. Neste sentido, o que subjaz às narrativas míticas da luta incansável e sem fim da humanidade contra o Tempo, é a cisão originária da condição humana que a constituiu como tal ao temporalizá-la. É inserção do ser humano (sua origem e “des”-envolvimento) no Tempo, provocando uma profunda angústia existencial diante da vida e da morte, bem como e o desejo profundo de superá-las, ou melhor, transcendê-las, e não apenas aceitá-las como são. A busca, a procura (a jornada, a saga, a aventura etc.) é de inteligibilidade do(s) sentido(s) e significado(s) da existência humana e de sua identidade como ser humano; é de inteligibilidade de si, pessoal - a individualidade- e ou coletiva, eu e os outros - a coletividade-. Ambas intrínseca e constitutivamente articuladas à dinâmica da identidadealteridade, do reconhecimento de si, por si e por todos os outros do mundo, como vimos. Mas é também, simultaneamente, a busca de “experiências de estar vivo, do enlevo de estar vivo”, que ressoem no interior da intimidade do nosso ser e realidade (Campbell, 1990). Conforme Durand, nas noções de profundidade e profundidade simbólica (s.d.: p. 12234), o imaginário, o arquetipal e o mítico coincidem, sobredeterminando a ordem profunda do(s) sentido(s) que o homem a tudo busca atribuir, ao tentar dar respostas lógicas, racionais às grandes questões da condição existencial humana (Dib, 2002: 60). São os mitos e ou jornadas míticas, configurações do imaginário e, portanto, da cultura, projetivos das questões fundamentais da existência e da condição humana, diante às quais percebemos, sentimos, imaginamos pensamos e agimos. E, por isso, ressoam tão profundamente no ser humano, “impulsionando o querer saber: de onde viemos, onde estamos, e para onde vamos; quem somos? [: qual nossa origem? qual o sentido? porque e para que existimos? etc.]. Perguntas as quais, sabemos, presentes em todas as sociedades e constantes em todas as épocas” (Picchia, Dib, Farah, 2013), nos mitos, arquétipos e símbolos, “e que exigem a busca de respostas, mas não a garantia de respostas absolutas.

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A Mitodologia (a mitocrítica e a mitanálise) muito contribui neste sentido, mas particularmente, a mitocrítica é complexa, não é fácil e é trabalhoso realizá-la. Não é um procedimento metodológico meramente intuitivo, e exige método(s). E, portanto, os vários cuidados: pois não é qualquer redundância e mesmo redundância significativa que será imediata e diretamente identificada como um mitema ou mitologema (os quais, por sua vez, não serão derivados, direta e imediatamente, dos atributos dos personagens míticos – pelo contrário -, ainda que vinculados a eles e mesmo a outros elementos indicativos de suas presenças) etc.; também é importante como normalizá-los (formular e denominá-los). Prezando pelo diálogo da mitodologia durandiana com outros referenciais teóricos e metodologias, para além das observações metodológicas operacionais que fizemos, sabemos que o que está em jogo, não se trata apenas de uma questão relativa ao “rigor científico tradicional, em busca da verdade absoluta”. Mas sim principalmente ética e estética, em consonância com o novo espírito antropológico e científico: “a bela e boa forma”, como nas composições artísticas, na música, na poesia etc., fundadas na razão intuitiva e sensível, em sintonia fina (detalhes, sutilezas, minúcias, singularidades etc.), refinada em precisão, no tão intricado e complexo “uni-verso” da condição existencial humana, neste...

Teatro vital: entre a antinomia primordial dos absolutos absolutos - a Vacuidade e a Plenitude, do Caos ao Cosmo Teatro vital... A vida e a morte: em cena, a cena, a sina, a sorte.

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...O VAZIO,

O CAOS,

O COSMO,

A B

O PLENO... A

A DES

ORDEM:

S

B S

O

SEPARAR ,

O

L

INICIALMENTE

L

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PARA

U

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DETERMINAR,

T

O.

DEFINIR E,

O.

NOVAMENTE, REUNIR, RETORNAR O NADA,

AS COISAS,

OS SERES,

O TUDO.

O NENHUM,

AS PARTES,

AS CAUSAS,

O TODO:

Nos acenam e ensinam, fazem cenas e fascinam: A vida e a morte: Teatro vital...

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Imaginário, literatura e mídia Imaginary, literature and media Imaginaire, littérature et médias

Gustavo DE CASTRO 1 Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

Resumo: A relação do imaginário com a mídia vista a partir do escritor Italo Calvino (19231985). Aqui ela é entendida como “pedagogia” e modo de leitura do cosmos e de si. A imaginação como imagem-ideia, instrumento do saber e como identificação com a “alma do mundo”. É modelo para uma “atitude de perplexidade sistemática”, ofício do criador e do poeta. Palavras-chave: Imaginário; literatura; mídia, Italo Calvino; poeta. Abstract: The relation between imaginary and the media seen from the Works of writer Italo Calvino (1923-1985). Here, this relation is understood as “pedagogy” and as a form of Reading the cosmos and ourselves. Imagination as na image-idea, as a tool of knowledge and as identification to the “soul of the world”, a modelo f the “atitude of systematic perplexity” and the poet’s craft. Keywords: imaginary; literature; media; Italo Calvino; poet. Introdução Todas as formas midiáticas são espaços de produção e recepção imaginativa. Estes espaços são também esferas reflexivas que, quando associadas ao devaneio e ao sonho, ampliam sobretudo a expressão de uma poética que une imagem e ideia. As mídias são igualmente campos que podem aprofundar as criações da imaginação, e estas criações, quando em confronto com as coisas do mundo, sedimentam um espaço no qual converge poesia (mito) e filosofia (pensamento). Acerca da imaginação, partiremos da noção de Lapoujade 2: A imaginação é uma função psíquica complexa, dinâmica, estrutural; cujo trabalho (consistente) produz – em sentido amplo – imagens, pode realizarse provocada por motivações de diversas ordens: perceptiva, mnêmica, racional, instintiva, pulsional, afetiva, etc.; consciente ou inconsciente; subjetiva ou objetiva (entendido aqui como motivações de ordem externa ao 1

Professor de Estética na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Autor de Ítalo Calvino – pequena cosmovisão do homem, Brasília, Ed. UnB, 2007. [email protected] 2 Lapoujade, Maria Noel. Filosofia da Imaginación. Ciudad de México: Siglo XXI Editores, 1988. p.21 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 182

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sujeito, sejam naturais ou sociais). A atividade imaginária pode ser voluntária ou involuntária, casual ou metódica, normal ou patológica, individual ou social. A historicidade lhe é inerente, enquanto é uma estrutura processual pertinente a um indivíduo. A imaginação pode operar voltada para ou subordinada a processos eminentemente criativos, pulsionais, intelectuais, etc.; em certas ocasiões ela é a dominante e, por isso, guia os outros processos psíquicos que nestes momentos se convertem em subalternos. (LEPOUJADE, 1988, p.21).

Imaginação e mídia são convergentes na medida em que um é depositário e catalisador do outro, atuando em relações de simbiose e parasitismo. Um campo rega, alimenta, consome, regurgita o outro com seu ‘universo particular’. Ambos possuem o aspecto criativo próprio das narrativas, depositário de beleza e feiura ordenada e desordenada; ordem e desordem fractal. O imaginário e a mídia são duas grandes feiras de Caruaru: se você não encontra o que procura é por que não procurou direito. Ou dito de forma mais sofisticada, consideramos que são duas das principais inteligências do contemporâneo. A imaginação é a força artística do inconsciente. O imaginário e a mídia contêm a multiplicidade que as contêm. Ambos tomam forma reunindo em si um grande número de variáveis. Podemos dizer que ambas evocam aquilo que Ítalo Calvino acreditou como sendo o seu principal ensinamento artístico: um modo de leitura do mundo, cosmovisão que ele chamou no livro de ensaios Una Pietra Sopra, de atitude de perplexidade sistemática. 3 Dito de outro modo, mídia e imaginário nos convocam a uma atitude de leitura do mundo que procura unir a multiplicidade dos pontos de vista a uma descrição possível, de preferência econômica, espécie de práxis da narração, na qual concorrem imagem e ideia, exatidão e complexidade, silêncio e palavra. Aquilo que eu tenho, a única coisa que poderia ensinar é um modo de olhar, de estar em meio ao mundo. 4 A “atitude de perplexidade sistemática” requer uma “contemplação inquieta”, que, por sua vez, é o estado por excelência do senhor Palomar, do livro homônimo de 1984. Nas viagens, no convívio em sociedade ou nas suas meditações, tal atitude de perplexidade somada à metodologia da contemplação inquieta torna-se peremptória para a focalização. Sem ela não podemos caracterizar senhor Palomar, nem Marco Polo, nem Marcovaldo, muito

3

Calvino, I. Una pietra sopra. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1995, p.4. Ou: Assunto Encerrado – discursos sobre literatura e sociedade [Una pietra sopra] (texto escrito originalmente em 1980) 4 Carta de 1960 a François Wahl, In: Album Calvino. A cura di Luca Baranelli e Ernesto Ferrero. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 2001, p.248 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 183

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menos Italo Calvino. O olhar móvel e volátil deve considerar tanto aquilo que vê quanto aquilo que não vê. Ou que vê sonhando, ou que recorda ou ainda o que lhe é contado. Tal “atitude” deve considerar todas as metamorfoses do campo da imagem. Nasce aqui uma ideia-imagem: o imaginário é uma atitude de focalização de mundo. Tal focalização está no humano, mas também está na câmera, no poema, no quadro, na escultura ou na canção. Dito de outro modo: é preciso se entregar à fantasia para viver a fantasia. Tal atitude implica uma “pedagogia da imaginação”, ideia que aparece nas Seis propostas para o próximo milênio (1985): a experiência visual é considerada como a capacidade de criar imagens de olhos fechados. A excessiva projeção de imagens da sociedade midiática contemporânea está ameaçando essa faculdade humana fundamental, que é a capacidade de criar e pôr em foco múltiplas visões, fazer funcionar nosso cinema mental. Calvino considera que tal “pedagogia” deve inventar seus próprios métodos. Sejam quais forem; devem levar em conta a ideia da imaginação “como instrumento do saber” e “como identificação com a alma do mundo”.5 Estas duas direções são eixos de conexão e relação entre mídia e imaginário: “instrumento de saber”; “identificação com a alma do mundo”. A “imaginação como instrumento do saber” trabalha com a lógica espontânea da criação de imagens, e a intenção objetiva de uma formulação racional. A mídia é uma porta aberta para o universo realimaginário, algo indomável, do qual o homem tem por desafio se aproximar, começando por aceitar a in-finitude do conhecimento e a necessária articulação dos saberes. Essa porta é a da lógica sensível. No segundo aspecto, Calvino entende que a imaginação é uma forma de contato “com a alma do mundo”, ajusta-se mais a uma teosofia, ou a uma naturphilosophie, do que propriamente ao conhecimento científico, visto que ainda há uma dificuldade da ciência em dialogar com o conhecimento imaginário. Aqui a imaginação faz parte de uma filosofia natural, evocada pelos elementos bachelarianos (terra, água, ar e fogo). Mas Calvino, quando pensa imaginário e mídia, está rediscutindo em muitos aspectos a fantasia de Ariosto6, as

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Calvino refere-se neste caso a um ensaio de Jean Starobinsky publicado no volume La relations critique, Gallimard, 1970. 6 Ludovico Ariosto (1474-1535), poeta italiano, estudou direito, abandonando a carreira para dedicar-se à poesia. Estudou os poetas latinos. Escreveu o poema de cavalaria “Orlando Furioso” ( Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 184

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sombras de Caravaggio7 e a relação entre poesia e matemática de Da Vinci8. Calvino parece não se filiar a nenhuma escola senão à própria fantasia. Ele sabe que a luta religiosa contra a imagem sempre foi a guerra contra o artefato, contra o que se considera artificial. Era a velha noção de que só Deus seria criador (o irrepresentável). O artificial, portanto, contrariaria o poder criador divino. Desde Platão, a imagem sempre incomodou por ser artefato, criação humana, representação artificial gerada pelo homem. A fonte da imagem é tecnológica. Quando há exacerbação tecnológica, há profusão de imagens. Logo, de artefatos. No entanto, bem antes de Platão, os gregos também conheciam a noção de imagem como phantasma ou, se queremos algo mais concreto: os kolossos, a imagem-símbolo: quando a pedra era dotada de vida. Obviamente: vida mágica. A phantasia estava para o cotidiano egípcio e grego, como a ciência está para os nossos dias. As pedras eram a tecnologia dos antigos. Calvino entende que a ciência não pode ser separada em dois polos, numa ciência do mundo exterior e outra do mundo interior. Aliás, é na busca de um conhecimento extraindividual e extra-objetivo e na compreensão de que a imaginação é também depositária da verdade do universo, que ele escreve Palomar, o seu livro-método. A experiência visual do homem na prática pedagógica da imaginação, para Calvino, deveria suscitar-lhe uma sabedoria antiga,9 fundada sob o signo de Mercúrio, instável e oscilante como a própria imaginação, inclinada a trocas e intercâmbios entre o micro e o macrocosmo, entre a psicologia e a astrologia, entre o material e o imaterial. A visibilidade do senhor Palomar, assim como a conferência das Seis propostas, procura formular um modo de observação no qual sintonia, focalização e consciência estejam ajustadas à sua atenção e ao seu espírito inquieto. Desse modo de observação deve redundar uma pedagogia da imaginação. Há muitas décadas temos as mídias como principal elemento propedêutico da imaginação, o que é ao mesmo tempo um ganho e uma perda de cognição. Ganho porque acrescenta, reelabora, adensa, amplia o campo imaginativo. Perda porque limita, embota, padroniza, reifica o campo da visão. Fala-se, por exemplo, nas escolas de comunicação, de uma perda da capacidade imaginativa. Em nossas escolas, sabemos que alimentamos pouco 7

Michelangelo Merisi di Caravaggio (1571-1610), pintor italiano, nascido em Nápoles. Considerado o mestre das sombras. Geralmente identificado como membro do Barroco. 8 Leonardo Da Vinci (1452 – 1519), pintor italiano, que se destacou como cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, escultor, arquiteto, botânico, poeta e músico. 9 Calvino, I. Seis propostas para o próximo milênio op.cit.p.6 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 185

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nossa intimidade com as sonoridades, assim como é pouco explorado o imaginário tátil, artístico ou literário. Por outro lado, as escolas de comunicação foram empaladas pelo imaginário tecnológico, o que, como todo imaginário, é uma questão ambígua. Voltemos a Calvino. A visibilidade é também tema (em Palomar) no capítulo O universo como espelho.10 Neste capítulo, são os espaços infinitos do cosmo e os subjetivos da existência que ele contempla com inquietude. Sua dificuldade em relacionar-se com o próximo leva-o, em primeiro lugar, a procurar melhorar sua relação com o cosmo. Para Calvino, o imaginário possui uma infinidade de pontos e focos aos quais o pensamento deve explorar indefinidamente. Esses pontos podem ser trabalhados e retrabalhados com novas reflexões, estilizações ou, simplesmente, deixando-se saltar de imagem em imagem, de pensamento em pensamento. O filme, o poema, o quadro, assim como o conto, pela concisão, é o espaço ideal para a metáfora e a alusão. Como definiu Bachelard, falando do conto: “é uma imagem que raciocina”11. Em um filme de David Lynch, terceiro da trilogia sobre Hollywood, chamado o Império dos Sonhos, o diretor não vai procurar uma imagem da lógica do ilógico, não vai aderir ao “mundo interior” dos personagens, mas vai se perguntar se a imagem “moderna” (ou seja, uma imagem aberta e relativa em alguns aspectos, e fabricada e genérica em outros), permite ainda que as imagens existam como universo autônomo e complementar disso que chamamos de “realidade”. O filme nos ajuda a entender que é necessário perceber o imaginário como um sistema aberto. Campo par excelence de imagens simultaneamente falsas e verdadeiras, da criatividade e de experiências de imagens puras ou não, simulacro da vida, guia pela busca de significados, analogias e alegorias. O imaginário borra a fronteira entre o que seria sonho, realidade, consciente e inconsciente, muito próximo do que faz em certos aspectos, o cinema, a TV e a fotografia. Não é fácil engolir tudo isso. A discussão sobre o que é a realidade em literatura e mídia, por exemplo, não pode ser feita sem a discussão da multiplicidade de níveis e esferas. Somente na soma dos níveis de realidade formaríamos aquilo que chamamos hodiernamente de real. Aquilo que chamamos de realidade é apenas um desses níveis, não necessariamente o mais verdadeiro e autêntico. Não necessariamente o essencial, diria Heidegger.

10 11

O universo como espelho. In: Calvino, I. Palomar, op.cit.p.104-107 Bachelard, G. A poética do espaço. Col. Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1979, p.303 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 186

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É comum a crítica ao imaginário justamente neste ponto: ele des-ideologiza o real. Alguns acreditam piamente que o imaginário só está dotado de fetiches, crenças, senso comum, manipulações, etc. A ideia de manipulação pertence ao esquema clássico, fortalecido pelo marxismo, que considera o indivíduo indefeso diante da imagem. Tal manipulação vale para o cinema de Hollywood, mas também para a televisão e a publicidade. Nesse modelo, o fundamental seria passar um conteúdo. Trata-se do primado da ideologia. A forma seria apenas um suporte. Edgar Morin, ao contrário, em livros como O Cinema e o homem imaginário (1959), mostrou que existe uma reversibilidade, um vaivém do sentido e uma reatualização da magia e do mito pelo imaginário. O imaginário e a mídia não são apenas a imposição de algo que vem de cima, um impacto, mas uma relação. O criador, mesmo na publicidade, só é criador na medida em que consegue sentir ou captar o que circula na sociedade. Ele precisa corresponder a uma atmosfera. Perceber os vários níveis de realidade e recriá-los. O criador dá forma ao que existe nos espíritos e nos espaços, ao que está aí, ao que existe de maneira informal ou disforme. A literatura, a publicidade e o cinema lidam, por exemplo, com arquétipos. Isso significa que o criador deve estar em sintonia (-desintonizada) com o vivido. O arquétipo só existe porque se enraíza na existência social. Assim, uma visão esquemática, manipuladora, não dá conta do real, embora tenha uma parte de verdade. O criador, se tiver genialidade, ela implicará na capacidade de estar em sintonia com o espírito coletivo. Cineastas, publicitários, escritores e poetas são os verdadeiros teóricos do imaginário. Eles sabem que imaginar é melhor do que teorizar sobre a imaginação, por que sabem que a ação imaginante e imaginativa vai além do compreensível. Sabem que a “aura” ultrapassa e alimenta a obra. O poeta trata a imaginação e a poesia como mídias ou como processos de passagem, esferas e canais. Como disse o poeta Eugenio Montale 12: “A imaginação, a poesia e a fantasia são mídias porque transportam o homem para estados suprareais. São canais que irrigam a realidade, o pensamento e a ideia”. Toda imagem conduz o homem para outra esfera. Eugênio Montale, ao dizer que “as obras de arte são mídias”, atua como um profeta e um visionário: “Espero que amanhã se compreenda a obra de arte como efetiva comunicação”. Ele entende que a busca da autonomia (nomos = lei) e do auto-conhecimento (telos = fim), mediante a sensibilidade pensante da obra de arte (meio), funcionam, para o homem, como essenciais para a vida. A obra de arte é 12

MONTALE, E. (De la poesia, 1995). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 187

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meio de informação-comunicação-entendimento de realidades, mas também meio de incomunicação, porque também omite, silencia, desinforma e complexifica o enigma do real. Como meios de comunicação, as obras de arte são “fios de continuidade” que unem tempos diversos (passado e presente) a ideias, histórias, sentimentos e focos diversos. Montale propõe a definição de Tommaso Ceva (1649-1736): Arte “é um sonho feito na presença da razão”. Costuma-se achar que a natureza da poesia e da arte não é dotada de reflexão midiática, ao passo que a grande variedade dos media ainda está longe de praticar um pensamento-poema. Sabemos que grande parte do fazer poético visa interrogar sobre a natureza da própria atividade do poetar. Para W. Stevens o objeto misterioso da poesia deve ser o próprio assunto do poema. Para ele o mistério universal e o estético/poético se confunde. Heidegger (2000) diz que o estético (sobretudo a poesia) é a continuação do mistério. A distinção Matéria e Forma é quase por excelência o esquema conceitual de todas as teorias estéticas. A obra de arte é uma forma de revelação da verdade: revelação necessária porque subentendo-se por verdade legítima, profunda, obscurecida pela rotina que deve ser buscada/descoberta pelo artista. A trivialidade do dia-a-dia encobre a verdade. A arte nos libera da sonolência e da semi-cegueira. A eclosão do ente da arte não é um estado, mas um acontecimento. A beleza é um modo de permanência da verdade enquanto eclosão. “Toda a arte é essencialmente poema”, disse Heidegger. A poesia não é somente o modo mais alto da linguagem cotidiana. É antes um discurso de todos os dias, semelhante as mídias, que é um poema escapado e, por esta razão, um poema exaurido na usura, que, devido ao excesso e ao falatório, já não se faz ouvir, continua Heidegger (2000, p. 156). A mídia estaria assim mais para o falatório. A poesia se aproxima, por sua vez, da fala e do silêncio; das essencialidades. Enquanto a mídia nos transporta cotidianamente para a trivialidade, a arte e a poesia têm a finalidade de nos arrancar da trivialidade absorvente de nossa existência, e nos colocar emocionados, deslumbrados, no Ser. Dichten: ser poeta significa redizer. Dichten é, na maior parte do tempo, ouvir. A poesia é uma escuta O poeta sintoniza, imagina a “natureza da dor”, mas também a essência do pensamento, do tempo, dos espaços, das flores e dos homens. A obra de arte não revela a obra de arte em sua inteireza, ela é “apenas” canal, fio de continuidade, narrativa, frágil conexão com alguma realidade. A obra revela (ao passo que esconde) escutas, sintonias e metáforas.

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O papel dos poetas e dos criadores é fundamental para Calvino. Ele nos revela com o senhor Palomar que, no imaginário, habitamos um “eu flutuante”: “imerso num mundo desincorpado, intersecções de campos de força, diagramas vetoriais, feixes de retas que convergem, divergem, se refrangem”.13 De acordo com Calvino, os poetas já haviam reconhecido o imaginário como pedagogia da incerteza, ou daquilo que está entre o material e o imaterial, entre o sólido e insólito. Calvino cita sua leitura do livro Entre o Cristal e a Fumaça (1994), de Henry Atlan, para justificar a noção de “flutuação”, que podemos dizer aproxima-se daquilo que ele entende por imaginário e que Montale chamou de “fios de continuidade”: oscilação manifesta entre a rigidez do mineral e a decomposição da fumaça.14 O cristal é a imagem do que sai do amorfo para se tornar, pouco a pouco, concreto e consolidar-se, materializando-se numa figura ao mesmo tempo límpida e transparente, além de multifacetada. A fumaça é a própria imagem do sonho e do impalpável, algo que sai da materialidade e da multiplicidade para voltar a ser amorfo. Por fim, uma tentativa de síntese, mediante um corte temporal. Italo Calvino sintetizou de muitas formas suas buscas teóricas acerca do imaginário. Fez isso mediante seus livros, ao longo de várias décadas: desde o primeiro Atalho dos Ninhos de Aranha (1947), que trata do imaginário do inexistente, passando por Cidades Invisíveis (1972), que trata do imaginário dos espaços possíveis; Se um viajante numa noite de inverno (1979), imaginário das imagens do leitor e do livro; Palomar (1984), imaginário da imagem e da visibilidade, por fim, confessou na lição “Visibilidade”, das Seis proposta para o próximo milênio (1985): o invisível não é o contrário do visível, mas sua contraparte, complemento, no fim, tudo se encaixa, como uma imensa alcachofra.

13 14

A espada do sol. In: Calvino,I. Palomar, op. cit. p. 18 Atlan, Henri. Entre o cristal e a fumaça. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1992, p.9. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 189

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REFERÊNCIAS BACHELARD, G. A poética do espaço. Col. Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1979. CALVINO. I. Palomar. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia das Letras, 1994. ______. Seis propostas para o próximo milênio – lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia das Letras, 1990. ______. Una pietra sopra. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1995. ______. Assunto encerrado. Trad. Roberta Barni. São Paulo: Cia das Letras, 2006. HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998 (ed. or. 1959a). ______. Caminhos de campo. São Paulo: Duas cidades, 1972 (ed. or. 1949). ______. "Para quê Poetas?" In: Caminhos de Floresta. Lisboa: Calouste-Gulbelkian, 2000. ______. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Instituto Piaget, 1999b (ed.or. 1939). ______. Todos nós...Ninguém. São Paulo: Ed. Moraes, 1981. ______. Ensaios e conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001 (ed. or. 1954). ______. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003 (ed. or. 1959). LAPOUJADE, Maria Noel. Filosofia da Imaginación. Ciudad de México: Siglo XXI Editores, 1988. MAFESOLLI, M. Entrevista. O imaginário é uma realidade. In: Revista FAMECOS, Porto Alegre, nº 15, agosto 2001. MONTALE, E. De la poesia, Barcelona: Pré-Textos, 1995.

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Constelações de imagens fotográficas de arquitetura: desafios do projeto ARQUIGRAFIA Architectural photographic images constellations: challenges of the ARQUIGRAFIA Project Constellations d'images photographiques d'architecture : les défis du projet ARQUIGRAFIA Artur ROZESTRATEN 1 Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

Resumo: Este trabalho apresenta considerações sobre os esforços do projeto ARQUIGRAFIA para investigar aspectos do imaginário arquitetônico com base em avaliações de qualidades plástico-espaciais de arquiteturas e espaços urbanos realizadas sobre fotografias reunidas em uma constelação de imagens em um ambiente colaborativo na Web. Tomando como base os conceitos propostos por Wölfflin (1864-1945), organizados a partir dos diferenciais semânticos de Osgood (1916-1991), o projeto convida os usuários a registrarem suas impressões sobre a arquitetura presente em uma imagem, com base em seis pares de qualidades opostas. A reunião de várias impressões individuais como interpretações coletivas pode orientar navegações transversais no sistema promovendo interações entre imagens com perfis semelhantes e/ou espelhados, e a exploração experimental deste potencial associativo imaginário constitui parte dos objetivos da Fase II do projeto para o biênio 2015-2017 com apoio da FAPESP (2012/24409-2). Palavras-chave: arquitetura; fotografia; representação; imaginário; web 2.0

Abstract: This paper reflects on the ARQUIGRAFIA project efforts < www.arquigrafia.org.br > to explore angles of the architecture imaginaire based on architecture and urban spaces plastic-spatial evaluations held over photographs assembled in a constellation of images in a collaborative environment on the Web. From Wölfflin (18641945) concepts, organized as Osgood (1916-1991) semantic differentials the project invites users to register their impressions on the architecture shown as an image, based on six pairs of opposites qualities. The assemblage of several individual impressions as collective interpretations can guide cross navigation on the system promoting interactions between similar and/or mirrored images profiles, and the experimental exploitation of this imaginary associative potential is part of the project's Phase II goals for the biennium 2015-2017 supported by FAPESP (2012/24409-2). Key words: architecture; photography; representation; imaginaire; web 2.0.

1

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Quando se presta atenção à permanência, a arquitetura pode ser entendida como arte dialética articuladora das infinitas variantes entre os extremos de certas qualidades materiais/espaciais. Sob esta visada a arquitetura se caracterizaria como diálogo de tensões e resoluções entre pólos antagônicos tais como: a massa e o espaço, a rigidez e a maleabilidade, a eurritmia (equilíbrio, proporção) e a arritmia (desequilíbrio, desproporção), o distanciamento e a aproximação, o peso e a leveza. No amplo território intermediário de gradações entre extremos, todas as criações arquitetônicas de todos os tempos se interporiam. Essa abordagem semântico-visual, ao se apoiar essencialmente, sobre as características plásticas ou formais da arquitetura como a interação entre as qualidades sensíveis dos materiais e do espaço, questiona o entendimento da arquitetura como isso ou aquilo, e propõe entendê-la como isso e aquilo, aceitando suas contradições, paradoxos e ambiguidades. Uma imagem síntese da história da arquitetura, nesse enfoque, poderia ser uma poligrafia (Figura 1): uma imagem formada por uma constelação de imagens na qual coexistem vários tempos e lugares distintos no mesmo campo visual. Exemplos recolhidos dentre as arquiteturas de todos os tempos passados que continuam a existir hoje em dia, sincronizados numa mesma imagem síntese, conformariam uma espécie de teia iconográfica – como os painéis de Aby Warburg (2008) – que ultrapassaria as divisões cronológicas fundindo todos os tempos em um só, o presente contínuo. Assim como no Atlas Mnemosyne, tal síntese não se faz sobre os objetos originais – as obras de arte propriamente ditas, vistas in loco – mas sim sobre suas representações fotográficas que, ao reduzi-las, possibilitam que sejam reunidas e sincronizadas em uma mesma superfície para uma apreensão conjunta que é pura fantasia. No campo visual experimental dos painéis de Warburg as imagens são tensionadas, dilatadas e ressignificadas justamente pela proximidade com outras imagens. Tais aproximações e as consequentes ressonâncias e dissonâncias deslocam as imagens de uma condição isolada aparentemente estável a uma condição articulada instável que, justamente por adquirir movimento, passa a promover metamorfoses poéticas, isto é, as imagens tornam-se distintas de sua condição de repouso anterior e passam a se transformar continuamente em um processo no qual o devir, o ‘vir a ser’, predomina sobre o ‘ser’. Ainda no mesmo sentido proposto por Warburg (2008), os juízos formulados sobre tais imagens dedicam-se aos objetos representados na fotografia e não exatamente à sua representação fotográfica, ou seja, são juízos sobre as obras de arte e os demais objetos a elas Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 192

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conjugados nos painéis e não – ao menos não em um primeiro momento na condição original do Atlas – sobre a fotografia que as apresenta. A condição do juízo estético sobre a representação fotográfica pode ser feita – e é feita nas abordagens contemporâneas ao projeto Mnemosyne (MICHAUD, 2007; SMITH, RÜTTINGER 2012) – como um segundo momento de apropriação e reflexão crítica sobre a natureza da imagem, como aquelas conduzidas por André Malraux a partir de fins dos anos 1940 em seu Museu Imaginário (2010).

Figura 1: Exemplo de poligrafia.

Primeiros estudos para o ARQUIGRAFIA, 2008. Acervo do Autor.

Com o intuito de fundamentar a formulação de juízos estéticos sobre obras de arte, Heinrich Wölfflin publicou em 1915 seus 'Conceitos fundamentais da História da Arte' com

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base em cinco pares de conceitos/qualidades plástico-espaciais para analisar a evolução estilística dentro de um recorte temporal mais restrito, da Renascença ao Barroco:

1.

linear e pictórico

2.

superfície/plano e profundidade

3.

forma fechada e forma aberta

4.

pluralidade e unidade

5.

clareza absoluta/claro e clareza relativa do objeto/indistinto

Dentre toda a produção iconográfica feita entre o século XV e o Século XVII, considerando expressões clássicas e 'anti-clássicas' haveria certamente algumas imagens tipicamente clássicas – Leonardo e Rafael, por exemplo –, outras tipicamente barrocas, como Michelangelo e Rembrandt. O aspecto problemático está justamente no intervalo entre as duas extremidades dos pares, isto é, nas inúmeras variações que se colocam com algum grau de pertinência entre os extremos dos 5 pares de conceitos wölfflinianos e que corresponderiam, sem dúvida, a maior parte da produção artística do período em foco. Muito embora estivesse concentrado em um caso comparativo do que considera arte moderna (a partir da renascença), Wölfflin contemplava também a possibilidade de extensão dos mesmos conceitos a outras épocas, como o Idade Média e o Mundo Antigo (1945, p.X). Interessava a Wölfflin contribuir à concepção de uma “História da Arte sem nomes” ou uma “História natural da Arte” que se ocupasse de questões propriamente plásticas, distinguindo-se portanto de uma “História dos Artistas” vinculada à tradição vasariana. O caráter eminentemente visual desta proposição metodológica permite aproxima-la da intenção radical de uma “História da Arte sem palavras” preconizada por Warburg. Além da pintura, Wölfflin fez ainda considerações específicas para a arte tectônica da arquitetura com relação a cada par de conceitos expressando aí questões espaciais e plásticas relacionadas à textura, relevo e cor das superfícies que conformam as arquiteturas.

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Quanto à precisão de seus conceitos, o próprio autor pondera: “É possível que se possam apresentar ainda outras categorias... as dadas aqui não estão atreladas de modo que seja impossível pensar em outra combinação. Condicionam umas às outras até certo ponto... se pode dizer que são cinco visões distintas de uma mesma coisa.” (1945, p. 306. Tradução do autor.) A proposição wölffliniana de amparar juízos estéticos em binômios é passível de ser levada adiante com base na técnica de diferenciais semânticos proposta pelo psicólogo norteamericano Charles E. Osgood nos anos 1950. As hipóteses de Osgood podem ser sintetizadas e contextualizadas aqui da seguinte forma: o processo de juízo ou interpretação (de um fenômeno plástico-espacial, como é o caso) pode ser representado por meio da atribuição de uma posição específica sobre uma escala experimental definida entre um par de termos opostos (OSGOOD, 1990, p.189). Logo, frente a uma determinada imagem fotográfica que representa um certo aspecto de uma arquitetura ou espaço urbano é possível construir interpretações/juízos estéticos sobre a arquitetura representada na fotografia com base em diferenciais semânticos. Como esta possibilidade poderia ser explorada na Internet, valendo-se da noção de ‘inteligência coletiva’ em um ambiente colaborativo de compartilhamento temático de imagens para o qual convergem, contribuem e interagem vários usuários? Esta questão orientou a equipe do projeto ARQUIGRAFIA a configurar no início de 2009 uma primeira lista com 16 binômios ou pares de diferenciais semânticos pertinentes à arquitetura (Figura 2): • com relação à posição relativa do observador no espaço: largo/estreito alto/baixo distante/próximo • com relação a aparência das superfícies e do espaço sob a luz: opaco/transparente colorido/monocromático claro/escuro côncavo/convexo • com relação às qualidades táteis predominantes nos limites do espaço: aberto/fechado rugoso/liso rígido/flexível Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 195

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• com relação à conformação plástico-espacial: ortogonal/curva perpendicular/inclinada regular/irregular simétrica/assimétrica complexa/simples unitária/fragmentária Figura 2: Primeira versão de conceitos-chaves e diferenciais semânticos

Registro de impressões individuais dos aspectos plásticos-espaciais de uma arquitetura apreendidos pela imagem fotográfica, 2008/2009. Acervo do Autor.

O intuito inicial era estimular os usuários a se deterem e se concentrarem em uma imagem em particular, para observá-la atentamente e registrar impressões a seu respeito, como uma proposta alternativa e complementar à navegação superficial – olhar de sobrevôo – em amplos conjuntos de imagens, característica predominante da interação contemporânea com imagens digitais na Web, possível, aliás, no painel da homepage do ARQUIGRAFIA. Na primeira versão experimental do site on line, desenvolvida em 2010, a lista foi reduzida a 12 pares de qualidades opostas reunidos em um único quadro e a imagem foi ampliada na medida em que suas informações catalográficas foram removidas da tela. (Figura 3).

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Figura 3: Printscreen dos ‘Medidores’

Primeira versão experimental do ARQUIGRAFIA, 2010. Acervo do autor.

Em 2012 esse conjunto de diferenciais semânticos foi testado e criticado por usuários o que conduziu a uma nova revisão. Como resultado definiu-se uma lista bem mais concisa com apenas 6 pares de qualidades, balizada naquela versão beta por imagens fotográficas como exemplo de cada uma das qualidades (Figura 4): • • • • • •

dentro/fora distante/próximo vertical/horizontal opaco/transparente claro/escuro aberto/fechado

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Figura 4: Printscreen da revisão e redução de pares

Avaliação de qualidades plástico-espaciais, 2012. Acervo do Autor. Em 2013 esse conjunto de diferenciais semânticos foi novamente testado e criticado por usuários o que conduziu a uma segunda revisão com a seguinte configuração (Figura 5): • • • • • •

interno/externo distante/próximo vertical/horizontal opaco/transparente claro/escuro aberto/fechado

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Figura 5: Printscreen fantasia da revisão

Binômios realizada em 2013. Acervo do Autor.

Em 2014 esse conjunto de diferenciais semânticos foi mais uma vez revisto definindo a configuração atual dos binômios (Figuras 6 e 7) que deverá passar por novas avaliações dos usuários nos próximos meses: • com relação à interação entre espaços internos e externos: aberta/fechada Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 199

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interna/externa translúcida/opaca • com relação à conformação plástica de superfícies e volumes: complexa/simples simétrica/assimétrica horizontal/vertical Figura 6: Printscreen de parte da tela de registro de impressões

Sobre a arquitetura representada em uma imagem fotográfica na versão atual do ARQUIGRAFIA. www.arquigrafia.org.br. Acesso em 22/07/2015. Figura 7: Perfil que apresenta em cinza a média das impressões (avaliações)

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Registradas para uma imagem da Catedral Metropolitana de Brasília e em preto a avaliação do usuário Lucas Caracik na versão atual do ARQUIGRAFIA. www.arquigrafia.org.br. Acesso em 22/07/2015.

Desde o início do projeto o trabalho com diferenciais semânticos tinha três objetivos principais: •

estimular uma interação mais lenta, detida e atenta com imagens

fotográficas específicas eleitas pelo próprio usuário, por meio do convite para registrar sua impressão estética; •

estimular a construção coletiva dessas impressões como metáforas, isto

é como formas que substituem, remetem e representam enfim uma outra forma ausente; •

gerar informações a partir dos dados dessas impressões que pudessem

orientar navegações cruzadas na constelação de imagens reunida no sistema.

Entretanto, a abordagem inicialmente idealizada para o estudo das impressões dos usuários, quanto às características do espaço arquitetônico perceptíveis nas imagens fotográficas, contemplava isoladamente os resultados para cada binômio. Isto é, centrava-se no estudo das respostas dos usuários para cada par de qualidades, como por exemplo, opacidade-transparência, sem relacionar essa resposta àquela dada aos demais binômios. A integração do método dos diferenciais semânticos ao desenvolvimento da Fase II do projeto ARQUIGRAFIA abriu possibilidades mais abrangentes de convergência de dados, contemplando análises integrais do conjunto de respostas dos usuários, expresso como um gráfico com a síntese de suas opiniões (ALP, 1993; HIMMELFARB, 1993; JERRARD, 1998). Com base nos binômios, o resultado de uma dada impressão individual sobre a arquitetura representada em uma imagem fotográfica no ARQUIGRAFIA pode ser representado por uma outra imagem: um gráfico que define seu perfil para este usuário. Reunindo vários perfis correspondentes às várias impressões individuais registradas ao longo do tempo - mantida a mesma imagem e os mesmos pares de termos opostos – é possível construir um perfil do juízo coletivo ou interpretação sobre a representação de um ambiente em uma determinada fotografia. Neste gráfico da interpretação coletiva, para cada par de Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 201

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termos opostos ou binômios há uma região de variação de dados, com maior ou menor amplitude, e o desenho resultante – seu perfil – define também, consequentemente, as regiões não marcadas por nenhuma das avaliações. Ao se reunir todas as fotografias de uma determinada arquitetura ou espaço urbano é possível compor uma constelação específica de imagens e investigar as formas de um perfil sintético que sobrepusesse todas as impressões construídas a partir de todas estas fotografias: um hiper-perfil que representasse uma certa perspectiva – também como metáfora – do imaginário arquitetônico/urbanístico. Isso explicaria como podem coexistir diversas figuras do espaço, como diversas experiências imaginárias podem coabitar e se opor entre si, excluindo toda ideia de unidade de uma época ou de concepção global do mundo, permitindo estabelecer a realidade de conflitos de oposição de grupos e de classes, suscitando a polêmica da contradição no seio de uma vida imaginária que separamos, de forma estúpida, da experiência cotidiana e prática! (DUVIGNAUD, 2007, p. 198).

A construção de um conjunto fotográfico pode se pautar por relações de semelhança ou de dessemelhança, compreendendo entre tais extremos inúmeras possibilidades para se experimentar aproximações com caráter interrogativo, especulativo, que propõem associações, agrupamentos, vínculos, proximidades e distanciamentos sugestivos. É justamente a partir desse potencial que se reconhece a natureza propriamente tensora, movediça, ambígua e cambiante do imaginário. Reconhece-se então um propósito de investigação da mobilidade das imagens com afinidades com as incursões bachelardianas: Cumpre, pois, acrescentar sistematicamente ao estudo de uma imagem particular o estudo de sua mobilidade, de sua fecundidade, de sua vida. Esse estudo é possível porque a mobilidade de uma imagem não é indeterminada. Não raro a mobilidade de uma imagem particular é uma mobilidade específica. Uma psicologia da imaginação do movimento deveria então determinar diretamente a mobilidade das imagens. Deveria possibilitar-nos traçar, para cada imagem, um verdadeiro hodógrafo que lhe resumiria o cinetismo. É um esboço de tal estudo que apresentamos nesta obra. (BACHELARD, 2001, p. 2).

Entretanto, a curva hodográfica de movimento, o gráfico ou o perfil da imagem que se deseja aferir, no caso específico do ARQUIGRAFIA, não é algo a se pré-definir, nem tampouco a se definir, entendendo essa ação como ‘marcar o fim’ de algo, denominando-o e

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estabelecendo seus limites. Justamente por considerar a natureza móvel dos processos interativos com imagens, as ações pertinentes e desejadas aqui são, em um primeiro momento, o acompanhamento e o registro de uma mobilidade que pode ser determinada a posteriori, mas que nem assim pode ser definida, visto que não se encerra, que não tem fim. Esse perpetuum mobile vem a constituir então, em um segundo momento, uma meta-mobilidade quando o próprio movimento das imagens – deslocadas pelas várias impressões subjetivas construídas a seu respeito – torna-se o motor de novos movimentos, isto é, quando os registros realizados como impressões subjetivas individuais ou interpretações coletivas são geradores de rearranjos na constelação de imagens no sistema.

Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança de imagens, união inesperada de das imagens, não há imaginação, não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação... O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas imaginário. O valor de ima imagem mede-se pela extensão de sua auréola imaginária. (BACHELARD, 2001, p. 1).

Considerando a proposta do projeto ARQUIGRAFIA de fomentar interações imaginativas, estéticas, qualitativas e interpretativas entre usuários e imagens há no horizonte dos trabalhos em andamento certas questões/problemas a investigar como por exemplo: •

Com relação ao tempo: como esta relação individual/coletiva se

comportaria ao longo de um certo período de tempo? Se um mesmo usuário registrar suas impressões de uma mesma imagem várias vezes ao longo de um certo período de tempo haverá alterações? E se houver quais seriam estas alterações? Há imagens mais estáveis e menos estáveis, isto é, há imagens cujas impressões individuais e interpretações coletivas destoariam pouco ao longo do tempo, ou seja, há mais coincidências do que discordâncias quando se compara no tempo as impressões individuais e a interpretação coletiva resultante; e há imagens com relação às quais há mais discordâncias entre impressões individuais e entre estas e a interpretação coletiva? Como variariam as interpretações coletivas com relação à quantidade de impressões registradas a seu respeito? Uma interpretação construída com base em uma Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 203

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dezena de impressões se preservaria quando a imagem registrasse uma centena de impressões? •

Com relação às interações entre perfis: que imagens teriam

impressões/interpretações representadas por perfis individuais/coletivos semelhantes ou coincidentes? Que imagens teriam impressões/interpretações representadas por perfis individuais/coletivos discordantes ou divergentes? Que imagens teriam perfis individuais/coletivos invertidos ou espelhados entre si? Que imagens expressariam os valores máximos de determinados qualidades, como por exemplo, horizontal? Que imagens estariam no extremo oposto destas representando os valores máximos da qualidade oposta? Há imagens que expressariam valores máximos para mais de uma qualidade? Que imagens teriam impressões/interpretações mais próximas de valores neutros, isto é, não são consideradas em avaliações individuais/coletivas nem como predominantemente verticais nem tampouco horizontais, por exemplo? Como cada uma destas associações repercutiria em termos de tempo (períodos, décadas, um certo ano específico, por exemplo) e em termos de espaço (lugares, cidades, regiões, etc)? •

Com relação à síntese de perfis: Que perfil-síntese seria composto para

uma arquitetura específica – o edifício do SESC Pompéia, por exemplo – ou um espaço urbano específico – o aterro do Flamengo, por exemplo – ao se reunir e conjugar todos os perfis de todas as suas imagens presentes no sistema? Que qualidades predominariam na sobreposição das várias impressões registradas no sistema? Por outro lado, quais qualidades seriam pouco expressivas nesta síntese? O perfil-síntese deste edifício seria semelhante a quais outros? Seria oposto a quais outros? •

Com relação aos lugares: considerando um determinado lugar, como

Recife, por exemplo, seria possível aferir quais os perfis predominantes nas impressões/interpretações de suas arquiteturas? Haveria semelhanças/dessemelhanças destes perfis com aqueles predominantes em outras localidades? Quais? Seria possível identificar perfis predominantes por regiões? Haveria uma distribuição homogênea ou

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heterogênea de determinados perfis considerando diferentes escalas: um território municipal, metropolitano ou estadual? •

Com relação à experiência direta do espaço: que diferenças poderiam

ser percebidas entre as impressões registradas por usuários que vivenciaram diretamente in loco os espaços arquitetônicos representados nas imagens fotográficas e as impressões dos usuários que não vivenciaram esta experiência? Haveria diferenças e quais seriam elas entre o registro de uma impressão à distância e o registro de impressões in loco sobre uma determinada fotografia enquanto o usuário vivencia e percorre o próprio espaço arquitetônico valendo-se de um dispositivo móvel como tablet ou smartphone com um aplicativo do sistema?

Que novas constelações de imagens podem ser construídas com base nestas questões/problemas? Que reflexões, indagações e revisões de entendimento sobre a arquitetura e os espaços urbanos podem ser estimuladas por constelações de imagens constituídas assim de maneira coletiva e colaborativa na Internet? Que novas compreensões sobre os juízos individuais, coletivos, suas interações, encaixes e desencaixes, podem advir destes universos iconográficos? Dessas questões problemáticas que orientam o projeto derivam tanto possibilidades futuras de navegações cruzadas no acervo quanto novas possibilidades de apresentação e organização do próprio acervo, como a constituição automática de páginas específicas reunindo imagens e interpretações de certas arquitetura e/ou espaços urbanos na medida em que adquirem um número significativo de representações fotográficas e de impressões – uma página para a Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre, por exemplo – sendo que para estas páginas podem também convergir informações pertinentes e complementares já existentes e disponíveis na Web. A revisão dos procedimentos tradicionais da história da arte comuns também à história da arquitetura proposta tem o intuito de provocar novas reflexões e proposições teóricas que considerem o potencial associativo e imaginário dos sistemas colaborativos na Web, pretendendo estimular assim reaproximações ao fenômeno urbano e arquitetônico por meio de sua visualidade, considerando as subjetividades e objetividades dos juízos estéticos, como e a

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necessidade de revisões críticas das concepções pré-existentes sobre a representação da arquitetura, suas concepções teóricas e suas conformações espaciais.

Considerações finais O ARQUIGRAFIA sempre pretendeu se constituir – e se constitui, de fato – em um campo experimental para investigações multidisciplinares várias: dos procedimentos técnicos de conservação de material fotográfico ao desenvolvimento de software; da ontologia e folksonomia à fotografia como documento e arte visual; das dinâmicas de interação em ambientes colaborativos ao design centrado no usuário; da metodologia de projeto às políticas públicas de digitalização e difusão de informações na Internet; etc. Pesquisadores de quatro institutos da Universidade São Paulo – a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP), o Instituto de Matemática e Estatística (IMEUSP), a Escola de Comunicação e Artes (ECAUSP), a Faculdade de Direito (FD) – reunidos no Núcleo de Apoio à Pesquisa em Ambientes Colaborativos na Web (NaWeb – NAPUSP) em parceria com a Biblioteca da FAUUSP promovem sobre este projeto a convergência de linhas de pesquisa dedicadas ao estudo das representações no âmbito da arquitetura; da engenharia de software e mineração de repositórios; de inteligência artificial e lógica; da ciência da informação, quanto à organização e representação da informação e do conhecimento; do direitos autorais e suas peculiaridades na Internet. Essas linhas são conduzidas na prática das atividades de pesquisa de maneira integrada por docentes, técnicos, estudantes de pósgraduação e estudantes de graduação de todos as instituições mencionadas. Dentre tais vertentes, foram expostas aqui certas possibilidades de investigação crítica de alguns aspectos fundamentais do que Jean Duvignaud (2007, p.197) denomina “sociologia do

imaginário”

que

encontra

fundamentação

empírica,

no

caso

específico

do

ARQUIGRAFIA, no campo de estudo das interações entre: •

as formas do dinamismo coletivo, correspondentes aqui tanto à

constelação de imagens fotográficas construída pela contribuição/colaboração de cada usuário, quanto também às interpretações coletivas sobre imagens resultantes da reunião de várias impressões individuais registradas por cada usuário; •

suas representações como metáfora, símbolo ou perfil, podendo ganhar

formas gráficas várias desde o gráfico até o painel e a constelação iconográfica; Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 206

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as formas do dinamismo individual, correspondentes aqui tanto às

imagens fotográficas construídas por cada usuário, quanto também às impressões particulares registradas por cada usuário a partir de diferenciais semânticos.

Entende-se que, a partir do estudo dessas interações e da criação de novas formas simbólicas de representação destas interações, como infográficos e constelações iconográficas, podem ser sondadas, exploradas e delineadas, em alguma medida, matrizes do imaginário arquitetônico.

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A tecnologia como religião: imaginário tecnológico e religioso na cibercultura - o culto à Apple The technology as réligion: imaginary technological and réligieux in the cyberculture the cult of Apple La technologie comme réligion : l’imaginaire technologique et religieux dans la cyberculture – le culte à Apple Jorge MIKLOS 1 Universidade Paulista, São Paulo, Brasil

Resumo: O objetivo deste trabalho é examinar o fenômeno do imaginário tecnológico contemporâneo que denominamos de tecnorreligiosidade, que abrem uma possibilidade de reencantamento num mundo na órbita de uma racionalidade esgarçada. Nesse quadro temático, o objeto de estudo coincide com o recorte específico que denominamos de Culto à Apple na medida em que apresenta uma forma contemporânea de religiosidade que funda o laço entre as pessoas e que possui um significado propriamente espiritual. O estudo, de caráter bibliográfico, está amparado nas reflexões alastradas por Benjamin (2013), Heidegger (2007), Trivinho (2002), Noble (1997), Davis (1998), Kolakowski (1977). Conclui-se que a cibercultura está permeada por uma motivação mística que aponta para uma afinidade entre tecnologia e religiosidade. Palavras-chave: Imaginário tecnológico; reencantamento do mundo; cibercultura; tecnorreligiosidade; culto à Apple Abstract: The aim of this study is to exam the phenomenon of the contemporaneous technologic imaginary which we name as techno-religiosity, that opens a possibility of reenchanting in a world around a tore apart rationality. In this thematic picture, the object of study encounters with the specific patch named "Apple Worshipping", on the measure that presents a contemporaneous form of religiosity that funds the bond between people and that has a meaning properly spiritual. The study, one of bibliographic kind, is aided on the reflexions made by Kolakowski (1977), Feenber (1999), Maffesoli (1997), Davis (1998), and others. It is concluded that the cyberculture is fulfilled by a mystic motivation that points out to an affinity between technology and religiosity. Keywords: Technologic imaginarium; reenchantment of the world; Cyberculture; technoreligiosity; Apple worshipping

Tecnorreligiosidade: alcances e limites de um processo 1

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Mais de 1700 pessoas fizeram fila para a abertura da primeira loja da Apple no Brasil, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, na manhã de um sábado 15 de fevereiro de 2014. Desses, 163 viraram a madrugada nas dependências do shopping para serem os primeiros a entrar. Segundo matéria do jornal Folha de São Paulo, houve momentos de jogo de futebol, com consumidores gritando “Apple, Apple, Apple!'' e até volta olímpica de vendedores 2. Um ritual profano? No Reino Unido, cientistas descobrem que produtos da empresa de Steve Jobs provocam nos seus fãs reações no cérebro semelhantes às das experiências religiosas. A surpreendente descoberta foi mostrada no programa da BBC Secrets of the Superbrands. A produção do programa pediu a cientistas para analisarem o que acontece ao cérebro de um fanático da Apple enquanto observa os gadgets produzidos pela empresa. Alex Brooks, usuário fiel da Apple, se ofereceu para participar da pesquisa. Os especialistas colocaram Alex Brooks numa máquina de ressonância magnética e estudaram, em real, as alterações fisiológicas do seu cérebro cada vez que lhe era mostrada uma fotografia de um produto Apple. Quando comparadas estas medições com outras semelhantes realizadas em pessoas muito religiosas - e expostas a imagens ligadas à sua fé - os neurologistas encontraram efeitos semelhantes. Ou seja, o cérebro de Alex Brooks reagiu perante um iPhone ou um iPad de uma forma parecida com a reação de um cristão fundamentalista perante um crucifixo, por exemplo. Os especialistas colocaram Alex Brooks que além de manter uma página na net dedicada aos aparelhos da maçã ainda invoca o recorde de ter estado presente na inauguração de 30 lojas da marca em todo o mundo, numa máquina de ressonância magnética e estudaram, em tempo real, as alterações fisiológicas do seu cérebro cada vez que lhe era mostrada uma fotografia de um produto Apple. 3 Em matéria publicada pelo jornal O Estado de São Paulo em 13 de junho de 2010 Uma religião chamada Apple: A empresa acumula seguidores fanáticos que estão dispostos a pagar caro para ter um de seus produtos, como o recém-lançado iPhone 4. Eles demonstram uma fidelidade rara em relação a outros setores da economia e gastam o quanto for necessário para ter o último lançamento da empresa que, 2

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/152468-primeiraloja-da-apple-no-pais-abre-com-fila-de-1700-pessoas.shtml Acesso em 30.ago.2015. 3 Disponível em: . Acesso em 29 ago. 2015. 7 ALI, Aftab. Russian teenagers 'set on fire' while trying to take the 'ultimate selfie' on train roof. 12/06/2015. Disponível em Acesso abr.2015; GUELMAN, Leonardo. Univvverrsso Gentileza. Mundo das Ideias, 2008.

Bachelard (1978) vai apontar a importância do poético como conhecimento. Ele se esforçou para distinguir a imaginação enquanto simples registro passivo, da imaginação que, aliada à vontade, é poder de criação. O filósofo tem o grande mérito de ter reabilitado a poesia como meio de conhecimento; poesia que é do domínio do simbólico, do sensível, do subjetivo. Tudo o que pode esperar a filosofia é tornar a poesia e a ciência complementares, é uni-las como dois contrários bem feitos [...] Bachelard vai descobrir que o imaginário, muito longe de ser a expressão de uma fantasia delirante, desenvolve-se em torno de alguns grandes temas, algumas grandes imagens que constituem para o homem os núcleos ao redor dos quais as imagens convergem e se organizem (DURAND, 2005, p.13/14).

Segundo Durand, os sistemas simbólicos não são independentes, pois eles nascem de uma visão de mundo particular, imaginária, que é da própria cultura. O trabalho do Profeta Gentileza nos mostra os vínculos e intercâmbios com a sua cultura. Este artista-designer produz “representações” de um imaginário particular através de símbolos cheios de Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 906

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significados, que contém a essência de suas pulsões culturais subjetivas. Através do seu mapa imaginário, a obra do Profeta resgata algo, e conecta-nos a uma noção de pertencimento com a cultura e com a imagem produzida, [...] não se trata de classificar uma cultura em tal ou tal estrutura, mas de perceber qual é a “polarização” predominante, isto é, o tipo de dinamismo que se encontra em ação, o que leva a determinação do trajeto antropológico” em determinada cultura ou grupo social. O trajeto antropológico é “o incessante intercâmbio existente, ao nível do imaginário, entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social”[...] O trajeto antropológico pode partir tanto da cultura como do natural psicológico, o essencial da representação e do símbolo estão contidos entre essas duas dimensões (PITTA, 2005, p.19 e 21).

A importância desta abordagem que relaciona Design, Arte e Imaginário, possibilita e reúne condições de promover a aproximação com o aspecto simbólico do design e da arte, instrumentalizando o designer para trabalhar com as questões mais sutis na sua prática. Essa necessidade de aproximação com o que não está visível se dá de maneira mais efetiva, quando o designer precisa ir além da organização de elementos visuais na sua produção, ou seja, quando ele precisa dotar de sentido e significado aquela peça para a qual busca uma solução (MARTINS, 2008). Os estudos acerca do imaginário definem que este é o “reservatório e motor”. É reservatório, porque agregam imagens, sentimentos, lembranças, experiências que estão ligadas à realização do que foi imaginado. Nessa condição, alimenta um modo de ser e agir, sentir e querer. Muchas veces, el análisis dura más que la respuesta gráfica, porque diseñar implica básicamente compreender, conlleva diseccionar uma cantidad de aspectos que a veces no son explícitos a simple vista. Y es que el diseño comienza mucho antes y termina mucho después de la forma (FONTANA, 2003, p.80).

É lógico que o design precisa ter uma função e um objetivo, mas questões culturais, artísticas e estéticas são inerentes aos humanos que produzem ou “consomem” arte e design. Se o objeto de design e de arte não tem significado para o indivíduo, cai no vazio. Pinheiro e Pantaleão (2009) em seu texto Criatividade e Inovação: intuição e acaso em arte e design, trazem a seguinte observação acerca do assunto:

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A distinção tornada familiar entre as chamadas belas-artes e as artes úteis ou industriais “só se tornou preeminente no decurso do século XVIII, na Europa ...” (OSBORN 1974, p. 120-1). Neste sentido apontava também o sociólogo da arte Pierre Francastel, em 1948: "Não existe oposição natural entre Arte e técnica. É bem injustamente que os teóricos do mundo moderno partem dessa hipótese. Muito pelo contrário, a Arte e a técnica sempre estiveram até hoje ligadas uma à outra" (1973, p. 49-50). Arte e Design trazem um sentido filosófico, social, político e cultural. Objetos de Arte e Design contêm significados e funções. Refletimos que artistas e designers precisam estar conectados a sua época, tecnologias e demandas para que seja possível uma renovação das tradições. Situações novas pedem compreensão para que possamos entender a lógica estrutural entre o artista e o designer. Arte e design se constituem como dois organismos vivos que se relacionam continuamente. No complexo ecossistema artístico atual, as simbioses ocorrem gerando hibridações e dinâmicas potentes para cada parte. Sabemos que são dois polos, são dois campos distintos do conhecimento, porém não precisamos fragmentá-los e sim compartilhá-los. Pensamos que o design é um ponto central que reúne vários campos do conhecimento: economia, cultura, sociologia, antropologia, arquitetura, engenharia, arte, entre outros, pois, para desempenhar este ofício é necessário ter pensamentos e ações entrelaçadas e complexas. En mi opinión, el diseño no es arte, pero eso no implica que deba reducirse unicamente a um processo mecânico de planificacíon y de método. En la solución de um trabajo de diseño, em lá solución de los problemas que plantea cualquier comunicación, se aplican orros índices tales como ingenio y la innovación y altíssimas dosis de cultura visual estética (FONTANA, 2003).

Segundo Fontana (2003), arte e design se diferem no modo em que o trabalho é abordado. Muitas semelhanças e diferenças se empenham em confundir estas atividades, porém arte e design seguem os mandamentos do mercado e da estética. O design se afasta da arte, ou seja, da liberdade da arte, pois este precisa de verificação e constatação. Talvez o problema de entender o design comece na dificuldade de ser encarado como um ofício instituído. Pareyson, a fim de estabelecer um equilíbrio, entre estética e funcionalidade teoriza: De modo que arte e utilidade, beleza e funcionalidade nascem juntos, inseparáveis e coessenciais, e a mesma arte desempenha uma função utilitária, e a própria finalidade econômica transparece de uma pura forma. Então o julgamento estético só é possível através do utilitário, e a utilização não é completa se não vem acompanhada da satisfação estética; em suma, a

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fruição alcança a sua plenitude apenas na inseparável duplicidade dos aspectos estéticos e econômico (2001, p. 54).

Arte / ciência, neste sentido, é a primeira relação de ligação com o design, desenvolvida a partir da estética e da funcionalidade. Relações cuja relevância, no que diz respeito à natureza do pensamento humano, são fontes primárias do processo criativo na promoção evolutiva do conhecimento. As relações entre design, arte e imaginário podem desenvolver uma fonte atuante da ideia e da representação mental da imagem. Energia que se formaliza individual e coletivamente, materializando-se em ações informadas por imagens e símbolos. Uma espécie de relação psicológica do homem com seu meio, os lugares físicos de vida íntima, o elo afetivo entre a pessoa e o lugar. No irremediável rasgão entre a fugacidade da imagem e a perenidade do sentido que o símbolo constitui, precipita-se a totalidade da cultura humana, como uma mediação perpétua entre a esperança dos homens e sua condição temporal (DURAND, 1995, p.108). “La obra de arte es un bien cultural, el diseño también; pero de cada uno se esperan cosas distintas, cada uno proyecta esperanzas particulares” (FONTANA, 2003). A incorporação da dimensão do sensível em design a partir do profeta gentileza Os designers experientes desenvolvem projetos por meio de várias abordagens e metodologias, porém há uma parte do trabalho do processo de design que peculiar a cada designer, e não é facilmente definida pela análise prática. O design é uma mistura de decisões racionais e conscientes que podem ser analisadas e decisões subjetivas, na dimensão do sensível que não podem ser deliberadas tão prontamente, uma vez que derivam da experiência e da criatividade do designer. Por essa razão, vemos alguns profissionais constrangidos e evasivos quando questionamos sobre seu processo de trabalho, sugerindo que um exame mais detalhado do seu trabalho restringiria sua criatividade. O Profeta Gentileza produziu um trabalho que não poderia ser sufocado pela racionalidade, não era apenas uma expressão pessoal e visões acerca da sua individualidade, ele não queria ser sufocado pelo “sistema”, por isso nunca se intitulou artista ou designer. Se colocava como um “Louco Salva-Vidas” que abandonara o capitalismo. Tal como várias

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atividades criativas, o design tem “N” fatores indefiníveis, e examiná-lo muito minuciosamente significa arriscar-se a destruí-lo. Ou seja, a dimensão do sensível tem influência sobre o projeto de design e com frequência o designer projeta soluções com base em sua experiência ou instinto, no lugar de fazê-lo como resultado apenas de uma decisão técnica. A dimensão do sensível no design torna-se parte da memória, do imaginário, da vida. Essas são habilidades desenvolvidas por intermédio da prática e que se tornam tão arraigadas que dificilmente tem-se consciência delas como parte do processo.

Figura 2: O Profeta Gentileza e sua obra.

“Gentileza gera gentileza” era o principal lema de José Datrino (figura 2), o Profeta Gentileza (1917 – 1996). O Profeta carregava flores, a simbólica folha de uma palmeira e um estandarte que abrigavam palavras escritas de forma singular. Trazia em suas mãos a produção e materialização de seus ensinamentos através de uma estética peculiar. O Profeta Gentileza ou “Jozze Agradecido" foi figura marcante no Rio de Janeiro e em algumas cidades do Brasil por onde passou. A obra Profeta se inclui na arte urbana porque esta é definida como uma arte contemporânea, de cunho popular, que é feita em espaços externos da cidade, sobre o mobiliário urbano, sejam eles paredes, muros, placas e todo tipo de aparato de sinalização. Ela é transgressora já que, em certo sentido, não respeita os limites do público e do privado para se fazer expressar. Sua obra também contribui na formação de um referencial teórico relacionado com o design vernacular ou de práticas realizadas por não‐designers. No design, em termos gerais, pode-se ver nos últimos anos um ressurgimento do interesse pelas manifestações vernaculares, pelos objetos que nascem na rua, que são utilizados como meio de vida a partir da espontaneidade. A partir de 1970 percorreu toda a cidade do Rio de Janeiro. Era visto em ruas, praças, nas barcas da travessia entre o Rio e Niterói, em trens e ônibus, fazendo sua pregação, levando flores, palavras de amor, bondade, respeito ao próximo, a natureza e a todos que Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 910

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cruzassem seu caminho. Aos que o chamavam de louco, ele respondia: “Sou maluco para te amar e louco para te salvar”. A filosofia popular do Profeta Gentileza não é uma mera oposição ao quadro geral da violência e do capitalismo. O Profeta percebeu mais a fundo as contradições da realidade. A seu ver, é no “capeta-capital”, neologismo criado por ele, que se encontra a origem dos males e a verdadeira oposição à gentileza. O individualismo, a lógica da competição e a ética de levar vantagem em tudo, tornam-se regras desse contexto. A metáfora do circo como solo profético de Gentileza prepara a sua missão no mundo. Como Profeta, denuncia uma crise nas relações humanas e lança em sua criação e composição artística uma alternativa: o princípio da gentileza, expresso em sua máxima universal – GENTILEZA→GERA→GENTILEZA (figura 3).

Figura 3: Design Gráfico com expressão artística. Fonte:< http://www.somjah.com/2012/01/genlileza-geragentileza-pense-nisso.html>. Acesso dez. 2014.

Gentileza mostrou as pessoas o real sentido das palavras gentileza e agradecido. Ele sugeria que se alterasse a expressão, por favor, que remete a tática capitalista de troca baseada no interesse, pela expressão por gentileza. O profeta também condenava a palavra, obrigado, porque para ele ninguém seria obrigado a fazer nada. No lugar desta, dever-se-ia usar expressões calcadas no amor, como é o caso da palavra agradecido. Figura multifacetada, Gentileza concentrou uma multiplicidade de sentidos. Alegre, brasileiro, colorido, irreverente e criativo, o Profeta representava a personificação de um louco, um palhaço, um místico, um artista e tantos outros personagens que estão à margem de nossa sociedade.

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À performance e a manifestação artística interdisciplinar do Profeta foi composta por gesto, poesia, palavra, arte, design, ousadamente refletimos que desta forma Gentileza liga-se historicamente aos movimentos de vanguarda do início do século XX. Assim como o Profeta, os artistas modernistas deste período buscaram um corte absoluto com o passado, com a moral burguesa, com a tradição academicista e conservadora da arte. O objeto de arte e de design ganham autonomia para representar a realidade, tornando-se a expressão dos sentimentos do artista, que cria pelo prazer ético-estético, simbólico e como forma de intervenção e crítica social. Figura 4: Estandarte

Figura 5: Catavento

Fonte: GUELMAN, Leonardo.

Fonte:

Univvverrsso Gentileza. Mundo das Ideias, 2008.

Os elementos que compunham a imagem do Profeta Gentileza eram vistos em seu estereótipo, sua indumentária e nos acessórios que o acompanhavam. Trazia sempre em mãos um estandarte em forma de painel que continham inscrições onde a tipografia era cuidadosamente desenhada. Cataventos e a bandeira do Brasil também faziam parte do seu contexto mítico-poético-artístico (figuras 4 e 5).

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Figura 6: Sapatos de Gentileza. Fonte: GUELMAN, Leonardo. Univvverrsso Gentileza. Mundo das Ideias, 2008.

Ainda nas palavras de Guelman (2008), o estandarte, que consideremos um design de produto de Gentileza constitui sua verdadeira carteira de identidade mítica. É através dela que Gentileza se apresenta ao mundo como Profeta. Até mesmo seus sapatos (figura 6) eram recheados de simbologia divina estampados nas cores do Brasil. A partir dos anos 80, Gentileza faz uma grande intervenção na paisagem urbana do Rio de Janeiro. O suporte escolhido foram às pilastras do viaduto do Caju, que vai do Cemitério do Caju até a Rodoviária Novo Rio, numa extensão de aproximadamente 1,5km. O que o levou a escolher este local, foi exatamente o reconhecimento da rodoviária como o portal de entrada para a Cidade Maravilhosa, além de possuir grande fluxo de pessoas que transitam pela cidade. Este cenário é considerado o maior mural espontâneo do Rio de Janeiro, constitui-se num livro aberto, sem camuflagens e ao alcance de todos (figuras 7 e 8).

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A obra de Gentileza demarca um espaço e uma permanência – mesmo que ameaçada – para sua mensagem. Desta feita, o Profeta não pinta mais sobre placas, mas diretamente sobre a superfície do concreto. Sua grafia e seus signos, já presentes em seu estandarte e em placas que realizava, se inscrevem agora na própria cidade, transformando pilastras em tábuas de seus ensinamentos (GUELMAN, 2008, p. 47).

Ao todo, foram pintados 55 murais, todos com um valor estético peculiar, reconhecidos pelo seu rigor técnico, acuidade na composição e uso das cores (brasileiras). Seus traços eram característicos e uniformes, conferindo à palavra escrita toda a força de seus pensamentos e criatividade. Gentileza se volta para um sentido de humanização da vida e da arte na cidade contemporânea. As cidades marcadas pela violência e pelo desapego de seus habitantes colocam-se para o Profeta como um mundo a se restabelecer. Assim se deu com o local do circo em Niterói, e com o viaduto do Caju no Rio de Janeiro. Sobre as cinzas e sob a fumaça dos viadutos da megalópole, em seus lugares mais inóspitos e desolados, um homem, vindo de Cafelândia, vem exaltar seu anúncio, transposto em letras azuis e em faixas verde e amarelo (GUELMAN, 2008, p.51).

Segundo Haslam (2007), o design gráfico é desenvolvido por meio de várias abordagens e podem ser classificadas em quatro grandes categorias: documentação, análise, conceito e expressão. Essas categorias não são mutuamente excludentes; é improvável que um projeto de design se baseie inteiramente em uma única abordagem. A maioria inclui um elemento de cada uma, embora não necessariamente na mesma proporção. Apesar de não ser reconhecido com designer, o trabalho de Gentileza tem a presença das quatro categorias. O trabalho envolve documentação, pois Gentileza registra e preserva as informações por meio do texto e da imagem. A documentação está na raiz da escrita e da imagem, sem isso não teríamos uma linguagem visual preservada, mas somente gestos. A documentação preserva ideias e permite que sobrevivam a memória e o discurso dos humanos. Os documentos (murais, cartazes estandartes do Profeta) dão uma forma externa ao pensamento internalizado. A partir da documentação que a obra de Gentileza transcendeu o tempo, sem restrições geográficas ou de épocas. Podemos também notar a abordagem analítica em sua obra, pois seus livros urbanos (pilastras do viaduto do Caju) se apoiam e lidam com informações factuais e complexas. Tipografia única, acuidade visual e referências-cruzadas são projetadas para permitir que o leitor confronte os dados, reflita e faça questionamentos. A abordagem analítica busca encontrar a estrutura de um conteúdo, tal abordagem impõe uma estrutura de dados, de modo Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 914

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que se torne mais inteligível. A análise nasce do racionalismo: é a busca por um padrão discernível dentro de uma massa de informações. A expressão também é uma categoria que permeia a obra de Gentileza. Uma abordagem expressiva é motivada pela materialização das emoções do autor. Em alguns casos é orientada pelo coração e intuição (dimensão do sensível), ela é visceral e passional, pois busca reposicionar emocionalmente o leitor por meio da cor, marcação e simbolismo. O design expressivo é frequentemente lírico, não se destina a transmitir apenas significados para a mente, mas propões questionamentos e convida a reflexão. Por fim, temos a abordagem conceitual, “ a grande ideia”, conceito que retém em si a mensagem. Pode ser chamada de “ideia gráfica”, ideias complexas projetadas em visuais sucintos e vigorosos, com frequência. Normalmente é arguta e inteligente, faz uso de trocadilhos, metáforas, clichês, alegorias é um jogo de palavras que precisa ser compartilhada com o público-alvo. Gentileza fez uma singular intervenção artística na cidade. Com uma percepção própria, ele criou uma obra viva, um livro urbano. Em cada pilastra há um jogo, em cada escritura, uma mensagem. Todo o conjunto é patrimônio não só artístico, mas também afetivo da cidade - destaca o coordenador da restauração e do movimento Rio com Gentileza, o professor da Universidade Federal Fluminense - UFF, Leonardo Guelman. Para ele, a expressão GENTILEZA→GERA→GENTILEZA" já é de toda a coletividade (GUELMAN, 2008). Após sua morte as autoridades mandam cobrir todo o trabalho de Gentileza com tinta cinza. Inesperadamente a sociedade carioca reage contra a violência do poder público em apagar a obra do Profeta. Surge então o movimento “Gentileza Gera Gentileza”, uma ONG sociocultural com objetivo primordial de divulgar e perpetuar a palavra do Profeta através da democratização da cultura. Tidos afinal como bens culturais, os 55 murais de Gentileza foram tombados por decreto do prefeito Luiz Paulo Conde, em 2000. A importância desta abordagem que relaciona Design, Arte e Imaginário, possibilita e reúne condições de promover a aproximação com o aspecto simbólico do design e da arte, instrumentalizando o designer para trabalhar com as questões mais sutis na sua prática. Os estudos acerca do imaginário definem que este é o “reservatório e motor”. É reservatório, porque agregam imagens, sentimentos, lembranças, experiências que estão ligadas à realização do que foi imaginado. Nessa condição, alimenta um modo de ser e agir, sentir e querer. As relações entre design, arte e imaginário podem desenvolver uma fonte atuante da ideia e da representação mental da imagem. Energia que se formaliza individual e

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coletivamente, materializando-se em ações informadas por imagens e símbolos. Uma espécie de relação psicológica do homem com seu meio, os lugares físicos de vida íntima, o elo afetivo entre a pessoa e o lugar.

Considerações finais Esta breve análise recebeu o aporte das avaliações e informações qualificadas de estudiosos. Os resultados e conclusões são reflexões sobre a obra do Profeta Gentileza a partir das relações entre a arte, o design e o imaginário na contemporaneidade, que resultam em possibilidades de utilização de métodos e técnicas não convencionais, que consideram as emoções e o sensível como dado importante para o processo e a produção do design contemporâneo, pautado nas referências éticas contidas na narrativa visual mítica deste profeta, artista contemporâneo e designer vernacular brasileiro. O trabalho com os conteúdos subjetivos pressupõe a aproximação dos sentidos e das emoções, possibilidade que reúne condições de dotar uma determinada solução visual plena de significado e, portanto, supostamente mais eficiente. Ou seja, a partir desse entendimento forma e conteúdo unem-se para bem comunicar, num movimento de busca da “alma do design”. Esse movimento que se afasta das “produções vazias de significado” (MARTINS apud FERLAUTO, 2002). A intenção é estabelecer os elos de conexão possíveis dos estudos do imaginário com os processos de arte e design, reforçando o propósito de apresentação de novas formas que contemplem conteúdos capazes de proporcionar o encontro com o aspecto simbólico. Vimos que o imaginário é faculdade de simbolização donde provêm, os anseios, os sonhos, as paixões e as percepções sócio-político-cultural e religiosa. Examinamos a obra do Profeta Gentileza como um clamor popular que nasce da relevância dos conteúdos trazidos do imaginário. O imaginário envolve muitos aspectos relacionados à consciência, uma vez que, para a consciência, só tem existência, só tem significado, aquilo que tiver um valor. A artista faz uma trama imagética carregada de interioridades e exterioridades singulares e particulares. O conhecimento sensível registrado em sua obra é organizado pela sua percepção particular do mundo. É através do imaginário que o homem cria e recria, constrói significados e ressignifica simbolismos, para explicar o que não consegue por via lógica e/ou racional. O trabalho do Profeta Gentileza nos mostra os vínculos e intercâmbios com a sua cultura, o artista-designer produz “representações” de um imaginário singular através de

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símbolos cheios de significados, que contém a essência de suas pulsões culturais subjetivas. À manifestação artística particular transcende por intermédio de uma autonomia consciente, ela se serve das vivências, segredos, memórias e percepções como instrumentos que propiciam a voz a sua cosmovisão. A obra revela uma relação da arte, do design e do imaginário, estreita, complexa e profunda. A mitocrítica não limitou o estudo do mito a sua essência mais profunda, pois compreendemos a sua relação com as dinâmicas da produção humana nos contextos artístico e cultural. Abordando a tensão arte, design e imaginário na contemporaneidade, vimos uma situação caótica, pois a banalização da imagem faz com que a sociedade perca de vista a verdadeira essência da experiência simbólica. O modelo mítico construído pelo artista desperta símbolos, provocações. O caráter do design vernacular na obra transmite informações de uma cultura, a narrativa visual traz um contexto socioeconômico e cultural, além de expressar ideias dentro de um sentimento poético sagrado. O processo artístico vem como artifício de transformação pessoal embasados em vivências particulares de extrema dor e extremo prazer. Olhamos o objeto artístico e de design do Profeta Gentileza além do projetual, da técnica, olhamos com os sentidos. Como uma obra polissêmica, ressaltamos a valorização das relações entre arte e design como veículo comunicador de mudanças da realidade social e cultural. O design se aproxima da arte no momento em que precisa prestar atenção nas questões culturais, políticas e históricas. Neste momento falamos de uma das funções da arte. O design pode ter uma expressão artística. Artistas e designers recebem e estabelecem influências em um contexto de relações recíprocas em variados momentos históricos. Podemos falar em pluralidades constitutivas em objetos que conectam arte e design rumo à criação do novo, do original e da renovação das tradições. Temporariamente encerramos a pesquisa com a cabeça ainda inundada de questionamentos, inerente àqueles que intuem que as relações entre arte, design e imaginário não podem ser enclausuradas em algumas páginas, tudo é muito vasto, assim como o imensurável espaço cósmico.

REFERÊNCIAS ARAÚJO, Alberto Filipe. TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez.

Gilbert Durand e a

pedagogia do imaginário. Letras de Hoje. USP. São Paulo, 2009. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 917

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DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

DURAND, Gilbert. O imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 2005.

FERREIRA, Maria Alice. Arte Urbana no Brasil: expressões da diversidade contemporânea. VII Encontro Nacional de História da Mídia. Paraná, 2011.

FINIZOLA, Fátima. Tipografia vernacular urbana: uma análise dos letreiramentos populares. São Paulo: Blucher, 2010.

FONTANA, Ruben e CALVERA, Anna. Arte & Diseño. Barcelona. 2003.

GUELMAN, Leonardo. Univvverrsso Gentileza. Mundo das Ideias, 2008.

HASLAM, Andrew. O Livro e o Designer II – Como criar e produzir livros. Edições Rosari, São Paulo, 2007.

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MARTINS, Irapuã Pacheco. Uma reflexão à luz das teorias do imaginário para pensar outras/novas formas de ensinar design. AnpedSul 2008. PAREYSON. Luigi. Os Problemas da Estética. Martins Fontes, São Paulo, 2001.

PINHEIRO, Olympio José e PANTALEÃO, Lucas Farinelli. Criatividade e Inovação: Intuição e acaso em arte e design. 8º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – Salvador, ANPAP 2009.

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PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação a teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de Janeiro, Ed. Atlântica, 2005. STANGOS, Nikos. Conceitos da Arte Moderna. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1991.

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Animês e mangás: o mito vivo e vivido no imaginário infantil Animes and mangas: the living and lived myth in childhood imagination Animés et mangas : le mythe vivant et vécu dans l'imaginaire de l’enfant

Fernanda NORONHA 1 Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Resumo Trata-se de uma análise hermenêutico-figurativa do mangá Naruto. O trabalho procura lançar questões sobre a importância da figura do herói do mangá shonen nos processos iniciáticos de crianças e adolescentes. Para tanto, apoia-se, nos estudos sobre o imaginário e na jornada do herói de Joseph Campbell. O texto analisa a primeira temporada do mangá Naruto e sustenta a ideia de que o mangá Naruto constitui uma literatura iniciática que presentifica o arquétipo do herói no imaginário infantil e apresenta valor heurístico para pensarmos a dinâmica do imaginário de nossa própria época. Palavras-chave: imaginário; mito; mangás; animês; educação. Abstract It is a hermeneutic- figurative analysis of the manga Naruto, that launches questions about the importance of the shonen manga hero figure in the initiatory processes of children and adolescents students of São Paulo public schools network. For that, it relies, mainly, in the imaginary theory and in the hero journey of Joseph Campbell. The research – which had as its analysis corpus the first season of Naruto manga and supports the idea that Naruto manga constitutes an initiatory literature that makes present the hero archetype in the childhood imagination and that has an heuristic value to make us think about the dynamics of our own epoch’s imaginary. Key words: imaginary; myth; mangas; animes; education.

Em 2004 , quando iniciei uma pesquisa acerca dos jogos e brincadeiras nas escolas de educação básica paulistanas 2, chamou-me atenção a forma como as personagens dos mangás 3

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NORONHA, Fernanda. Pulando Muros: Jogos de Rua Jogos de Escola. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação. USP. São Paulo, 2008. Pesquisa de participante de caráter antropológico desenvolvida junto às escolas da rede publica da cidade de São Paulo com o objetivo de desvelar a dinâmica das brincadeiras ditas tradicionais. Este artigo é derivado da tese de doutorado defendida em outubro de 2013 junto à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo intitulada “Animês e mangás: o mito vivo e vivido no imaginário infantil”. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 920

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e dos animes se encontravam fortemente presentes nas brincadeiras e demais produções imagéticas das crianças (como desenhos e produções textuais). Em campo, via as crianças, em qualquer cantinho, na fila ao final do recreio e, às vezes, “escorregando” entre as fileiras de carteiras para o chão da sala de aula – ainda que sob o olhar vigilante dos adultos que as acompanhavam – se esforçarem para “produzir” e “bater” os disputados cards. Durante a brincadeira, a engenhosidade de meninas e meninos encontrava-se justamente na forma como estes, em um ambiente de educação formal, realizavam um arranjo entre a lógica do cardgame (um jogo de regras bem complexas que, naquele momento, tinha como tema o anime Yu-gi-oh) e a lógica de brincadeiras infantis como o “bafo” e o “joqueipô 4”. Naquela ocasião, não foi difícil perceber que o jogo de cards se apresentava ali como uma resistência das crianças em relação às expectativas da escola, evidenciando uma intensa dinâmica de trocas simbólicas que desafiava os “mecanismos de formatação do imaginário 5 e das representações infantis”, como assinalam Durand (1985) e Duborgel (1995). Ao mesmo tempo, favorecidas pelo ambiente escolar, as crianças se inscreviam em uma rede de sociabilidade infantil que se apoiava tanto na adesão às brincadeiras ditas tradicionais, quanto naquelas propostas pelos fabricantes de jogos eletrônicos e brinquedos (cardgames), dinâmica esta que, sem dúvida, era favorecida pela programação infantil das emissoras de televisão. Neste artigo, por meio de uma análise hermenêutica-figurativa 6 da primeira temporada do mangá Naruto, pretende-se mostrar que mangás e animês constituem meios pelos quais imagens pregnantes são acessadas por meninos e meninas que, ao agirem como verdadeiros bricoleurs, reelaboram narrativas míticas em suas produções imagéticas (sejam elas textos, brincadeiras, desenhos etc.). Com efeito, este texto buscará evidenciar em que medida o enredo do mangá Naruto corresponde à estrutura de uma literatura iniciática, uma vez que esta narrativa evidencia um processo de transformação profunda do herói. 3

Segundo Luyten (2004), a palavra mangá deve ser grafada com acento agudo para não ser confundido com a fruta manga ou com a manga de camisa. A palavra animê, com acento circunflexo, para garantir a entonação semelhante à da fonte, criada no Japão, que é uma corruptela de animation e denota as versões animadas dos mangás. Este artigo é derivado da tese de doutorado defendida em outubro de 2013 junto à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo intitulada “Animês e mangás: o mito vivo e vivido no imaginário infantil”. 4 Brincadeira infantil conhecida no Japão como "Jan-ken-po". 5 Trabalhar-se-á neste texto com a acepção de imaginário de Gilbert Durand (2002), qual seja: conjunto de imagens que constituem o capital “pensado” do homo sapiens e o denominador fundamental de todas as criações do ser humano. 6 A hermenêutica figurativa durandiana tem como aspecto essencial o fato de rejeitar os princípios saussurianos da arbitrariedade do signo e da linearidade significante; ao invés de entender o símbolo como mero código, essa metodologia busca identificar os dinamismos sistêmicos que evidenciem as estruturas universais do imaginário.

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Mangás: Histórias em Quadrinhos Japonesas A origem do emprego do termo mangá, assim como a ideia de que esta narrativa em quadrinhos constitui um gênero literário “genuinamente” japonês, são pontos controversos que mereceram destaque entre os estudiosos do tema 7. Em geral, a literatura especializada sustenta a ideia que esse gênero literário consiste em um desdobramento da comic art japonesa e dos desenhos chojugiga do século XII. O mangá, tal qual conhecemos hoje, um desenho sequencial e cômico destinado também às crianças, teria se tornado popular apenas em 1950, após a segunda Guerra mundial, provavelmente estimulado pelo desenvolvimento de um mercado editorial japonês de revistas e pelo trabalho de Osamu Tezuka, um conhecido artista pioneiro na animação japonesa (Ito, 2005; 466). Em geral, o mangá japonês apresenta como principais características estilísticas: o emprego da narrativa sequencial disposta em quadrinhos e contada a partir da justaposição de desenhos e escrita, cuja orientação de leitura é realizada a exemplo da escrita japonesa, ou seja, a leitura é realizada da direta para a esquerda, de cima para baixo e de trás para frente; o uso de impressão em preto e branco; uma infinidade de técnicas gráficas, que vão do estilo de Osamu Tezuka (no qual merece destaque os grandes olhos das personagens); uso de balões que apresentam os diálogos dos personagens; humor caricatural das personagens (marcado por desenhos bem expressivos, “quase sempre de olhos grandes”) e traços simples. Não obstante a presença dessas características seja largamente considerada nos estudos contemporâneos sobre os mangás, trabalhar com uma definição do gênero não é uma tarefa fácil visto que, como sustenta Furuyama (2008), japoneses e ocidentais, especificamente os brasileiros, entendem o mangá de maneiras diferentes. Para os primeiros, nos diz o autor, trata-se de uma narrativa sequencial de desenhos apreciada há tempos pelo povo japonês; já́ para os segundos, seria um “estilo de histórias em quadrinhos” feito pelos japoneses, cujos traços estilísticos mais marcantes são os olhos grandes das personagens. Uma característica marcante da produção de HQs japoneses é o fato de que mesmo quando direcionado ao público infantil, não se nota nos mangás uma cisão tão marcada entre

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Com efeito, as pesquisas realizadas por Sonia Biben Luyten (2000) são precursoras dos estudos sobre os mangás no país e têm servido de base para uma ampla frente de estudos sobre o tema. No cenário internacional, merece destaque os trabalhos de Kinko Ito (2004), Jean-Marie Bouissou (2011), Frederik Schodt’s (1983) e Johnson- Woods (2010). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 922

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uma temática adulta e uma temática infantil como a que se observa nas histórias em quadrinhos produzidas em sociedades ocidentais. Drummond-Matheus (2010), ao tratar dos HQs, discute a forma como as culturas norte-americanas e a japonesa constituíram de maneiras tão diversas o conceito de infâncias durante a década de 1960. Ela nos lembra de que “(…) em meados da década de 1960 o traço cômico e escatológico dos mangás shonen quebrou tabus fazendo referencias a temas como sexo e violência, ao passo que os quadrinistas estadunidenses lutavam contra o conservadorismo que orientava seu mercado” (tradução minha). 2- O Mangá Naruto 8 como uma Literatura Iniciática 9 Via de regra, os mangás trazem em suas aventuras personagens que precisam superar dificuldades, como provas escolares, brigas, amores impossíveis e disputas. Por isso, este artigo traz a ideia de que Naruto é a figura de um herói muito próxima das crianças e dos adolescentes e que, nessa exata medida, povoa o imaginário infantil. À exemplo do mito, nas estruturas narrativas dos mangás e animês, notadamente naquelas que seguem o estilo shounen, encontramos uma trama ancestral introdutória que garante a continuidade das narrativas subsequentes. Segundo a trama ancestral do mangá Naruto, os adultos da Vila da Folha (um lugar que fica no país do fogo, em um mundo fictício parecido com o Japão feudal) guardam as lembranças do dia em que kyuubi, a raposa maldita de nove caudas, foi selada pelo quarto Hokage no umbigo de uma criança recém-nascida (Naruto). Após esse evento, os adultos da Vila da Folha estão sujeitos a uma interdição, ou seja, devem guardar esse fato no mais absoluto sigilo, pois aquele que quebrar a lei será́ severamente punido. É por isso que nem Naruto nem os outros jovens e crianças da vila sabem dessa história (interdição). Por ter aprisionado a raposa de nove caudas no umbigo de Naruto, o quarto Hokage queria que todos vissem nessa criança um herói, mas os adultos da vila repudiam o menino e alguns acreditam que ele é a própria kyuubi, atitude que foi passada para as demais crianças.

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O mangá Naruto é uma série de mangá japonesa escrita e ilustrada pelo mangaká japonês Masashi Kishimoto. A narrativa conta a história da personagem Naruto Uzumaki, um jovem ninja que sonha em se tornar Hokage, o líder máximo de sua vila. 9 Nesta pesquisa, delimitamos nosso escopo de análise à primeira temporada do mangá Naruto, o que compreende os primeiros trinta e cinco episódios da série, período que retrata a fase pré-adolescente das personagens, na qual as personagens possuem cerca de 12 anos e o enredo gira em torno do cotidiano de provas da Equipe Sete (formada pelos estudantes Naruto, Sasuke e Sakura) e da temática do trabalho em equipe. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 923

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Constantemente retomada ao longo dos capítulos do mangá, a trama introdutória informa ao leitor (no caso do mangá) ou telespectador (no caso do animê) a origem da história e a presença de elementos mágicos, misteriosos e poderosos, representados por figuras hibridas de vários animais ou mesmo pelo garoto Naruto. As histórias de Naruto se passam no ambiente escolar, a maior parte do tempo, e remetem ao aprendizado e à saga de superação. Naruto é um péssimo aluno. Ele falta às aulas, “pixa” monumentos sagrados de sua vila e “cola” durante as provas. Da mesma forma que as crianças que assistem aos animês e/ou leem mangás, as personagens no mangá Naruto precisam superar dificuldades como provas escolares, brigas, amores impossíveis e disputas. Portanto, podemos dizer que elas apresentam às crianças a “iniciação” ao nível do imaginário. Todavia, Naruto é um herói que não traz em si tantas marcas da heroicidade se o compararmos aos heróis dos HQs americanos, pelo contrário, apesar de percorrer sua jornada, ele não possui armas nem poderes sobre-humanos. Ao contrário, na análise do manga revelase resquícios de narrativas tradicionais japonesas , marcadas pela ambiguidade e o humor semelhantes às histórias de raposas presentes na tradição oral e iconográfica japonesa 10. Autores como Eliade (1996; 1986), Vierne (2000) e Campbell (1993 se dedicaram a assinalar a importância dos ritos iniciáticos na superação dos interesses primários próprios da infância, concordam com a ideia de que os ritos iniciáticos operam como uma necessidade humana de redirecionar as energias da psique infantil para a uma nova etapa da vida, ou seja, para o ingresso na vida adulta e no coletivo de seu grupo. Nesse sentido, estamos chamando de leitura iniciática os textos que cumprem uma função religiosa no inconsciente humano e que, por isso, são capazes de orientar o espírito humano a avançar e exorcizar a infância. Trata-se, portanto, de uma leitura que atua no inconsciente, de modo a superar a infância rumo ao misterioso que habita o ser ontológico.

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Dados os limites deste artigo, não iremos nos aprofundar aqui em uma leitura propriamente durandiana do mangá Naruto (DURAND; 2002). No entanto, é importante destacar que desde o selamento da kitsune no umbigo de Naruto ocorre todo um simbolismo eufemizante – marcado por uma série de imagens de inversões e redobramentos – que opera sobre a figura do animal teriomórfico. Ao invés de ser “engolido”, o pequeno Naruto (na ocasião, um bebê) “engole” o animal feroz (uma imensa kitsune), ou seja, o pequeno Naruto se agiganta e a imensa raposa se miniaturiza. A ambivalência em torno da figura da raposa sugere um eufemismo simbólico que se apresenta ora como a grande imagem mística da mulher fecunda (raposa branca relacionada à Deusa Xintoísta Inari); ora como a mulher perigosa e enganadora da figura teriomórfico da kitsune demoníaca de nove caudas; ora como a figura trickster e hermesiana. Embora este trabalho não tenha como objetivo levantar os mitos profundos, ou seja, não se confunda com uma leitura mitocrítica tal qual proposta por Gilbert Durand, é possível afirmar que o mangá Naruto mantém em sua estrutura narrativa uma certa pregnância simbólica, o que foi possível identificar a partir da análise simbólica empreendida. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 924

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Eliade (1986), Vierne (2000) e Campbell (1993) concordam ainda que no contexto de um mundo dessacralizado cabe à literatura iniciática desempenhar um papel considerável na passagem ritualística que conduz o jovem à idade adulta, uma vez que esta, por ser orientada pela tradição mitológica e pela prática ritualística, fornece “os estímulos adequados para estruturar a psique, de modo que o jovem possa assumir uma nova tarefa de maneira apropriada ao bem estar do grupo”. (CAMPBELL, 1992, p. 104) Com efeito, um bom exemplo da permanência dos ritos de passagem no mundo contemporâneo pode ser visto na literatura que trata dos esquemas e das provas do herói em busca da imortalidade e da redenção do mundo. Por meio de enredos e de temas cotidianos, a literatura das provas do herói apresenta à psique esquemas iniciáticos, busca satisfazer as necessidades religiosas humanas. Segundo Campbell (1993), nas aventuras míticas, o herói deve enfrentar ritos de passagem, os quais nos dão o sentido e a importância de sua aventura. Tais ritos têm, entre outras, a função de atualizar e potencializar continuamente os mitos e estão presentes, em maior ou menor escala, na nossa vida cotidiana. Segundo o autor (1993; p.36), o percurso padrão da aventura do herói é representado pela fórmula presente nos rituais de passagem: separação-iniciação-retorno. Com base nesse percurso, Joseph Campbell (Ibid., p. 311) considera dois tipos de heróis, quais sejam: o herói que realiza uma aventura redentora apenas do ponto de vista psicológico; e o herói cuja jornada diz respeito a questões ontológicas. A vida contemporânea, observa o autor (Ibid., p. 107), priva o individuo “esclarecido” dos mistérios e do religioso, por isso a maioria dos heróis contemporâneos costuma ser os do tipo 01, ou seja, aquele que tende a passar pelos perigos psicológicos solitariamente e, ao final da superação de todos os desafios de sua jornada, permanece essencialmente o mesmo. Finalmente, vencidos os obstáculos, liberto do temor e dos preconceitos, o herói atinge um estado nirvânico, no qual tempo e espaço se diluem (Ibid., p. 162). A apoteose se dá quando o herói, ultrapassando os últimos terrores da ignorância, torna-se livre de todo o temor e alcança a mudança. Para Campbell (1993, p. 36-40), é por meio de sua aventura que revigora os meios de regeneração de sua sociedade como um todo; seu triunfo é macrocósmico, históricouniversal. Apenas quando a jornada do herói trata de questões ontológicas na multiplicidade

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de mitos e lendas que chegam até nós e ocorre essa transmutação do herói é que aventura do herói se transforma em símbolo do mistério metafisico. Para Campbell (Ibid.), há um potencial libertador dentro de cada um de nós, que podemos alcançar por meio do heroísmo. Entenda-se: cada um de nós tem a possibilidade e a capacidade de viver a sua saga. Uma vez iniciado, é necessário que o herói retome o caminho de volta para seu cotidiano, pois o círculo do mito só́ se completa quando o herói, agora apresentando um novo status ontológico, traz a boa nova que renovará igualmente sua comunidade, seu grupo, sua família. Porém, esse retorno nem sempre é uma decisão fácil. Quase sempre se configura para o herói como se fosse uma “queda”, um retorno ao mesmo. Viver novamente como um ser comum, depois de todas as provações às quais se submeteu, portanto, mas ao mesmo tempo transformado, pode trazer a sensação de perda. Mas, é preciso viver a queda, o retorno, se não a jornada não se completa. Principalmente se o herói foi encarregado de retornar com a solução destinada à restauração da sociedade, do grupo, da família, quando o estágio final de sua aventura 11 será́ apoiado pelos poderes de seu patrono espiritual (Ibid., p. 198). A ideia de um ciclo iniciático parece ser a regra presente nas narrativas dos mangás. A esse respeito, podemos recorrer à pesquisa de Ângela Drummond-Mathews (2010, p. 73). Tal pesquisa – realizada com base na análise da saga do herói Goku, do mangá Dragon Ball, e de outros heróis do mangá shonen – conclui que mesmo que o mangá seja executado por vários volumes, não é incomum observar as personagens repetirem várias vezes a viagem do herói, que corresponde a um ciclo múltiplo. Segundo a autora: “No mangá, no entanto, a personagem toma o centro do palco. Depois que a personagem atravessa o limite, ela vai ficar na fase de iniciação para um longo período de tempo, muitas vezes para toda a série, até o ponto culminante em que ela pode ou não ter sucesso em derrotar seu inimigo, muito embora passe por uma transformação” (tradução nossa).

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Simone Vierne (2000, p. 124), na esteira dos trabalhos de Mircea Eliade e Gilbert Durand, é outra autora que considera que para que uma obra literária seja considerada uma literatura iniciática exemplar, ela deve apresentar um cenário iniciático que comporte: a) o herói de tipo 02; b) que esse herói realize, ao longo de sua jornada, a passagem pelas três atitudes do imaginário (Ibid., p. 123), a saber: a estrutura heroica (na qual as imagens diurnas remetem aos schèmes de separação, de corte e de oposição), a estrutura mística (imagens noturnas da descida, da intimidade e do retorno à mãe) e a estrutura sintética (cuja atitude do imaginário busca reconciliar as polaridades noturno-diurno por meio de uma dramaturgia cíclica e dialética). Assim, para essa autora, da mesma forma que para Joseph Campbell (1993) a forma exemplar do monomito requer o herói do segundo tipo, portador simbólico do destino de todos, Vierne argumenta que o texto iniciático requer um cenário no qual o herói cumpra sua jornada por meio da passagem pelas três estruturas dos regimes de imagens (VIERNE, 2000, p. 124). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 926

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Para Drummond-Mathews (2010, p. 74), “(...) o herói de mangá shonen fornece um espelho da vida do leitor. O ato heroico é o exemplo para o leitor pela luta do herói”. Isso explica por que o mangá é tão popular principalmente entre as crianças e jovens: ele retrata predominantemente a iniciação do herói na fase na qual este, a exemplo das crianças, aprende, cresce e busca superar desafios. Isso confirma nossa leitura do mangá Naruto até o momento, qual seja: a centralidade da fase de iniciação na jornada do herói. Ainda segundo DrummondMathews (Ibid., p. 74): “Em uma história em quadrinhos de Superman, por exemplo, o leitor não participa na iniciação do herói, que quase sempre já́ nascem heróis, ou seja, eles não são heróis porque cresceram e aprenderam a superar dificuldades. Eles são heróis porque nasceram heróis”. (Tradução nossa) Além da divergência do foco narrativo, observa-se uma diferença substancial entre o mangá e o monomito americano: é o caráter judaico-cristão deste último, que combina em si o indivíduo altruísta que se sacrifica pelos outros com a figura onipotente que destrói o mal. Trata-se, pois, de um “super herói” que substitui as figuras de Cristo, cuja credibilidade foi corroída pelo racionalismo científico, mas, ao mesmo tempo reflete a esperança de divindade e redenção”. (Ibid. p. 73). Com base no que foi dito nos parágrafos acima, passemos ao exercício hermenêuticosimbólico da narrativa do mangá Naruto.

O chamado para a Aventura e a primeira prova de Naruto O chamado para a aventura se dá no primeiro episódio do mangá Naruto, quando a personagem, quase sem querer, descobre sua origem e seu destino: conter a raposa-demônio e assumir o lugar de filho de Minato Namikaze (o quarto Hokage 12, pai de Naruto e ninja líder da Vila da Folha). A partir desse momento, a trajetória iniciática de Naruto busca a aprendizagem, de modo que ele possa controlar seu poder latente de raposa e cumprir seu destino-herança, até então oculto. Durante o período de treinamento da Equipe Sete, no qual o herói aprende não apenas os jutsus, mas, sobretudo, a trabalhar em equipe para o bem do coletivo. Neste período de iniciação, Naruto enfrenta situações de grande perigo, pois as provas consistem no momento de morte simbólica ou derrota. Há um enfoque muito grande no combate, na luta, chegando-se, muitas vezes, a uma experiência de quase morte. 12

Segundo o mangá, essa palavra é formada pela junção das palavras “fogo” e “silhueta” e denomina o título dado ao líder da vila, o melhor e mais sábio ninja da Vila da Folha. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 927

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A proeza de Naruto envolve testes físicos e espirituais: embora seja um genin (posto iniciante ocupado por um ninja que ainda está em treinamento), possui um chakra (energia vital) que é maior do que o de todos os demais de sua Vila da Folha. Ele precisa lidar ao mesmo tempo com um sentimento de inferioridade (orfandade) e de superioridade (altas capacidades), pois desconhece que traz em si a raposa de nove caudas. Apesar de ser hostilizado por todos da Vila, que reconhecem nele o perigo e o mal, Naruto precisa aprender a utilizar seu chakra com sabedoria, atrair as energias físicas e espirituais e combiná-las de maneira correta para viver em harmonia junto a seu grupo. Naruto só́ terá́ acesso à sua história e à história da vila, quando for reprovado no exame final da Academia onde estuda para se tornar um ninja. Fragilizado com a frustração da derrota, é enganado por Mizuki-sensei, um ninja que deseja ter acesso aos segredos do “Pergaminho do Aprisionamento” – documento que registra técnicas proibidas de jutsu utilizadas pelos guerreiros ninjas e a história da Kyuubi. Induzido por Mizuki-sensei, Naruto rouba o pergaminho e tenta aprender uma das técnicas ali registradas, com o intuito de impressionar seu mestre, Iruka Sensei e, dessa forma, conseguir se graduar na academia. O “Pergaminho do Aprisionamento” do qual o Hokage é o guardião é o objeto que conduz Naruto à área da força ampliada, pois revela segredos que podem pôr em risco toda a Vila. Sua leitura representa no mangá a transgressão dos limites, o perigo. Não é à toa que Naruto o leva para a floresta distante da Vila, região do desconhecido que, segundo Campbell (1993, p. 83) “(...) simboliza os “campos livres para a projeção de conteúdos inconscientes.” Ocorre que o Hokage descobre o roubo e manda os ninjas da Vila da Folha procurálo. É Iruka Sensei que o encontra e descobre o golpe de Mizuki-sensei, que na tentativa de fazer com que Naruto se revolte contra todos da Vila da Folha, entrega-lhe o “Pergaminho do Aprisionamento” e revela o segredo sobre seu passado. Naruto, então, é dominado pelo ódio e pela revolta, foge dos dois correndo “de quatro” (de forma semelhante a um animal) e mostra “olhos de raposa”. Num outro ponto da floresta, ocorre mais um embate entre Iruka-sensei e Mizukisensei, e Naruto têm a segunda revelação: foi kyuubi, a raposa de nove caudas, quem matou os pais de seu mestre Iruka. Mas, com surpresa, Naruto também descobre que Iruka-sensei, ao invés de odiá-lo e associá-lo às maldades do monstro que ele traz aprisionado dentro de si, consegue reconhecer nele um batalhador, sincero e esforçado “que conhece a dor do sofrimento das pessoas e, por isso, não é uma raposa”.

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Diante dessa segunda revelação, Naruto salva a vida de Iruka-sensei e, de modo surpreendente, revela uma grande capacidade ninja ao realizar uma técnica de alto nível, o bunshin no jutsu (técnica pela qual o ninja cria vários clones de si mesmo). Ao final, Naruto derrota Mizuki-sensei e, como prêmio, recebe de Iruka-sensei um “protetor de konoha”, a faixa com o símbolo da Vila da Folha, que todo ninja traz em sua testa, como prova que se graduou na escola e é um ninja de verdade. O enredo do mangá mostra que na iniciação de Naruto as tensões não são apagadas, mas superadas, assimiladas e reintegradas continuamente. Ainda na primeira temporada do mangá, muitas outras provas virão após Naruto ter se graduado.

A segunda prova de Naruto: o teste de sobrevivência na floresta A segunda prova de Naruto é realizada em companhia dos demais integrantes da Equipe Sete (Sasuke e Sakura), que são orientados pelo novo professor, Kakashi Hatake. Após se apresentarem, os alunos da Equipe Sete descobrem que ainda não são ninjas e, para obter o grau, terão que passar por um teste de sobrevivência impossível na floresta, onde terão que pegar os guizos que o mestre Kakashi mantém em sua cintura. Tendo apenas dois guizos disponíveis, os três genins (posto iniciante do ninja que ainda se encontra em treinamento) acreditam que o teste é uma competição entre eles, o que os leva a trabalhar de forma independente. Assim, cada um dos genins busca seus próprios métodos para a obtenção de um dos sinos, o que leva o mestre Kakashi a derrota-los facilmente. Durante suas primeiras aulas, o mestre Kakashi trata de ensinar aos estudantes a importância do equilíbrio no uso da energia física e da energia espiritual. Isso é importante, porque o clã̃ dos Uchihas, por exemplo, apresenta uma quantidade enorme de energia espiritual em relação ao seu físico. Tendo a Equipe Sete falhado em seu teste, o mestre expressa sua decepção com os estudantes. Depois de depreciar cada um de seus desempenhos, ele revela o verdadeiro objetivo deste teste: trabalho em equipe. Após explicar a importância do trabalho em equipe e ver como eles estavam envergonhados com seus desempenhos, Kakashi decide dar aos três mais uma chance para atuar como uma equipe e os deixa fazer uma pausa para o almoço. No entanto Naruto, que anteriormente tentara roubar o almoço dos outros, foi proibido de comer.

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Considerando que precisariam da ajuda de Naruto para superar os próximos desafios, Sasuke e Sakura descumprem a ordem do mestre e alimentam Naruto. Kakashi, ao tomar conhecimento da desobediência do grupo, inicialmente finge sentir raiva, mas acaba felicitando-os e revela que o verdadeiro objetivo do teste: ensinar à equipe sete a importância do trabalho em equipe para um ninja e da lealdade aos companheiros. Nesse episódio observase uma grande ênfase na amizade, na camaradagem e no vínculo entre o coletivo e seus indivíduos. Os personagens de Naruto colocam forte ênfase no desenvolvimento do caráter. Quase todos os resultados são de decisões, caráter e personalidade, muito poucas coisas acontecem apenas por causa do acaso. Com o mestre e os amigos de equipe, Naruto aprende novas habilidades, a conhecer melhor cada um dos outros aldeões da Vila e a experimentar uma verdadeira jornada de amadurecimento, sempre guiado pelo sonho de se tornar o Hokage. O mestre Kakashi é um forte modelo de orientação para seus estudantes, não apenas nas artes ninja, mas também em relação à estética japonesa e aos ideais filosóficos. Técnicas, ideais e mentalidades são transmitidas “de pai para filho” nas gerações de antigos clãs da aldeia. Nesse sentido, o autor Masashi Kishimoto relata, de forma comovente, o abandono a que foi lançado o menino órfão Naruto, pois não conta com uma orientação de seu clã̃. Kakashi cumpre, ao longo das primeiras provas da Equipe Sete, o papel do xamã que irá conduzir os estudantes em seu percurso iniciático, pois corresponde “à figura sabedora dos itinerários que conduzem tanto ao céu como ao inferno.” (ELIADE, 1986, p. 165). A história do mestre Kakashi é fortemente marcada pela tragédia da morte de seu pai, Sakumo, um ninja muito talentoso, que caiu em desgraça depois de escolher salvar seus companheiros, em vez de completar uma importante missão. Porém, após ter tomado essa decisão, Sakumo entra em uma depressão profunda e observa-se uma queda em suas habilidades que o leva a tirar sua própria vida. Tendo a história do pai como exemplo, Kakashi tenta conduzir a sua vida rigorosamente pelo código de ninja. Torna-se um jovem professor muito severo, seguindo todas as regras ao pé da letra, ao mesmo tempo em que demonstra apatia em relação aos outros ninjas. Porém, durante a Terceira Guerra Mundial de Shinobi, Kakashi terá́ que realizar a mesma escolha de seu pai. É quando, em uma situação extrema, abandona o código de ninja e opta por salvar seu amigo Óbito. Mas não obtém sucesso: seu amigo morre e ele termina com o olho esquerdo gravemente ferido. Embora o desfecho da história tenha sido trágica, a morte

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de Óbito operará um enorme impacto sobre a personalidade de Kakashi, tornando-o mais alegre e mais próximo dos seus companheiros de equipe e estudantes. De certa forma, Kakashi, ao vivenciar a experiência de escolha realizada pelo próprio pai, compreende que este foi um verdadeiro herói, pois colocou a vida de seus amigos de equipe à frente das regras. Kakashi é conhecido como um prodígio, extremamente talentoso, considerado por muitos como o melhor de sua geração. Quando aluno na Academia, mostrou uma aptidão para as artes ninja e recebeu a nota máxima, tornando-se um chunin. Possui a habilidade do sharingan (“olho copiador circular"), um dom que aparece apenas em alguns membros do clã̃ Uchiha. As habilidades do sharingan consistem de duas partes: o "olho de introspecção" e o "olho de hipnotismo"; com o primeiro é capaz de ver o fluxo de chakra 13 e com o segundo (e mais importante!) uma incrível clareza de percepção, permitindo-lhe reconhecer facilmente genjutsu (técnicas de ilusionismo) de diferentes formas de chakra. Isso permite a Kakashi ler movimentos labiais e antecipar golpes de seus opositores, por exemplo, pois o sharingan permite-lhe antecipar a imagem do próximo movimento de um atacante pela tensão menor do músculo em seu corpo e contra-atacar ou esquivar-se sem nenhum movimento desperdiçado. Em função de sua própria trajetória e história familiar, é recorrente nas falas de Kakashi a valorização do trabalho em equipe como meio de se garantir o sucesso global da equipe sete. Somente mais tarde é revelado aos integrantes da equipe sete que Kakashi foi escolhido especificamente para ser o líder, por causa de Naruto e Sasuke. O dever de Kakashi, além de treinar a equipe, é também manter kyuubi, a raposa de nove caudas, contida em Naruto e manter Sasuke “andando por um caminho escuro”. Isso pode ser sentido nas provas, às quais Kakashi submete o grupo. Em uma delas ele sugere, por exemplo, uma dinâmica de grupo na qual os três integrantes devem partilhar algo sobre si mesmo. Naruto revela que quer ser Hokage; Sasuke quer matar alguém; Sakura, antes de revelar que gosta de Sasuke, diz abertamente que odeia Naruto. A relação entre Naruto e Kakashi pode ser entendida sob a perspectiva arquetípica puer-senex, ou seja, da relação mestre-aprendiz. Segundo Campbell (1993, p. 133):

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Reproduzo a seguir a explicação para chakra que o glossário do mangá Naruto traz para o leitor. Segundo a filosofia ioga, existem incontáveis canais por onde circula a energia vital do corpo humano. Existem sete pontos de convergência principais, que são pontos de energia chamados de chakras, os quais se crê̂ que é possível controlar e manipular em beneficio próprio. No mangá, a definição muda, sendo equivalente ao que é popularmente chamado na cultura oriental de “ki”, ou energia vital. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 931

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A ideia tradicional de iniciação combina uma introdução do candidato nas técnicas, obrigações e prerrogativas de sua vocação com um radical reajustamento de sua relação emocional com as imagens parentais. O mistagogo (pai ou pai substituto) deve entregar os símbolos do ofício tão somente ao filho que tiver sido efetivamente purgado de todas as catexes infantis impróprias – a um filho que não se veja impossibilitado para o justo e impessoal exercício dos poderes pelos motivos inconscientes (ou, talvez, até mesmo conscientes e racionalizados) do auto engrandecimento, da preferência pessoal ou do ressentimento.

O arquétipo do mestre-aprendiz (que estamos identificando na relação entre Kakashi e os estudantes da equipe sete) pode ser mais bem entendido, se recorrermos aos estudos de Laura Villares Freitas (1990) acerca da máscara como um símbolo mediador que possibilita relacionar dois campos complementares da psique, a saber: o pedagógico (ensinamento) e o terapêutico (equilibração). Não é por acaso que Kakashi é representado pela figura de um ninja mascarado. A máscara é um símbolo forte da equilibração do ego, na medida em que oferece personas para aspectos da sombra, favorecendo, ao final, a integração da personalidade por meio da assimilação pela consciência de aspectos até então desconhecidos. Em outras palavras, a feitura das máscaras e a elaboração dessas vivências, a partir da verbalização desse processo, possibilitam aos integrantes do grupo o exercício de personas não habituais. No caso do adulto, é justamente essa vivência, esse jogo de personas, que possibilita ao ego expressar e integrar aspectos do self, ou seja, facilita a individuação, pois possibilita condições básicas para a criação e a manutenção de um campo de comunicação. Nesse sentido, Naruto, o menino-raposa-maldito, pode ser interpretado como o símbolo hermesiano do filho que busca vencer a temporalidade e alcançar a glória do pai morto por Kyuubi, que está aprisionada no umbigo de Naruto. Sendo que a personagem está associada à figura do trickster, ou seja, ao ser antropomórfico que prega peças e desobedece às regras e normas de comportamento. Ele é a figura do filho que anseia pela repetição do pai no tempo, ou seja, o redobramento parental. Estamos diante de uma relação estreita entre o mangá e o itinerário iniciático das crianças. A trajetória percorrida por Naruto, a que se refere à criança, revela-se como uma estrutura iniciática, confirma, portanto, a necessidade de defendermos que as figuras pregnantes do imaginário educacional necessitam de uma pedagogia específica para melhor se darem tanto a ver como a compreender. Uma pedagogia do imaginário que visa à exploração didática do uso das imagens veiculadas pela leitura e escrita. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 932

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Em certo sentido, o mangá Naruto resgata na figura de Kakashi a ideia do professor como mestre, que orienta o "dô", ou "caminho" (GOMES, 2012), aquilo que na filosofia japonesa está relacionada à importância da disciplina e do método para se alcançar a junção da energia da alma e energia corporal. É por isso que nos mangás cenas que mostram batalhas violentas, os jutsus, correspondem a ações espirituais e físicas que contribuem para o “dô” e para a orientação dos personagens 14. No mangá Naruto, o princípio “dô”, assim como outras referências aos princípios xintoístas e budistas da cultura japonesa, encontra-se associado às técnicas ninjas e habilidades das personagens. No mangá Naruto, o ninjutsu é a técnica por meio da qual o ninja trabalha o chakra dentro de si e manifesta seu efeito sobre seu corpo ou sobre o corpo do adversário. A técnica do ninjutsu se dá a partir da mobilização do chakra (o que envolve o espírito e o corpo), sendo que cada ninjutsu é obtido por um selo (gesto com as mãos). No enredo desse mangá, a filiação a um determinado clã̃ (do qual as personagens herdam habilidades ninjas específicas) não necessariamente habilita o iniciado a executar uma determinada técnica (jutsu), uma vez que as habilidades de cada ninja encontram-se condicionadas à sua dedicação aos treinamentos e à aquisição do autocontrole. O mangá Naruto, enquanto literatura iniciática, consiste em uma vivência simbólica que permite ao público jovem leitor o acesso a importantes elementos para a formação do ego, uma vez que as crianças muitas vezes retiram das HQs explicações míticas, de fundo arquetípico e, a partir delas, atribuem sentido às suas práticas cotidianas. O mangá evidencia, por meio de suas ilustrações autoexplicativas, que os alunos do mestre Kakashi devem trilhar seu caminho e buscar a própria superação. Com efeito, vê-se que ao descartar obras iniciáticas que, a exemplo do mangá Naruto, cumprem a função de orientação psíquica da criança e do adolescente, a educação escolar - profundamente marcada pela iconografia do regime diurno - perde a oportunidade de entrar em contato com questões

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Observe-se a relação que se estabelece entre o princípio filosófico do “dô”, o caminho iluminado, e a relação puer-senex, que a narrativa do mangá Naruto busca valorizar. Segundo Fernando Carlos Chamas (2006, p. 22), o budismo ensina que todos os dias do mundo eram profanos e que o caminho para a iluminação conduziria para uma região espiritual de sublime beleza. Esse “dô” (caminho para a iluminação) poderia ser a própria arte, prenunciando a beleza de um mundo após a morte, o mundo de Buda. Mas o “dô” precisa ser ensinado. Nesse sentido, as artes marciais japonesas são apresentadas pelo autor como uma forma estética que sintetiza a trajetória imitação-rompimento-transcendência. Esse conceito se refere à noção mais popularizada de “o discípulo superou o mestre”. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 933

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que dizem respeito à forma como os estudantes elaboram suas experiências, entre elas a relação com suas aprendizagens e com seus mestres.

A terceira prova iniciática de Naruto: viagem ao país das ondas Na terceira prova, intitulada “Uma missão perigosa: uma aventura no País das Ondas”, a equipe sete realiza sua primeira missão, mas Naruto está muito irritado, pois acha que essas missões são todas bobas. O Terceiro Hokage e Iruka explicam a ele o propósito dessas missões, mas ele não se convence e quer um desafio, então o Hokage decide dar uma missão de grau C à equipe: escoltar Tazuna, o velho construtor, em uma viagem de canoa para o País das Ondas, com o intuito de garantir a reconstrução da ponte destruída por Gateau, um magnata vilão que quer oprimir os moradores do lugar. Entendemos que a terceira prova de Naruto e sua equipe corresponde à descida ou busca perigosa da regeneração do povo do País das Ondas, pois esta viagem para além dos limites da Vila da Folha, expondo-os a um grande perigo de morte, na qual seus títulos de ninja são postos à prova. Segundo Campbell (ibid.,p.91) no momento em que o herói se encontra preparado, este enfrenta a passagem pelo primeiro limiar, além do qual encontram-se as trevas, o desconhecido, o perigo. Segundo Campbell (Ibid., p. 85): A aventura é sempre, e em todos os lugares, uma passagem pelo véu que separa o conhecido do desconhecido; as forças que vigiam no limiar são perigosas e lidar com elas envolve riscos; e, no entanto, todos os que tenham competência e coragem verão o perigo desaparecer.

Tendo cruzado o primeiro limiar, o herói irá caminhar por uma paisagem onírica e terrificante. Segundo Campbell (Ibid., p. 91) que: A ideia de que a passagem do limiar mágico é uma passagem para uma esfera de renascimento é simbolizada na imagem mundial do útero, do ventre da baleia. O herói, em lugar de conquistar ou aplacar a força do limiar, é jogado no desconhecido, dando a impressão de que morreu.

Cruzar o limiar implica, então, ainda que temporariamente, uma morte simbólica do herói em relação ao seu mundo cotidiano. Encontra-se, nessa etapa do regresso ao útero, certo perigo. O herói vai para o vento devorador, para, então, renascer. Segundo Campbell (Ibid. p 100), essa etapa implica uma série de provas (desafios, situações-limite), devidamente auxiliado por conselhos, amuletos, agentes secretos etc. Nessa jornada, predominam os mitos Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 934

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que destacam um herói devorado por um monstro marinho e sua saída vitoriosa do ventre do animal devorador. Trata-se do jogo no qual o herói pode ora engolir (recipiente), ora ser engolido (conteúdo) pelo animal gigone. Uma a uma, as resistências vão sendo quebradas. Ele deve deixar de lado o orgulho, a virtude, a beleza e a vida e inclinar-se ou submeter-se aos desígnios do absolutamente intolerável. Então, descobre que ele e seu oposto são, não de espécies diferentes, mas de uma mesma carne. (Ibid., p. 110).

No caminho ao País das Ondas, o grupo é atacado por um shinobi chamado Momochi Zabuza, um ninja individualista, que persegue seus próprios objetivos e não os do coletivo. Trata-se de um desertor do País das Ondas, que é mestre de Haku, um garoto órfão mascarado. O ponto alto da trama ocorre quando o mestre Kakashi é detido na prisão de água e a Equipe Sete precisa enfrentar sozinha um assassino jounin de elite, que tem sua identidade ocultada por uma máscara. Com muito medo do fracasso ou de possíveis mortes, Naruto acaba se lembrando do juramento de nunca fraquejar (momento no qual realizou um corte na mão com a hakuni, marcando no próprio corpo sua promessa) e, juntamente com Sasuke, bola um plano para deter o jutsu do vilão Zabuza e libertar seu sensei. Naruto e Sasuke trabalham em conjunto e conseguem libertar Kakashi da prisão de água de Zabuza. Lutam contra Haku, mas este demonstra superioridade ao atingir Sasuke letalmente com agulhas, quando este tenta salvar seu amigo Naruto. Esse, movido por um ódio intenso, pois acredita que Sasuke está morto, quase libera o chakra da kyuubi selada em seu umbigo, mas consegue buscar o equilíbrio e derrotar o vilão. Ao final, vê-se ainda uma batalha épica, que ocorre sobre a ponte, entre os moradores do País das Ondas, inspirados e liderados por Naruto e sua equipe contra os ninjas de Gateau. Com a vitória sobre o exército de Gateau, a paz é finalmente restituída no País das Ondas e Naruto é aclamado como um verdadeiro herói mediador. O episódio da viagem ao País das Ondas destaca o aspecto perigoso dessa etapa iniciática do herói, pois representa a descida ao mundo obscuro. Naruto e seus amigos estão em terras estranhas e lutam pela própria vida contra seus oponentes em um cenário hostil e de visibilidade zero. Ao mesmo tempo, a superação dos desafios é possível quando as personagens da Equipe Sete conseguem manter o equilíbrio entre as energias da alma e do corpo, superando assim a superioridade e experiência de seus opositores e os próprios limites Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 935

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da visão, impossibilitada ora pela neblina, ora pelo jogo de espelhos criado pelo oponente. Lançando mão dos ensinamentos do mestre Kakashi, mesmo em condições adversas, Sasuke aciona pela primeira vez o sharingan e Naruto consegue, mesmo sob intenso ódio e frustração, controlar a raposa selada em seu umbigo. Eliade (1996; 1986), Vierne (2000) e Campbell (1993) concordam que a prova iniciática da descida constitui-se em uma etapa particularmente perigosa, pois simboliza o momento central de toda iniciação, a saber: a morte do neófito e seu regresso ao mundo dos vivos. Trata-se de um momento da jornada do herói no qual este cruza os limiares para um outro mundo por meio de uma morte iniciática (que significa o fim de sua infância, do estágio da ignorância e condição profana) e de um renascimento (etapa na qual o herói apresenta um novo status ontológico, pois a vida agora é qualitativamente diferente, pois “regenerada”). A morte iniciática do herói também representa o movimento cíclico mítico que tem por objetivo a eufemização e “regeneração” do tempo (DURAND, 2002). Consiste, pois, na repetição ritual da fundação do Cosmos (regeneração da sociedade), que é precedida por uma regressão simbólica ao “Caos”, pois, segundo Eliade (1986, p. 13), “para que se possa ser novamente criado, o velho mundo há de ser previamente aniquilado”. Naruto precisa resgatar um tempo perdido do País das Ondas por meio de sua própria transmutação. Como todas as crianças leitoras do mangá, Naruto necessita realizar sua jornada com sucesso, superar limites, libertar-se do ogro (o que no caso desse herói significa dominar a raposa selada no umbigo, o feminino teriomórfico) e, assim, superar sua infância. Por isso, a prova do herói Naruto no País das Ondas envolve uma série de simbologias que remetem a um intenso perigo que antecede o cruzamento dos limiares: é por isso que o selo da kitsune quase se rompe, o que pode ser observado na representação da personagem que, neste momento, apresenta unhas e dentes afiados de raposa e tem todas as suas feridas regeneradas. Após assistir à “morte” de Sasuke (quando o amigo tentou salvá-lo), Naruto – que praticamente havia sido derrotado por Haku – consegue se controlar e libera apenas uma pequena parte do chakra da kyuubi, o que o possibilita derrotar o vilão. Assim, ao unir os ensinamentos do mestre Kakashi (os ensinamentos sobre a equilibração entre o Yin e Yang), o herói consegue controlar a metade da kyuubi em si, de modo que sua transformação não irrompa de forma descontrolada, mas, uma vez orientada, seja revertida em potência.

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Ao final da primeira temporada do mangá Naruto, temos a conclusão do ciclo da infância: ao longo da viagem para o País das Ondas o leitor acompanha passo a passo seu crescimento e amadurecimento. Esse processo revela sua condição heroica ao atingir o equilíbrio necessário não só́ à sua própria transformação, mas também do mundo ao seu redor. Assim, Naruto supera a fase de iniciação, quando aprendeu com os mestres Iruka e Kakashi habilidades que o ajudam a manter seu chakra em equilíbrio, o que lhe permite um conhecimento único sobre seus poderes próprios e o acesso ao poder mágico da raposa.

Conclusão O ciclo de Naruto é análogo aos ritos de passagem ou à chegada da idade da separação, iniciação e retorno de herói descrito por Joseph Campbell em O Herói de Mil Faces. O que se pode notar porque a última batalha foi vencida e o País das Ondas foi salvo e o caos foi evitado, Naruto e os amigos da Equipe Sete retornam então à vida de estudante, cujo objetivo é a preparação para a próxima jornada 15. Conclui-se que a análise do mangá Naruto lança luz sobre a diferença de foco narrativo observada nas HQs ocidentais (que despendem a maior parte de seu tempo narrativo na fase de retorno da viagem do herói) e no mangá Naruto (que passa a maior parte do seu tempo narrativo na fase de início de jornada do herói). Esse parece ser um ponto essencial em nossa pesquisa, pois revela a relação de identificação entre as crianças leitoras e a personagem: ambas são estudantes, situam-se em uma condição liminar que antecede a fase “adulta”; ambas se encontram em um período de constituição do ego, de afirmação diante da sociedade, da busca aprendizagem, de superação de desafios, ou seja, ainda estão no desenvolvimento de sua jornada. Sustentamos que a centralidade da fase de iniciação na jornada do herói do mangá Naruto possibilita que este forneça aos leitores, ao contrário da HQ americana, uma riqueza maior de símbolos, de fundo arquetípico, necessária para que crianças e jovens exorcizem a infância e o ogro para, então, realizarem a “(...) passagem necessária para a vida adulta”. (CAMBPELL, 1993, p.22).

A fase de retorno não é explorada no mangá, pois nos episódios seguintes os estudantes já́ se preparam para a próxima prova genin. Na segunda temporada, que se dá a partir do episódio 34, estudantes genins de diferentes vilas visitam a Vila da Folha com a finalidade de se submeterem a um exame de seleção e obterem o título de chaunin, ninja avançado como Iruka. 15

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Assim, até o presente momento, o exercício hermenêutico-simbólico evidencia que o mangá Naruto consiste em um tipo de literatura que permanece impregnada de símbolos, figuras e temas religioso. Com efeito, a atividade imaginária e a experiência onírica proporcionada pelo enredo “(...) cumpre uma função essencial na economia da psique do leitor” (ELIADE, 1986, p. 210 e 211). Isso se explica porque o enredo de Naruto, por apresentar um cenário iniciático, trata de uma experiência existencial constitutiva da condição humana. Nesse sentido, podemos afirmar que a figura heroica de Naruto, ao buscar sua transmutação e redenção do mundo, corrobora a atualização de esquemas arcaicos de iniciação na sociedade contemporânea. Naruto consiste, pois, em um exemplo de como, por meio de um gênero literário de massa, e sob a aparência de aventuras cotidianas, os esquemas iniciáticos se apresentam ao homem contemporâneo. Lembramos, com Eliade (1986, p. 219 e 220), que este busca satisfazer suas necessidades religiosas inibidas ou insuficientemente satisfeitas, por meio da leitura de certos livros que contém figuras mitológicas camufladas em personagens contemporâneos. Nas palavras do autor (Ibid., p. 219): “(...) Os temas iniciáticos permanecem no inconsciente do homem moderno. Isto é confirmado pelo simbolismo iniciático de certas criações artísticas, poesias, romances, esculturas, cinema moderno -, mas também pela sua ressonância no público. Tal adesão massiva e espontânea demonstra, em nossa perspectiva, que na profundidade de seu ser o homem moderno é sensível aos esquemas ou mensagens ‘iniciáticas’ (...)”. (tradução minha). O mito aqui, mesmo distante das versões canônicas dos mitos tradicionais japoneses, dada à ausência de mitemas e da pregnância simbólica, busca retomar o tempo perdido, “a idade de ouro” representada pelo domínio do shinobi quarto Hokage (pai de Naruto que lutou para instaurar uma Vila pacifista). O tema da narrativa é a busca pela reconciliação com um tempo eufemizado e com a morte, que no enredo é traduzida pelo reencontro de Naruto com a sua própria história, bem como o da Vila da Folha com uma época gloriosa. O mangá Naruto converge para um amplo grupo de narrativas que constituem versões de histórias tradicionais japonesas. A pobreza de sua “estrutura mítica” (ausência de mitemas 16 e conteúdos simbólicos) não nos permite avançar na análise propriamente

16

Durand (2002) utiliza o termo mitema como a menor unidade com sentido que compõe um mito. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 938

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mitocrítica 17 da narrativa canônica, capaz de nos revelar a questão ontológica por detrás da disputa entre homens e raposas. De forma lúdica, por meio da narrativa da história, no mangá Naruto os enredos iniciáticos se apresentam à experiência infantil e são “vividos” simbolicamente por elas. Essa ideia vai ao encontro das seguintes palavras de Mircea Eliade (2006, p. 174): “Começamos hoje a compreender que o que se denomina ‘iniciação’ coexiste com a condição humana, que toda existência é composta de uma série ininterrupta de “provas”, “mortes” e “ressurreições”, sejam quais forem os termos de que se serve a linguagem moderna para traduzir essas experiências (originalmente religiosas).”. Muitos dos episódios da saga de Naruto são, efetivamente, provas iniciáticas 18 que o impelem a superar um estado psíquico infantil inicial: assim, sua imersão ritual no mar, prova equivalente a uma viagem e, precisamente o palácio submarino; assim também o adentramento de Naruto no labirinto e seu combate com o monstro que traz dentro de si mesmo, tema exemplar das iniciações heroicas (ELIADE, 1986, p. 185). Ao final desta investigação, não nos resta dúvida de que o imaginário infantil pode encontrar no mangá Naruto uma importante referência, uma vez que esta HQ constitui-se em uma literatura iniciática que fornece símbolos necessários para que o psiquismo infantil avance, opondo-se às imagens da infância e impulsionando a passagem necessária para a vida adulta.

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17

A metodologia de Gilbert Durand compreende a mitocrítica e a mitanálise. A primeira direcionada à análise de textos literários; a segunda direcionada para detectar os mitos diretores dominantes em dada época históricosocial. Com efeito, é possível afirmar que a mitocrítica e a mitanálise se complementam (TEIXEIRA; 2011). 18 Na HQ “Naruto Shippuuden” - segunda jornada do mangá, que não integra o recorte desta pesquisa -, por exemplo, trata-se das missões que Naruto e seus colegas devem cumprir antes de passarem para o segundo nível ninja, o nível chunnin. O teste chunnin possui três etapas, sendo a primeira a prova escrita cujo objetivo não é acertar todas as perguntas, mas demonstrar habilidade nos métodos shinobis e “colar” sem ser percebido. A segunda etapa é sobreviver por cinco dias na floresta da morte, e nesse meio tempo coletar os pergaminhos do céu e da terra, condição para o ingresso na terceira etapa, quando os estudantes lutam entre si e são avaliados pelo conselho das vilas participantes.

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A religação dos saberes no rio do imaginário e da imaginação simbólica 1 The reconnection of knowledges on the imaginary’s river and the symbolic imagination La reliaison des savoirs dans le fleuve de l’imaginaire et de l’imagination symbolique

Profa. Dra. Ana Laudelina Ferreira GOMES 2 Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil

Resumo Nosso objetivo é apresentar alguns fundamentos da proposta de religação dos saberes de Edgar Morin para a reforma do pensamento e relacioná-la a concepções de imaginário e imaginação simbólica presentes na obra do filósofo da imaginação Gaston Bachelard, principalmente aquelas sinalizadas por um de seus principais estudiosos da atualidade, o filósofo Jean-Jacques Wunenburger. Com isso, pretendemos mostrar como algumas ideias desses dois filósofos colaboram com a proposta de Morin. Palavras-chave: religação dos saberes; imaginário; imaginação simbólica.

Abstract Our goal is to present some fundamentals of Edgar Morin’s proposal reconnection of knowledges for the reform of thought and relate it to imaginary conceptions and symbolic imagination present in the work of the philosopher of imagination Gaston Bachelard, especially those flagged by one of its leading scholars of our time, the philosopher JeanJacques Wunenburger. Therewith, we intend to show how some ideas of these two philosophers collaborate with the Morin’s proposition. Keywords: reconnection of knowledges; imaginary; symbolic imagination.

1

Essa comunicação se relaciona a outros trabalhos onde venho discutindo a religação dos saberes através do imaginário artístico e cultural bem como a necessidade de uma educação por imagens, tais como: GOMES (2013, 2015a, 2015b). 2 [email protected]

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1. Introdução

Para discutir a necessidade de religação dos saberes, Edgar Morin (2005) nos apresenta a problemática na qual está envolvida a questão, cuja explicitação é indispensável para compreender sua proposta. Ele nos fala de uma dupla teoria da cultura onde figuram duas linguagens, dois estados do espírito, a prosaica e a poética, cuja disjunção pelo paradigma cartesiano operou significativos danos para a compreensão do Antropos em sua integralidade, sujeito de razão e de imaginação. A proposta de religação dos saberes é justamente uma estratégia para realizar a rejunção dos saberes que foram cindidos e postos em oposição, saberes da cultura científica (saberes científicos) e saberes da cultura humanística (filosofia, artes, literatura, história, mito etc.). A obra de Gaston Bachelard estaria mostrando a complexidade desse homem cindido em duas esferas de representação opostas, o conceito e a imagem. O interesse de Bachelard não seria puramente estético, mas buscaria ensinar o dinamismo das imagens por melhor viver confiando que a imaginação é portadora de uma energia moral, de um querer viver que permite o devir verdadeiramente humano (WUNENBURGER, 2012). Daí o imaginário e a imaginação surgem como instâncias específicas da constituição. Por isso, deve buscar compreender o imaginário em sua dimensão simbólica, através da imaginação simbólica que permite com que múltiplos significados ressoem sem reduzir-se a nenhum deles isoladamente (WUNENBURGER, 2007; WUNENBURGER & ARAÚJO, 2006). Assim, as imagens capazes de nos suscitar o estado poético não podem ser reduzidas à mera ilustração de conceitos e teorias já que, para Gaston Bachelard, as imagens não devem ser tomadas numa perspectiva mimética/reprodutora, pois são criadoras de novas realidades, são instauradoras de inventividades (BACHELARD, 1988; 1990; 1996). Para Wunenburger, o devaneio poético bachelardiano opera a imaginação simbolizante, sendo a imagem simbólica dotada de uma informação imanente, que não se reduz ao empírico, os conteúdos evocados desdobram-se em sentido figurado. Ela é pensada como signo denotativo, pois ativa a consciência de associações e de significações novas, ultrapassando o sentido literal próprio dos referentes empíricos (WUNENBURGER, 2002). Retomando a proposta de religação dos saberes, Morin propõe fazer comunicar dialogicamente as imagens e as ideias através das expressões do imaginário artístico e literário, pelo romance, dramaturgia, cinema, poesia etc. Numa linha de raciocínio parecida,

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para Wunenburger (2003) ao invés de exaltar os poderes da razão ilustrados nas produções científicas marginalizando a imaginação e colocando o imaginário num papel negativo de obstáculo, é preciso parar de antagonizar imaginário e racionalidade, pois são esferas psíquicas não antagônicas, ao contrário do que nos fez crer a concepção de racionalidade da ciência clássica. Por isso tudo, o filósofo acredita que “é preciso que atualizemos nossa concepção de racionalidade incorporando uma ‘racionalidade aberta e complexa’, cujos processos se assemelham de forma paradoxal às leis e às obras do imaginário religioso ou poético” (p. 265). E, continua o filósofo, na esteira de Gilbert Durand, não faz sentido continuar opondo lógica científica e lógica simbólica, pois a proximidade entre elas se daria enquanto uma “lógica geral do espírito” (WUNENBURGER, 2003, p. 281), tal como podemos conceber em Gaston Bachelard uma teoria da criatividade geral do espírito (WUNENBURGER, 2005). Em face dessas ideias, vemos que Gaston Bachelard e Jean-Jacques Wunenburger nos ajudam a fundamentar a proposta de religação dos saberes de Edgar Morin. É o que intencionamos demonstrar nesse artigo.

2. O problema da disjunção das duas culturas e do antropos

Na proposição da necessidade da religação de saberes para a reforma do pensamento e da educação com vistas a um pensamento complexo, Edgar Morin nos fala de duas linguagens da cultura, dois estados do espírito, dois modos de habitar a terra, um prosaico, outro poético. No modo prosaico, agimos de forma predominantemente “racional, empírica, prática, técnica” o que “tende a precisar, denotar, definir”, esse modo “apoia-se sobre a lógica e ensaia objetivar o que ela mesma expressa” (MORIN, 2005, p. 35). No estado poético, agimos de forma “simbólica, mítica, mágica”, esta forma “utiliza mais a conotação, a analogia, a metáfora [...] e ensaia traduzir a verdade da subjetividade” (MORIN, 2005, p. 35). Apesar de nossa condição humana dupla – ao mesmo tempo prosaica e poética, míticasimbólica e lógico-racional – ao longo da vida aprendemos que somos somente racionais. Mas somos homo complexus – e um dos entrelaçamentos do complexo é nossa sapiência (homo sapiens) e nossa demência (homo demens) (CARVALHO, s/d).

Ambas correspondem,

respectivamente, aos estados prosaico e poético do Antropos.

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O processo de racionalização da sociedade técnico-científica contemporânea estaria centrado na separação/disjunção entre esses dois estados, tendo como consequência a dissociação completa entre cultura científica e cultura humanística. O estado poético ficando relegado a segundo plano, e o poético restrito a uma mera expressão literária. A rejunção ou religação das duas culturas e dos dois estados seria um dos grandes desafios da contemporaneidade para realizar uma reforma do pensamento capaz de nos fazer reaprender a pensar religando o que foi separado pelo paradigma cartesiano. Entre outras coisas, essa reforma se faz pelo rompimento com a separação entre os saberes humanísticos (artes, filosofia, literatura etc.) e científicos, o que nos tornaria verdadeiramente bio-antropo-sociais, já que “o homem é uma emergência da história da vida terrestre” e que, por isso mesmo, não pode ser concebido de forma disjunta, nem pensado de modo redutor, afinal “sem animalidade não há humanidade” (MORIN, 2005, p. 40). É preciso que aceitemos nossa dupla condição de natural e supranatural, entendendo que nessa imbricação mútua o homem “distingue-se pela cultura, pensamento e consciência” (MORIN, 2005, p. 40). A proposta de religação dos saberes de Edgar Morin se dá por dialogia, que é um dos três operadores cognitivos (aquilo que põe em movimento) do pensamento complexo 3. Diz respeito ao processo de juntar coisas, entrelaçar coisas, aparentemente separadas (CARVALHO, s/d; MORIN, 2009). Nesse trabalho estamos interessados especialmente na dialogia entre ciência e imaginário, entre ideias e imagens. Morin (2005) nos lembra que “as ideias não são apenas meios de comunicação com o real, elas podem tornar-se meios de ocultação. [...] os homens não matam apenas à sombra de suas paixões, mas também à luz de suas racionalizações” (p. 54). É preciso dialogizar as imagens e as ideias através das expressões do imaginário artístico e literário, pelo romance, dramaturgia, cinema, poesia etc., pois,

É no romance, no teatro, no filme, que percebemos que Homo sapiens é indissoluvelmente, Homo demens. É no romance, no filme, no poema, que a existência revela sua miséria e sua grandeza trágica, como risco do fracasso, de erro, de loucura. É na morte de nossos heróis que temos nossas próprias experiências de morte. É, pois, na literatura que o ensino sobre a condição humana pode adquirir forma vívida e ativa, para esclarecer cada um sobre sua própria vida (MORIN, 2005, p. 49).

3

Os outros dois operadores cognitivos da complexidade são: a recursividade, onde a causa produz o efeito que produz a causa) e o holograma, onde não se dissocia o todo da parte e vice-versa. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 945

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O problema é que, como diz Jean-Jacques Wunenburger (2003), a história da ciência moderna tende a exaltar os poderes da razão vendo-os ilustrados nas produções científicas, marginalizando a imaginação e colocando o imaginário num papel negativo de obstáculo, o que acabou por antagonizar imaginário e racionalidade, mas o filósofo questiona: será que estas duas esferas psíquicas são de fato antagônicas? Wunenburger (2003) nos assegura que “a inteligentibilidade do mundo não é sem dúvida alguma redutível a uma pura actividade de conceptualização abstrata [... e as representações científicas] não rompem fundamentalmente com as estruturas intelectuais profundas, cujas imagens são as primeiras manifestações” (p. 265). E, ao contrário do que nos fez crer a concepção de racionalidade da ciência clássica, hoje sabemos que a “prática cognitiva das ciências não pode prescindir nem de imagens, nem de imaginação [... pois] as imagens intervém a cada etapa do itinerário científico, demonstram fatos, jogos de hipóteses, modelações e interpretações, e finalmente difusão dos resultados da pesquisa” (p. 266). O que leva a uma mudança de compreensão sobre a relação entre imaginário e ciência:

A imagem serve para criar um espaço de percepção e, portanto, para tornar, no sentido estrito, um objeto visível, mas igualmente para melhorar as prestações do olhar. O homem de ciência só vê se as coisas estiverem dispostas de forma a serem vistas. A visibilidade do mundo, para a ciência, está então ligada a um artifício, que pode consistir num dispositivo de visualização e na inscrição do que é visto sob a forma de imagem analógica (desenho, esquema, fotografia etc.) (WUNENBURGER, 2003, p. 267). As ciências progrediram muitas vezes através da invenção de diferentes dispositivos de representação visual, esboços, esquemas, grafos, tabelas matriciais, diagramas, onde o espaço visível vem estruturar o saber e preparar hipóteses e conclusões (WUNENBURGER, 2003, p. 268).

Por um lado, tanto para a invenção de hipóteses quanto para a modelização dos dados o processo científico se vale de uma imaginação racional que utiliza metáforas e paradigmas. Por isso tudo, é preciso que atualizemos nossa concepção de racionalidade advinda da ciência clássica (moderna) incorporando uma “racionalidade aberta e complexa, cujos processos se assemelham de forma paradoxal às leis e às obras do imaginário religioso ou poético”, diz Wunenburger (2003, p. 265). Desse modo, não faz sentido continuar opondo lógica científica e lógica simbólica, assevera o filósofo, lembrando que para Gilbert Durand a proximidade entre elas se daria enquanto uma “lógica geral do espírito”. Para além da utilização das metáforas, as ciências Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 946

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contemporâneas se abriram a uma reorganização da racionalidade científica incluindo modos de pensamento e lógicas antes considerados não científicas. Nessa nova configuração, imaginário e racionalidade não seriam mais antinômicos (WUNENBURGER, 2003).

3. Imaginário, imaginação simbólica e racionalidade científica

Alguns movimentos artísticos e filosóficos foram fundamentais para a ressurgência histórica das imagens na modernidade, diz Gilbert Durand (1995) 4. Retomando a distinção de Coleridge entre imaginação ativa e imaginação passiva, alguns estudiosos trouxeram contribuições decisivas, mostrando o papel central e constitutivo da imaginação ativa para o pensamento e na individualidade humana, como Ernst Cassirer, C. G. Jung e Gaston Bachelard: “[...] com Jung e Bachelard, o estatuto do imaginário se estabelece firmemente na reflexão contemporânea: a imaginação retoma um lugar central” (DURAND, 1995, p. 38). Na avaliação de Wunenburger (2003), o filósofo Gaston Bachelard é um dos pioneiros de um racionalismo aberto que “ao tomar nota das mudanças da nova ciência, entrelaça racionalidade e imaginário”, principalmente em sua epistemologia a partir da obra “A filosofia do não” (1940), a qual entende não pode ser reduzida ao dualismo da primeira fase bachelardiana (p. 279). Para o autor, seria Gilbert Durand quem nos faria entender melhor a complementaridade entre razão e imaginação no processo de conhecimento, onde a razão não poderia mais ser pensada de modo autônomo, como possuindo leis próprias, “mas antes seria um modo de representação, que traduz abstratamente aquilo que a imaginação conjuga de acordo com representações afetivo-simbólicas” (p.279). Assim, mais do que ferramentas para “traduzir” conceitos e teorias, as imagens são instrumentos de sensibilização estética do mundo e de seus criadores/leitores, sendo capazes de promover mudanças e reorganizações de comportamentos individuais e coletivos (WUNENBURGER, 2003), com ela os sujeitos são capazes de se reinventarem. Para Wunenburger (2002), a imagem seria a primeira forma de trazer-nos, através da percepção, o mundo sensível, concreto, sendo que Bachelard e Kant mostrariam a importância da imaginação no coração da percepção. A imagem diria respeito ao reconstituir do real no plano fenomenal – tal qual ela se apresenta a nós –, de formarmos uma representação do real. 4

Entre estes movimentos, encontrar-se-iam o romantismo, o pré-romantismo, o pensamento iluminista, o surrealismo e as hermenêuticas contemporâneas (DURAND, 1995). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 947

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Mesmo que informada por imagens a priori, a imagem perceptiva visa o real, o que obriga adaptar o estado subjetivo ao estado objetivo. O devaneio poético de que nos fala Gaston Bachelard não seria redutível a um jogo de imagens como signos do real. Ele daria às imagens uma capacidade de ampliação de significações, tanto em sua face visual como verbal, nele operando o que Kant chamaria por imaginação simbolizante (WUNENBURGER, 2002). Por sua vez, continua Wunenburger (2002), a imagem simbólica seria dotada de uma informação imanente – ao domínio da experiência possível, ao concreto – que não se reduz ao empírico, pois os conteúdos que evoca desdobram-se no interior da imagem e vem encarnar/figurar/sensibilizar uma idealidade. Assim a imagem seria signo denotativo ativando a consciência de associações e de significações novas, ultrapassando o sentido literal dos referentes empíricos. A imagem simbólica teria um sentido profundo não podendo ser reduzida aos conteúdos da percepção. Ela produz conteúdos visuais e ideais, embriões de sentidos, sendo a simbolização uma atividade criadora do sujeito imaginante que vai além do percebido desenvolvendo um sentido figurado. Assim, o que é simbolizado teria sempre uma riqueza de excesso permitindo inúmeras explorações. Tal como encontramos na obra de Edgar Morin, Wunenburger (2002), no livro “La vie des images”, diz buscar um ponto de ancoragem comum ao homem imaginante, a unidade das produções do imaginário através de suas variações diferenciadas. Para ele, o homem imaginante aparece no cinema, na literatura, na pintura, na escultura, no teatro, na dança, no canto, no mito, na religião e também na ciência. Em todos estes processos, estaria presente a imaginação do Antropos. No entanto, a filosofia contemporânea herdou uma tradição do século XVII (Descartes, Pascal e outros) que encararia a imaginação como atividade de produção de ficções que só é legitimada no campo da arte. Mas, assevera Wunenburger (2007), as obras da imaginação produzem representações simbólicas em que o sentido figurado original ativa pensamentos abertos e complexos, sendo que somente a racionalização posterior é que restitui um sentido unívoco. A imaginação seria tanto reprodutiva, por reutilizar materiais da experiência perceptiva, quanto a responsável por irrigar os processos cognitivos abstratos através de esquemas figurativos aos quais a racionalidade recorrer para ordenar a intelecção do real. Nas ciências, por exemplo, as imagens mostrariam sua fecundidade heurística intervindo em invenções, modelizações e práticas didáticas (WUNENBURGER, 2007). Ao mesmo tempo, a imaginação participaria da lógica pragmática e ética dos agentes.

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O indivíduo elabora sua identidade pessoal, ao longo da vida, através de uma conduta narrativa (Ricoeur). Suas escolhas e compromissos éticos não se limitam à esfera das obrigações racionais, recorrendo pois a imagens do bem e do mal e a fins últimos a atingir (felicidade, beatitude etc). As relações entre indivíduo e sociedade são largamente tecidas em representações religiosas e em sonhos coletivos (WUNENBURGER, 2007).

Em meio a essas reflexões nosso texto, intentamos focar a religação dos saberes entre imaginários – o científico e o artístico – que se dá pela recorrência à imagem simbólica uma vez que, segundo Wunenburger (2007), o imaginário está sujeito a variações de status de imagens. Estas podem oscilar entre dois extremos, ou confusão idolátrica ou iconoclasma, sendo que na primeira a distância entre imagem e modelo desaparece, e no segundo essa distância é excessiva a ponto da imagem perder sua credibilidade (WUNENBURGER, 2007). Qual seria então o caminho intermediário não incorremos em nenhum dos dois extremos? Wunenburger (2007) responde: Toda imagem objetivada, mostrada, publicada, exposta deve conter indícios de sua filiação, manter um afastamento e subsistir como imagem. Ela deve levar a que acreditemos em sua aparência, fazer com que nos liguemos a ela, mas sem nunca fascinar nem iludir demasiado para que possamos desprendermo-nos dela e tomar consciência da realidade do jogo.

E onde entra a imagem simbólica? Tanto na confusão idolátrica como no iconoclasma o imaginário pode subsumir a superstições e dogmatismos e, para evitar que isso aconteça, o imaginário deve favorecer uma aproximação simbólica, um tratamento figurativo. E é a imaginação simbólica que possibilita transpor conteúdos materiais ou psíquicos do imaginário a múltiplos significados através de analogias. Tomar o imaginário ao pé da letra negaria a imaginação

enquanto

essa

faculdade

possibitadora de

múltiplas

correspondências

(WUNENBURGER, 2007). Por isso, é preciso buscar compreender o imaginário em sua dimensão simbólica permitindo que múltiplos significados ressoem. Mas acontecem os desvios, tanto numa insuficiência de simbolismo (hipotrofia) como num excesso (hipertrofia). No caso de hipotrofia, há uma desimbolização dos materiais imaginativos fazendo perder o sentido de analogia, a exemplo teríamos as formas de reificação que desmoronam a função figurativa. No caso de hipertrofia, aconteceria uma sobre-interpretação das imagens, dos símbolos e dos

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mitos, que, no limite, poderiam levar à vertigem de correspondências delirantes (WUNENBURGER, 2007). Wunenburger diz que o imaginário e a racionalidade têm sido trabalhados separadamente e até antagonizados por muito tempo na filosofia, mesmo nas interpretações do pensamento de Gaston Bachelard, filósofo que, para ele, na verdade os trabalharia na unidade de opostos ou harmonia das divergências. Nesse sentido, para além de uma interpretação literal da obra, seria preciso buscar uma unidade profunda e complexa que atravessa as duas vias do pensamento bachelardiano, a epistemológica e a poética. Pensá-lo enquanto uma filosofia “de dinamismos intelectuais que produzem mudanças, metabolismos, metamorfoses e representações, que estão submetidas a rupturas e a revoluções perpétuas, e votam o espírito à aventura do novo” e que se expressaria como uma “teoria geral da criatividade do espírito” (WUNENBURGER, 2005, p. 39). Nela, Gaston Bachelard mostraria uma “gênese única da dinâmica de representações, quer sejam abstratas ou imagéticas [..] caracterizando a vida do pensamento [...] cujo traço positivo é a capacidade de por-se em movimento permanente, a fim de produzir novidades intelectuais” (p. 46). Sobre isso, explica Wunenburger (2012, p. 210): “Lá onde a atividade científica constrói um conceito do real pela redução de imagens, a atividade poética se engaja, ao contrário, numa ativação de imagens, numa intensificação de seu potencial de irrealidade ou mais exatamente de surrealidade”. 4. Conclusões

Considerando, o que já dissemos antes com Wunenburger, de que a imaginação e o imaginário são instâncias específicas da constituição do Antropos, vemos que a religação entre ciências/cultura científica e imaginário/cultura humanística nos possibilitaria melhor pensar a condição humana. Morin nos atenta para o fato de que “o estudo da condição humana não depende apenas do ponto de vista das ciências humanas [...] nem da reflexão filosófica e das descrições literárias. Depende também das ciências naturais renovadas e reunidas. [...] Elas nos permitem inserir e situar a condição humana no cosmo, na Terra, na vida” (MORIN, 2005, p. 25). Sua crítica é no sentido de que as ciências do homem em sua fragmentação – das ciências da natureza, das artes, da literatura, da filosofia – se tornaram o homem tão somente sócio-cultural ignorando o mundo físico, químico, o mundo vivo que trazemos dentro de nós e que dele fomos separados por nosso pensamento, por nossa consciência, por nossa cultura. Situação para a qual o trabalho de religação de saberes é indispensável. Estando Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 950

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ao mesmo tempo “dentro e fora da natureza”, apesar de filhos do cosmo nos tornamos estranhos a ele, o que nos leva à necessidade de uma nova cultura científica, que integre natureza e cultura. Sobre isso, diz Morin (2005):

A relação do homem com a natureza não pode ser concebida de forma reducionista, nem de forma disjuntiva. A humanidade é uma entidade planetária e biosférica. O ser humano, ao mesmo tempo natural e supranatural, deve ser pesquisado na natureza viva e física, mas emerge e se distingue dela pela cultura, pensamento e consciência.

A religação da cultura científica e cultura humanística através das artes e da literatura trata de mostrar que nessas produções “há um pensamento profundo sobre a condição humana” (MORIN, 2005, p. 45). Nesse sentido, a cultura das humanidades é uma preparação para a vida, uma escola de vida: escola de compreensão humana, escola de emoção estética, escola de descoberta de si. Gaston Bachelard e Jean-Jacques Wunenburger são filósofos que nos ajudam a entender como, através do imaginário e da imaginação simbólica essa religação dos saberes pode, de fato, gerar um pensamento não mutilante, capaz de compreender o homem em sua complexidade, natural e cultural.

REFERÊNCIAS

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Mitos do Corpo na Performance Body myths in Performance Mythes de corps en performance

Eduardo Romero Lopes BARBOSA 1 UFPE, Caruaru, Pernambuco, Brasil.

Resumo A Performance enquanto expressão artística tem despertado uma atenção cada vez mais cuidadosa por parte de pesquisadores e críticos, assim como tem ganhado um relevante espaço nas instituições de Artes e de Ensino. Contudo a bibliografia que aborda a Performance ainda é tímida se comparada a outras expressões das Artes Visuais. Esta pesquisa busca a partir da Antropologia do Imaginário e da Complexidade compreender a Performance em sua diversidade, considerando que dialogicamente o artista performático e a relação com seu Corpo os tornam simultaneamente Autor/Obra – Sujeito/Objeto em suas ações. Para tal, o referencial teórico está pautado nas pesquisas sobre os Mitos em Claude Lévi-Strauss e Mircea Eliade, em relação aos métodos do Imaginário nas obras de Gaston Bachelard e Gilbert Durand, e Edgar Morin no estudo do Pensamento Complexo. Palavras-chave: imaginário; complexidade; mitos; Performance; corpo. Abstract Performance as a means of artistic expression. has recently been drawing increasing attention from researchers and critics and has gained significant ground in Art and Teaching institutions. However, the bibliography on performance art is still very modest compared to that relating to other visual arts media. This study seeks to use the anthropology of the imagination and of complexity to understand performance art in its full diversity, bearing in mind that the performance artist and his or her relation with the body enter into dialogue and become at the same time Author/Work – Subject/Work. The theoretical point of reference is the research into myths carried out by Claude Lévi-Strauss and Mircea Eliade, Gaston Bachelard and Gilbert Durand’s philosophy of the imagination, and Edgar Morin’s study of complex thought. Key words: imaginary; complexity; myths; performance art; the body.

Introdução

1

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“Mesmo que seja evidente que a criação de mitos ocorra no interior da fabricação das produções humanas, eles adquirem vida própria, falam entre si, transformam-se, metamorfoseam-se, redescobrem o tempo perdido, sinalizam o futuro, pensam os homens para muito além do aqui e a agora”. CARVALHO, Edgard de Assis (Enigmas da Cultura).

Muito se discute e, volta e meia, o tema da relação promíscua entre o antropólogo e seu objeto de pesquisa vem à tona. A ideia do pesquisador baluarte da Ciência que deve afastar sua subjetividade em prol da objetividade científica ainda se configura como um discurso de peso nas práticas antropológicas. Este fato para a Antropologia se delineia como um problema metodológico de contornos indefinidos, pois a relação íntima entre o antropólogo e a alteridade – parte fundamental de sua reflexão – se faz muitas vezes de maneira estreita e intensa. Coloco-me nesta situação, pois sou antropólogo e artista visual, cujo objeto de pesquisa é a Performance, ou melhor, trabalho com Artes Visuais ao mesmo tempo em que a pesquiso, sendo a Performance uma expressão artística de meu círculo de convivência. De forma alguma isso significa um obstáculo para minha reflexão sobre o assunto. Pelo contrário, pois como veremos adiante, a Performance é uma atividade artística multifacetada e de difícil definição, onde toda proximidade é uma forma de melhor apreendêla. Portanto sem abrir mão da cientificidade na trajetória da escrita deste texto, em suas entrelinhas com maior ou menor ênfase, permiti que a subjetividade emergisse, pois percebi que não há outra maneira de pesquisar a Performance e seus infinitos sentidos simbólicos nas Artes Visuais a não ser vivendo-a de maneira intensa. Normalmente os antropólogos vivem e habitam seus objetos de pesquisa... Até aqui nada de mais, pois é nossa prática... Mas escrever sobre as experiências performáticas me exigiu por vezes, questionar a citada objetividade científica, pois a separação entre pesquisador/objeto de estudo no caso da Performance, a meu ver, diminui e até mesmo empobrece sua potência criativa. Haverá meio termo entre objetividade e subjetividade na pesquisa e escrita acadêmica? Para mim a melhor opção está em viver o objeto de pesquisa em questão, pois na corda-bamba da vida, objetividade e subjetividade andam de mãos juntas, confundem-se e se enriquecem. É preciso viver o objeto de pesquisa, deixá-lo falar a própria língua para que se revelem suas encruzilhadas simbólicas! Esta experiência é parte de minha jornada de doutoramento no Programa de PósGraduação em Antropologia que iniciei em 2010 com a proposta de pesquisar e debater as Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 954

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relações entre a Performance e o Corpo nas Artes Visuais, baseado na percepção de que a Performance é uma expressão artística que privilegiadamente não separa Natureza e Cultura, consequentemente, Sujeito e Objeto ou, no caso da Performance, o Artista de sua Obra através dos usos do Corpo. Contudo, não é fácil articular um discurso científico que trata de assuntos aparentemente distintos como as Artes Visuais, a Antropologia e os estudos multidisciplinares sobre o Corpo. Nesta trajetória de pesquisa buscou-se a sistematização da Performance como uma expressão artística que promove dialogicamente de maneira visceral o Corpo do artista como obra de arte – ação muitas vezes ritual – onde se expõe os mitos pessoais de seu criador e da Cultura ao qual encontra-se imerso. Uma tendência das Artes Visuais que de maneira privilegiada funde o Sujeito enquanto agente sociocultural com a Natureza fisiológica de seu Corpo; uma ação artística onde o Corpo articula através de sua percepção a simultaneidade da relação Natureza e Cultura. Em relação ao Corpo humano, sabemos que desde muito tempo é tema privilegiado para as Artes Visuais. Mas a partir da década de cinquenta do século XX, o Corpo busca se libertar da rica iconografia secular que o representa e passa a ser expressão estética de si mesmo. Mais do que a representação de um ideal de beleza ou de valores socio-históricos, as ações performáticas empreendidas pelos artistas visuais colocam em evidência o Corpo, que passa a ser explorado como suporte artístico para experimentos de diferentes linguagens não verbais, utilizando-o, muitas vezes de maneira contundente, como instrumento questionador dos valores socioculturais. Durante séculos a representação do Corpo esteve associada aos valores éticos e morais determinados por grupos sociais tais como a família, a religião etc. Entretanto, as efêmeras relações sociais da contemporaneidade tendem a transformar o Corpo em instrumento de asseveração pessoal. O Corpo contemporâneo é exibido e consumido em nossa cultura como um Objeto sem Sujeito, que se modifica e se redefine através das cirurgias plásticas ou pelos usos fortuitos da Publicidade (LE BRETON, 2011). Atualmente o Corpo é expressão de si mesmo e muitas vezes a percepção que temos dele são apregoadas por representações visuais que sofrem intenso ritmo de transformações ditadas pela exploração midiática (JEUDY, 2002). Entendido como um complexo sistema que articula simultaneamente as dimensões da Natureza e da Cultura, o Corpo enquanto gerador de modos de expressão e de trocas

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simbólicas nas sociedades contemporâneas é convidado a substituir o status de Sujeito pelo de Objeto, ou seja, a compreensão do Corpo como lócus do espírito e/ou máquina perfeita da natureza dá lugar ao sentido de Objeto a ser exibido (JEUDY, 2002). O Corpo como Objeto é recrudescido pelas pesquisas e promessas das tecnociências ligadas à Genética, à Medicina, à Robótica etc, em corrigir ou eliminar suas imperfeições biológicas, pretendendo assim, libertar o Sujeito da sua natureza física e declarar a obsolescência do Corpo (LE BRETON, 2003; HARAWAY, 2000). Ao propor que o Corpo seja o Objeto de Arte, o artista contemporâneo em ações performáticas propõe a diluição desse objeto artístico e, consequentemente Cultural, na corporeidade biológica, empreendendo experimentações fomentadas por representações da imaginação simbólica que levantam questionamentos sobre um Corpo múltiplo, produtor de imagens invariantes da conduta humana em confluência com suas possibilidades e limitações físicas. A Performance a partir dos modos de usar o corpo (MAUSS, 1974) se mostra como uma possibilidade para o estudo dos sistemas simbólicos, ou melhor, como o artista performático (performer) se serve de seu Corpo para questionar seus mitos, medos e insatisfações, assim como os fatos sociais e os fenômenos culturais. No intuito de problematizar essas questões, parto da hipótese que a Performance resgata de maneira muitas vezes inconsciente e arquetípica, variadas formas de utilização do Corpo na Cultura que não envolvem a produção de um objeto físico, mas sim de um objeto vivo que dissolve numa única ação Natureza↔Cultura Sujeito↔Objeto Artista↔Obra. A Performance neste caso, proporciona aos artistas que a utilizam como meio expressivo, não mais uma relação dicotômica entre Sujeito↔Objeto, ou melhor, entre Artista↔Obra, mas uma ação promíscua onde o próprio artista é a obra e que as fronteiras entre Sujeito↔Objeto são dialógicas, concorrentes e complementares (MORIN, 1990). A Performance questiona simultaneamente a natureza do Corpo físico como uma proposta artística que se legitima na Cultura, ao retomar muitas vezes práticas rituais e arquetípicas que estão na própria origem mítica da Arte, da Magia e da Religião de inúmeras culturas (LÉVI-STRAUSS, 2003). Daí a importância de pesquisar a Performance sob a perspectiva da Antropologia do Imaginário, cujo arcabouço teórico considera que a atitude simbolizadora é ação estrutural dos seres humanos. A Performance enquanto objeto de estudo aprofunda as questões sobre o Corpo e as estruturas arquetípicas (BACHELARD, 2006) do Imaginário nas quais se ancoram as representações simbólicas culturais, partindo do pressuposto que o estudo das ações

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humanas também é o estudo do simbolismo das representações socioculturais que se materializam tanto no cotidiano quanto nas Artes. Ao se discutir os Mitos do Corpo na Performance, abre-se um campo pouco explorado nas pesquisas antropológicas, considerando neste caso que a Performance enquanto atividade artística expressiva é amplamente explorada pelas Artes Visuais. Nesse sentido, o estudo do Mito é o caminho que busca apreender o sentido e a origem das coisas, cuja metodologia Mito-Simbólica é o guia que religa a obra, as escolhas e a história dos artistas em questão (DURAND, 2010). Portanto o método de análise utilizado neste texto em relação à coleta dos dados realizada no trabalho de campo é a Mito-Simbólica, baseada nas comprovadas pesquisas sobre o Simbolismo e Imaginário, pois segundo Gilbert Durand (2010), o discurso MitoSimbólico é uma metodologia de análise apropriada ao mundo simbólico. Como sabemos, o discurso Mito-Simbólico remete inicialmente à crítica psicanalítica 2, onde contesta os postulados psicanalíticos pelas formulações de Gaston Bachelard (2008) de que o simbolismo da imagem surge para explicar a própria imagem, ou melhor, do estudo convergente da imagem criadora, da obra, do seu autor e seu tempo. Trata-se do uso de um método crítico, literário ou artístico, que se centra no processo compreensivo do relato mítico inerente a sua significação (DURAND, 2010). O discurso Mito-Simbólico remete ao mito pessoal do artista e que suas obras não falam apenas de um homem e sua vida, mas do homem na sua universalidade, considerando dialogicamente os aspectos culturais, históricos e sociais. Ao ancorar o discurso Mito-Simbólico como método de análise, o trabalho de campo que se iniciou em 2010, finalizado em 2014 e que se desdobra no corrente ano, onde conta com a coleta de dados que inclui visita a exposições, aos acervos de instituições ligadas as Artes Visuais, entrevistas com críticos, curadores, estudiosos e, sobretudo, aos artistas ligados ao universo da Performance. Como a Performance é uma expressão artística que geralmente reivindica espaços urbanos e a interação do público, foi necessário estar atento a todas ocasiões e oportunidades que possibilitavam as observações e registros dessas ações. Com isso, o trabalho de campo conta com a apreciação de Performances em instituições no Recife (SPA das Artes, Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães/MAMAM, Museu Murillo La Greca, Centro de Formação em Artes 2

A Mitocrítica converge mais precisamente ao modelo da Psicocrítica criado por Charles Mauron (1899 – 1966), sistematizado no livro “Das Metáforas Obsessivas ao Mito Pessoal” de 1963.

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Visuais/CEFAV e MAMAM do Pátio), em Garanhuns (Festival de Inverno de Garanhuns), em São Paulo (Fundação Bienal de São Paulo, Itaú Cultural, Galeria Vermelho e SP Arte), Lisboa e Vila Nova de Cerveira/Portugal (Bienal de Cerveira e Filminho). Após este extensivo trabalho de campo, esta pesquisa conta com três artistas visuais e suas obras performáticas: João Manoel Feliciano, Izidorio Cavalcanti e Daniel Santiago. A escolha destes três nomes se deu pelas questões a seguir: a) Por serem artistas ligados às Artes Visuais e não a outras linguagens artísticas como o Teatro ou a Dança; b) Suas obras performáticas são reconhecidas no meio das Artes Visuais e foram apresentadas em diversas localidades no Brasil e em outros países; c) Preferencialmente as performances desses artistas são feitas em público. Embora todos sejam pernambucanos, suas obras têm grande abrangência e figuram em diversos acervos espalhados no Brasil e no exterior. Ao contextualizar a trajetória desses três nomes, teremos cinco décadas de Artes Visuais em Pernambuco que se estende de 1970 até os dias atuais. Daniel Santiago é pioneiro na experimentação da arte multimídia em Pernambuco nas décadas de 1970/80 e suas obras transitam pela Performance, Arte Objetual, Arte Correio, Artdoor, Vídeoart, etc.,.. Nos últimos anos seu nome tem ganhado destaque não só pelo vigor que mantêm sua obra atual, mas também pela audaciosa, contestadora e volumosa produção experimental. Izidorio Cavalcanti inicia sua produção como artista na década de 1980 e passa a se destacar principalmente pelas performances que executa nas décadas de 1990/2000. Sua extensa produção performática já foi apresentada em vários estados brasileiros e em outros países. João Manoel Feliciano é o mais novo dos três nomes aqui citados. Inicia sua produção artística no final da década de 1990 explorando sua presença corporal em performances que se desdobram em vídeos e ensaios fotográficos. Durante o trabalho de campo foram realizadas entrevistas abertas com esses artistas, além da coleta de dados de suas obras disponíveis em acervos dos próprios artistas, assim como de museus e galerias. Foram considerados registros de ações performáticas em vídeo e fotografia, textos críticos de catálogos e jornais, matérias e Manifestos publicados por meio impresso e virtual, assim como depoimentos de pesquisadores e curadores sobre esses artistas e suas relações com a arte da Performance. Outros dados foram considerados relevantes para esta investigação tais como revistas especializadas em Artes Visuais, catálogos de exposições, documentos e projetos inscritos em editais públicos como, por exemplo, o SPA das Artes em Recife e do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco.

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Ainda, durante o mês de outubro de 2012, acompanhei o Coletivo Branco do Olho 3 durante o Programa de Residências Artísticas da Fundação Bienal de Cerveira em Portugal, do qual dois dos artistas aqui pesquisados são integrantes – Izidorio Cavalcanti e Daniel Santiago. Na ocasião tive a oportunidade de registrar duas ações performáticas desses artistas e também, coletar dados sobre Performance nos arquivos da Fundação Bienal de Cerveira – Portugal. Por fim, durante o meu estágio doutoral/sanduíche no Núcleo de Pesquisa da Complexidade – COMPLEXUS na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 2013 tive oportunidade de acessar os acervos e exibições em instituições público/privadas, como por exemplo, a mostra anual de Performance Verbo que acontece na Galeria Vermelho, na SP Arte, na Fundação Bienal de São Paulo e no Itaú Cultural. Corroborando o fato da pouca produção sobre o assunto, até onde minha revisão bibliográfica foi realizada, não há pesquisa sobre o tema da Performance nas Artes Visuais sob a perspectiva da Antropologia do Simbolismo e Imaginário. Partindo dessa constatação, foi construída uma fundamentação teórica que articula as abordagens precursoras de Marcel Mauss sobre as Técnicas Corporais (1934) que se desdobram na atual Antropologia do Corpo, dos conceitos estruturais e fenomenológicos que analisam o Mito e os Ritos no pensamento de Claude Lévi-Strauss e Mircea Elíade, nos estudos da fenomenologia poética empreendidas por Gaston Bachelard, nas Estruturas Antropológicas do Imaginário de Gilbert Durand e do Pensamento Complexo de Edgar Morin. Em relação à Antropologia e Sociologia do Corpo, foram realizadas leituras das obras de David Le Breton e Henri – Pierre Jeudy. Sobre a expressão artística da Performance a contribuição me foi dada por Paul Zumthor, Renato Cohen, Jorge Glusberg, Marvin Carlson e RoseLe Goldberg. Diante da articulação dessas leituras, o objetivo geral dessa pesquisa é analisar como os Mitos do Corpo se expressam a partir da Performance, considerando-a como uma expressão artística contemporânea que evidencia o Corpo do artista como suporte e que por tal condição, diluem as fronteiras entre Natureza ↔ Cultura, Sujeito ↔ Objeto, Artista ↔ Obra. Em relação ao objetivo geral dessa investigação, devemos levar em consideração as seguintes especificidades: a) Estudo da trajetória e do desenvolvimento histórico da

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O Coletivo Branco do Olho surgiu em 2005 e até hoje agrega e reúne diversas gerações de artistas pernambucanos que se utilizam dos mais variados suportes tais como Performance, Vídeo, Instalação, Desenho, Pintura, Escultura, Objetos, etc. Dentre as muitas ações do Coletivo Branco do Olho destacam-se as diversas participações nas edições do Olinda Arte em Toda Parte, nas edições do SPA das Artes – Recife, na Embaixada Pernambuco no Rio de Janeiro, no projeto REC < GRU em São Paulo e, em 2012, no Programa de Residência Artística da Fundação Bienal de Cerveira, junto com artistas do Japão, Chile, Inglaterra, Portugal etc. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 959

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Performance; b) Diálogo entre as teorias que tratam sobre a arte da Performance e os estudos mitocríticos; c) Discussão sobre as questões relativas ao Corpo, Tempo e Espaço na Performance; d) Apreensão do simbolismo dos discursos do Corpo a partir dos discursos Mito-Simbólicos nas ações performáticas. Contudo, neste artigo será considerado o último ponto, ou melhor, a apreensão dos discursos do Corpo na obra performática dos artistas supracitados.

Artistas, Performances e Arquétipos 1. O Alquimista na obra de João Manoel Feliciano O discurso Mito-Simbólico dos artistas escolhidos e suas obras foram analisados a partir dos diálogos estabelecidos entres os autores que compõem o referencial teórico supracitado, das pesquisas realizadas no trabalho de campo e na audição e apreciação das obras e das entrevistas com os artistas. Nesse caso, três arquétipos recorrentemente emergem para estabelecermos a dialogia entre Performance e Corpo: o Alquimista em João Manoel Feliciano; o Peregrino em Izidorio Cavalcanti e; o Anarquista em Daniel Santiago. Aqui se reafirma a proposta de que a analogia do Mito estabelece hologramaticamente (MORIN, 1990) religações com a realidade dos fenômenos culturais cotidianos e que no caso desta pesquisa, a Performance a partir dos usos e simbolismo do Corpo nos coloca diante de um posicionamento questionador sobre a dicotomia entre Natureza ↔ Cultura, Sujeito↔Objeto Artista↔Obra. Em João Manoel Feliciano as ações performáticas partem do recorte das obras Odontofagia (2006) e Crystallus Capilus (2007). Assim temos no artista João Manoel Feliciano o arquétipo do Alquimista que se revela no trajeto antropológico do qual as passagens de sua vida se fundem às suas produções artísticas. Na performance Odontofagia João Manoel Feliciano simula uma refeição cujo alimentos são dentes de boi. As imagens nos causam um estranhamento ao vermos a boca humana dentada a comer dentes, que na verdade são ossos que estão destinados a durar a eternidade... A intenção alquímica da transmutação opera na proposta do artista que silenciosamente sugere que os dentes degustados serão transformados em alimento. Segundo as Estruturas Antropológicas do Imaginário (1969), Gilbert Durand citando G. Bachelard coloca que o ato de digerir está ligado ao simbolismo da descida, à intimidade digestiva, ao ato de deglutir (DURAND, 1997).

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Figura 01 – Odontofagia (2006).

Fonte: Arquivo pessoal do Artista

O Regime Noturno proposto por Durand informa que a imaginação da descida está ligada diretamente a imagética digestiva, bucal, vaginal ou anal. Em termos freudianos está associado à necessidade narcísica de alimentar-se digestiva ou sexualmente: “É notar, de resto, que neste processo a imaginação do corpo seja ao mesmo tempo sexual, ginecológica e digestiva; O simbolismo do leite, das maçãs e dos alimentos terrestres alternam com fantasmas de involução no corpo materno” (DURAND, 1997, p. 202-203). O prazer oferecido ao Corpo pela imaginação da descida está coligado a um processo de inversão que transforma o assustador ato brusco da queda em prazer. Também a inversão da imagem da boca que despedaça o alimento (ação brutal que também pode estar ligado ao Regime Diurno) se transfigura na suave e inofensiva sucção do ato de alimentar-se. Esta característica é duplamente reforçada nas imagens da performance Odontofagia onde Feliciano devora dentes – devorar o símbolo do que devora – pois engolir não significa necessariamente destruir, mas valorizar ou até mesmo sacralizar o que foi deglutido. A correlação das imagens e sua acepção negativa no Regime Diurno no mito de Cronos que devora seus filhos convivem dialogicamente, por exemplo, com o do Complexo de Jonas que embora tenha sido engolido pela baleia mantém positivamente sua integridade física. Feliciano parece querer afrontar e nos mostrar a necessidade humana de devorar aquilo que nos devora. Seguindo o percurso artístico de João Manoel, posteriormente na obra Crystallus Capilus, sua performance ganha densidade poética. A ação se passa durante o SPA das Artes

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(2007) onde Feliciano convida o público a colocar nos seus cabelos dreadlocks 4 cilindros de gelo. Após a colocação de dezenas de cilindros nas suas tranças, Feliciano relaxadamente sentado, espera pacientemente o gelo derreter. Aqui não há a ação strictus sensu do artista, mas a performance do Tempo sobre este elemento da Natureza... Trata-se do simbolismo da ação do Tempo sobre nós e sobre a realidade que nos cerceia, que no caso dessa performance o elemento Água se transmuta do estado sólido para o líquido a partir do calor do Corpo do artista ao viver a passagem do tempo:

Seu corpo vivo aquece o gelo que, fazendo ver as relações de interdependência entre as partes do todo (artista-gelo-artista), reversamente esfria-se. Com o passar do tempo, a resistência do artista mostra sinais de exaustão: seu corpo treme, seus músculos fatigados e tensos já não o sustentam tão ereto quanto inicialmente, a respiração se aprofunda, a roupa encharcar-se. Em silêncio, observamos a também muda ação do tempo que, incapaz de produzir revoluções, vai apostando na continuidade das metamorfoses que se mantêm ininterruptas ao longo dos instantes. A obra se faz no embate do artista com a matéria de seu próprio trabalho-a água em pedra, a água em fluido 5. Figura 02 – Crystallus Capilus (2007)

Fonte: Arquivo pessoal do Artista. Fotos de Hélder Tavares e Mateus Sá

Segundo João Manoel Feliciano, a presença de seu corpo nesta performance é essencial para a vivência da passagem do Tempo:

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O Dreadlock é um tipo de trato dado aos cabelos que consiste em torná-los cilíndricos aparentando cordas que pendem a partir do topo da cabeça. O Dreadlock se tornou famoso principalmente com o Movimento Rastafari, mas se atribui historicamente sua prática à região da Etiópia. 5

DINIZ, Clarissa. 2007, . Acesso: 12/11/2013. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 962

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[...] realmente precisava ser eu, porque além de ser o meu cabelo [...] era a própria questão de estar vivenciando a Performance, que eu queria experimentar isso para puder justamente ter uma propriedade do discurso sobre o tempo [...] porque tinha que ficar duas horas, no caso de Crystallus Capillus, pra saber como é essa questão do elemento, do calor do corpo derretendo o gelo... O próprio cabelo era uma coisa quase que meio que uma tentativa quase alquimista de um estudo de tempo com relação a outros elementos/objetos (informação verbal) 6.

A Alteridade Espacial (ZUMTHOR, 2009) que é um território efêmero na relação corpo a corpo entre performer e público, torna-se transitório por conta do tempo interno da experiência performática, tempo de subjetividade singular como em um ritual, onde se revive nos Mitos os tempos imemoriais. Assim João Manoel Feliciano como um Alquimista enfrenta o embate na transmutação das coisas cotidianas onde no seu Corpo o Tempo se faz agir e na Performance o recurso para detê-lo. A Performance ao evidenciar a simultaneidade da relação Sujeito/Objeto nas Artes Visuais questiona o Corpo do artista enquanto obra e sua relação como expressão artística com o Espaço e o Tempo, respectivamente com a Alteridade e a Morte.

2. O Peregrino em Izidorio Cavalcante O arquétipo do Peregrino corresponde ao sujeito que faz de sua existência uma jornada por diversos caminhos em dinâmico diálogo na busca da purificação espiritual, fazendo da Fé o artifício necessário ao desapego do presente. Esta Fé é uma ação firme de confiança sobre algo futuro que dispensa a necessidade de comprovação/aprovação. Podemos afirmar que a Fé do Peregrino é movida pela abstinência da Dúvida. Também não é uma Fé fundada na aposta, pois esta pode se deixar contaminar pela Dúvida. Portanto não se trata de uma Fé religiosa ou dogmática, mas uma certeza baseada no trilhar do caminho que constantemente desafia o Peregrino e que precisa ser vivido a partir do diálogo. Como tive oportunidade de demonstrar na obra de João Manoel Feliciano, o artista ao colocar seu Corpo como parte integrante e fundamental de sua obra na Performance, inicia um processo de confrontação com a audiência onde a separação Artista/Obra ↔ Sujeito/Objeto deixa de existir. Como supracitado, o embate artista↔obra↔público por diversas vezes se faz diante de forte tensão, pois as fronteiras entre o reconhecível e o não reconhecível, entre o aceitável e o não aceitável socioculturalmente são posto à prova. Isto se 6

Entrevista concedida por João Manoel Feliciano em setembro de 2012. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 963

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dá pelo fato de que a Performance explicita a interdependência artista↔obra↔público e expõe que o Sujeito e o Mundo não podem ser pensados separadamente por serem coexistentes (ZUMTHOR, 2009). Aqui as fronteiras socioculturais que cotidianamente nos são impostas, são superadas pelo individuo Peregrino na Fé em sua caminhada que articula simultaneamente três elementos: o caminhante, o caminho e o ato de caminhar. É justamente nas fronteiras do diálogo/reconhecimento que se situam as performances do Peregrino Izidorio Cavalcanti. Na Performance se vive a tensão entre as ações do cotidiano e a ação performática proposta pelo artista que no caso, promove uma ritualização/reencenação da vida que busca o reconhecimento do público frente a um modelo comportamental criado pela situação performativa. Assim são as performances Sagrado Coração de Izidorio Cavalcanti (2010) e Flores de Plástico não Morrem (2011). Em Sagrado Coração de Izidorio Cavalcanti a imagem do Cristo católico-cristão é claramente explorada pelo performer que nesta ação performática peregrina por sete catedrais católicas no Centro do Recife/PE com um coração de boi costurado no peito. De maneira geral o coração é o órgão principal do individuo, pois assegura a vitalidade pela circulação do sangue e, portanto, corresponde a noção de centralidade da Vida e da saúde biológica. No Ocidente contemporâneo o coração é o sinônimo do amor profano e da afetividade, condições indispensáveis também, para a boa saúde espiritual dos seres humanos. Os textos sagrados cristãos conferem um lugar central ao coração na vida espiritual, pois ele pensa, decide, delineia projetos e afirma responsabilidades. Diz-se que o coração é o primeiro órgão do corpo humano a se formar e o último a morrer e daí deriva a sentença até o último suspiro! Que muitas vezes significa manter a Fé até o fim (CHEVALIER, 1986). Entretanto o coração também carrega o princípio do Mal, pois o Homem sempre corre o risco de seguir as tendências do Corpo e dar ouvido ao lado perverso do coração. As orientações bifurcadas do sagrado e do profano que se encontra na centralidade do coração estão representadas na presença da imagem do peregrino Izidorio Cavalcanti: homem comum/mortal que posa como um cristo negro imóvel que se apropria da tradição icônica católica-cristã exibida nos santinhos 7 distribuído pelo artista na ocasião desta performance. 7

Santinhos são cartões impressos em pequenas dimensões que representam os santos das devoções católicas, produzidos hoje em massa para os seguidores religiosos. São cenas religiosas ou do Santo com o objetivo de facilitar o transporte e a coleção, onde é comum apresentar no verso orações. A ampla circulação dos santinhos é um importante meio de divulgação cultural religiosa para o catolicismo, pois recrudesce a afirmação do Papa Gregório Magno (540 – 604 d.C) de que as imagens são um importante veículo para ensinar a palavra sagrada aos leigos, sendo portanto predominante neste tipo de publicação, imagens das pinturas clássicas Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 964

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Figura 03 – Sagrado Coração (2010). Performance peregrina em sete templos católicos.

Fonte: Arquivo pessoal

Em Flores de Plástico não Morrem, Izidorio Cavalcanti simula um funeral com todos os artefatos próprios para este evento: suporte para caixão fúnebre, flores, etc. Completa o cenário o próprio caixão fúnebre (suas pequenas dimensões remetem a uma urna infantil) que ao invés de estar ocupado pelo cadáver, está preenchida por grande quantidade de flores de plástico que representam famosos artistas visuais falecidos. Em exposição por um dia na Casa Galeria Galpão 8, o velório criado pelo artista despertam a curiosidade do público que recebe o convite para participar do cortejo fúnebre marcado para a tarde do dia seguinte. Na data e hora prevista, o cortejo parte da Casa Galeria Galpão localizada na Av. Rui Barbosa (uma das principais avenidas da cidade de Garanhuns) rumo ao Parque Euclides Dourado, ponto de grande fluxo de pessoas por agrupar muitas atividades durante os dias do festival. Vestido de paletó, gravata e segurando flores, Izidorio Cavalcanti peregrina até o Parque Euclides Dourado, causando alarido na Av. Rui Barbosa, acompanhando o funcionário da funerária que guia o caixão fúnebre. Das poucas pessoas que aguardavam a saída do cortejo em frente a Casa Galeria Galpão se somaram uma pequena legião de seguidores que acompanharam o peregrino até a cova pronta situada no parque. Diante do sepulcro, o artista retira as flores do caixão e as

religiosas europeias (GOMBRICH, 1999). Os santinhos mais antigos representam São Cristóvão e datam de 1423, onde era comum serem pintados à mão. Mais tarde as gravuras e as águas-fortes substituíram as pinturas, e posteriormente, a litografia ofereceu a possibilidade de aumentar a reprodução com custo mais acessível. 8

A Casa Galeria Galpão é uma iniciativa do Festival de Inverno de Garanhuns junto ao Governo do Estado de Pernambuco que desde 2007 recebe em espaços expositivos durante o festival, mostras de Artes Visuais, Artes Gráficas/Design e Fotografia por meio de convocatória pública. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 965

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coloca cuidadosamente na cova. O público observa... Ao fim do rito o artista enterra as flores de plástico com a ajuda de um funcionário da prefeitura local. Desde a antiguidade os Ritos de Morte impõe respeito. Em inúmeras culturas o pesar pela perda do ente querido se soma à retrospectiva de sua jornada em vida, reverenciada por recitais, danças e/ou atrações festivas. O epitáfio escrito sobre a lápide traz os feitos do morto que muitas vezes são compilados em pequenas frases que exaltam suas qualidades. As tumbas do Antigo Egito exibem exuberantes pinturas e complexos ideogramas que narram à caminhada dos nobres. Na Grécia antiga os epitáfios traziam longos versos das odisseias dos heróis. No catolicismo popular, a caminhada fúnebre é acompanhada por rezas e cânticos como reverência. O cortejo fúnebre simboliza o último caminho do finado no mundo dos vivos. A angústia da Morte se faz presente, pois se trata de um rito de passagem para a incerteza: “A caminhada afirma, lança suspeita, arrisca, transgride, respeita, etc., as trajetórias que “fala”” (DE CERTEAU, 1990, p. 179). Figura 04 – As Flores de Plásticos Não Morrem (2011). Performance funeral realizada durante o Festival de Inverno de Garanhuns – Pernambuco.

Fonte: Arquivo pessoal.

A busca pela redenção e/ou Origem sagrada pelo peregrino se completa com este diálogo com o público. Assim como na exibição pública do sofrimento de Cristo na Via Crucis rumo à redenção após crucificado, o peregrino precisa do reconhecimento público na caminhada rumo a Origem sagrada. Segundo Eliade (2000), todos os rituais e Mitos de retorno a Origem se situam num mesmo plano, ou melhor, que procedem de maneira semelhante, embora seus contextos e necessidades sejam diversos. Os Mitos Cosmogônicos são um exemplo disso, onde se prestam Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 966

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curas fisiológicas e comportamentais pela condição de voltarem à origem das coisas que aponta para a longevidade, a regeneração ou libertação. Em diversos ritos na Índia e na China os enfermos ou anciãos são enterrados em covas que simbolicamente representam o útero (regressus ad uterum). Os Mitos e Ritos Cosmogônicos são formas de dominar o Tempo ou de curar-se da ação deste. Como nos informa Gilbert Durand (1997), o simbolismo da caminhada também é associado às imagens de ascensão no Regime Diurno do Imaginário humano. O Regime Diurno das imagens privilegiam a verticalidade e a horizontalidade provocada pelo reflexo dominante da postura que para o homo sapiens sapiens é sua condição corporal ereta (DURAND, 2010). Numa oposição ao simbolismo da queda que é vivenciada corporalmente na primeira infância quando o indivíduo começa a andar ereto, a postura vertical e a horizontalidade congregam constelações de imagens catamórficas referentes à subida, a ascensão e à escalada, que por sua vez remetem a salvação, à iluminação e a antítese da queda. A performance do peregrino é puro ato de Fé no Diálogo... Diálogo com o Sagrado, pois não há pecados para serem redimidos, mas a troca com a Alteridade. Talvez aqui se encontre a qualidade primeira de sua busca peregrina, ou melhor, da afirmação da condição universal do Homem em sua profunda diversidade. Por fim, o que move o peregrino é a Fé no devir. O horizonte da caminhada não significa um obstáculo, mas antes, a promessa de novos diálogos. Longe da domesticação dogmática, Izidorio Cavalcanti pautado na Fé, acredita que a Arte em seu labor individual durante o processo criativo possa tomar novos rumos em sua materialização quando feita de maneira coletiva. Parece-me ser esses os votos de Fé do peregrino.

3. A Arte como Anarquismo Ao percorrer as encruzilhadas imaginárias da Performance me deparo com o trajeto antropológico do terceiro performer a figurar este texto onde emerge o arquétipo do Anarquista. O Anarquista em questão é o artista visual pernambucano e pioneiro multimídia Daniel Santiago que, em sua longa, experimental e rica trajetória, cruza cinco décadas de vigorosa produção artística que explora as expressões da Vídeoart, Arte Correio, Artdoor, Arte Objetual, Instalação, Desenho, Pintura, Livro de Artista e, sobretudo, a Performance. Reconhecido dentro e fora do Brasil, Santiago durante as décadas de 1970 e 1980, subverteu o contexto da Arte pernambucana além de desafiar o regime político vigente da Ditadura

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Militar. O forte teor contestatório presente no trajeto antropológico de Daniel Santiago e sua obra que desafiam o contexto político e a arte predominantemente figurativa regionalista sem perder sua potência poética me revelam o arquétipo do Anarquista. O arquétipo do Anarquista subjaz suas ações performáticas de Daniel Santiago que prezam pela liberdade criativa do Sujeito na presença corporal que buscam contestar a ordem estética de seu tempo, explorando o artista (Sujeito) com sua arte (Corpo). Para subverter o contexto estético é preciso ter consciência das realidades ao qual está imerso e para tal, Santiago abre mão de inúmeras referências literárias e teatrais que o conectam diretamente como um ator político ativo, cuja consciência libertária política de sua presença se faz ora de maneira poética, ora de forma totalmente anárquica. Na performance O Brasil é Meu Abismo (1982), Santiago fica dependurado de ponta cabeça por uma corda segurando um cartaz homônimo numa forte ação de apelo contestatório da realidade política brasileira no final do Regime Militar. Percebemos o performer arriscar – se numa queda livre, estando preso por uma corda apenas por um dos pés, onde o estado de risco é evidenciado pelo Corpo que se coloca prestes a despencar. A corda é o fio que garante que o Corpo não caia no abismo, pois está atada a um nó. O nó que une Corpo e corda pode ser interpretado como o liame entre a Vida e a Morte. Simbolismo geral de ligação e conexão, a corda associada ao nó ou ao laço, remete ao símbolo da existência individual, ao mesmo tempo em que o nó alude ao estamento social (CIRLOT, 2005). De acordo com o simbolismo da corda e do nó, nesta ação performática o artista pende entre sua individualidade e a regulação da estratificação social, enquanto apela pela pátria abismo. A noção de uma pátria abismo embora pareça paradoxal, dialogicamente une imagens contrárias. A pátria conceitualmente é o território que abarca a cultura e a história de um povo e seus limites circunscrevem concretamente um Estado ou Nação. Para o Regime Diurno da Imagem, a queda no abismo é a perda da clareza e da pureza, habitação das trevas, do mistério e da tristeza (BACHELARD, 2008; DURAND, 1997). Assim como na Noite, no abismo não se pode ver o que está adiante por conta da escuridão, onde o olhar se perde na vertigem. Embora o Universo seja em si considerado abismal, há uma associação direta do abismo como um buraco negro que se abre na Terra ou nos Mares, cujo magnetismo atrai os que por ele circundam.

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Figura 05 – A performance O Brasil é Meu Abismo foi apresentada em 1982 na Galeria Metropolitana Aloísio Magalhães (atual MAMAM), em São Paulo (1986), Goiânia (2007) e Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM (2012). A obra é uma referência ao poema Aquarela do Brasil do poeta/literato/performer Jomard Muniz de Britto (1933 –).

Fonte: SANTIAGO, Daniel. De Que é Que Eu Tenho Medo, 2012.

O Anarquista Daniel Santiago nos interroga sobre essa pátria abismo que é ao mesmo tempo a Mãe que abriga e o fosso sem fundo das amarras socioculturais, cuja corda enquanto símbolo da individualidade ao mesmo tempo circunscreve através do nó o Sujeito ao seu estrato social dependurando–o. Assim como na utopia anarquista, não estaria o performer Santiago questionando a liberdade do Sujeito diante das amarras socioculturais representadas pela corda e pelo nó? Não estaria o artista – esse ser suspenso e dependurado entre a imaginação da matéria Céu e Terra – na incômoda posição de questionar os valores estéticos vigentes? O Corpo também é uma pátria abismo, território único do Sujeito que experimenta nele próprio a liberdade que pode confrontar o Estado–Nação e os contextos socioculturais, tendo a Performance neste caso, o ato pendular utópico que busca resistir e enfrentar a Passagem do Tempo, pois a palavra abismo não é nome de objeto concreto mas sim adjetivo psíquico (DURAND, 1997). Na performance Godot Esperando Samuel Beckett, numa inversão anárquica dessa famosa peça teatral, Daniel Santiago encarna o próprio Godot, revelando a personagem oculta da narrativa. Ignorando completamente as outras personagens do texto, Estragon e Vladimir, que tanto esperavam por ele na versão do autor, Santiago Godot espera pelo criador, ou melhor, por Samuel Beckett. Se antes a angústia da espera por uma persona tomava o

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espectador, agora inversamente, o público torna-se potencialmente o autor da obra quando Daniel Santiago como Godot aborda-os e pergunta-os: “Você é Samuel Beckett?”.

Figura 06 – Godot Esperando Samuel Beckett (Vila Nova de Cerveira - Portugal/2012). O público é interrogado por Santiago Godot: “Você é Samuel Beckett?”.

Fonte: Arquivo pessoal.

Não importa o lugar onde o performer Santiago esteja o que lhe interessa é achar o seu criador – Beckett. Com um cartaz em mãos “Godot esperando Samuel Beckett”, a paciência e o sarcasmo do Anarquista é equivalente ao tédio e ao absurdo da versão original. Elegantemente trajado e com seu Cetro 9 (bengala), Santiago corporifica a persona Godot e torna indefinida a presença do criador, pois Beckett pode ser qualquer pessoa que esteja circulando nas ruas... Nesse caso o próprio Godot não sabe quem é Samuel Beckett! Por isso aborda todos os que por ele passam. Não estariam nesta ação performática as evidências de que a Performance é a busca/encontro da obra/Corpo com seu criador/Sujeito? Não seria a Performance uma expressão artística que legitima a (co)autoria do espectador no embate corpo – a – corpo com a presença do artista? Que o lócus da Alteridade Espacial é este momento decisivo na inversão/diluição de papéis entre criador↔criatura artista ↔ obra Sujeito ↔ Objeto? Não são raras as narrativas míticas onde a criatura reivindica e interroga a presença do criador, embora saibamos que hologramaticamente um convive no outro. Nos Mitos de Origem das culturas tradicionais, diz M. Eliade (2011), os Sujeitos reivindicam um retorno ao criador para justificar uma nova situação, algo que foi modificado (enriquecido ou 9

Segundo Gilbert Durand (1997), o Cetro e o Gládio são arquétipos recíprocos dos esquemas ascensionais do Regime Diurno da Imagem. Um pouco diferente do Gládio que é uma espada com dois gumes utilizada para separar, afastar e destingir a luz das sombras, o Cetro é a imagem da liderança dos reis e sua verticalidade indica o caminho da ascensão aos céus, da pureza e do poder.

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empobrecido). Este retorno a origem oferece a esperança de um renascimento, pois a Vida não pode ser reparada, mas sim, recriada a partir do retorno a fonte original. O retorno a Origem também é um reconhecimento dialógico da nova situação que se instala e que também é um ato de criação, pois na Origem o Cosmo é por excelência o modelo perfeito de criação. A antítese expressa no Regime Diurno da Imagem que emerge do trajeto antropológico de Santiago e sua obra performática nos revelam a consciência política de sua presença corporal que religa temporalidades, seja nas Artes Visuais ou na apropriação do universo da Literatura. A obra de Santiago se alicerça na transformação libertária das realidades da Vida como ascensão do espírito humano.

Considerações Finais A Performance problematiza a separação entre Sujeito ↔ Objeto, Artista↔Obra, Artista↔Público, Público↔Obra, ação artística↔ação banal, Tempo↔Espaço, estando o Corpo do performer na condução da ação que pode ser interpretada de forma imprevisível, mesmo que se tome as precauções possíveis e previsíveis. Mesmo que o público seja parte da performance, o mesmo é livre para decodificar e reagir da maneira que culturalmente achar adequado. Em relação a este fato, não seria essa a busca dos vanguardistas históricos futuristas e dadaístas com seus saraus e Soirées que precederam a Performance? Provocar a reação do expectador da obra de arte passivamente voyeur para torná-lo ativo numa Arte Viva? Não será o corpo do performer o meio propício para esta provocação? Não será o Corpo em si, um elemento vivo que carrega sentidos simbólicos que interrogam dialogicamente questões tais como as sexualidades, as visualidades etc., que catalisam os tabus, prazeres e interditos sociais? A ênfase dada ao Corpo do artista e as questões que tangem a trajetória histórica da Performance direciona essa expressão artística às obras autobiográficas, ou melhor, na reconstrução da memória individual do performer que se volta para os questionamentos socioculturais. Neste caso, o público se vê confrontado pelo artista como obra de Arte expondo sua realidade literal, seus usos corporais no enfrentamento dos interditos comportamentais e socioculturais. Como Sujeito e Objeto artístico, o artista expõe o simbolismo

e

imaginário

de

seu

Corpo,

quase

sempre

dispensando

contextos

narrativos/teatrais.

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Em relação à presença física do artista na Performance, como supracitado, o discurso articulado na ação performática faz com que se crie uma retórica da ação e do movimento fomentada simultaneamente pelo Sujeito↔Objeto na Cultura. A não separação entre Sujeito↔Objeto pressupõe que não há rupturas nas instâncias da Natureza e da Cultura, e que devemos pensar a condição humana como dialogicamente 100% Natureza e 100% Cultura. Mesmo que o pensamento Ocidental ainda insista na separação entre Natureza ↔ Cultura e do Sujeito↔Objeto, as próprias ações humanas evidenciam e acumulam esta propriedade que está inscrita na longa história biológica do homo sapiens sapiens. Ao reafirmar a não separação entre Sujeito↔Objeto, a Performance e o trajeto antropológico das obras e dos artistas que se utilizam do Corpo como suporte de suas obras, remetem a questões míticos-rituais, que apontam para convergências e aproximações da noção de Performance aos Ritos. Esta aproximação é percebida na articulação do saber-ser do performer a partir dos usos do Corpo na Alteridade Espacial (ZUMTHOR, 2009), onde os mitos pessoais e culturais simultaneamente são explorados. A dimensão ritual da Performance está ligado ao instante em que o artista intensifica sua relação com público durante a ação, abolindo a separação entre performer/plateia. Um lócus relacional entre Tempo/Espaço que se liga a Alteridade Espacial numa experiência estética que elimina a dicotomia Sujeito↔Objeto. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2008. ______. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2006. CARVALHO, Edgard de Assis. Enigmas da Cultura. São Paulo: Cortez, 2003. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. São Paulo: José Olympio, 1986. CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Centauro, 2005. DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. V. 1. Artes de Fazer. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1990. DURAND, Gilbert. Imaginário - Ensaio Acerca das Ciências e da Filosofia da Imagem. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. ______. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC - Livros Técnico e Científicos S.A., 1999. HARAWAY, D.; KUNZRU, H.; TADEU, Tomaz (Org.). Antropologia Ciborgue: As Vertigens do Pós-Humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. LE BRETON, David. Antropologia do Corpo e Modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. JEUDY, Henri- Pierre. O Corpo como Objeto de Arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. MAUSS, M. As Técnicas Corporais. In: MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, Vol.II, 1974. MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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A presença na imagem: intensidades mitopoéticas em cena The presence in the image: mythopoetic intensities on stage La présence dans l’image : intensités mythopoétiques sur la scène

Franciele Machado de AGUIAR 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Resumo O presente texto vislumbra processo criativo do ator da perspectiva dos estudos do imaginário, detendo-se ao caráter simbólico que instaura o paradoxo na imagem cênica. A presença na imagem constrói a estrutura performativa do ator como percurso mitopoético, conhecimento que é resposta do corpo em sua totalidade a uma exploração que tem lugar nos domínios do sensível. Tomam-se como referência as reflexões do encenador polonês Jerzy Grotowski que, investigando os pontos de contato entre as técnicas performativas e o ritual, concebia o trabalho do ator como possibilidade de encontro de potencialidades desconhecidas do humano, pertencentes a uma dimensão coletiva. Surge, assim, o desejo de fazer da cena um lugar de intensidades mitopoéticas para o qual a Teoria Geral do Imaginário possa conduzir: para presença nas imagens, para alma nas coisas, para numes no nome, para encantos no mundo. Palavras-chave: arquétipo; imagem simbólica; processo de criação do ator. Abstract This text encounters the actor’s creative process from the perspective of the studies of the imaginary, emphasizing the symbolic dimension that introduces the paradox in the scenic image. The presence in the image builds the actor’s performative structure as a mythopoetic route, knowledge that is the body's response in its entirety to a holding that takes place in the fields of sensibility. References are taken from polish director Jerzy Grotowski’s reflections, that investigating the contact points between the performing techniques and ritual, conceived the actor's work as a possibility of meeting of the human’s unknown potential, belonging to a collective dimension. So, arises the desire to make of the scene a place of mythopoetic intensities for which the General Theory of the Imaginary can lead: to presence in the images, to soul in things, to numes in name, to fascinates in the world. Key words: archetype; symbolic image; actor’s creative process.

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(En)Canto primeiro: a presença Porque tu sabes que é de poesia Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio, Que a teu lado te amando, Antes de ser mulher sou inteira poeta. E que o teu corpo existe porque o meu Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio, É que move o grande corpo teu. Hilda Hilst

Um corpo que, cantando, mova o grande corpo de Dionísio. Que possa vivenciar o símbolo através de um conhecimento concreto e experimental. Presente na imagem, com a imagem, pela imagem. Corpo a ser reencontrado. Reencantado. Porque está e respira num tempo que sente, ainda, os efeitos do iconoclasmo e do racionalismo, herança de séculos. Corpo cultivado num contexto de desvalorização do imaginário, de evaporação do sentido. Instado a buscar verdades, explicar, destituir seu saber das “deformações” do imaginar, dos “enganos” da fabulação e do mito. Mas é de poesia, de mitopoese, sua vida secreta: uma revolta subterrânea reivindica o direito a uma imaginação plena, pensamento selvagem, indireto, que é íntimo do analógico, do concreto, do jogo, da festa, do rito, da pregnância do símbolo, dos mistérios e suas epifanias. Nesse corpo se inscreve uma linguagem assaltada por vibrações e rumores, abalos sísmicos, erupções; encadeiam-se imagens que são conhecimento, que têm reabilitado seu aspecto cognitivo, que se legitimam como saber. Esse corpo encontra uma ciência das imagens. E faz dela solo fértil, gênese, “esperança viva diante e contra o mundo objetivo da morte” (DURAND, 2002, p. 432). Gilbert Durand, em suas Estruturas Antropológicas do Imaginário, exaltava a imaginação “como recurso supremo da consciência, como coração vivo da alma cujas sístoles e diástoles constituem a autenticidade do cogito” (idem, p. 433). E desejava uma educação estética, uma pedagogia da imaginação que viesse inventariar os recursos imaginários do homem numa arquetipologia que possibilitasse a expressão criadora e a consequente comunicação das almas. Seriam as manifestações artísticas lugares favoráveis à realização simbólica? Segundo Durand (1988), a imagem está sujeita a um evento, o que exige que ela seja sempre revivida, numa repetição instauradora do objeto simbólico. Também aquilo que o ator cria, na condição de evento performativo cuja existência é vinculada ao acontecimento, ao Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 975

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presente da ação, precisa ser sempre revivido como vez primeira, como processo que gera imagens, como formas que são rastros de uma virtualidade atuante. Sendo assim, a prática cênica será, aqui, o locus de reverberação das considerações sobre o relacionamento com a imagem. Nas ressonâncias deste (en)canto primeiro, transita um corpo de atriz que, como tal, possui desejos de presença. É a partir das suas intimações, da sua experiência de pesquisa e criação, que ele empreende esta reflexão sobre alguns conceitos, noções e metáforas da Teoria Geral do Imaginário.

(En)Canto segundo: a imagem e sua ciência (…) é necessário desejar que uma pedagogia venha esclarecer, senão ajudar, esta irreprimível sede de imagens e sonhos. Gilbert Durand

Num contexto que padece ainda dos efeitos da depreciação cultural do imaginário, a obra de Gilbert Durand – em diálogo com as teorias fundadoras da imagem oriundas do pensamento de Gaston Bachelard, Jung, Mircea Eliade e Henry Corbin, entre outros – reabilitará o mito, o inconsciente e o devaneio como fontes legítimas de um saber que não despreza a materialidade do corpo, mas o concebe como totalidade. O ato de imaginar é íntimo dos processos vitais, é ativo, criativo, entrelugar entre a percepção e a abstração. Acolhendo em suas investigações a análise das estruturas do imaginário e seus conteúdos dinâmicos como meio fundamental para a compreensão das bases míticas do pensamento humano, Durand chama a atenção para o fato de que existe uma “assimilação subjetiva no encadeamento dos símbolos e de suas motivações”, de modo que “nossa sensibilidade serve de medium entre o mundo dos objetos e o mundo dos sonhos” (DURAND, 2002, p. 34). As imagens originárias denominadas arquétipos constituem, portanto, a partir de sua manifestação em símbolo, “o ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais” (idem, p. 61). Procedendo desse dinamismo transformador, a imagem passeia pelos limiares que a racionalidade objetificadora não alcança. O pensamento mítico é filho dessa experiência cujas raízes penetram no sensível; seus elementos são o elo entre perceptos e conceitos, conforme aponta Lévi-Straus (2011) ao destacar o valor dos mitos e dos ritos como modos de observação, reflexão, exploração e organização do mundo; integração do homem no cosmos.

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O conhecimento advindo daí tem a autenticidade dos começos. Porque ele exige a vivência do instante em que o processo somático se dá em sua integridade. Investimento de sentido por parte do sujeito, o relacionamento com as imagens que constituem a narrativa mítica não tem a segurança inabalável do dogma, não pode ser imposto. As imagens simbólicas que o mito encadeia se estabelecem como um coagulum de sentidos, resistindo, portanto, à conceituação e às categorias de pensamento racional. Elas estão em contínua mutação: instam, provocam, põem em ação a busca por uma resposta. Para Gilbert Durand, o mito se organiza como uma superestrutura que é parte integrante do sistema dinâmico do imaginário, entendido como “o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens” (DURAND, 2002, p. 18). Não é exclusivamente o encadeamento da narrativa o que importa no mito, mas também o sentido simbólico dos termos, porque ele “nunca é uma notação que se traduza e se decodifique,

mas

é

sim presença

semântica

e,

formado

de

símbolos,

contém

compreensivamente o seu próprio sentido” (idem, p. 357). A obra de Durand, reivindicando a integração entre imaginário e razão, aponta para a “antecedência do imaginário e seus modos arquetípicos, simbólicos e míticos, sobre o sentido próprio e suas sintaxes” (idem, p. 358). A partir disso, a imagem assume importância fundamental enquanto mediadora entre os processos somáticos e a emergência da consciência: seu potencial de criação é valor cognitivo e o ato de imaginar, encarnado na intimidade dos processos corporais, instaura o pensamento. A materialidade corpórea do processo imaginativo foi apontada por Gaston Bachelard (1997), quando destacava a complementaridade da imaginação formal e da imaginação material – sendo esta indicadora da dinamogênese da imagem na manipulação da matéria, no trabalho do corpo. As estruturas dinâmicas dessa imaginação material cujas nuances e modulações Bachelard atribuía aos quatro elementos (terra, fogo, ar e água), serviram de ponto de partida para que Gilbert Durand, discípulo do epistemólogo francês, desenvolvesse sua Teoria Geral do Imaginário, também enfatizando o enraizamento corporal das representações, das imagens simbólicas. Para Durand, no entanto, a dimensão orgânica que instaura o imaginário tem sua origem no nível sinestésico dos gestos inconscientes de nossa sensomotricidade, ou seja, nas intimações biopsíquicas dos reflexos ou esquemas sensório-motores dominantes. Também chamados por Durand como schèmes, esses gestos (nos quais a reflexologia de Leningrado localiza três reflexos principais: o postural, o digestivo e o copulatório) engendram os

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simbolismos que se constituem como uma resposta, um esforço criativo que deseja vencer a angústia frente à passagem do tempo e à consciência da morte. Os reflexos citados não são os únicos, mas predominam em relação a um conjunto. Isso significa que, em ocorrências reflexas concomitantes, um reflexo dominante sempre irá inibir um não dominante. Tais gestos ou reflexos dominantes propostos pelos estudos de reflexologia da Escola de Leningrado inspiraram Durand na classificação de homologias e preponderâncias simbólicas nos eixos dos trajetos antropológicos constituídos pelos símbolos. Segundo os trabalhos do neurologista russo Wladimir Bechterev, esses reflexos são as matrizes de construção progressiva dos grandes conjuntos simbólicos. Em suas investigações sobre o imaginário, Durand correlaciona cada reflexo (schème) a

um

verbo

actancial:

separar/distinguir

relacionando-se

ao

reflexo

postural;

misturar/confundir referindo-se ao reflexo digestivo e o ligar como correspondente ao reflexo rítmico-copulatório. As imagens ou arquétipos, em sua bifrontalidade, se constelam então a partir da afinidade com cada um desses gestos reflexológicos, em dois regimes de imagens: o diurno e o noturno. O regime diurno é constituído pelo universo mítico heroico, no qual a bifrontalidade da imagem se resolve em oposição, em antítese; e o regime noturno subdividese no universo mítico místico, onde a bifrontalidade do arquétipo é dissolvida numa fusão e, por fim, no universo mítico dramático ou sintético, no qual a polaridade, a bifrontalidade do arquétipo se faz coincidência de opostos, jogo entre duas forças não redutíveis uma a outra.

O trajeto antropológico é justamente o topos de criação das imagens, que envolve toda esta inter-relação entre: schèmes, arquétipos, símbolos e mitos, oferecendo um semantismo próprio às imagens simbólicas, que as distingue dos signos semiológicos. As imagens do regime diurno são provocadas pelo schème postural, indicando estruturas esquizomorfas (separação e geometrização), as imagens do regime noturno são provocadas pelos schèmes da nutrição e cíclico, indicando duas estruturas: mística (imagens de intimidade) e sintéticas (imagens de ciclo), que mais tarde, segundo encaminhamento durandiano, transformar-se-ia em regime autônomo. (LYRA, 2011, p. 140)

Tais reflexos e as imagens endógenas que têm neles sua origem, formam um dos polos do trajeto antropológico do imaginário que encontra, na extremidade oposta dessa via de mão dupla, as coerções históricas, sociais e culturais – as imagens exógenas, aquelas dadas pela cultura.

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Ainda que não contemple a complexidade do pensamento e da obra de Durand, a ênfase até aqui dada à dimensão orgânica da atividade simbólica é que permitirá, a partir de agora, que se estabeleçam relações entre essa ciência das imagens e o ofício do ator, cujo processo de criação será abordado como vivência arquetípica e percurso mitopoético.

(En)Canto terceiro: intensidades mitopoéticas em cena (…) Volver a ser de repente tan frágil como un segundo Volver a sentir profundo como un niño frente a dios Eso es lo que siento yo en este instante fecundo. (…) Violeta Parra

O encenador russo Constantin Stanislavski, pioneiro na pesquisa dos elementos que constituem o trabalho do ator, deu em suas reflexões e em sua prática um lugar destacado à imaginação. Sua compreensão do caráter psicofísico da ação do ator sempre exigiu que, sobre o palco, a estrutura performativa do ator jamais fosse um conjunto de gestos e entonações formalmente dominados e repetidos em sua plasticidade e exterioridade visível e audível. Stanislavski, ao estimular o encontro, por parte do ator em cena, da vida do espírito humano, expandia os limites de sua arte para além da representação: atuar era vivência, organicidade, presença. Anos mais tarde, o encenador polonês Jerzy Grotowski resgataria e aperfeiçoaria o método das ações físicas criado por Stanislavski. Concebia o teatro como encontro entre o ator e o espectador, tornado testemunha daquele que, em cena, desvela-se em ato total. A expressão trabalho sobre si, oriunda dos escritos e da prática de Stanislavski, é tomada por Grotowski como uma possibilidade de autoconhecimento, de descoberta dos estratos arquetípicos que nos aproximam do outro, pela experiência de potências comungadas. A ação do ator, em Grotowski, era reação física, ajustamento ao momento presente, contato com o outro, acesso ao corpo-memória – memória não apenas pessoal, mas de dimensão coletiva. No encontro desse processo, o ator/performer se reaproximava de sua técnica originária, lá onde heróis, médiuns, xamãs conduziam o rito, dinamizando e unindo opostos como o sagrado e o profano, o consciente e o inconsciente, a estrutura e a espontaneidade como retorno ao in illo tempore primordial, tempo do mito, onde as coisas aconteceram pela primeira vez.

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O percurso artístico de Grotowski teve momentos distintos de investigação. Mas seu interesse pelo mito, pelo arquétipo e pelos pontos de contato entre as artes performativas e o processo ritual perpassou todas as etapas de sua pesquisa, que transitou da arte como apresentação – direcionada à percepção do espectador – à arte como veículo, na qual a ênfase recai sobre o processo e a transformação do próprio atuante, que o encenador aproximaria, então, daquilo que Jung concebera como processo de individuação. A arte como veículo, em Grotowski, apresentando-se como vivência arquetípica, como paradoxo, aproxima-se do caráter gnóstico da função simbólica, tal como concebida pelos estudos do imaginário: dotada de um poder evocador de um mistério, presença epifânica da transcendência. De acordo com Durand, “todo simbolismo é uma espécie de gnose, isto é, um processo de mediação através de um conhecimento concreto e experimental” (DURAND, 1988, p. 35). O sentido do símbolo é algo a ser vivenciado, convoca o “homem total”, causa uma comoção, um “mover com” que coloca a experiência subjetiva como condição do conhecer. Não há uma separação entre sujeito e objeto, mas uma reversibilidade entre ambos. A gnose, conhecimento que é contrário a uma imposição exterior, arbitrária, de um saber institucional e distanciado, é uma compreensão ancorada na subjetividade, espécie de encontro (ou confronto) transformador de (com) uma divindade interior. Assim, o processo de criação do ator entendido como experiência arquetípica instaura o paradoxo na imagem cênica, tornando-a criadora e receptáculo de sentidos que jamais podem ser desvendados, mas cujo traçado afetivo desfaz a dicotomia entre sujeito e objeto, à medida que os torna um só. A vivência do símbolo exige, então, um investimento de sentido por parte do sujeito (tanto o atuante como o espectador), sua abdução pela imagem, a sintonia entre o eu e o não-eu. Foi do encontro entre as reflexões de Grotowski, a psicologia analítica de Jung e os estudos do imaginário que este corpo de atriz fez de suas inquietações pesquisa e transformou em cena as intensidades mitopoéticas então experimentadas. Intitulada Luminescência: o processo do ator como experiência corporificada do arquétipo-herói 2, a investigação propôsse compreender criando, amparada por noções e conceitos como mito, imagem, arquétipo, imaginação simbólica, imaginação material, individuação e mitopoese.

2

A pesquisa, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul entre 2013 e 2015, teve orientação da Profª. Drª. Inês Alcaraz Marocco. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 980

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Desejando fazer-se presença na imagem, a pesquisa abordou o processo de criação e a estrutura performativa construída como um percurso mitopoético, a narrar e viver um conhecimento que se faz, a cada instante, resposta do corpo em sua totalidade a uma exploração que tem lugar nos domínios do sensível. Mas quais procedimentos possibilitam acessar a densidade do símbolo? Como permitir-se a abertura ao afeto que possibilita habitarse de imagens, entregar-se a elas, mover-se por seus dinamismos e, a partir deles, conhecer? Quais obstáculos se impõem à vivência das imagens em cena? Esses impedimentos são os mesmos do cotidiano? É a concepção redutora da imagem e da imaginação no regime epistemológico que conforma a maneira como pensamos que nos torna por vezes alheios à potência da imagem? Certamente não há uma resposta definitiva a todas essas questões. E a maneira de respondê-las não cabe numa lógica discursiva, pois pertence à ação, ao corpo em trabalho, que tenta eliminar seus próprios obstáculos. A pesquisa buscou caminhos e ainda os percorre. 3 De fato, o regime epistemológico que conforma a maneira como pensamos e agimos nos torna frequentemente alheios à potência da imagem. Como se não confiássemos na inteligência do nosso corpo em sua integridade, sempre bloqueamos, separamos, catalogamos, rechaçamos a complexidade das imagens inconscientes. Condicionados a entender, a explicar, a duvidar dos nossos devaneios, da atividade da imaginação. Nossa concepção comumente redutora da imagem impede que ela nos provoque afeto ou, quando esse afeto acontece, somos impelidos a um distanciamento. O devaneio, o delírio, o pathos provocado pela imagem por vezes parecem ameaçadores ao que concebemos como lucidez e racionalidade. Vivemos na pobreza da experiência de um tempo de excessos vazios, alienante e sem sentido porque carente de imaginação. A imagem simbólica nos exige uma outra atitude, que não se apegue necessariamente às formas, mas perceba o processo que conduz a elas. Do ator, espera-se que dê menos importância ao efeito e apaixone-se por cada instante de presença. Que comece, talvez, por perguntar-se e, movido por suas questões, torne-se cada vez mais íntimo dos elementos que constituem seu ofício: a consciência de seu corpo e do 3

Além do experimento cênico A mulher de Putifar, cujo processo de criação foi relatado em memorial críticoreflexivo, também foi realizada, em fevereiro de 2015, na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, a oficina Ver, escutar, revelar e encontrar: caminhos para uma investigação da presença, ministrada pela pesquisadora e destinada a compartilhar alguns procedimentos experimentados na pesquisa. Atualmente, os cruzamentos entre o processo criativo e os estudos do imaginário seguem sendo explorados em oficinas permanentes de teatro realizadas no Memorial e Espaço Cultural Casa do Leite, na cidade de Cachoeirinha, onde um projeto de criação cênica inspirado na mitologia dos orixás vem sendo desenvolvido. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 981

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espaço; a reação e atenção ao que constitui o espaço que ele ocupa; a relação entre precisão e organicidade naquilo que executa; reação e ajustamento ao momento presente; contato com o outro, consigo, com sua imaginação; o desenvolvimento do trabalho de seu corpo-voz em flexibilidade, força, equilíbrio, plasticidade… Enfim, tais elementos podem ser os mais diversos e sempre envolvem um aspecto imaginal que anima a forma, que reside nela como um poder, seu mana, o numen daquilo que é dizível. Os caminhos criativos, embora possam ser compartilhados, são sempre uma busca individual, à medida que são um saber de experiência. É possível que os elementos acima mencionados possam conduzir a uma investigação de resistências e hábitos incorporados, a um trabalho sobre si, ao encontro de possibilidades técnicas do corpo do atuante, que permitam o alcance de qualidades de presença e atenção mais sutis em relação aos condicionamentos da experiência cotidiana. O ato criativo – assim o concebia Grotowski – surge a partir da eliminação dos obstáculos que impedem o encontro comportamento orgânico, que se constitui como conexão corpo-mente no instante presente, uma não divisão que devolve ao ato o impulso que é sua potência. Há caminhos para a presença na imagem, embora estejamos, atores ou não, pouco familiarizados a eles. A imagem nos pede disponibilidade e inteireza: nela, para ela. Que nos deixemos conduzir. Que não nos contentemos e restrinjamos a falar sobre ela, mas falemos com ela, como um daimon que de nós se aposse, porque a imagem não quer ser apenas um objeto separado, a ser observado à distância. Parece difícil, dados os nossos hábitos incorporados, a nossa tendência a colonizar o imaginário, descrever, dissecar, anatomizar o processo que a imagem é. Mas ela sobrevive, insiste em apresentar-se como paradoxo, não para ser com-preendida, mas con-vivida. O símbolo apela a um sentido gnóstico, de participação mística, como diria Jung. Necessita de relacionamento, não de explicação. É essa fusão o instante da realização simbólica.

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Vinheta de abertura de “Roque Santeiro”: a esfera simbólica do início do período redemocrático do país configurada diariamente na TV Opening vignette of "Roque Santeiro": the symbolic sphere early democratic period of the country set up daily on TV Vignette d’ouverture du feuilleton “Roque Santeiro” : La sphère symbolique du début de la période démocratique du pays se configurant tous les jours à la télévision

Márcio Soares dos SANTOS 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil Adriana Pierre COCA 2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Resumo O recorte aqui analisado está inserido em uma obra audiovisual (telenovela) que pretendeu representar a sociedade brasileira através de personagens paradigmáticos. Diante disso, as imagens do programa televisivo situado no início da redemocratização no Brasil (novela Roque Santeiro, TV Globo, 1985) recriavam o novo processo social e político do país. Pretendemos discutir o contexto de uma narrativa produzida com poucos recursos tecnológicos;analisar um elemento protocolar do produto ficcional que configura o imaginário do telespectador. Palavras-chaves: imaginário; redemocracia; símbolos; vinheta; audiovisual. Abstract The clipping here analyzed is inserted into an audiovisual work (soap opera) that intended to represent the Brazilian society through paradigmatic characters. Therefore, the images of the television show set in the beginning of democratization in Brazil (novel RoqueSanteiro, TV Globo, 1985) recreated the new social and political process of the country. We intend to discuss the context of a narrative produced with few technological resources; analyze a protocol element of the fictional product that sets the imagination of the viewer. Key-Words: imaginary; redemocracia; symbols; vignette; audiovisual. Pontos de abertura Considerando que a formação de sentido se dá não somente por meio da mobilização de aspectos apresentados no momento da recepção de certo conteúdo, vamos investigar que

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outros elementos integram o processo de fabricação e visualização dessas imagens da vinheta de abertura da telenovela “Roque Santeiro” (1985). Diariamente, a vinheta de abertura de cunho político e social foi representada com a imagem de trabalhadores em fila e com a letra de música em diálogo como telespectador, remetendo a um momento especial do país, em 1985, pós-“Diretas Já”. Com a morte recente do eleito presidente Tancredo Neves (dois meses e dois dias antes da estreia da novela), existia uma comoção nacional e um novo regime republicano estava vigente. Havia a liderança do presidente José Sarney, o vice. Neste recorte, o universo ficcional remete a uma realidade política-extra-textual. Diante disso, entendemos o produto televisivo como um objeto comunicativo, ou seja, participante de um processo social e pessoal de contínua fabricação de sentido. Neste trabalho, o criador ou “artista”do viés analisado e a audiência não serão diferenciados em relação a suas atuações no momento da fabricação e posterior recepção do conteúdo televisivo. Nossa preocupação, de cunho antropológico e comunicacional, será pesquisar as motivações intrínsecas nesta produção protocolar (vinheta).

Histórico Um ano antes da exibição da vinheta analisada, ocorreu o Movimento “Diretas Já”, abrangendo grande parte da sociedade civil por reivindicação de eleições para presidência diretas no Brasil. A concretização dessa possibilidade ocorreu com a votação da proposta de Emenda Constitucional Dante de Oliveira pelo Congresso. Entretanto, a Proposta de Ementa Constitucional foi rejeitada, frustrando a sociedade brasileira. O movimento agregou diversos setores da sociedade brasileira. Participaram partidos políticos de oposição ao regime ditatorial, além de lideranças sindicais, civis, artísticas, estudantis e jornalísticas. Um novo país estava sendo desenhado através de uma mudança na maneira de governar. Em 1985, durante exibição da maior parte da novela (24 dejunho de 1985 – 21 de fevereiro de 1986), o Brasil estava no início do período de redemocracia, após ditadura desde1964; o momento de “liberdade” na sociedade tem reflexo na televisão. De acordo com a história da teledramaturgia brasileira, a emblemática novela “Roque Santeiro”, de Dias Gomes e Aguinaldo Silva, abrangeu expressivo número de telespectadores.

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Trata-se de um momento sem a existência de internet. A TV Globo apresentava diariamente uma narrativa com temas polêmicos e revelava as mudanças culturais, sociais e políticas.

Os Protocolos de Abertura na TV Através de elementos textuais sincréticos, a emissora exibe, cotidianamente e repetidamente, uma vinheta de abertura para suas novelas. As imagens da vinheta do programa de maior audiência recriavam o novo processo social e político do país. De acordo com Balogh (2002), o nível discursivo se produz sobre os mesmos elementos que a análise narrativa, mas retoma aspectos que nela foram deixados de lado, bem como a cobertura figurativa de conteúdos narrativos, os temas, mecanismos de delegação do saber, modos de organização dos atores, da espacialidade e da temporalidade, entre outros. A abertura de uma telenovela faz parte de uma estratégia de construção do discurso ficcional na TV. Trata-se de uma vinheta de caráter fortemente normatizado por demandas e gênero. Dado que a estética da interrupção caracteriza a telenovela, as vinhetas de abertura acabam interferindo de maneira eficaz no fazer discursivo que se analisa, percorrendo o imaginário social. Em A Semiótica da Cultura de Ivan Bystrina pode ser encontrada uma investigação sobre a presença de traços invariantes no processo de codificação da cultura. Podemos buscar na enunciação o pressuposto do produto final. De acordo com Balogh (2002), a enunciação nunca é totalmente clara, porém deixa no enunciado as suas marcas. A mídia dita qual o tempo da sociedade e, nessa lógica, o imaginário recria. Segundo apontamentos de Trindade e Laplatine (1996), a imaginação pode ser compreendida como tudo aquilo que não existe, um mundo oposto à realidade concreta. Refere-se a uma produção de devaneios, de imagens que explicam e permitem a evasão para longe do cotidiano. Para estes autores, a necessidade de entendermos a realidade é no intuito de superá-la e, uma das formas possíveis é através da imaginação, uma vez que possibilita chegarmos ao real e até vislumbrá-lo antes deste se constituir em real. A abertura da telenovela “Roque Santeiro” mistura os ícones do imaginário rural, provinciano e regional, com os ícones da vida urbana, cosmopolita e globalizada. Muito embora o que se apresenta na vinheta não seja o tratamento do triângulo amoroso condutor da trama. O logotipo da novela, os créditos da equipe de produção e de atores e autores configuram o que chamamos aqui de protocolo. O logo “Roque Santeiro”, enquanto chamada do personagem título, possui evidência e referência a partir de um elemento sonoro que

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remete ao mundo religioso que permeia a novela. Uma auréola está eminente ao título de santo milagreiro e o som de um sino ao final remete ao chamado da igreja ou, também, ao símbolo da TV Globo e seu tradicional “plimplim”. O discurso, através de seu “relato de apresentação” Greimas (1987), cria sua própria realidade. Esse relato integrante de um contexto televisual pressupõe o título, os protocolos de abertura, a música introdutória. De acordo com Lopes (1985), o relato se constrói no verbal mediante a denominação que convoca à existência dos elementos suportes do enunciado. Os enunciados giram em torno de um ou mais paradigmas temáticos. Esses elementos se localizarão no discurso como atores, espaço e tempo relacionados com os programas narrativos de base. É possível considerar as vinhetas de abertura como parte da moldura contextualizadora do relato. Desse modo, nos produtos audiovisuais construídos por materiais e linguagens semióticas sincréticas, pressupõem um discurso claramente heterogêneo. Muito embora a “estética da repetição” seja característica singular da televisão, há avanços consideráveis na sua linguagem. O veículo aqui tratado possui um amálgama das linguagens do cinema, dos quadrinhos, do videoclipe, da publicidade e tantas outras.A obra original baseada no texto adaptado para o teatro, “O Berço do Herói”, pelo qual Dias Gomes nos dá uma ilustração precisa, conquanto caricata, dessa incompatibilidade entre dois ângulos de visão – militar e civil – da realidade humana, em geral, e brasileira em particular, através do filtro da dramaturgia. Segundo Balogh (2002), as vinhetas de abertura e fechamento constituem elementos muito importantes dos relatos de apresentação nos formatos ficcionais de TV. Elas separam a série da sua precedente e da subsequente na grade de programação. Determinam o clima, a época, eventualmente o gênero da série e conduz a leitura do espectador. A produção da vinheta está separada do restante da série e, atualmente, tem auxílio da computação gráfica, sempre terminando por representar um espetáculo em separado. A TV Globo incumbe na época a Hans Donner a tarefa de modernizar o formato de vinhetas do horário nobre. Contudo, ele utiliza a ambiguidade e o surrealismo através de jogo de imagens. A produção de sua equipe mostra nesta vinheta, de maneira inusitada, a invasão da máquina no espaço do homem brasileiro. Tratores andam sobre espigas de milho, boiasfrias caminham sobre folhas gigantes, motocicletas percorrem sobre cocos, carros trafegavam sobre vitórias-régias, barcos navegam sobre uma asa azul de borboleta, entre outras situações

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curiosas. A produção desses efeitos especiais é realizada com o auxílio do chromakey (técnica que permite usar duas imagens diferentes) e de miniaturas, embora a ideia inicial do produtor Hans Donner fosse a de utilizar carros de verdade na cena em que há um engarrafamento sobre uma vitória-régia.

Elementos sonoros da abertura No conjunto da obra, a trama traz de fato, como anunciado na música de abertura, “deus e o diabo na terra”. Faz-se a seguir a análise da letra de “Santa Fé”, do cantor e compositor Moraes Moreira, que se repete diariamente durante a exibição de “Roque Santeiro”.

Deus e o Diabo na Terra Sem guarda-chuva, sem bandeira, bem ou mal Ninguém destrói essa guerra Plantando brisa e colhendo vendaval Não sou nenhum São Tomé No que eu não vejo eu ainda levo fé Eu quero a felicidade Mas a tristeza anda pegando no meu pé Tem gente falando com a lua, gente chorando na praça Menino querendo rango, nego bebendo cachaça E a cada minuto que se passa Tem muita gente chegando Tem muita gente pagando, pagando, pagando Pra ver

A letra da música remete, principalmente em seus versos iniciais, ao filme dirigido por Glauber Rocha: “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. A obra brasileira, de 1964, do gênero drama, mostra a vida sofrida de um casal de nordestinos. A seca, a pobreza, a questão latifundiária, a religião e a fé são temas abordados. A produção fílmica, considerada um marco do Cinema Novo, foi gravada na Bahia.

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A música “Santa Fé”, própria do elemento narrativo, possui um dos temas centrais da novela, que trata da religiosidade. Nesse sentido “deus e o diabo na terra” significa e remete ao assunto em voga: o catolicismo poderia manter o perfil conservador ou permitir a linha progressista. O debate, ainda permeado por preconceito, reafirma em manter a posição tradicional da igreja conservadora: o clero progressista é considerado obra do diabo. E a canção se posiciona também quando diz “[...] não sou nenhum São Tomé. No que eu não vejo eu ainda levo fé”, ou seja, não somos santos, ninguém mantém uma perfeição no caráter e dita pela palavra de Deus. O que não se vê, considera-se como se o que está escrito na Bíblia seja o certo e visto. O mito ficcional Roque Santeiro simboliza o clamor à fé, uma alternativa para superar males da sociedade. A auréola de um santo sobre o título Roque Santeiro concentra de forma automática esse aspecto religioso. A vinheta tem a funcionalidade de introduzir narrativa em assunto a ser tratado pela obra. Dessa forma, ela pode possuir elementos imagéticos de tempo e espaço. No caso, o Brasil está fielmente retratado por trabalhadores, belezas naturais e produtos de manufatura. O relato do possível crescimento do país pós-ditadura está nos produtos industriais que simbolizam o progresso. Na primeira cena, por exemplo, são mostrados os boias-frias, que trabalham na roça, pessoas sacrificadas, em busca de dias melhores. O figurino dessa cena está bem representado e idealiza o brasileiro como um cidadão que luta por sua dignidade, mesmo vivendo num país colonizado, ainda subdesenvolvido em 1985, e que precisa ter fé para seguir em frente. Eles estão em fila, carregam enxadas, usam chapéus e lenços na cabeça para se proteger do sol, referenciando ainda ao clima tropical. Eles estão na direção descendente do quadro, em linha diagonal. Dessa forma, podendo representar a crise, remetendo a uma regra da pintura barroca. Quando a câmera se afasta, é possível ver uma folha gigante, que remete a um país com vegetação rica, acentuada, provavelmente por partir do ponto de vista de um estrangeiro como Hans Donner. Na segunda cena, já se percebe que o significado de arte muda profundamente no início de uma era tecnológica, pois a estética da imagem permite uma colagem de viés surrealista; um avião sobrevoar um crocodilo gigante. O resultado é uma ideia difusa, sem equilíbrio em sua harmonia, com uma distorção da realidade, parecendo uma pintura abstrata sendo filmada.

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A terceira cena tem simetria, embora ainda conserve elementos surreais, quando um trator e duas mulheres caminham sobre uma espiga de milho e também em linha descendente no quadro. Os artifícios da linguagem contrastam com a simplicidade dos boias-frias e a representação da natureza. A cena seguinte mostra um trem saindo de uma flor, que só percebe-se tratar de um vegetal quando ocorre o afastamento da câmera. Existe uma forma de criar antagônica, que varia entre a irregularidade e a regularidade, a fragmentação e a unidade. O trem está em linha reta nesse momento. São oposições abordadas por Dondis (1997) em sua obra sobre a sintaxe visual. Depois há um merchandising em cena, quando o motoqueiro dirige uma Agrale sobre cocos de verdade. Aqui existe uma ênfase em uma marca nacional enfrentando a irregularidade do caminho, representado com ousadia, pelos inusitados cocos. A direção no quadro também é descendente. Na cena seguinte existe uma suposta monotonia, um homem puxa um carro de bois, ouve-se o mugido, eles andam vagarosamente, a câmera abre e curiosamente o percurso ocorre sobre um cacho de bananas verdes. Mais uma vez temos a justaposição de imagens em uma cena ousada por conta de um efeito que apresenta o surreal. Direção do percurso descendente no quadro da tela. A penúltima cena segue o mesmo estilo, quando está em quadro um homem dentro de uma jangada. O local que parecia ser rio ou mar com a câmera fechada, é a asa de uma borboleta azul. Depois da abertura de caráter mais genérico, entra-se no universo ficcional da pequena cidade de Asa Branca, o mundo onde se passa a narrativa. Mesmo sendo um microcosmo, ele remete ao Brasil, ao seu modo de construir a ficção e através dela, criticar a realidade. Em todos seus inúmeros aspectos, a vinheta de abertura analisada trata-se de um processo complexo. Não obstante, não há por que transformar a complexidade num obstáculo à compreensão do modo visual. De acordo com Dondis (1997), quanto mais simples a fórmula, mais restrito será o potencial de variação e expressão criativas. Para ela, longe de ser negativa, a funcionalidade da inteligência visual em três níveis – realista, abstrato e simbólico – tem a nos oferecer uma interação harmoniosa, por mais sincrética que possa ser. O protocolo de abertura da novela “Roque Santeiro” possui um processo multidimensional, cuja característica mais extraordinária é a simultaneidade. Cada função está

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ligada ao processo e à circunstância, pois a visão não só nos oferece opções metodológicas para o resgate de informações, mas também opções que coexistem e são disponíveis e interativas ao mesmo tempo. Os resultados são positivos, não importando quão condicionados se esteja a tomá-los como verdadeiros.

Figuras do Imaginário Podemos dizer que as figuras do imaginário, nomeadamente o mito, dão-se a conhecer pela repetição, pela redundância quer dos seus temas, quer das suas sequências simbólicas: O imaginário nas suas manifestações mais típicas (sonho, devaneio, rito, mito, narrativa de imaginação, etc.) é portanto alógico relativamente à lógica ocidental, desde Aristóteles até mesmo de Sócrates. Identidade não localizável, tempo não dissimétrico, redundância, metonímia ‘holográfica’, definem uma lógica ‘alternativa’ que, por exemplo, a do silogismo ou da descrição temporal, mas mais próxima, em certos aspectos, da da música. Esta última, como o mito ou o devaneio, repousa sobre as transposições simétricas, dos ‘temas’ desenvolvidos ou mesmo ‘variados’, um sentido que só se conquista pela redundância (refrão, sonata, fuga, leitmotiv, etc.) persuasiva de um tema. A música, mais que qualquer outra, procede por um assédio de imagens sonoras ‘obsessivas’ (DURAND, 1994, p.57).

É possível, então, tornar inteligíveis as configurações de imagens, próprias dos criadores individuais, dos agentes sociais ou das categorias culturais, identificando as figuras míticas dominantes, identificando a sua tipologia e procurando ciclos de transformação do imaginário através da hermenêutica mitodológica proposta por Gilbert Durand, que engloba a mitocrítica e a mitanálise. A primeira direcionada para os textos literários, nos quais o miticiano procura estabelecer uma relação entre o texto literário, oral ou escrito, e o mito; a segunda direcionada para detectar os mitos diretores dominantes em dada época históricosocial. Nesta perspectiva, a mitocrítica completa a mitanálise e vice-versa funcionando a mitodologia como uma espécie de modelo hermenêutico de que as duas orientações funcionassem como autênticos vasos comunicantes (DURAND, 2000, p. 187-231). Situando-se a imaginação, entendida já como a faculdade do possível, o poder da contingência do futuro entre portas “da animalidade” e da “razão técnica”, (DURAND, 1984, p. 501) e identificando-se o imaginário com a noção capital de “trajeto antropológico” tal com o fez Durand, compreende-se a afirmação do autor quando salienta que a retórica é o fim último do trajeto antropológico no seio do qual se estende o domínio do imaginário (1984, p.

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499) porque é a retórica que assegura a passagem entre a semântica dos símbolos e o formalismo da lógica ou o sentido próprio dos signos (1984, p. 483). Partimos neste artigo do pressuposto que a desconstrução à matriz tradicional de narrar na televisão vem sendo progressiva, sobretudo, no que tange a formatos estéticos de suas vinhetas e percursos narrativos do ponto de vista da produção. Essas características podem ser percebidas de modo geral na fragmentação da programação, na repetição constante de determinados elementos, na autoreferenciação, na existência de um macrodiscurso para além do programa em si, na transmissão única, entre outros. Podemos observar nestas vinhetas que se evidenciam como modelizantes, o modo como os planos de câmera são trabalhados conduzindo o olhar do espectador e sugerindo uma determinada leitura, a busca por uma cenografia realista ou não, a existência de ganchos narrativos, o estabelecimento de núcleos de personagens, fazendo referência aos grupos sociais, entre outros. Esse formato evoluiu por anos com o auxílio da tecnologia e a estética de mídia cultural, que lança outras músicas, outros produtos, equacionando imaginários. Para Castoriadis (1982) o imaginário social-histórico é fonte de criação exnihilo (do nada), não são reflexos, cópias ou imagens, são criações puramente indeterminadas, que colocam o ser como porvir. Isto é, para o autor há uma significativa diferença entre construção, fabricação (tekné) entendida como copiar algo que já existe; e criação (poiésis), que é a emergência de novas formas que ainda não existiam, dando ênfase à potencialidade criativa do homem para construir outras formas sociais e históricas, manifestando o imaginário e instituindo nova sociedade. Para o autor, poiésis não é reprodução, imitação de formas já existentes, é emergência do novo. Podemos pensar aqui na concepção de imagens em série e seus espaços, maisa construção de novas linguagens. A representação contínua e repetida, a que permite “fazer lembrar” como precursora do imaginário sendo configurado no novo de maneira contínua. O protocolo de apresentação de “Roque Santeiro” se estabelece como uma embalagem de um produto televisivo cujo tema central é a religiosidade, sendo possível situar a noção de imagem e recorrer ao iconoclasmo ao apresentar os símbolos da narrativa. Diante disso, ficam propostos questionamentos sobre as relações existentes entre o real e o imaginário. Concluímos que o discurso midiático recorre às imagens arquetípicas que evidenciam o estereótipo, o preconceito e as degradações metaforicamente utilizadas em produtos comunicacionais. A Comunicação Social solicita compreensão também a partir da

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perspectiva do imaginário, especialmente no que se refere às imagens que se repetem em vários espaços.

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Família centro do mundo, descida ao inferno, renascimento e queda: O imaginário movido pelo rockumentary Cobain: Montage of Heck The family as center of the world, the descent to hell, the renascence and the fall: The imaginary moved by Cobain: Montage of Heck rockumentary La famille centre du monde, la descente aux enfers, la renaissance et la chute : L'imaginaire mu par le rockumentaire Cobain : Montage of Heck Danilo FANTINEL 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Resumo Roqueiros vendem menos discos hoje do que há 20 anos, porém ainda provocam o mesmo fascínio entre o público. Este magnetismo se dá em vários níveis, incluindo o do imaginário antropológico (DURAND, 2012), lócus da carga simbólica movimentada pelos músicos e por seu estilo de vida. Tendo em vista que o homem contemporâneo reelabora e compartilha imagens, simbolismos e mitos antigos em seu comportamento atual, entendemos que documentários sobre rock stars registram o percurso destes novos olimpianos (MORIN, 1997) pelo mundo, bem como sua constante produção de conteúdos simbólicos constitutivos do imaginário humano. Neste artigo, propomos uma leitura simbólica do longa-metragem Cobain: Montage of Heck, relativo ao ex-líder do Nirvana, Kurt Cobain, para assim revelar o imaginário rock movido pelo guitarrista. Palavras-chave: imaginário; cinema; documentário; música; rock.

Abstract Rock stars sell fewer records today than 20 years ago, but they still fascinate audiences around the world. Such magnetism presents itself in so many levels, including the anthropological imaginary (DUAND, 2012), dimension where all symbolic content produced by musicians take place. As contemporary men reproduce and share images, symbolisms and ancient myths in its present behavior, we understand that rock stars documentaries register those new olympians (MORIN, 1997) journeys through the world, filming procedures and facts that move the human imaginary. In this article, we offer a symbolic interpretation of Cobain: Montage of Heck, a rockumentary about Kurt Cobain, former Nirvana’s leader, in order to reveal the rock imaginary moved by the guitarist. Keywords: imaginary; cinema; documentary; music; rock.

Em 1994, quando Kurt Cobain cometia o suicídio aos 27 anos, em Seattle, nos Estados Unidos, após uma vida de excessos e sofrimento, fãs de música ainda compravam CDs em 1

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quase todo mundo. Porém, se no início dos anos 2000 a venda de discos caiu com o fortalecimento das trocas de arquivo digital entre pessoas 2, o interesse provocado pelos músicos, por suas canções e por sua vida não diminuiu. O culto a roqueiros se mantém, reforçando a noção de que a origem desta adoração não está centralizada somente na potência capitalista de gravadoras que giravam a cadeia produtiva e consumidora de rock, mas principalmente no apelo cultural, simbólico e potencialmente mítico provocado pelos artistas e por seu estilo de vida. O entendimento sobre o fascínio, o culto e o consumo de rock’n’roll e de rock stars pode ganhar novas dimensões se problematizado em função dos Estudos do Imaginário preconizados pela Escola de Grenoble, que como heurística oferecem conhecimentos adicionais ao saber já constituído por outras áreas de pesquisa. A partir de uma leitura simbólica do documentário Cobain: Montage of Heck (2015) atenta ao trajeto antropológico (DURAND, 2012) que dá origem às imagens, buscamos revelar o imaginário movimentado pelo guitarrista Kurt Cobain, ex-líder da banda Nirvana, levando em conta essencialmente 3 as informações apresentadas pelo filme de Brett Morgen lançado em 2015. Conforme Gilbert Durand (2012), o imaginário humano se coloca como um grande sistema de imagens simbólicas de raízes arquetípicas e perfil polissêmico que estimulam constelações de simbolismos variados conectados a três grandes estruturas: a Heroica, ligada ao Regime Diurno das imagens (dimensão simbólica de forma geral cortante e virilizada), a Mística e a Dramática, ambas inseridas no Regime Noturno (com teor mais receptivo e uterino). Durand (2000, p. 99 e 100) entende que este imaginário antropológico possibilita ao sujeito lidar com suas angústias essenciais, oriundas da passagem do tempo e da consciência da morte, cumprindo assim um papel psicossocial equalizador. Para o autor, o homem cria imagens como técnica de defesa simbólica contra a inevitabilidade da morte. Promotor de enraizamento antropológico, o imaginário estabelece uma correspondência com estruturas simbólicas antepassadas, pois o homem contemporâneo atualiza imagens pregnantes e repete mitos antigos em seu comportamento atual. Compartilhando deste imaginário, o sujeito propõe sentidos a sua experiência que variam conforme as interações

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Em 1997, a indústria fonográfica brasileira rendeu R$ 1,3 bilhão, soma repetida no ano seguinte devido às vendas de discos de axé, sertanejo, pagode e pop. Em 2001, o montante foi reduzido para R$ 998 milhões. Em 2012, caiu para R$ 373,2 milhões. O Brasil desceu no ranking mundial de vendas do 5º lugar em 1997 para o 12º em 2012. Fonte: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-disco-ainda-pulsa-imp-,863756 3 Dados suplementares foram pesquisados em textos biográficos ou jornalísticos publicados no Brasil ou no exterior anteriormente. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 996

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entre sua subjetividade e seu meio sociocultural. Durand (2012, p. 41) entende que as imagens simbólicas são resultantes desta confluência, deste trajeto antropológico de ordem dual e recíproca, desta “[...] incessante troca [...] entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social”. Ou seja, as imagens seguem uma constante antropológica que coloca em relação as condutas inerentes à condição humana e as coerções histórico-sociais. Em retroalimentação permanente, o imaginário é nutrido por novas imagens ao mesmo tempo em que tem seus conteúdos refletidos tanto na conduta dos indivíduos quanto em sua produção cultural e midiática.

Do documentário ao imaginário Duas das expressões artísticas mais populares, música e cinema são linguagens pelas quais o homem elabora e debate ideias sobre si e seu ambiente. De acordo com Fernão Pessoa Ramos (2013), filmes documentários fazem representações sobre realidades e asserções sobre o mundo histórico independentemente de seu tema, como ocorre com obras documentais sobre o rock’n’roll. Os chamados rockumentaries ou rock docs 4 registram o cotidiano, o processo criativo, o culto e o consumo de artistas e bandas. Em seu percurso antropológico, roqueiros atuam como produtores de imagens técnicas 5 (FLUSSER, 2011) e protagonistas de histórias que, se por um lado integram o repertório cultural compartilhado, por outro estimulam imagens simbólicas constitutivas do imaginário. Assim, instauram narrativas míticas contemporâneas marcadas por imagens arquetípicas (JUNG, 2002) e símbolos (ELIADE, 2002) recorrentes capazes de estruturar um imaginário rock que, por sua vez, está inserido ao imaginário humano como um todo. Nesta leitura simbólica sobre Cobain: Montage of Heck, buscamos revelar imagens, simbolismos e traços míticos evocados pela trajetória do ex-líder do Nirvana. Foco de robusto debate acadêmico, este formato cinematográfico apresenta ainda hoje uma conceituação complexa, orbitando critérios sobre verdade, realidade e representação. Porém, seguindo Ramos, entendemos que documentários representam realidades e se posicionam sobre o mundo histórico a partir de elementos estéticos e narrativos. Portanto,

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O documentário de rock, também chamado rockumentary ou rock doc, guarda semelhança com o Cinéma Vérité francês e com o Direct Cinema norte-americano, propondo a verticalização no tratamento de seus temas. 5 Conforme Vilém Flusser, imagens técnicas são produzidas pelo homem com o auxílio de aparelhos, como fotografias, filmes ou vídeos. São imagens materiais, visuais, que dependem de alguma superfície. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 997

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devemos entendê-los não como espelhos de realidades, mas como filmes que montam discursos e imagens técnicas para operar representações fílmicas documentais – mesmo que estas sigam rigorosamente as intencionalidades e subjetividades de seus realizadores. Ainda assim, observamos que documentários registram a experiência do homem no mundo.

Deuses da atualidade Ídolos de multidões transnacionais, às quais apresentam um estilo de vida desejado por muitos fãs, os roqueiros assumiram a posição de heróis em uma cultura pop que, desde seu início, atualiza culto e consumo como formas de reverência. Abordar o culto no que se refere à experiência da música se torna importante se pensarmos como José Miguel Wisnik (1999), que a entende como elemento coordenador das sociedades, atuando como mito fundador das culturas. Segundo sua antropologia do ruído: Um único som afinado, cantado em uníssono por um grupo humano, tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmica: insemina-se coletivamente, no meio dos ruídos do mundo, um princípio ordenador. [...] As sociedades existem na medida em que possam fazer música (WISNIK,1999, p. 33-34).

O peso que o autor dá à música no processo de formação social lhe confere uma carga antropológica significativa no que diz respeito aos fundamentos das sociedades, despertando paralelismos com a concepção durandiana de imaginário como fundante da estrutura social. Tendo em vista que a música é uma das expressões culturais mais antigas da civilização, veículo de imagens poéticas oriundas do que Gaston Bachelard (1990, 2001) chama de imaginação criadora do homem, devemos então lembrar que a música tanto reflete quanto alimenta um imaginário arquetípico que, como capital cultural, dá sentido ao homem e à sociedade. Sendo o homem produto de sua própria evolução cultural, os mitos tendem a emergir socialmente com frequência, mesmo que diluídos e degradados. Reatualizados, eles proporcionam graus diversos de sentidos que podem ser tanto apreendidos e interpretados pelo sujeito individualmente quanto apropriados e refletidos por produtos culturais e midiáticos. Residem aí os aspectos de recorrência mítica e de continuidade da mitologia ancestral na cultura atual dos quais fala Durand – posicionamentos estes que dialogam com o conceito de novo olimpiano proposto por Egdar Morin (1997), pelo qual o autor caracteriza os atuais artistas ou esportistas, por exemplo, como entidades míticas contemporâneas.

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Morin vê nestes novos olimpianos os deuses da contemporaneidade, cujo papel mitológico lhes é conferido pela mídia. Dotados de dupla natureza, sendo uma humana, mortal, e outra sobre-humana, divina, são eles os novos modelos de comportamento e conduta. Se o teor humano permite a identificação dos admiradores, a porção supostamente divina garante o fascínio pelo ídolo. Nesta sobreposição de valores, a vida dos olimpianos interage com a vida cotidiana dos mortais, provocando neles um interesse constante por deidades midiáticas:

Os novos olimpianos são, simultaneamente, magnetizados no imaginário e no real, simultaneamente, ideais inimitáveis e modelos imitáveis; sua dupla natureza é análoga à dupla natureza teológica do herói-deus da religião cristã: olimpianas e olimpianos são sobre-humanos no papel que eles encarnam, humanos na existência privada que eles levam. A imprensa de massa, ao mesmo tempo em que investe os olimpianos de um papel mitológico, mergulha em suas vidas privadas a fim de extrair delas a substância humana que permite a identificação (MORIN, 1997, p. 106).

Olimpianos atuais, estrelas da mídia como artistas do cinema e da TV, músicos, top models e esportistas, ao se colocarem como ideais a serem seguidos, induzem o público ao consumo de bens (materiais ou não) cuja função, entre outras, é reforçar a lógica binária e cíclica de culto e consumo – culto este que nasce justamente dos papéis assumidos pelos novos olimpianos no trânsito entre o mundo histórico no qual vivem, lócus de sua natureza humana, e a esfera midiática que lhes confere o papel mitológico citado por Morin. Pauta frequente da cobertura midiática, estes deuses da atualidade tornam-se modelos de autorrealização adorados por massas de consumidores, fato que aponta sua importância à cultura popular contemporânea. Grifes de poder, novos olimpianos como os rock stars ditam um estilo de vida cujas práticas são intensamente registradas em filmes documentários. São estes longas-metragens documentais que dão acesso aos fatos, histórias e condutas de bandas e cantores que, em última análise, emanam traços arquetípicos, imagens simbólicas e metáforas recorrentes instauradores de narrativas contemporâneas e de simbolismos constitutivos de um imaginário rock.

Uma leitura de Cobain: Montage of Heck

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O título do documentário dirigido por Brett Morgen é inspirado na fita de áudio Montage of Heck 6, gravada por Kurt Cobain em 1988. A colagem punk, supostamente aleatória, que mistura sons de programas de TV com vocalizações, experimentações de guitarra e efeitos técnicos, de certa forma também orienta a narrativa e a direção de arte do filme. Em seu longa-metragem, o cineasta articula diversos fragmentos do intenso período criativo de Kurt, como depoimentos do músico gravados em áudio, canções, anotações, textos e desenhos com home vídeos e filmes familiares cotidianos realizados em super-8. Assim, Morgen não apenas reconstrói o artista em função de seus artefatos como também resgata o homem que há por trás do guitarrista. Mais do que isso, documenta em filme o percurso antropológico de Kurt, movimentador de um imaginário próprio que, por sua vez, liga-se a um imaginário rock mais amplo, sendo ele parte do imaginário humano. Cobain: Montage of Heck registra a vida pública e privada do músico, com relatos sobre sua infância, trechos de ensaios, shows, informações sobre a vida em família, o casamento, a paternidade, o processo criativo e a dependência química. Nesse sentido, a representação documental contempla as personas (JUNG, 1978) social e artística de Kurt, bem como aspectos histórico-culturais da época retratada, contextualizando o indivíduo em seu meio. Curiosamente, logo no início do longa-metragem estas dimensões social e artística/midiática do roqueiro 7 se encontram durante um show do Nirvana no qual Kurt encena sua própria morte sobre um grande palco 8. A morte simbólica do guitarrista, encenada no solo sagrado de qualquer artista, converge e ritualiza a representação da morte humana e a metáfora da morte mítica. A cena do filme é intercala com depoimentos da mãe de Kurt, Wendy, da irmã, Kim, e do ex-baixista do Nirvana, Krist Novoselic, todos ressaltando a genialidade do músico. Gênio este que, se por um lado iluminou seu poder criativo, por outro jogou sombras sobre seu caminho histórico e simbólico.

Família, centro do mundo 6

Montagem dos Infernos poderia ser uma das traduções para o título da fita de áudio e do documentário. Ou, como prefere Morin, a substância humana e o papel mitológico do músico propiciado pela mídia. 8 O fato ocorreu no megafestival inglês Reading em 1992. 7

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Levando em conta exclusivamente as informações e a documentação apresentadas no documentário Cobain: Montage of Heck 9, a trajetória de fatos e momentos marcantes que pontuam e orientam o percurso simbólico de Kurt Cobain tem início durante sua primeira infância (Figura 1) em Aberdeen, nos Estados Unidos, onde nasceu em 20 de fevereiro de 1967. Filho de Don Cobain e Wendy O'Connor, Kurt demonstrava ímpeto criativo e hiperatividade desde cedo. Além de brincar, mostrava interesse por desenho e canto, inventava pequenas músicas e improvisava shows caseiros com instrumentos musicais de brinquedo – como mostram fotografias e filmes antigos (Cobain: Montage of Heck, 2015, 06:45-12:20 10). Energético, estava sempre envolvido em algo. Ainda pequeno, um médico teria recomendado ritalina para tratar o que seria um transtorno psicológico em Kurt 11. Provocando um efeito cumulativo, o medicamento o fez perder o controle 12 durante o que teria sido uma longa noite. Consta que enquanto Don desaprovava a inquietação do filho, deixando-o constantemente magoado e constrangido, Wendy não conseguia controlá-lo sozinha. A situação do menino se tornou mais aguda aos nove anos, após a separação

dos

pais.

Vivendo

muitos anos com a mãe após o divórcio,

Kurt

seguiu

desenvolvendo seu lado artístico 13 e seu senso crítico ao mesmo tempo

em

que

enfrentava

dificuldades de relacionamento com colegas de escola, o que o 9

É nossa a tradução do inglês para o português relativa a entrevistas, depoimentos, documentos sonoros ou textuais exibidos pelo filme. 10 A partir de agora todas as referências ao documentário Cobain: Montage of Heck terão seu título suprimido para evitar repetição. As referências a demais obras e autores serão devidamente informadas. 11 Não identificado pelo documentário, sendo citado por Wendy apenas o “diagnóstico” de hiperatividade. 12 De acordo com Wendy, Kurt “went off the rails” (2015, 10:19) 13 Conforme a madrasta, Jenny Cobain, Kurt já tocava guitarra quando morou na casa do pai, Don, por algum tempo na pré-adolescência (Figura 2). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1001

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deixava mais angustiado. Desestabilizado pelo afastamento dos pais, suas duas principais referências de vida no mundo, e as duas pessoas que estimulam diretamente as imagens arquetípicas do Pai e de Mãe – cujas potencialidades simbólicas têm valorizações positivas e negativas concomitantemente –, Kurt dá início a um período de grande instabilidade quando Wendy, cansada do filho, manda-o morar com Don. Expulso pela própria mãe, Kurt tem um momento inicial positivo na nova casa, ao lado do pai, da madrasta Jenny e dos filhos dela, mas logo perceberia que aquela não era a sua família e que nela ele não tinha privilégios. Conforme Jenny, Kurt desejava muito ter uma família (2015, 13:55-14:22), mas queria também ser o mais amado, o centro das atenções, ficando contrariado quando percebia uma realidade oposta. Após problemas entre as crianças, Don manda o filho embora. Assim, Kurt se afasta do pai novamente, passando a transitar entre casas de parentes sem fixar-se em lugar algum. Na escola, a pressão por aceitação continuava a atormentá-lo: Em uma comunidade que reforça histórias sexuais de macho man como o ponto alto de todas as conversas, eu era um menino imaturo, mal desenvolvido, que nunca havia transado e que estava sempre a fim. Pobre garoto! Isso me incomodava, pois eu estava com tesão e sempre tinha que inventar histórias como “ah, quando tirei férias conheci uma menina, transamos e ela amou, etc, etc” (Cobain: Montage of Heck, 2015, 18:4519:18).

Com o tempo, Kurt passou a fumar maconha, droga que o ajudava a “[...] escapar o dia todo e não ter crises nervosas rotineiras” (2015, 19:50-20:00). Também começa a conviver com garotos brancos de classe média baixa, os quais classifica como junkies e white trash 14 que passavam os dias se drogando e ingerindo bebidas alcoólicas roubadas da casa de uma menina considerada por todos como “retardada” (2015, 20:48), mas que Kurt considerava apenas tímida. Foi com ela, a quem todos ridicularizavam, que ele teria perdido a virgindade. Em áudio gravado por Kurt e apresentado no documentário, o roqueiro afirma que queria transar antes de cometer suicídio (2015, 21:30) para não morrer sem ter a experiência. Porém, o que era segredo se tornou público. Humilhado na escola, Kurt teria tentado o suicídio na

14

Junkies, como são conhecidos os viciados em drogas pesadas ilícitas ou não, como álcool, pílulas, cocaína e heroína, especialmente. Já como white trash podem ser entendidos os integrantes brancos das classes baixas norte-americanas, habitantes de subúrbios pobres das metrópoles ou de pequenas cidades do interior, desvinculados de sistemas de assistência social como saúde e educação. Suscetíveis às drogas e ao crime, o white trash está à margem do american dream. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1002

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linha ferroviária da cidade, porém teria escolhido os trilhos errados ao se deitar durante a passagem do trem das 23h (2015, 22:30-23:00). A separação dos pais foi uma ruptura considerável na vida de

Kurt,

cujas

rachaduras

comprometem sua adolescência e se estendem até sua a fase adulta. O menino criativo, inteligente e ativo, que conquistava a todos, acompanhou não só a dissolução do casamento como também a ruína do próprio sonho de família que nutria e do qual necessitava. Da infância ascendente e solar, rica em afeto e energia, Kurt entra em um período marcado por anestesia e estagnação, sendo a puberdade e a adolescência manchadas por tons escuros de um tempo sombrio. Por volta dos 15 anos, já muito rebelde e ainda mais próximo das drogas, do álcool e da paranoia 15, Kurt volta a morar com a mãe e a irmã, Kim, para quem o irmão gostava mesmo de normalidade e desejava ter uma família comum, “[...] com mãe, pai, crianças e tudo feliz”. Porém diz que, ao mesmo tempo, Kurt “lutava contra isso”. Segundo Kim, “[...] ele combatia o que realmente queria” (2015, 23:56-24:09). Em termos simbólicos, a família Cobain se coloca para Kurt como o “centro do mundo” ligado ao simbolismo do centro do qual fala Mircea Eliade (2002). Neste simbolismo muito comum a culturas arcaicas, e ainda presente na sociedade contemporânea, o centro não é geométrico nem mesmo geográfico, mas simbólico, repleto de sentidos múltiplos e, ainda assim, similares. Símbolo de lócus energético presente no imaginário humano, transitando no ancestral inconsciente coletivo, este potente centro converge os três níveis cósmicos: Terra,

15

Kurt afirma em áudio no documentário: “[...] deixei os dois últimos meses de escola*. Eu estava tão retraído e antissocial que eu estava quase maluco. Sabe, eu me sentia tão diferente e tão louco” (2015, 26:32-26:45). *Conforme o contexto do documentário, provavelmente seria o último ano escolar de Kurt, embora o filme não deixe clara a data em que o fato teria ocorrido. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1003

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Céu e Mundo Inferior. De fato, a definição deste centro por aqueles que compartilham deste simbolismo é tão importante que "equivale à Criação do Mundo" (ELIADE, 1992, p.17). No simbolismo do centro, o “centro do mundo” é também o ponto onde o cosmo converge, ou ainda o local divino por excelência, onde o sagrado se manifesta sob a forma de hierofanias ou epifanias. Ou seja, simbolicamente, “centros do mundo” 16 proporcionam revelações de sentido e orientam a transcendência de imagens pregnantes que ilustram um grupo social, atualizando permanentemente o teor das mesmas e também as narrativas que oferecem entendimentos de mundo. Um grande número de mitos, ritos, crenças e condutas pessoais que estruturam realidades derivam do simbolismo do centro, que se expressa também na vida do líder do Nirvana. Sendo o “centro do mundo” de Kurt um ideal de família que deixou de existir em sua vida, um sonho impossível da tríade pai-mãe-filho, vemos o simbolismo do centro movimentado pelo músico esvaziado em sua dimensão mais profunda: o próprio sentido de família. Quando Kurt perde o núcleo familiar perde igualmente seu centro. Este se torna então um “centro de mundo” fugidio, que não se encontra na casa da mãe nem na do pai nem nas casas dos tios nem em lugar algum, pois nenhum lugar é o lar de sua família, já que esta não existe mais. Com um centro em fuga, Kurt perde sua referência primeira, o seio familiar, a plataforma mais íntima de lançamento ao mundo – um mundo que agora recebe um jovem tão criativo quanto angustiado, propenso igualmente à música e à escrita quanto à depressão e às drogas. A crise em cadeia leva Kurt à primeira tentativa de suicídio e configura também a primeira queda do músico, movimento estimulante do simbolismo catamórfico, pelo qual são ativadas imagens e sentidos de escuridão ameaçadora, trevas inescapáveis, medo, dor e desespero (DURAND, 2012, p. 111 e 121). Esta queda simbólica, que no caso do guitarrista é tanto física quanto moral, ganha reflexos no uso de drogas e álcool, na infelicidade decorrente da incompreensão sobre o destino dos pais, nos problemas de relacionamento familiar e social. A imagem da queda, decorrente de um trajeto antropológico que coloca em relação as coerções do meio (desintegração familiar) e as pulsões do homem (pulsão de vida no desejo de viver em família), é suscetível a qualquer um e tende a levar o sujeito para os campos mais obscuros do ser e do imaginar. Recorrendo à reflexologia betchereviana, Gilbert Durand (2012, p. 112) afirma que o recém-nascido é imediatamente sensibilizado para a queda ao vir 16

Que pode não ser realmente único, podendo haver “centros do mundo” diferentes dentro de uma mesma cultura, conforme demandas simbólicas específicas. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1004

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à luz, já que os movimentos bruscos que ocorrem no nascimento seriam “[...] a primeira experiência da queda e a primeira experiência do medo”, concluindo, portanto, que “[...] haveria não só uma imaginação da queda, mas também uma experiência temporal, existencial” ligada a ela, “[...] o que faz Bachelard escrever que ‘[...] nós imaginamos o impulso para cima e conhecemos a queda para baixo’”. Durand (2012, p. 112) conclui que a queda é “[...] a quintessência vivida de toda a dinâmica das trevas”. Além disso, explica que regressões psíquicas podem vir ligadas a fortes imagens de queda e cenas infernais. Por fim, resgata diversos mitos que ressaltam o “aspecto catastrófico da queda” (2012, p. 113), como os de Ícaro, Atlas, Tântalo, Faetonte, Ixíon e Belerofonte, todos caídos. Mircea Eliade (2002) explica que a produção e a renovação constantes das imagens simbólicas que habitam o imaginário humano torna possível manter um canal aberto entre culturas aparentemente diferentes – o que renova e amplifica a polissemia das imagens e a efetividade das narrativas decorrentes delas. Entre alguns exemplos de recorrência e renovação simbólica, cita o mito da descida do herói ao inferno. Eliade argumenta que, apesar da descida ao inferno ser recorrente entre mitologias, ela tende a ter valorizações diferentes conforme culturas e religiões. O autor exemplifica o fato citando, por exemplo, o xamã que desce ao inferno para trazer de volta a alma do doente roubada pelos demônios, ou a jornada de Orfeu pelo Mundo Inferior em busca de sua esposa Eurídice (que acabara de morrer 17) e também a polêmica descida de Jesus ao inferno em sua tentativa de restaurar a integridade do homem derrotado pelo pecado 18. Porém, embora existam distinções, “[...] um elemento permanece imutável: a persistência do motivo da descida aos Infernos, que é realizada para a salvação de uma alma” (ELIADE, 2002, p.165), não importando que seja a alma de um doente (xamanismo), de uma esposa (mitos gregos, polinésios e centro-asiáticos) ou da humanidade inteira (cristianismo). De fato, após sua trágica queda, Kurt desce a um inferno imaginário para salvar a própria alma. E esta imagem simbólica ganha expressão na realidade histórica, visto que é do submundo sócio-musical que surge uma alternativa de vida para ele. Por um lado, Kurt havia chegado a um limite de angústia, sofrimento e uso de drogas que o levaram a tentar o suicídio. Por outro lado, o roqueiro começava a transitar no underground cultural, espécie de Mundo Inferior onde o punk rock era a ordem. Com o rock, Kurt renasce. 17

Durand também aponta mitos análogos ao de Orfeu, que ocorrem na Polinésia, na América do Norte e na Ásia Central. 18 Passagem ainda muito polêmica entre religiosos e teólogos. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1005

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Nevermind, o simbolismo da água e o renascimento pelo rock Kurt volta a morar com a mãe por volta dos 15 anos, quando passa a dar mais atenção às composições e à guitarra. A irmã, Kim, diz que Kurt e o underground “se encontraram”, dando a entender certo magnetismo entre ambos. Para ela, o irmão procurava ser parte de algo para se sentir menos só (2015, 27:14). Em uma entrevista não datada, respondendo à pergunta “por que você começou a ouvir punk rock?”, Kurt afirma: Eu sempre quis ouvir punk rock, mas claro que não havia isso na loja de discos de Aberdeen. Um amigo me deu umas fitas. Eu fiquei completamente espantado. Eu ouvia aquelas fitas todo dia. Era a melhor coisa. Expressava o que eu sentia socialmente, politicamente. Era a raiva que eu sentia diariamente. Então eu me dei conta que isso era tudo o que eu sempre quis fazer. Só o fato de realmente estarmos tocando música ao vivo em um quarto era incrível. Era a coisa mais inacreditável que eu já tinha feito (Cobain: Montage of Heck, 2015, 27:17-28:15).

Nesta época, Kurt, com 17 anos, já tocava com Krist Novoselic, 18, com quem viria a formar o Nirvana, última grande banda de rock’n’roll a surgir antes da consolidação da troca de arquivos de música digital. Alternando ensaios e shows com momentos caseiros de

livre

criação,

incluindo

composição musical, escrita, artes visuais e gravações em áudio 19, Kurt parece ampliar sua

produtividade.

Nirvana

um

Com

pouco

o

mais

consolidado, a banda assina com o prestigiado selo independente Sub Pop para lançar o primeiro disco, Bleach (1989). Com isso, mais gente vai aos shows, cuja alta voltagem resultava em apresentações energéticas e ensurdecedoras. Já enraizadas no ruído metálico da guitarra, a angústia e a 19

Como a própria fita experimental Montage of Heck, representada na montagem fotográfica acima. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1006

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desilusão de Kurt Cobain agora tomavam sentido mais nítido e forma mais palpável. Pela música, Kurt passa a elaborar seus anseios. Porém, com turnês agendadas pelos Estados Unidos e pelo exterior, e com o assédio da imprensa especializada em punk e indie rock 20 crescendo, Kurt parece saber que a celebração da mídia tende a desvirtuar a atenção do público para outros temas além do musical. Assim, questionado sobre o futuro do Nirvana nesta consolidação inicial da banda, o guitarrista responde destacando a maior importância da música sobre o todo. O futuro do Nirvana? Eu não sei. Espero que seja tentar escrever algumas novas músicas boas. É isso o que nos importa. É compor boas músicas. Se nos tornarmos populares ou não, isso não importa. A música é mais importante (Cobain: Montage of Heck, 2015, 47:21-47:35).

Krist comenta que Kurt tinha tendência ao perfeccionismo. “Ele odiava ser humilhado. Ele detestava isso. Se ele ao menos pensasse que havia sido humilhado então você veria a raiva aparecer” (2015, 49:47-49:59). Como consequência, o músico era cuidadoso ao apresentar sua arte, abdicando disso apenas por motivos de saúde. Enquanto a banda seguia seu percurso, Kurt começa a sofrer com problemas estomacais, admitindo que recorreu a drogas pesadas para controlar as dores. “Eu experimentei heroína pela primeira vez em 1987, em Aberdeen, e usei novamente umas dez vezes de 87 a 90. Por cinco anos, todos os dias, uma constante dor estomacal me levou literalmente ao ponto de querer me matar”, diz em um bilhete escrito à mão, sem data de referência (2015, 51:45). Curiosamente, em uma entrevista, dá indícios sobre o motivo de não fazer um tratamento médico adequado: “Eu abriria mão de tudo para ter uma boa saúde. Mas tenho medo de, se perder o problema estomacal, talvez não me manter assim criativo” (2015, 52:18-52:32). Apesar da doença de Kurt, o Nirvana parte para uma trajetória ascendente, sendo mais escutado, visto, comentado e consumido entre jornalistas, fãs, produtores e empresários. Kurt, no entanto, mantém seu discurso de antirrock star, diminuindo a opinião daqueles que já anunciavam a banda como a salvação do rock’n’roll: É constrangedor haver tanta expectativa. É totalmente superficial rotular uma banda como the next big thing. Esse nem é nosso objetivo. As pessoas estão colocando essa etiqueta em nós sem que a gente queira. Não estamos preparados [para isso], porque não estaremos mesmo preparados. Não vamos nos preparar para destruir nossas carreiras (2015, 54:40-55:06, grifo nosso). 20

Indie rock, abreviação inglesa para rock independente, vertente estética sonora de ampla linhagem alternativa que se fortaleceu nos anos 1990 depois da difusão do ideal punk do it yourself setentista e do apoio das college radios norte-americanas às novas bandas na década de 1980. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1007

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Depois do disco de estreia, Bleach, ser lançado em 1989 pela Sub Pop, o álbum mais emblemático da banda, Nevermind, chega às lojas em 1991 após um acordo com a gigante Geffen Records, do Grupo Universal Music. Com o suporte da poderosa gravadora, hits como Smells Like Teen Spirit, Come as You Are e Lithium chegaram a dezenas de países do mundo por meio das rádios, da televisão e de CDs. O rock’n’roll cru do Nirvana, punk, seco e obsessivo, totalmente oposto ao rock tradicional e comercial que dominava as listas dos mais vendidos na época, alcança sucesso global. Não sendo esta uma meta declarada da banda, a fama pouco agrada a Kurt, que aproveita entrevistas para demonstrar seu desinteresse pela unanimidade e também seu desgosto com a capacidade da mídia em nomear e destruir ídolos (novos olimpianos) instantaneamente. Quando perguntado se ele percebia que as audiências dos shows estavam ficando diferentes com o passar do tempo, Kurt responde ambiguamente, posicionando-se entre a crítica ao cosumo de cultura pop e a compreensão de que jovens naturalmente se identificam com músicos. Ele diz: “[...] todos querem ser hip 21, todos querem ser aceitos” (2015, 01:04:31-01:04:43). Já em outra entrevista, ao falar sobre a sintonia entre roqueiros e seu público, bem como sobre o perfil dos fãs, Kurt explica que há uma conexão entre ambos: “Eu toco para jovens em geral. Não importa de onde eles vêm. Nós temos os mesmos problemas, e basicamente temos os mesmos pensamentos” (2015, 01:06:3001:06:55). Esta sintonia entre banda e fãs pode ter sido uma das origens estéticas e conceituais da capa de Nevermind (2015, 55:40), uma das mais conhecidas capas de disco do rock’n’roll. A fotografia que estampa a embalagem do disco, uma clara referência ao condicionamento capitalista a que somos submetidos desde o nascimento, desagradou à gravadora, mas foi aprovada. Surgida de uma ideia de Kurt, a foto mostra um bebê de três meses de vida mergulhando em uma piscina de água cristalina tendo a sua frente uma nota de um dólar fisgada em um anzol – e devidamente fora de alcance da criança. A imagem técnica emite uma primeira mensagem muito nítida, porém abaixo de sua significação imediata há sentidos de ordem imaginária movimentados pela imagem simbólica da água, substância ligada à imaginação material 22 proposta por Gaston Bachelard (2013).

21

Abreviação para hipster, termo que designa amantes do lado B (independente, autoral, autêntico e menos comercial) da cultura pop, incluindo cinema, música, artes visuais e gráficas, design, fotografia e moda. 22 Em seus estudos sobre a imaginação material, Bachelard (2013) desvenda as imagens poéticas estimuladas pelos quatro elementos da cosmologia grega (terra, água, ar e fogo). Para o autor, as imagens estimuladas pelos elementos surgem como resultado da ação do homem sobre a matéria do mundo. Para revelá-las, bem como seus Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1008

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Juntamente com a foto da capa de Nevermind foi realizado um ensaio fotográfico com o Nirvana

(2015,

55:40-56:05,

Figura 4) para divulgação do álbum.

Nele,

os

roqueiros

também mergulharam com seus instrumentos em uma piscina de águas límpidas, movimentando sentidos

de

renascimento, transparência

renovação, purificação

e

pós-queda

simbólica de Kurt. Na fluidez elementar da água presente na fase Nevermind do músico há uma expressão simbólica do renascimento do guitarrista após sua descida infernal. Se antes Kurt estava preso à escuridão ameaçadora, envolto em dor e desespero, agora o guitarrista é revitalizado pelo simbolismo aquático. Nas águas claras, translúcidas e primaveris (BACHELARD, 2013 p. 21) da capa de Nevermind e do ensaio fotográfico do Nirvana, a fluidez hídrica estimula sentidos de força vital, metamorfose e deformação das essências (como a própria essência do ser). Conforme Bachelard, estes sentidos estão ligados às valorizações positivas comuns ao líquido efêmero. As fotografias movimentam ainda um senso de águas calmas, acalentadoras, envolvedoras, que acolhem e purificam 23 (BACHELARD, 2013 p. 139). Neste momento, Kurt goza o sucesso de sua banda e encontra-se em certo apaziguamento com a angústia rotineira que o cerca, exorcizando no elemento aquoso a queda infernal da fase anterior. Porém, este renascimento de Kurt, impulsionado pelo rápido sucesso global do Nirvana, não duraria muito tempo. O motivo pode ser observado em uma fala de Krist Novoselic sobre a reação à fama:

sentidos e valorizações, Bachelard recorre às referências míticas e literárias destas substâncias na cultura humana. 23 O exato oposto das águas escuras, turvas, profundas, agitadas e ameaçadoras, que movimentam amplas valorizações negativas. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1009

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Acho que cada indivíduo lida com isso de uma forma. Foi meio traumático se tornar famoso de repente, especialmente vindo da completa obscuridade e depois se tornando a banda número um do mundo. Eu fiz coisas que eu pude, como beber. Eu tive sorte. Tive cerveja e vinho, sabe? Kurt tinha heroína (Cobain: Montage of Heck, 2015, 01:11:20-01:11:44).

Conforme Krist, quando Kurt conheceu Courtley Love, sua futura mulher, ambos usavam drogas. Para o baixista, o amigo muito provavelmente tinha desejo de construir um lar novamente e, vendo Courtney como “[...] interessante, artística e intelectual”, o fato dela manter um vício era “[...] parte do pacote de montar um lar” (2015, 01:12:29-01:12:39).

A casa, a interioridade e a intimidade O documentário não esclarece quando Kurt e Courtney começaram a namorar, mas o Nirvana já despontava na cena rock mundial. Segundo Courtney, que admite no filme ter usado heroína por algum tempo até eventualmente se livrar do vício (2015, 01:14:58), Kurt nutria sentimentos autodestrutivos no período em que estiveram juntos. Conforme a ex-líder da banda Hole, “[...] ele tinha uma fantasia, que era: ‘Eu vou ganhar US$ 3 milhões e vou ser um junkie’” (2015, 01:15:15). Essas seriam as palavras do músico. Entretanto, antes de executar esse plano trágico, cuja veracidade não foi comprovada pelo filme, Kurt e o Nirvana tornam-se ainda mais populares entre fãs de rock. O documentário intercala cenas de turnês norte-americanas com giros por países asiáticos e sulamericanos, incluindo trechos da famosa apresentação para cerca de 110 mil pessoas em um festival em São Paulo, no dia 16 de janeiro de 1993, na qual os músicos demoliram seus hits, tocaram covers arriscados, trocaram de instrumentos entre si e os destruíram depois. Este show dividiu opiniões, sendo considerado por parte do público e da imprensa brasileira como o pior espetáculo que a banda já havia feito até então e, por parte da crítica e de fãs do trio como um imprescindível ato caótico de anarquia e catarse 24. Kurt estava desapontado com a exposição massiva do Nirvana e com o sucesso repentino da banda pelo mundo. Em uma entrevista para um canal de TV, deixa transparecer sua insatisfação. “É legal ser famoso?”, perguntam. “Pessoas realmente famosas acabam 24

Conforme entrevista de Krist Novoselic publicada na Folha de S. Paulo um dia após a apresentação no Hollywood Rock, cujo trecho recuperado pelo UOL em 2013 é reproduzido aqui, aquele "foi um show de desconstrução de imagem do grupo". Anos depois, em entrevista à coluna online Popload, o baterista Dave Grohl diz considerar aquele show inesquecível pela loucura da situação, incluindo um Kurt Cobain cantando e tocando sob o efeito de vários comprimidos de Valium: "Foi inacreditável. Foi insano". Para mais informações sobre esta apresentação, conferir a biografia Mais Pesado que o Céu, de Charles R. Cross, além de críticas e reportagens publicadas pelos principais veículos de comunicação do Brasil. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1010

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totalmente reclusas, fazendo nada. É um saco!” (2015, 01:16:03-01:16:15), responde. O Nirvana, que poucos anos antes tocava dentro de um quarto para alguns amigos, já considerando isso um ótimo show, segue rapidamente dos pequenos bares de Seattle para longas turnês internacionais que incluíam participação em megafestivais patrocinados por multinacionais cujos projetos nem sempre agradavam ao trio. Kurt percebia o quadro geral. Com Nevermind chegando ao topo da Billboard (2015, 01:19:40) e várias músicas bem executadas nos Estados Unidos entre 1991 e 1996, shows do Nirvana acabam sendo cancelados na Europa devido ao que seriam crises estomacais de Kurt. Porém, em entrevista, Courtney afirma que naquela época ele queria apenas ficar em casa sofrendo, usando heroína e tocando guitarra. Ela não esclarece se o músico de fato passava por problemas de saúde (2015, 01:20:15-01:20:40). Em meio às atividades do Nirvana e aos dilemas pessoais, Kurt se casa com Courtney,

ambos

montam

uma casa e passam a viver juntos. Com a mulher que ama (2015, 01:24:00), Kurt exercita a construção de um lar,

retomando

um

ideal

perdido com a separação dos pais.

Agora,

após

a

dissolução familiar de sua infância, o guitarrista tinha novamente uma casa. Nela, vivia com sua mulher, que em breve daria à luz Frances Bean Cobain, filha do casal. Com o nascimento da menina, após uma polêmica gestação durante a qual Courtney confirma ter usado heroína, Kurt conclui sua busca pelo sonho de família. Agora, ao lado da sua, ele recupera seu “centro de mundo”.

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Portanto, a casa de Kurt, a residência Cobain 25, lócus ideal para a vida em família 26, ativa a própria imagem arquetípica da casa. Esta, por sua vez, estimula imagens simbólicas de interioridade, sejam elas mais nítidas, vertidas no mundo sensível à morada, palácio, templo e claustro, por exemplo, ou então mais ambivalentes, dotadas de sentidos ambíguos e complementares como cave, concavidade, ventre materno, retorno, sepulcro, túmulo ou gruta – imagem esta, explica Durand (2012, p. 241), que poderia ser tanto “gruta maravilhosa”, refúgio, quanto “caverna medonha”, tenebrosa. O autor retoma conhecimentos de simbolismo arcaico oferecidos por Eliade para mostrar como muitas destas imagens constelam para propor sentidos sobre vida e morte – sendo vida uma espécie de separação natural da terra para a vivência no mundo, e morte um retorno à casa para sepultamento na terra natal. A vida não é mais do que a separação das entranhas da terra 27, a morte reduz-se a um retorno à casa... o desejo tão frequente de ser enterrado no solo pátrio não passa de uma forma profana de autoctonismo místico, da necessidade de voltar a sua própria casa 28 (ELIADE apud DURAND, 2012, p. 236).

Assim, Durand entende que há um “[...] isomorfismo do retorno, da morte e da morada” (2012, p. 236), bem como um “[...] isomorfismo que liga o ventre materno, o túmulo, a cavidade em geral e a morada fechada” (2012, p. 242). Todas estas imagens, entre tantas outras, convergem no simbolismo de intimidade – o qual articula sensos diversos, incluindo o prazer das delícias privadas, dos domínios aconchegantes, do repouso e da quietude. Conforme os depoimentos e registros apresentados no documentário, Kurt buscava ter novamente uma casa, um lar, que se sobrepusesse à casa e ao lar dos pais, e onde pudesse finalmente atualizar ritos familiares interrompidos, perdidos em um passado estagnado que ainda provocava angústia – mas que, contraditoriamente, o ajudava a dinamizar seu ato criativo. A imagem simbólica da casa, então, sendo um dos elementos preponderantes do imaginário humano como um todo, também toma dimensão importante no próprio imaginário movimentado por Kurt Cobain ao se refletir tanto no sonho da residência de infância quanto no ideal da nova morada de casado. Se recorrermos novamente a Bachelard, veremos que sua poética do espaço desenvolvese sobre vários locais, mas se manifesta principalmente na sua casa de campo natal, em Bar25

Tanto a casa antiga, dos pais de Kurt, quanto sua residência atual, com Courtney. Como fica devidamente registrado nos muitos vídeos caseiros gravados pelo casal (2015, 01:20:45-01:24:00). 27 A terra aqui poderia ser entendida como elemento material, substância, mas também como imagem simbólica da mãe elementar, telúrica, que guarda em si tanto a capacidade criadora de vida quanto o poder continente pósmorte. 28 Importante lembrar que Kurt Cobain cometeu suicídio em sua casa em Seattle. 26

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sur-Aube, na França. O motivo parece bastante claro: Bachelard entende que a casa mais adaptada à poética é aquela em que vivemos – especialmente a da nossa infância. Diz o autor que “[...] com a imagem da casa temos um verdadeiro princípio de integração psicológico [...] parece que a imagem da casa se torna a topografia de nosso ser íntimo” (BACHELARD apud WUNENBURGER, 2012, p. 57 e 58). Kurt, apesar da incompreensão com o fim do casamento dos pais e com a desestruturação familiar, manteve seus desejos de lar e união fazendo transcender no seu “centro do mundo”, aquele centro estimulado pela família 29, a imagem arquetípica da casa e os possíveis sentidos que esta propõe a ele. Seja a casa em que se nasce e cresce ou aquela onde se constitui família na fase adulta, as emanações simbólicas de interioridade e intimidade decorrentes dela e observadas por Durand costumam se expressar na Estrutura Mística (ou Antifrásica) do Regime Noturno do imaginário. A Estrutura Mística, marcada pelo apaziguamento do homem com a certeza da morte, nossa angústia essencial, compreende também símbolos relacionados à introspecção, aos mistérios, aos segredos e aos devaneios, além daqueles que remetem à fusão, união, mistura e concentração. É esta casa estimulante do interior arquetípico e da intimidade simbólica, este lócus de segurança propício à transcendência por imagens, o local onde Kurt se refugia para atualizar os ritos familiares que ativam seu “centro de mundo”. Com isso, o músico busca preencher aquele vazio que havia se instalado no simbolismo do centro movimentado pelo guitarrista 30. Em sua casa, seu lar, com sua nova família, Kurt pode experimentar movimentos de agregação característicos da Estrutura Mística do imaginário, como os já citados fundir, unir, misturar e concentrar – sejam imagens, sentidos, ideais, sonhos, desejos ou anseios.

O amor e a morte: uma segunda queda O documentário registra a vida de Kurt e Courtney apresentando fotografias, vídeos, versos e pequenos textos escritos pelo casal, como um no qual ele afirma: “Courtney, quando digo que te amo eu não sinto vergonha, e ninguém jamais chegará perto de me intimidar para pensar o contrário” (2015, 01:24:03). Em outra anotação, ela escreve: “Eu amo você mais do que a minha mãe. Eu abortaria Cristo por você. Eu poderia me tornar miserável para fazer você feliz” (2015, 01:24:36). As declarações não deixam dúvidas sobre os níveis viscerais, 29

Como visto na p. 11 deste artigo, o “centro do mundo” proporciona revelações de sentido e orienta a transcendência de imagens pregnantes, atualizando-as constantemente. 30 Como visto na p. 12 deste texto. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1013

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urgentes e trágicos deste amor. Ao filme, Courtney diz que os dois queriam ter filhos, e que se casou grávida de Kurt. “Nós já tínhamos (um filho sendo gestado). Então, fazer uma família o mais rápido possível era, você sabe, importante. Se tivéssemos mais tempo eu teria tido mais filhos com ele” (2015, 01:24:38-01:25:00, grifo nosso). Em um dos muitos home videos gravados por Courtney, vários deles nos quais o casal exerce seu poder de (auto)crítica, (auto)ironia e (auto)análise, ela pergunta a ele, jogado em uma cama, “Por que sente-se tão mal?”, ao que ele responde de forma propositalmente piegas “Por quê? Porque eu quero. É minha culpa. Tooooda minha!” (2015, 01:25:03-01:25:15). Por trás da sátira pessoal, há sinais de que Kurt direcionava suas condutas com discernimento. Há conversas ácidas sobre conhecidos, sociedade, música, mídia e suas inter-relações (2015, 01:25:15-01:27:53). Há o que poderíamos chamar de home performances 31 e também joke interviews, sendo que estas poderiam ser entendidas não como entrevistas falsas ou mock interviews 32, mas sim como pequenas encenações em que Kurt e Courtney se expressam pela voz de semipersonagens interpretados pelo casal, como se fossem dois rock stars superjunkies, espécie de alter egos cujas falas amplificam a (auto)crítica e a (auto)ironia natural dos músicos (2015, 01:28:50-01:29:38). O documentário não explica se, nestes vídeos caseiros, Kurt e Courtney estavam sob o efeito de drogas. É possível eu sim, mas não há confirmação alguma sobre isso no filme. Entretanto, Courtney explica a dependência de heroína por parte de ambos: Eu usei heroína quando estava grávida e então parei. Eu sabia que ela (Frances Bean) estaria bem. Ele jamais se preocupou que nossa filha teria... Eu o assegurei que levaria a gravidez adiante sem problemas, mas você sabe, eu era uma jovem mulher. A gravidez não era o problema. Era estar perto de um junkie enquanto eu estava grávida, sendo eu também uma junkie, e sabendo que assim que o bebê nascesse eu iria me drogar para celebrar, sabe? Esse era nosso estilo de vida (Cobain: Montage of Heck, 2015, 01:30:35-01:31:11, grifo nosso).

A atenção excessiva da mídia ao Nirvana e especialmente aos momentos mais loucos de Kurt e Courtney incomodava o guitarrista. A crise dele com a imprensa chegou ao ápice 31

Há duas interessantes home performances registradas neste estudo. Em uma cômica, Courtney faz uma inspirada leitura dramática de uma carta supostamente escrita por uma amiga ou fã reclamando das atitudes de Kurt, que fariam Courtney sofrer. A câmera registra a leitura dela, que dubla a interpretação muda de um Kurt magérrimo, de cabelos vermelhos e bigode nazista estilo Hitler, vestido de mulher e agindo como se fosse a menina que teria escrito a tal carta (2015, 01:27:53-01:28:48). Já uma home performance musical, o casal age como se estivesse sob efeito químico, fazendo música segundo um processo de desconstrução musical e de destruição guitarrística (2015, 01:29:38-01:30:42). 32 Mock interviews poderiam ser entendidas como entrevistas simuladas que servem como treinamento para entrevistas reais. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1014

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após uma reportagem da revista Vanity Fair (2015, 01:32:40) sobre o uso de drogas pelo casal durante a gestação de Frances Bean. Furioso, Kurt escreve que se sentiu violado (2015, 01:33:33), condena o mau jornalismo, dispara cartas com ataques à imprensa e classificada a TV como “entidade de todos os deuses corporativos” (2015, 01:33:54). Paralelamente, o documentário apresenta textos que revelam a profunda angústia pela qual o músico passava: Eu escuto tantas histórias e relatos exagerados de amigos sobre como sou notoriamente fucked up. Viciado em heroína, autodestrutivo, alcoólatra e ainda assim abertamente sensível, delicado, frágil, neurótico, meio insignificante, que a qualquer minuto vai ter uma overdose 33, pular do telhado e explodir a cabeça, tudo de uma vez só (Cobain: Montage of Heck, 2015, 01:34:07–01:34:34)

Em áudio, Kurt admite que sua história tinha propensão à tragédia. “Eu pensava que as pessoas

quisessem

que

eu

morresse, pois seria a clássica história

rock’n’roll”

01:34:44-01:34:50).

(2015, Neste

momento (2015, 01:35:00), o filme volta ao ponto inicial do documentário

em

que

Kurt

encena sua morte durante um show. Naquele mesmo palco, o músico reclama publicamente do que “tem sido escrito” sobre eles, diz que Courtney acha que todos a odeiam, e pede que a multidão grite “Courney, I Love you”. Atendido pelo público, Kurt puxa a conspiratória Territorial Pissings, na qual canta "Just because you're paranoid don't mean they're not after you" 34. Nisso, o documentário resgata notícias sobre o nascimento de Frances e o monitoramento governamental sobre a criação da menina (2015, 01:38:21). 33

Kurt escreve “[...] neurotic, little pissant who at any minute is going to O.D.”. A abreviação O.D., conforme o conhecido portal online UrbanDictionary.com, pode ser entendida como "overdose on a drug" , "over-doing" ou "overdosage". 34 "Só porque você é paranoico não significa que eles não estão atrás de você". Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1015

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A dureza dos relatos jornalísticos é contraposta a vídeos caseiros sobre a doce vida em família, nos quais o casal cuida da filha. Kurt dá atenção e carinho à criança e Courtney se mostra uma mãe amorosa (2015, 01:38:32-01:40:10). A respeito da paternidade, Kurt escreve: “Eu escolhi me colocar em uma posição que requer a maior responsabilidade que alguém pode ter. [...] Farei de tudo para lembrá-la que a amo mais do que amo a mim mesmo” (2015, 01:40:45). Em áudio, diz ter certeza que pode mostrar muito mais afeto do que seu pai foi capaz, e que só Frances poderia afastá-lo do rock’n’roll (2015, 01:41:00-01:41:43). Porém, ao mesmo tempo em que exercita o afeto pela filha, Kurt segue em aflição, deprimido e irritado pela perseguição da mídia e pelo que seria a publicação de informações falsas sobre sua família (2015, 01:44:00-01:45:12). Ele escreve: Sonhos ruins, estômago vazio. Acordo pela manhã sentindo-me envenenado. Durante sonhos ruins, nervos vazam toxinas cerebrais que fluem pelas veias engrossando lentamente, ao ponto de um veneno poderoso, vagarosamente coagulando como uma pluma caindo nas chamas (Cobain: Montage of Heck, 2015, 01:45:30).

E segue em outros escritos: “Enterrado fundo em um sonho de heroína [...] eu fiquei tão chapado que arranhei até sangrar” (01:45:38). Ou ainda: “Não me importo se eu murcho sozinho, eu não me preocupo se eu não tenho uma mente 35” (01:45:52). No período de composição e gravação do disco In Utero (1993), mesma época do show da banda no Brasil citado anteriormente, Kurt altera momentos de criatividade e infelicidade. Havia acabado de sair de um momento em que “[...] estava de saco cheio de tudo”, que “[...] não queria ser um rock star” e que “[...] estava ficando assustado” (2015, 01:49:45-01:49:58). Em um ensaio fotográfico, é clicado manejando um revólver (2015, 01:49:18; Figura 7). Já um vídeo caseiro da época em que Frances ainda era bebê registra Kurt bastante fragilizado, magro e abatido, quase dormindo em pé enquanto segura a filha no colo (2015, 01:52:1701:54:50). Para a mãe do músico, seu quadro piorava a cada dia e ele sentia vergonha por isso (2015, 01:54:50-01:56:50). Durante a gravação do programa Unplugged MTV, cuja cenografia com velas e lírios lembrava a decoração de um velório, Kurt disparou contra o público: “[...] Todos que eu conheço podem sentar aqui na frente para que eu possa vê-los? Porque eu odeio estranhos...” (2015, 01:58:30).

35

No original: “I don’t care if I shrivel alone. I don’t mind if I don’t have a mind”. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1016

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Courtney afirma que Kurt tentou se matar 36 após o que teria sido uma tentativa de traição por parte dela, em Londres – o caso extraconjugal não

teria

ocorrido

(2015,

02:03:55). Conforme o jornal The Daily World, citado pelo documentário, após tomar o medicamento

ripnol

com

champanhe o guitarrista entrou em coma, sendo levado à emergência de um hospital em Roma. Ao som acústico de Where Did You Sleep Last Night? 37,

o

filme

intercala

frases soltas escritas por Kurt: “O melhor dia que eu já tive foi quando o amanhã nunca chegou”, “Mate-se, mate-se, matese!”, “Eu me odeio e quero morrer. Me deixe em paz. Com amor, Kurt” (2015, 02:05:5602:06:09). Conforme o documentário, Kurt Cobain cometeu suicídio um mês após a volta da capital italiana, no dia 05 de abril de 1994, aos 27 anos, em Seattle. O filme se encerra neste momento, não entrando em detalhes sobre a causa da morte nem sobre as investigações policiais que se seguiram. Também não debate as teorias conspiratórias sobre o caso, incluindo aquelas relativas ao suposto envolvimento de Courtney no que teria sido o assassinato do marido 38. Por outro lado, o filme apresentou documentação, pesquisa e depoimentos registrando o amor entre Kurt e Courtney e sua tentativa de estabelecer uma família. Ainda assim, a angústia e a depressão amplificadas pelo abuso de drogas por parte do

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Segunda tentativa, conforme o documentário. Música de Huddie Ledbetter. 38 Tema de documentários como Kurt & Courtney (1998), de Nick Broomfield, e Soaked in Bleach (2015), de Benjamin Statler. 37

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músico emitem imagens e sentidos frequentes de trevas, desespero, aniquilação e morte, expressos tanto em sua música e composições textuais quanto em sua trajetória de vida. Porém, se para Durand a passagem do tempo e a consciência sobre a morte estimularam o homem a criar imagens ao longo da sua existência, de forma a elaborar esses problemas e dar sentido à vida, Kurt abdica de sua imaginação criadora ao sucumbir à pulsão de morte potencializada pelo sofrimento existencial e pela dependência química. Ao tirar a própria vida, o guitarrista provoca sua segunda queda simbólica, igualmente física e moral, porém desta vez totalmente inescapável.

Do imaginário de um roqueiro ao imaginário rock A proposta de leitura simbólica de Cobain: Montage of Heck dá indícios sobre como, de fato, roqueiros como Kurt Cobain assumem condutas pessoais e tomam percursos antropológicos cujos movimentos podem estimular imagens arquetípicas, simbolismos, traços míticos e metáforas obsessivas constitutivas de um imaginário roqueiro conectado ao amplo imaginário humano, cujos elementos são compartilhados há gerações. Porém, este imaginário rock não é marcado somente pelos clichês do estilo musical disseminados pela mídia. Sua pregnância é efetivada justamente por alguns dos elementos ancestrais que transitam no grande sistema de imagens polissêmicas observado por Durand em consonância com pensadores como Jung, Eliade e Bachelard. Se levarmos em conta que este imaginário antropológico encontra-se em ampla retroalimentação, oferecendo imagens simbólicas e narrativas míticas para os indivíduos e as culturas estabelecerem entendimentos de mundo, condutas pessoais, movimentos sociais e estruturação de realidades, devemos observar que este mesmo imaginário se nutre continuamente das imagens simbólicas e técnicas elaboradas pelos sujeitos e veiculadas em produtos culturais. No caso da leitura simbólica sobre as representações documentais propostas por Cobain: Montage of Heck, entendemos que o ex-líder do Nirvana movimenta um imaginário revelador de um "centro do mundo" definido pela família – tanto aquela instaurada e dissolvida pelos seus pais quanto aquela construída pelo próprio músico após seu casamento e o nascimento da filha. Este "centro do mundo" familiar moldou o percurso do guitarrista no mundo, provocando-lhe pelo menos duas quedas infernais das quais em apenas uma resultou em um renascimento pelo rock. A família e seu senso de união, solidificação e continuidade, cujo sentido ganha mais nitidez a partir da imagem arquetípica da casa e do simbolismo de

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intimidade, além do próprio amor declarado por Courtney e Frances Bean, porém, não foram suficientes para salvar Kurt. Dividido entre o profundo afeto pela família e a desilusão abismal com sua própria condição existencial, o guitarrista não escapa do vácuo provocado pelo simbolismo catamórfico. Portanto, rock docs se colocam como importantes instrumentos audiovisuais cujos personagens, documentos, discursos e histórias movimentam conteúdos simbólicos arquetípicos cuja pregnância e polissemia oferecem sentidos múltiplos – e cujas constelações compõem o grande imaginário humano sistematizado por Durand. No caso de Cobain: Montage of Heck, entendemos que a simbologia estimulada por Kurt liga-se a um amplo imaginário rock que aguarda revelação.

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WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. WUNENBURGER, Jean-Jacques. Gaston Bachelard, poétique des images. Paris: Mimesis, 2012.

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Imaginário e Literatura em perspectiva interdisciplinar Imaginary and Literature in interdisciplinary perspective Imaginaire et littérature dans une perspective interdisciplinaire

Maria Zilda da CUNHA 1 Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Maria Auxiliadora Fontana BASEIO 2 Universidade de Santo Amaro, São Paulo, Brasil

Resumo Compreendido como sistema organizador de experiências com dinamismo próprio, o imaginário constitui-se como eixo articulador para resgatar formas de expressar o real, bem como para projetar maneiras de transformá-lo. As reflexões sobre esse tema pressupõem uma abrangência integradora e interdisciplinar que incita a compreensão de fenômenos humanos e culturais sob múltiplos olhares, entre os quais se destaca a arte literária. Essa rede de associações de imagens singulariza tanto o estilo individual do autor, quanto sugere traços do mundo social e cultural. É nosso intuito, neste trabalho, analisar, à luz da Literatura Comparada, elementos que servem de vetores à imaginação simbólica nesse corpo de significação vivo que é a obra literária. Nossa proposta é investigar a matéria imaginária que organiza o projeto estético e o projeto político de José Saramago. Palavras-chave: imaginário; literatura comparada; José Saramago. Abstract Considered as an organizing system of the experiences with a singular dynamism, the imaginary constitutes a central theme to rescue means to express reality as well as to point ways to change it. Today, the reflections on this topic assume an integrative and interdisciplinary scope urging the understanding of human and cultural phenomena from multiple perspectives, among which is the literary art. This network of images distinguishes both the individual author's style and suggested features of the social and cultural world. It is our intention in this paper to analyze, in Comparative Literature perspective, elements that act as vectors to the symbolic imagination in the body of alive meaning that is the literary work. Our proposal is to investigate the imaginary matter that organizes the aesthetic and the political project of José Saramago. Key words: imaginary; comparative literature; José Saramago.

Introdução

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Mostra-se bastante aguda à nossa percepção a ideia de que a realidade em que nos inserimos hoje se tece de uma complexidade que nos desafia continuamente a buscar novas formas para compreendê-la. A mudança paradigmática de que somos partícipes problematiza e provoca fissuras em verdades, valores e modelos explicativos que serviram de sustentação para nosso pensar, sentir e agir por muitos séculos. Se, de acordo com Gilbert Durand (1997, p.14), o imaginário pode ser compreendido como um “conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens”, o estudo dessa complexa rede semântica permite, de alguma maneira, capturar o que se delineia, ainda que de forma cifrada, nos pensamentos e sentimentos humanos neste nosso tempo. É fato que as reflexões sobre o imaginário assumem abrangência interdisciplinar nesse novo contexto, permitindo a compreensão dos fenômenos humanos e culturais de maneira multidimensional. Muito embora entendamos que os estudos do imaginário engendrem muitas produções, neste artigo pretendemos analisar sua figuração na arte literária. É nossa intenção perscrutar a rede de imagens que se integram e compõem este corpo de significação vivo, que é a obra literária, analisar elementos que servem de vetores à imaginação simbólica, tornando-se, assim, possível apreender sentidos importantes para o homem neste momento de seu percurso de humanização. Pretendemos investigar a matéria imaginária que organiza o projeto estético e o projeto político de José Saramago, sinalizando algumas configurações de imagens e suas relações com o contexto sócio-histórico e cultural em que se enraízam. Para este momento, trabalharemos com as obras Jangada de Pedra e O Conto da Ilha Desconhecida. Cumpre esclarecer que nossa pretensão não é restringir este estudo às formas sigilosas e distorcidas da ideologia, tampouco explorar relações entre forças sociais, mas abarcá-lo como fenômeno de relação do homem com o mundo, observando a forma como se estrutura a imaginação criadora, esta capaz de oferecer vias de acessibilidade ao mundo das afetividades, as quais se engendram aos processos de racionalidade, aspecto que vai requerer uma consideração especial para o entendimento da complexidade que constitui o homo sapiens demens deste nosso milênio. Para realizar este exercício crítico, tomamos por fundamento os instrumentais da Literatura Comparada, perspectiva interdisciplinar de estudos que opera com a comparação de diferentes literaturas ou entre literatura e outras artes ou ainda com outras áreas do saber.

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Cabe ressaltar, em consonância com as novas teorias críticas, que esse campo de estudos abre canais para exercícios reflexivos sobre o caráter histórico e cultural do fenômeno literário, tornando-se solo fértil para problematizar a experiência humana de maneira pluridimensional, na medida em que amplia seus raios de ação para vários recortes epistemológicos do conhecimento humano, como a Sociologia, a Antropologia etc., embora considerando a ideia de G. Durand (1996, p.145) de que a Ciência do Homem seja uma só. Ao abrir possibilidades de colocar em diálogo diferentes obras, a Literatura Comparada, com seus métodos específicos, auxilia na percepção do sistema de imagens que transita de uma obra para outra. A despeito das diferenças e singularidades de cada texto – o que resguarda sua autenticidade, conforme Cândido (1997), faz-se possível estabelecer conexões capazes de tornar visíveis os elementos de similaridade e, portanto, encontrar pistas para compreender os elementos semânticos que fazem pulsar o imaginário. Retomando as ideias de Wunenburger (2007, p.35), independente do método com que se pretende operacionalizar, o imaginário pode ser “apreendido como uma esfera organizada de representações na qual fundo e forma, partes e todo se entrelaçam”. E acrescenta: Essa compreensão da configuração de um imaginário, seja ele de um autor, de um povo, de uma época etc.,é em geral tributária quer da presença de elementos tipificantes que dão um estilo, uma face ao conjunto das imagens, quer de uma verdadeira gramática com sua semântica e suas leis sintáticas que obrigam a compor um sistema.(WUNENBURGER, 2007, p.35)

Portador de criatividade própria e de intensa plasticidade, o imaginário organiza-se por fontes geradoras e dinâmicas capazes de explicar sua formação e transformações. Materializado sob a forma de literatura, comporta uma constituição linguística singular e revela a subjetividade de um autor. Vale destacar que, ao exteriorizar subjetividades, o contato com o leitor favorece relações intersubjetivas e essa recepção amplia os objetivos de construção de imaginários. A matéria prima com que se esculpe o imaginário de um autor são imagens primitivas e inconscientes, abrigadas no eu profundo, que vão se amalgamando às experiências vividas e assumindo contornos reconhecíveis em um contexto social. Traduzidas em signo linguístico, mostram-se expressivas em forma literária. Designa-se por literária a imagem (como da calhandra ou da serpente) a meio caminho entre o sonho e a imagem erudita, que é a fonte de um grande número de metáforas que dela constituem como um comentário; mas cada imagem literária, fruto de uma criatividade verbal, se apresenta também Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1023

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como um transbordamento imprevisível, uma renovação única das imagens preexistentes, cuja forma mais elevada é a metáfora mais pura, reduzida a uma forma verbal concisa (WUNENBURGER, 2007, p.42).

Sob a superfície legível do texto adensam-se metáforas, símbolos, arquétipos, esquemas – matéria-prima do imaginário passível de significação, de sentido e de decifração. Esses elementos traduzem o imaginário de um indivíduo/autor e o imaginário social e cultural do qual participa, compondo-se dialeticamente, de maneira a fazer conviver elementos invariáveis - porque universais - e elementos de variância - porque históricos. Vale observar que o conteúdo, as estruturas, marcados por uma fertilidade simbólica e por uma vivacidade metafórica, realizam intenções, estando sempre abertos a atualizações, dada a função poética que lhe confere dinamismo criador permanente.

1. Imaginário e Literatura: um olhar sobre o projeto estético e político de Saramago a partir de Jangada de Pedra e do Conto da Ilha desconhecida

É válido lembrar que, em várias de suas obras, sobretudo em O paradigma Perdido, Morin (1999) nos mostra que a hominização se fez pela adaptação inteligente ao real (sapiens) e pela necessidade de fabulação pelo imaginário (demens). O imaginário está inscrito em toda criação imaginativa, bem sabemos, e constrói-se por meio de redes de associação de imagens tecidas com uma sintaxe simbólica e também semântica que singulariza tanto o estilo ou o mundo individual do autor, quanto sugere traços do mundo social e cultural, como já mencionamos. Ensina Wunenburger: Embora cada indivíduo imaginante esteja dotado de uma função de onirismo, de simbolização e de mitificação, nem todos atualizam o conjunto das práticas imaginantes. A capacidade de transformar as imagens de um ser para fazer com que estas acedam a um nível estético ou simbólico novo e profundo varia, o que constitui o mistério da criação artística.

(WUNEMBURGER, 2007, p.40) E acrescenta o referido autor que o imaginário compreende as produções mentais ou materializadas em obras com linguagem verbal e não verbal, compondo conjuntos coerentes e dinâmicos que traduzem uma função simbólica ao expressar sentidos próprios e figurados (WUNENBURGER, 2007).

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Ao analisarmos o imaginário no corpo de significação vivo da literatura, nos deparamos com uma representação atualizada de motivações afetivas, que fazem criar laços íntimos de recepção. Para expressar pensamentos, sentimentos e vontades com os quais um escritor compõe as representações complexas que organizam o imaginário, ele se vale dos elementos da narrativa e/ou dos recursos poéticos. A despeito de cada obra literária possuir singularidade e autonomia - as de Saramago são representativas do nosso universo de análise -, há constantes semânticas que aglutinam seus conteúdos oníricos e a elas nos voltaremos neste percurso crítico.

1.1 Jangada de Pedra

Escrito em 1986, o romance inicia com a apresentação de alguns fatos insólitos associados com personagens que se juntam para um projeto de vida comum. Joana Carda – que risca o chão com uma vara de negrilho e vê a terra se abrir; Joaquim Sassa – que arremessa uma pedra ao mar e a vê pulando infinitamente contra a gravidade; José Anaiço – que convive com a aparição de estorninhos a fazer estranhas revoadas; Pedro Orce – que sente tremores vindos da terra; Maria Guavaira – que destece uma meia de lã cujo novelo assume proporções inusitadas. O enredo organiza-se por um conflito inexplicável: a Península Ibérica está se separando do continente europeu e passa a se deslocar no Atlântico. As personagens que vivenciam os fatos estranhos em seu cotidiano gradativamente se descobrem e se unem em busca de explicações. A elas se junta o Cão Constante, carregando um fio de lã azul à boca. Manchetes nas redes de televisão, rádios e jornais tratam dos insólitos fenômenos e a busca dos responsáveis é providenciada. Enquanto o pedaço de continente (Jangada de pedra) vai se deslocando, as personagens principais acabam por se unir e também a se mobilizar para empreender uma viagem de descoberta da ilha e de seus fatos estranhos. A viagem é feita pelo grupo em uma galera, conduzida por Maria Guavaira e puxada inicialmente por um, posteriormente por dois cavalos. Na iminência de um acidente com a ilha dos Açores, o que evidencia o lugar para onde se desloca a jangada, a população se desespera. As duas mulheres do grupo decidem ter

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relações com Pedro Orce, o que provoca um clima de tensão nos viajantes, ainda que permaneçam juntos. A Jangada de Pedra para. Portugal fica voltado para os Estados Unidos e a Espanha para a Europa. Ainda que as demais personagens não percebam o movimento da terra, Pedro Orce afirma que ela ainda treme, o que acaba por se confirmar com a retomada do movimento peninsular, de modo a girar, durante um mês, em torno de seu próprio eixo. Finalmente, o movimento cessa e as mulheres percebem que estão grávidas. Morre Pedro Orce no momento em que a galera para e se percebe que a terra não treme mais. O grupo descansa para depois retomar a viagem. Notamos que essa obra de Saramago encanta pelo conjunto de imagens que se tecem inexplicavelmente no imaginário do leitor, para as quais ele deseja encontrar sentidos. O título Jangada de pedra é alegórico e amalgama múltiplas significações. A jangada remete ao tema da navegação e da viagem – referência histórica, literária e mitológica - todas elas enoveladas no tecido hipertextual. Já a matéria de que é feita - a pedra - metaforiza a ação humana de construção. Segundo Chevalier e Gheerbrant (1996), a pedra é símbolo da Terra-mãe. Observamos que o espaço da narrativa é a Jangada de Pedra, representação metafórica da Península Ibérica que se desloca pelo Atlântico, em um tempo sem marcas cronológicas precisas, um tempo labiríntico condensado no espaço e na ação: a viagem - percurso da humana aprendizagem. A Jangada de Pedra evoca, no imaginário do leitor, uma pluralidade de viagens, colocando em marcha o percurso dos heróis em busca de si mesmos. O texto nos transporta, pelas ondas do imaginário mítico, à Odisseia, à Arca de Noé e a outros lugares de memória de onde podemos ponderar sobre a condição e a identidade do homem. Sabe-se que o contexto histórico de produção desse romance coincide com Portugal em face da tensão pós-Abril, que remete à integração de Portugal na Comunidade Econômica Europeia (como nação periférica) e identificação, ao lado da Espanha, com suas ex-colônias. A Ibéria transformada em jangada leva o leitor a acercar-se da gloriosa história do povo português em suas grandes navegações em busca de um novo mundo, entretanto com uma visão outra, marcada pelo olhar crítico de quem revê os acontecimentos e vislumbra outras perspectivas. A península ibérica não pode ser compreendida sem sua relação histórica com a América e com a África. Daí a importância de as comunidades de Língua Portuguesa

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ganharem força e atualizarem as possibilidades das relações recíprocas, fundamentos do Iberismo que se tece como utopia sociopolítica de Saramago. A motivação artística é a imaginação utópica como práxis poética e política necessária para realização da utopia libertária a qual vislumbra o escritor português. A consciência do presente leva-o a interrogar o passado. Nesse sentido, Saramago reinventa imaginários e mitos da memória cultural para, muitas vezes, subvertê-los. Seu olhar indagador e crítico sobre os eventos passados pode ser apreendido pelas incursões ao fantástico, construídas com refinada sensibilidade e engenhosidade em contraponto a cenários realistas - noticiários, manchetes nas redes de televisão e rádios – criando efeitos de ruptura de maneira a provocar inquietação no leitor. As pinceladas do fantástico que compõem cada quadro literário marcam o texto de uma causalidade mágica que se contrapõe às leis científicas que sustentam o paradigma contemporâneo. A forma de narrar incorpora um conjunto de vozes em subversão à narrativa de voz única – crítica às formas narrativas tradicionais, procedimento estilístico que se refaz também na linguagem, composta de parágrafos longos, sem pontuação a não ser vírgulas e alguns pontos; discurso indireto livre traduzindo o fluxo do pensamento, em uma configuração também ela labiríntica e hipertextual. No que se refere às construções metafóricas da linguagem de Saramago nesta obra, podemos inferir que os estorninhos a fazer estranhas revoadas sob a cabeça de José Anaiço podem simbolizar reflexões e busca de novos sentidos e novas direções; os tremores de terra sentidos por Pedro Orce podem remeter às necessárias mudanças a serem engendradas no solo da realidade da Península; a pedra, arremessada por Joaquim Sassa ao mar, ao pular infinitamente contra a gravidade pode metaforizar os incômodos da realidade construída. O cão, fiel e vigilante, percorre o labirinto infernal da Península o tempo todo ao lado dos companheiros. Guardador dos caminhos, como psicopompo, mostra-se “guia do homem na noite da morte, após ter sido seu companheiro no dia da vida”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996, p.176). Sua figuração revela-se iniciatória, pois evoca a morte e o recomeçar da nova vida. Os fios de lã destecidos por Maria Guavaira podem evocar a desleitura da história ibérica, o desfiar da cultura até então experimentada e a busca de um novo tecido social e imaginário, de uma nova cultura inaugurada com o encontro desses personagens-heróis que se fazem no comum da vida. Guavaira – de sonoridade próxima à

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Guarvaia, a primeira cantiga medieval cantada em solo lusitano - é a Ariadne que fornece os fios para construir essa nova trama da história. Esse conjunto de imagens metafóricas e simbólicas, advindas dos mitos, da literatura e da história, semantizadas em um novo discurso que se tece labiríntico no corpo vivo da palavra literária, engendra faces de um comprometimento social, cultural, ético, político e estético do autor lusitano. A vara que risca o chão metaforiza o lápis a traçar fantasticamente a narrativa, axis mundi a revelar o poder de recriação da estória animado pelo desígnio de refazer, pela palavra, a História. Vara mágica e de poder clarividente, sob mãos femininas - vale ressaltar faz acordar para a consciência e transformar o que existe como dado. Ao conjugar o imaginário feérico, mitológico e alegórico, o autor incita reflexões críticas sobre a importância dos laços comunitários em resistência às forças do discurso hegemônico, construindo esteticamente um novo imaginário. As personagens se juntam mobilizadas por fatos que ocorrem de forma inusitada na vida cotidiana e lançam-se na construção de uma nova ordem, de um novo lugar. Elas vão construindo sua humanidade na convivência bem pouco pacífica. A jangada, em seu deslocamento, gira sobre si mesma, antes de parar estrategicamente, conotando uma busca da própria identidade e do sentimento de pertença a um entrelugar cultural em que se partilha a expressão pela língua. Para além das amarras da história, ampliando para uma visão da arte como problematizadora da condição humana, essa sintaxe simbólica e semântica, da forma e da expressão, tecida ao modo de labirinto, encanta o leitor contemporâneo, também ele em busca de sentidos de si mesmo pelos sentidos do outro.

1.2 O conto da ilha desconhecida Publicado em 1997, o Conto da Ilha desconhecida narra a história de um homem que foi ao palácio do rei pedir um barco a fim de sair em busca da ilha desconhecida, cuja inexistência já fora apontada pelos geógrafos. No palácio, havia várias portas e cada uma com sua utilidade. O rei passava todo o tempo na porta dos obséquios, mas o homem apareceu na porta das petições, assim a majestade mandava que o primeiro secretário fosse ter com quem batia e este pedia ao segundo secretário, que solicitava ao terceiro, que ordenava ao seu subordinado, até chegar, finalmente, à mulher da limpeza, que, não tendo em quem mandar, atendeu as batidas. Mas Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1028

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ele queria ser atendido pelo rei, então se deitou frente à porta e acabou atrapalhando as pessoas, o que provocou revoltas sociais, até que o rei atendeu o homem e lhe deu o barco. O rei solicitou que o homem procurasse o capitão do porto e arrumasse a tripulação. A mulher da limpeza resolvera ir com ele à procura da ilha. Ao chegar às docas, conseguiu uma caravela reformada, que foi limpa pela mulher, enquanto o homem procurava por uma tripulação, a qual não encontrou, pois ninguém acreditava que houvesse uma ilha desconhecida. Seguiram ele e a mulher por insistência dela. Jantaram na primeira noite e adormeceram. Ele sonhou com uma grande tripulação: homens, mulheres, crianças e levava sementes, terra, animais e árvores; aportaram e, ali, fizeram brotar nova vida. Ao acordar, ao lado da mulher da limpeza, nomearam o barco de ilha desconhecida e este barco-ilha parte para o mar, à procura de si mesmo. O título instiga o leitor a descobrir onde é e como se vive na ilha desconhecida. E inicia abrindo portas para sua navegação, oferecendo uma ponta do fio: o barco. A entrada da trama são as portas: do rei, das petições, dos obséquios, das decisões e outras, pelas quais o leitor penetra no texto e, ao lado das personagens, dispõe-se em viagem imaginária para a Ilha Desconhecida. Os desafios do labirinto e da aventura da viagem instauram-se logo no início da trama. A obra semantiza redes de elementos míticos, históricos, literários, de códigos diversos e de diferentes linguagens, reunindo, em palimpsesto, textos culturais, épocas civilizatórias, sonhos e ideais humanos. Traz temas que perpetuam pelos diferentes imaginários e modulam a compreensão de cada época. Os grandes navegadores, Noé, Ulisses, Simbad o marujo, heróis históricos, míticos e literários inscrevem no corpo do texto o factual, o sagrado e o insólito, revelando múltiplas possibilidades para o impulso da aventura humana em busca do conhecimento. Dá-me um barco [...] vou dar-te a embarcação que lhe convém, Qual é ela, É um barco com muita experiência, ainda do tempo em que toda gente andava à procura de ilhas desconhecidas [...] Parece uma caravela, disse o homem, Mais ou menos, concordou o capitão, no princípio era uma caravela, depois passou por arranjos e adaptações que a modificaram um bocado, Mas continua a ser uma caravela, Sim, no conjunto conserva o antigo ar. (SARAMAGO, 1998, p.30-31)

O rei que vive de obséquios, manda e desmanda, exercitando um poder burocrático e ditatorial evoca a memória política de ditadura vivida por Portugal com o salazarismo e Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1029

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relembra outras formas de poder autoritário que compuseram a história não apenas lusitana, mas também de outros países. Para analisar o discurso crítico que a arte cria com a história, o tom irônico do narrador modula o texto, abrindo novas portas para a releitura e a re-escritura da História. Destronado, o rei senta-se na cadeira de palha da mulher da limpeza: [...] Dá-me um barco, disse. O assombro deixou o rei a tal ponto desconcertado, que a mulher da limpeza se apressou a chegar-lhe uma cadeira de palhinha, a mesma em que ela própria se sentava quando precisava trabalhar de linha e agulha [...] Mal sentado, porque a cadeira de palhinha era muito mais baixa que o trono, o rei estava a procurar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora encolhendo-as ora estendendo-as para os lados, [...] (SARAMAGO, 1998, p.15-16).

Assim como em Jangada de Pedra, subvertendo imaginários e valores, a mulher da limpeza sai pela porta das decisões e assume, ao lado do navegante, seu papel de comando rumo à ilha desconhecida. A presença do insólito, que de início já cria o jogo ficcional, revela-se como atividade imaginária a reverter o modelo explicativo cartesiano, caracterizadamente mecanicista e fechado. No contexto da obra, aponta para forças complexas, que estão a se engendrar e surpreender o homem, lançando-o a administrar incertezas que, efetivamente, compõem a trajetória humana. Há mais coisas desconhecidas do que podemos pensar. Subjaz a ideia de uma causalidade diferente das que conhecemos para as quais o autor torna o leitor um aliado. A embarcação personificada revela as potencialidades do fazer humano. As velas são os músculos do barco, basta ver como incham quando se esforçam, mas, e isso mesmo sucede aos músculos, se não se lhes dá uso regularmente, abrandam, amolecem, perdem nervo, E as costuras são como os nervos da vela [...] (SARAMAGO, 1998, p.34) Entre os fazeres e os afazeres, o maior empreendimento é a busca da própria identidade. [...] Mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, [...] dizia que todo homem é uma ilha [...] Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós. (SARAMAGO, 1998, p.40-41) Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma. (SARAMAGO, 1998, p.62) Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1030

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A ilha desconhecida representa Portugal que busca sua própria identidade em um novo contexto, que já não é o das caravelas. A arquitetura imaginária que Saramago nos convida a penetrar torna-se uma aventura de navegação. O leitor é arremessado no interior do processo labiríntico do texto e para além das malhas textuais. O inusitado uso da pontuação, o complexo itinerário imaginário tecido de múltiplas rotas que ativam a capacidade mnemônica para construção de sentidos motivam o leitor a recuperar o passado, questionar o presente e projetar o futuro. Nessa viagem imóvel e imaginária possibilitada pela arte literária, o leitor refaz caminhos de descoberta e significação, reescrevendo a história. Carece a ele, no transitar por entre as tramas dos signos verbais e não verbais, encontrar o fio de Ariadne e enfrentar com coragem e ousadia as adversidades que antecedem a descoberta. Assim, podemos concluir que O conto da ilha desconhecida reatualiza os elementos imaginários da viagem, bem como os motivos labirínticos, tanto no plano do conteúdo, quanto no plano da expressão.

2. Leitura comparativa: o imaginário da viagem Ao analisar as duas obras de Saramago, Jangada de Pedra e O Conto da Ilha Desconhecida, observamos uma recorrência simbólica: o motivo da viagem. A viagem é metáfora do conhecimento na exploração do mundo e dos limites do próprio viajante. Esse caminho iniciático promove o encontro com o “outro” e consigo mesmo, constituindo-se como um modo de o viajante encenar a relação entre identidade e alteridade. Como matéria literária, tecida pelos fios do imaginário, a viagem não é apenas deslocamento individual no espaço geográfico ou no tempo, mas é também deslocamento social e cultural (MACHADO; PAGEAUX, 1997) - um exercício de movimento do olhar, engendrando a possibilidade de consciência de si e do outro. As duas narrativas analisadas demandam uma releitura da história de Portugal e das civilizações ocidentais pelas veias do mito literarizado. Assim, é possível desler e reler as conquistas e mazelas do empreendimento colonizador e entrever novos caminhos e novas alianças.

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Como matéria mítica, renova-se, nessas obras, a imagem de Ulisses como herói paradigmático que, segundo a crença, fundou a cidade de Lisboa (BORGES, 1983, p.39) e, como líder, convida seus companheiros a uma notável aventura. Igualmente, nos dois textos, é possível reler a figura bíblica de Noé, importante personagem para o imaginário cristão, imagem literarizada para semantizar a construção de uma nova humanidade. De acordo com Wunenburger (2007, p.49), os mitos, compartilhados pelos narradores orais, são renovados permanentemente e, no exercício da escritura, são literalizados, seus conteúdos são transfigurados, evidenciando sua perenização. Na passagem do mito tradicional para o mito literário, há processos de releitura, entre os quais a “bricolagem” (a reorganização da arquitetura narrativa, de forma que o mito seja decomposto e recomposto sob nova perspectiva, ou ainda a “transfiguração barroca”(WUNENBURGER,2007, p.50), em que “uma formação mítica se vê transformada por uma reescritura lúdica que atua por meio de inversões, de paródias, ou de aparências”(WUNENBURGER,2007, p.50) – ambos processos intencionalmente presentes nas obras analisadas neste ensaio. Cumpre assinalar, na esteira do referido autor: Trata-se então não de um retorno do mito, como se tratasse tão somente de adaptar um mito antigo às condições de sensibilidade ou de inteligibilidade atuais,mas de um retorno ao mito com uma intenção ficcional. O novo texto do mito é então obtido por procedimentos controlados de ajustes, de sobreposição, de miscigenação, de entrecruzamentos intertextuais[...], que com frequência não são destituídos, por seu turno, de humor, de ironia ou se sentido paródico. (WUNEMBURGER, 2007, p.51)

Essa rede imaginária de textos e contextos que se entrama na forma jogo literário convida-nos a retecer percursos da memória e a providenciar caminhos para o futuro. Nas palavras de Saramago: “o sonho é um prestidigitador hábil, muda a proporção das coisas e as suas distâncias, separa as pessoas, e elas estão juntas, reúne-as”. (SARAMAGO, 1998, p.50). E a matéria imaginária que compõe a literatura é de natureza onírica. Saramago organiza as duas narrativas com mitos que vão sendo semantizados para compor um imaginário social e político que lhe traduz o sonho diurno. Conforme Benjamin Abdala Junior, em De Vôos e Ilhas (2003, p. 18), inspirado em Ernst Bloch: “é o sonho de quem procura novos horizontes [...] Essa atitude é mais adequada do que o sonho noturno, que teima obsessivamente em olhar para trás, melancolicamente contemplando as ruínas”.

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As situações dramáticas apresentadas compõem-se como uma constelação de imagens que se orientam para a ideia de um deslocamento sobre si mesmo, uma procura cega por outro lugar sem que se percam os fios que conectam ao aqui e ao agora. Cada obra traz imagens novas, mas retecidas pelo mesmo fio articulador. Nos textos em análise, mostram-se mais personagens e menos ação, evidenciando um olhar bastante atento de Saramago ao humano e à construção de relações de humanidade. O imaginário do autor compõe-se com uma gramática poética, de complexa textura e aguda criatividade, que traz, associada ao motivo da viagem, a imagem do labirinto. Sua sintaxe de metáforas constitui um diagrama que orienta sentidos e dialeticamente não sentidos da experiência humana. Como sistema complexo de imagens, possui forma e força criativa não apenas para refletir a vida real, mas também para nela criar ressonâncias. Semelhante a um tecido de imagens que dinamiza a vida individual e coletiva, o imaginário se revela como um sistema aberto e ao mesmo tempo como fonte criadora e recriadora de sentidos. Para lembrar Bachelard, o imaginário opera com representações dotadas de poder de significação e de transformação. Outro ponto de conjunção das duas obras é a presença do fantástico como categoria (ROAS, 2014, p.8), como um modo de expressão, um propósito estético, “um discurso em constante relação com esse outro discurso que é a realidade, entendida sempre como construção social”. A presença desse recurso leva o leitor a experimentar inquietação, uma vez que lhe falta a coerência dos sentidos. Essa inquietação diante do sobrenatural desestabiliza relações sólidas e pouco questionadas e introduz novas possibilidades de realização. O fantástico, embora não sobreviva sem o sobrenatural, alimenta-se do real, cria espaço similar ao habitado pelo leitor e este espaço é invadido por um fenômeno desestabilizador – ameaça para a realidade, para a estabilidade e solidez que aparenta ter a realidade – e, nesse sentido, instaura algo de profundamente realista: o fato de que nenhuma realidade é sólida e imutável. “A narrativa fantástica põe o leitor diante do sobrenatural, mas não como evasão, e sim, muito pelo contrário, para interrogá-lo e fazê-lo perder a segurança diante do mundo real ”(ROAS, 2014, p.31). A intromissão do fantástico na narrativa cria, também, intencionalmente, rupturas com o modo realista como as crônicas de viagem tomavam corpo – gênero com o qual também as obras fazem diálogo, uma vez que foram permanentemente usadas nas comunicações

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coloniais. O tensionamento entre os elementos de realidade e de invenção vai aos poucos traduzindo a experiência subjetiva do autor e compartilhada com o leitor na busca indelével de novas referências a partir da intromissão do fantástico e a necessária reinvenção do olhar. É fato que o uso dessa categoria dá força ao projeto estético do autor e é um dos sinais de sua consciência de linguagem. Aliás, essa expressão consciente revela-se tanto no plano da forma quanto no do conteúdo, tangenciando muitas escolhas simbólicas que compõem o imaginário do autor e de seu tempo, o tom irônico do narrador, as rupturas gramaticais que realiza, entre outras opções intencionais que qualificam a produção estética de um texto, inclusive vislumbrando seu possível leitor. Sabe-se que, em diferentes sociedades e contextos históricos, há tipos específicos de leitores. Na contemporaneidade, destaca-se um leitor assemelhado a Teseu, que precisa escolher caminhos para chegar ao Minotauro para, depois, sair do labirinto. Diante da multiplicidade de portas, é preciso puxar o fio de Ariadne para vislumbrar saídas. No caso de obras hipertextuais, como as de Saramago aqui analisadas, fica sob a tutela do leitor a realização da obra, em face de um labirinto de possibilidades. Por suas múltiplas e ambíguas relações, a forma labiríntica permite representar, lembrando Bakhtin (2003), uma verdade que tem sempre uma expressão polifônica. Para Rosenstiehl (1988, p.252-3), há traços definidores do labirinto: o convite à exploração e a capacidade de voltar a pontos percorridos para obter alguma segurança; a exploração sem um mapa previamente elaborado, uma vez que não se tem a visão global; a exigência de uma inteligência astuciosa para que se prossiga e progrida sem cair em armadilhas, permanecendo em constantes circunvoluções. As obras de Saramago aqui discutidas reiteram esse dinamismo, o plano do conteúdo é estritamente coerente com o plano da expressão: autor, obra e leitor compartilham do mesmo desígnio – a circum-navegação. Como um entrelugar imaginário em que conflui o lúdico e o lúcido, aberto ao percurso-navegação, o hipertexto-labirinto se oferece ao leitor como desafio capaz de projetar, em novas paragens, relações do homem com o mundo e com outro. Esse efeito de deslocamento propiciado pelo jogo artístico da linguagem – imagens ação – sugerem, a partir das obras analisadas, a re-escritura de uma nova épica tecida pela ruptura e alimentada pelo desejo de um novo modo de estar vivo e de poder conviver.

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Nas duas narrativas, figura a viagem tomada também como escrita da viagem. A escrita torna-se pretexto para a busca da identidade – uma espécie de odisseia interna, como expansão do império interior. A escrita da viagem é metáfora escolhida para um novo encontro: do autor com o leitor. Ela atualiza o sujeito no seu permanente movimento de formação e de reformulações na busca de um lugar cultural. Conforme Hatoum: A identidade não deve ser uma adesão passiva ao real com que fomos enformados. Forma compacta, o estereótipo é uma fábrica de convenções, um antídoto contra a invenção. Nesse sentido, a identidade é uma busca. Para um escritor, essa busca se perde em um labirinto de vivências e experiências, mediado pelo aparato da linguagem.[...] (HATOUM, 1994,

p.77). A escrita da viagem é navegação, como gesto humanizador por excelência, escrita enigmática da vida e para a vida nos seus trânsitos e desígnios. Memória e porvir que fazem renovar o homem no seu percurso iniciatório pelos labirintos das formas sígnicas. A língua portuguesa é a possibilidade de expressão do gesto transfigurador e decifrador de novas paisagens por parte desse escritor lusitano. Nessa nova cartografia imaginária, a imagem-ação traduz-se como pátria líquida, jangada que se move à deriva da imaginação, barco-ventre que navega na extensão infinita dos possíveis e projeta, na fluidez das águas, o olhar ilimitado para novas navegações. Eis a dimensão metapoética e mitopoética da arte da escrita de Saramago.

Considerações finais Distintas marcas históricas singularizam as formas artísticas, as várias migrações e reinvenções de imagens, concepções e estruturas que se afirmam como metáforas para formulação de conceitos estéticos. Os espaços textuais, ao se retecerem em fluxos operativos, convocam a participação do leitor para complementar o diagrama de significações delineado pelo autor. Saramago, em seu criativo projeto estético e político, revela profunda consciência de linguagem, reinventando imaginários e incitando reflexões sobre a importância dos laços de afeto em resistência às severas forças do discurso hegemônico, construindo esteticamente um novo imaginário.

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Esse sistema organizador de experiências tecido em rede de imagens que se expressam em matéria metafórica singulariza o estilo e o contexto histórico-cultural do escritor, realizando intenções. Ao perscrutar as constantes semânticas que permitem aglutinar os conteúdos oníricos das obras – recurso metodológico favorecido pelos estudos comparados – salta à percepção o motivo da viagem, traduzida aqui como aventura da humana aprendizagem a realizar-se tanto no corpo inextrincável do texto, quanto nos fluxos labirínticos da existência. Como forma cifrada de manifestação humana, ato simbólico, por excelência, de expressão do imaginário, a literatura revela-se lugar de memória de onde se enseja ponderar sobre a condição humana e seus possíveis.

REFERÊNCIAS ABDALA JR., Benjamin. De vôos e ilhas: literaturas e comunitarismos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. _____. Estudos comparados: teoria, crítica e metodologia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2015. ARAUJO, Alberto F.; BAPTISTA, Fernando P. Variações sobre o imaginário: domínios, teorizações, práticas hermenêuticas. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Editora ForenseUniversitária, 2003. BORGES, J. L. Sete noites. São Paulo: Max Limonad, 1983. CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre o azul, 2006. _____. Formação da literatura brasileira. 8.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. v.1. CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006. _____ (org.). Literatura comparada no mundo: questões e métodos. Porto Alegre: L&PM/VITAE/AILC, 1997. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Allain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva et al. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1996. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _____. A Imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993. _____. Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. HATOUM, M. Literatura e identidade nacional. In: Remate de males. Campinas, v.14,1984. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1036

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MACHADO, Álvaro Manuel; PAGEAUX, Daniel-Henry. Literatura portuguesa, literatura comparada e Teoria Literária. Lisboa: Edições 70, 1981. MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004. MORIN, E. O paradigma Perdido. Portugal: Europa-America, 1999. ROSENSTIEHL, P. Labirinto. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa nacional, v.13,1988. ROAS, David. A ameaça do fantástico. São Paulo: Unesp, 2014. SARAMAGO, J. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. _____. A jangada de pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. WUNENBURGER, Jean-Jacques. O Imaginário. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

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Entre os fios que tecem a peneira d’água: uma leitura do imaginário por meio do regime diurno da imagem Among the treads that spin the water’s sieve: a reading of the imaginary through the daytime image regime Entre les fils qui tissent le tamis d'eau : une lecture de l'imaginaire via le régime diurne de l'image Heloisa Juncklaus Preis MORAES 1 Unisul, Tubarão, Brasil Willian Corrêa MÁXIMO 2 Unisul, Tubarão, Brasil Luiza Liene BRESSAN 3 Unisul, Tubarão, Brasil Resumo O texto literário e seus procedimentos poéticos expressam valores do mundo e, pelas lentes da teoria do imaginário, podemos entendê-lo como potência simbólica. A convergência, o isomorfismo e a totalidade das imagens, traços fundantes da antropologia do imaginário proposta por G. Durand (2002), estão presentes nas atitudes imaginativas que dão sentido à vida. Podemos observar o tempo e o espaço de determinada sociedade através das imagenssímbolos presentes nas artes. Este artigo propõe a análise do poema O menino que carregava água na peneira, de Manoel de Barros (1999), sob o enfoque do Imaginário, especificamente o Regime Diurno da Imagem. Palavras-chave: poesia; imaginário; regime diurno. Abstract The literary text and its poetic procedures express world values and, through the lenses of the imaginary theory, we are able to understand it as symbolic force. The convergence, the isomorphism and the totality of images, founding characteristics of the imaginary anthropology proposed by G. Durand (2002) are all present in the imaginative attitudes which give meaning to life. We can observe time and space of a certain society through symbolimages present in arts. This article proposes the analysis of the poem O menino que carregava água na peneira (The boy who carried water in the sieve), by Manoel de Barros, approaching the Imaginary, specially the Daytime Regime of Image. Key-words: poetry; imaginary; daytime regime.

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Literatura, imaginário e o regime diurno da imagem Partimos da função criadora (e não somente reprodutora) do imaginário. O imaginário é apresentado sob duas formas, uma inferior e outra superior: fantasia e imaginação, respectivamente. Para Turchi (2003, p. 20), a partir daí é possível afirmar que “ao imaginário abrem-se, assim, duas atividades distintas em sua vertente criadora: a literária e a científica”. O que nos proporciona conceitualmente que “o imaginário é o dinamismo criador, a potência poética das imagens, enfim, a potência da palavra humana que emerge do inconsciente coletivo” (TURCHI, 2003, p. 21). Sendo assim, nosso estudo aproximará a teoria do Imaginário, desenvolvida Gilbert Durand em As Estruturas Antropológicas do Imaginário (2002), mostrando como estão representados, simbolicamente, os fenômenos naturais e os animais no imaginário humano, principalmente aqueles que se relacionam com a água e suas construções simbólicas. Nossa proposta de estudo busca percorrer a teia que tece o movimento do Menino que carregava água na peneira, um poema de Manoel de Barros (1999), perscrutando os fenômenos imaginários suscitados na inter-relação do menino, da peneira e da água e como são considerados na perspectiva do estudo durandiano, observando também como os autores do imaginário constroem um trajeto antropológico sob a ótica do Regime Diurno de Imagem. Desde sempre, o homem procura dar sentido às coisas. Assim, inerente ao ser humano estão os atos de modificar, criar, inventar e dar sentido ao mundo, sendo que, muitas vezes, faz isso impulsionado por uma atividade da mente, a imaginação. Por muito tempo, as ciências naturais e o predomínio da razão guiaram a sociedade por meio da objetividade. Na contemporaneidade, os estudos culturais reformularam-se com suporte das Ciências Sociais e impulsionaram os estudos das teorias sobre a subjetividade. Bachelard apresentou por meio de seus escritos, que a organização do mundo referente às relações existentes entre os homens, a terra e o universo não provém de uma série de raciocínios e sim da elaboração de uma atividade da mente que considera as emoções. O símbolo permite estabelecer uma relação entre o “eu” e o “Mundo” e que os quatro elementos (terra, ar, água e fogo) são os impulsionadores da imaginação. Para Turchi (2003, p. 23), em sua obra que relaciona o imaginário aos gêneros literários, Bachelard destaca a semântica dos símbolos já que o autor: constrói uma fenomenologia do imaginário que permite, por intermédio do devaneio poético, ultrapassar os obstáculos do compromisso biográfico do poeta e do leitor, colhendo o símbolo na sua plenitude. Um dos fundamentos Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1039

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básicos do pensamento bachelardiano consiste em perceber o simbolismo imaginário como dinamismo criador, amplificação poética de cada imagem concreta, e como dinamismo organizador, fator de homogeneidade na representação. Desta forma, o símbolo, pertencendo a uma semântica especial, possui, não apenas um sentido artificialmente dado, mas um poder essencial e espontâneo de repercussão, quanto os encadeamentos dos símbolos se regem pelas ressonâncias, pelas afinidades ocultas que residem no seu conteúdo material, de natureza semântica. (BACHELARD, 1978 apud TURCHI, 2003, p.23)

Observando a produção de sentido sob o ponto de vista teórico de Gilbert Durand, simbolizar faz parte da condição humana, entretanto ele o trata como o imaginário e não como simbolismo, sendo que o símbolo é uma forma de expressão do imaginário. Considerando a dimensão simbólica, é necessário perceber que o símbolo se caracteriza pela sua ambiguidade e pela sua infinidade de significados. Ao estruturar sua tese, que deu origem ao livro As Estruturas Antropológicas do Imaginário, Durand (2002) buscou uma nova forma de categorizar as imagens partindo de uma classificação estrutural não reducionista. Sua análise apontou para uma dualidade no mundo, da qual ele nomeou como regime diurno e regime noturno. Naturalmente, os símbolos se reorganizam em torno de núcleos convergentes formando uma constelação de imagens, com estruturas isomórficas tal como os símbolos convergentes. O isomorfismo dos schemes, dos arquétipos e dos símbolos encontra-se na constelação de imagens que se transformam em representações imaginárias definidas e relativamente estáveis, formando as estruturas. Os schemes estão ligados aos gestos e às pulsões inconscientes, estabelecendo relação entre os gestos corporais e as representações, caracterizando-se como o nível mais abstrato da imagem. Os arquétipos mantêm sua adequação ao scheme, mantendo uma universalidade, mas têm forma dinâmica e estrutura as imagens. Em função do texto em análise, aprofundaremos, adiante, a noção de arquétipo. Estas duas etapas anteriores motivam “as grandes constelações simbólicas” estudadas por Durand (2002, p.59), partindo “de uma concepção simbólica da imaginação, quer dizer, de uma concepção que postula o semantismo das imagens, o fato de elas não serem signos, mas sim conterem materialmente, de algum modo, o seu sentido”. Os mitos, utilizando “o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em idéias”, explicando um esquema ou um grupo deles. O autor refere-se às imagens a partir da identificação de significados intrínsecos às mesmas, recorrentes em culturas de diversas localidades e temporalidades. A convergência, o Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1040

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isomorfismo e a totalidade das imagens, traços fundantes da antropologia do imaginário proposta por G. Durand (2002), estão presentes nas atitudes imaginativas que dão sentido à vida e orbitam entre dois pólos: as intimações subjetivas e as interpelações socioculturais. O essencial da representação e do símbolo está presente nestes dois marcos reversíveis a que o autor (2002, p. 41) chamou de trajeto antropológico: “a incessante troca que existe ao nível imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social”. A capacidade inata de imaginar alivia o drama da aventura humana diante da finitude: da noção e consciência do tempo à maldição tenebrosa da morte. A imaginação é autônoma, espontânea e atemporal e, por isso, capaz de driblar a voracidade do Cronos, vencer a negrura da morte e triunfar perante o destino. Para Durand (2002, p.123), “a imaginação atrai o tempo ao terreno onde poderá vencê-lo com toda facilidade”. Se há diferentes formas de representar o imaginário humano pela linguagem, segundo Turchi (2003), uma eufemização frente ao tempo, à morte e ao destino, na interpretação dos textos poéticos, o mito, pelo discurso, apresenta e atualiza suas imagens arquetipais e se racionaliza. Este percurso se evidencia na metamorfose hídrica (e híbrida) do texto intitulado O menino que carregava água na peneira, de autoria de Manoel de Barros (1999), que aqui é analisado. No texto, a metáfora da liquefação temporal se fundamenta nas antíteses, por intermédio do dualismo e da ambivalência da água, límpida e ao mesmo tempo escura e fatal, características do Regime Diurno da imagem, da representação, da consciência e da fantasia. O Regime Diurno, segundo Durand (2002, p. 179), caracteriza-se “(...) por constelações simbólicas, todas polarizadas em torno dos dois grandes esquemas (schemes), diairético e ascensional, e do arquétipo da luz”. Para o autor, pela atitude heróica do cetro e do gládio, as imagens, no regime diurno, fazem frente às fases (e faces) do tempo: às instâncias negativas dos símbolos teriomorfos (da animação e da animalidade), nictomorfos (das trevas) e catamorfos (do abismo e da queda). Para Durand (2002), o Regime Diurno é o Regime da Antítese que culmina com a vontade de transcender diante do medo e da fuga do tempo. O tempo que, no texto, apropriase de uma faceta teriomórfica, sinônimo de “angústia diante do devir”, para Durand (2002, p. 121), é análogo ao crepúsculo e às trevas do elemento mineral água: (...) “a água que escorre é amargo convite à viagem sem retorno: nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio e os

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cursos da água não voltam à nascente. A água que corre é figura do irrevogável”, complementa Durand (2002, p.96). Ainda, orientação simbólica catamórfica, cuja queda pelos efeitos do tempo (da vertigem, da gravidade e da punição) - tem como consequência a própria morte. Para Durand (2002), no Regime Diurno, o cetro e o gládio manifestam-se por esquemas ascensionais, diairéticos e espetaculares. Os símbolos ascensionais são sinônimos de elevação, verticalização, de novo impulso, de potência: “a ascensão é, assim, a ‘viagem em si’, ‘a viagem imaginária mais real de todas’ com que sonha a nostalgia inata da verticalidade pura, do desejo e evasão para o lugar hiper ou supraceleste (...)” (DURAND, 2002, p. 128). No texto sob análise, estes símbolos ascensionais, evidenciam-se na “reconquista da potência perdida” (op cit, p. 145), por intermédio do menino ‘peralta’, capaz de ser, estar e fazer em qualquer tempo e lugar. Além disso, para Durand (2002), a atitude diairética, ou seja, de divisão e de decomposição, também se estrutura enquanto enfrentamento positivo perante a ‘certeza’ da morte. Na poesia, os símbolos diairéticos estão representados, em especial, pelos fragmentos dos “despropósitos e peraltagens” do menino, seja em seus comportamentos, com os irmãos e com a mãe. O celeste e o luminoso, sob o olho e o olhar da transcendência, são características dos símbolos espetaculares, em complementação aos ascensionais e diairéticos. Pelo manuseio das palavras, no texto, o menino concretiza um isomorfismo com a luz e a soberania, tornando, pelo domínio da linguagem – conforme Durand (2002) – símbolos e coisas perenes. Essa estrutura esquizomorfa é guiada por três importantes constelações de imagens: ascensional, cujo símbolo está relacionado ao scheme de elevação; as espetaculares, onde ocorre o isomorfismo entre o céu e o luminoso, entre a coroa e a aura; e o símbolo diairéico, que equivale à separação cortante entre o bem e o mal. Os símbolos ascensionais se colocam como a reconquista da potência perdida (escada, flecha, asa, vôo, montanha), os espetaculares (luz, brilho, sol, ouro, céu, azul, o olho e o olhar – visão, a palavra) e diairéticos (armas, casa, água, terra, fogo, ar), estes constelam como fiéis contrapontos à queda, às trevas e aos compromissos animais ou carnais. Estes símbolos são confirmações de que a imaginação atrai o tempo e a morte ao terreno da eufemização, onde ela poderá vencê-los com facilidade. Neste ‘reino’ de pensamentos transcendentes, manifestos pelo Regime Diurno e, por conseguinte, na poesia, evidenciam as quatro estruturas do Regime Diurno da representação:

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a) o recuo, a perda do contato com a realidade, o autismo, cujo processo simbólico contempla e significação subjetiva; b) o spaltung ou a faculdade de abstrair, num prolongamento da atitude autística; c) o geometrismo mórbido, corolário à simetria, ao plano e à lógica mais formal na representação e no comportamento; e d) o pensamento antitético, dos contrários. No texto, em suma, as estruturas esquizomorfas, que nada têm de patogênicas, segundo Durand (2002), povoam o universo poético (e perene) em que na/pela imaginação elementos e personagens misturam-se, sob a fluidez da água (da vida) e sob atitude heróica que, juntos, consubstanciam um arquétipo de luz, do Regime Diurno. O Regime Diurno é representado por uma estrutura heróica, que busca representar a vitória sobre o destino e sobre a morte, onde se coloca em confronto os contrários, os símbolos trazem a noção de potência (pulsão), dilemas, iluminação, contradição, que só pode ser atingido por vontade de poder, dominante de posição (verticalidade), masculinidade, ascensão, exibição, liberdade, clareza, razão, objetividade, sempre em dicotomia com a exclusão dos próprios termos.

Arquétipo do Inocente Jung (2002) concebe os arquétipos como estruturas psicológicas que servem de alicerce para toda e qualquer construção humana. O arquétipo, como sendo imagem inicial, que viabiliza a concretude dos gestos (schemes), pode ser compreendido enquanto marco zero que fundamenta, gere, orienta, ampara, estrutura e reestrutura as nossas ações. Como já propôs Pitta: Imagem primordial de caráter coletivo e inato, é o estado preliminar, zona matricial da ideia (JUNG). Ele constitui o ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais. Ele é uma forma dinâmica, uma estrutura organizadora de imagens, mas que está sempre além das concretudes individuais, biográficas, regionais e sociais, da formação das imagens. (2005, p. 18).

Os arquétipos são desencadeados durante toda nossa vida “e a partir daí coordenam o campo psicológico. Apesar de presentes em todos nós, sua intensidade e momento de manifestação são imensamente variáveis de um ser humano para outro, tanto quanto a voz, a audição ou a forma de pensar e de sonhar” (BYINGTON, 1994, p. 7). São muitos os arquétipos resultantes do processo de vivências e das experiências humanas, pesquisados por Jung. De acordo com as experiências, a cultura e até mesmo a ambiência cultural de cada

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sujeito os arquétipos podem ser apropriados e utilizados de diferentes formas. Podemos citar o guerreiro, o bobo, o Matriarcal, o Patriarcal, o da Alteridade (da Anima, no homem e do Animus, na mulher), da Totalidade, do Herói, da Bruxa, do Velho sábio, da Morte, do MestreAprendiz, do Caçador, do Líder, do Sacerdote, do Inocente, entre outros. O Matriarcal, o Patriarcal, o da Alteridade (Anima e do Animus) e o da Totalidade são os principais arquétipos que compõem a nossa formação social. Além destes, uma série de outros arquétipos são discutidos, especialmente nos textos literários. No entanto, no objeto desta pesquisa, o foco estará direcionado no arquétipo do inocente, sob o qual relacionaremos o simbolismo do poema O Menino que carregava água na peneira, de Manoel de Barros (1999).

Imagens humanas e imagens d’água Analisar um texto poético é, antes de tudo, uma grandiosa tarefa, quase sempre, inesgotável. Mergulhar nas entranhas das palavras poéticas traduz-se como um exercício de deleite, pois: a poesia é uma metafísica instantânea. Num curto poema deve dar uma visão de universo e o segredo de uma alma, ao mesmo tempo um ser e objetos. Se simplesmente segue o tempo da vida, é menos do que a vida; somente pode ser mais do que a vida se imobilizar a vida, vivendo em seu lugar a dialética das alegrias e dos pesares. Ela é então o princípio de uma simultaneidade essencial, na qual o ser mais disperso, mais desunido, conquista unidade (BACHELARD, 1986, p. 183).

Bachelard é um dos precursores dos estudos da imagem e em quem Durand ancora seus estudos sobre o imaginário. Para se empreender uma análise do Regime Diurno da Imagem, nossas reflexões prosseguem a partir de alguns pressupostos bachelardianos sobre a imagem que suscita da água e de sua relação com a natureza humana, uma vez que o texto que elegemos como recorte para a análise é do poeta goiano Manoel de Barros (1999) intitulado O menino que carregava água na peneira. O título traduz uma imagem marcada pela transitoriedade dos elementos. Se pensarmos nos três elementos substantivos do título do poema, já mergulharemos numa bacia semântica cuja ideia mais sugestiva é a fluidez do tempo: o menino (que desejamos eterno em nós), a peneira (que filtra os elementos) e a água (em seu movimento de passagem pelos furos da peneira) movimentam a própria passagem da vida. Analisando sob este viés, a água é o que Bachelard (1997) vê como um elemento transitório, ligado a um tipo de destino que se Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1044

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metamorfoseia incessantemente: “o ser ligado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente” (BACHELARD, 1997, p. 7). O filósofo discorre sobre as superficiais águas claras e brilhantes, as águas vivas, que renascem a partir de si mesmas, e as águas amorosas. A água é o elemento das misturas. A água em Barros também é uma água viva que se roubada pode sair correndo e encontrar os irmãos do menino: “o ser que sai da água é um reflexo que aos poucos se materializa; é uma imagem antes de ser um ser, é um desejo antes de ser uma imagem” (BACHELARD, 1997, p.36). Neste caso, tão etéreo quanto a água na peneira é roubar um vento. As imagens suscitadas no poema de Barros (1999) nos sugerem outras imagens tão caras ao tempo que já se esgotou e ao tempo do devir. Bachelard (1997) nos ensina que a água é detentora de forças imaginantes que podem guiar a uma significação muito maior e pertinente ao fazer literário. A água é realmente o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser votado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente. A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que perfura o céu com suas flechas; a morte cotidiana é a morte da água. A água corre sempre, a água cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal. Em numerosos exemplos veremos que para a imaginação materializante a morte da água é mais sonhadora que a morte da terra: o sofrimento da água é infinito (BACHELARD, 1997, p. 06 e 07).

Por nossa própria experiência cotidiana com o elemento água, somos testemunhas da facilidade com que ela recebe em si boa parte de outras essências, líquidas ou não. Facilidade com a qual também compreendemos tal receptividade do material no âmbito da imaginação, pois, como escreveu Bachelard (1997, p. 98), “para o devaneio materializante, todos os líquidos são águas, tudo o que escoa é água, a água é o único elemento líquido”. Entende-se, assim, que as imagens possuem uma dinâmica criadora e que se materializam na experiência do corpo, seja em movimentos físicos de expressão linguística ou na labuta muscular que se movimenta, que possui seus ritmos, pelo gestual e pela consciência temporal descontínua, marcada de instantes que se sucedem arrastados pelo Cronos que marca a finitude. “Somos transportados na busca imaginária por materiais fundamentais, por elementos imaginários que possuem leis idealísticas tão exatas quanto às leis experimentais” (BACHELARD, 1990, p.13).

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Embrenhemo-nos, então, nas teias que tecem a peneira de Barros, em seu menino e nas águas que constituem o triângulo do imaginário que, em cadeia, tecem o trajeto antropológico do regime diurno das imagens.

Carregar água na peneira: a potência poética O universo poético abrange planos diversos, mas todos se sustentam na palavra que ao poema deu forma. O poema é um “ser de palavras”, que se caracteriza por sua interdependência em relação a elas, ao mesmo tempo em que luta incessantemente por transcendê-las. Barros (1999) refere-se a um menino diferente, contextualizado-o sob símbolos da natureza para representar suas intenções de sentido. A escrita, nesse caso, proporciona ao menino a liberdade, uma das características do Regime Diurno durandiano (2002). O menino, no texto, pode ser o que quiser pois, por meio da escrita, encontrou a possibilidade de criar um mundo próprio. O autor utiliza metáforas para enfatizar a dimensão simbólica de sua intenção. Trata-se de uma forma específica de linguagem, que tem o poder de recriar e reconstruir o mundo, trabalhando a imaginação. Possivelmente seja justamente essa possibilidade de invenção, potência criadora, que compõe o elo entre a poética de Manoel de Barros e o imaginário que propomos como fundamentação de análise. A poética, em seu processo de criação, ao se utilizar das palavras que migram seus sentidos na constelação de imagens e no isomorfismo dos símbolos, não se limita apenas à aparição das palavras, mas à superação do próprio sentido por ele mesmo. A poesia tem como característica a subjetividade, cuja palavra enquanto signo não vem com a significação pronta. O poema em análise traz a dicotomia do “cheio e vazio”, na intenção de mostrar o “cheio” no sentido de comum e o “vazio” como incomum, ou seja, uma infinidade de possibilidades não comum a todos. O texto enfatiza a questão do tempo, como uma previsão de futuro que a mãe faz em relação ao menino. As palavras apontam à antítese, característica do Regime Diurno: cheio e vazio; pedra e água.

(...) Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

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A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos. (...)

Ao “encher os vazios com suas peraltagens”, através da antítese cheio-vazio, o texto saliente a postura dominante, atribuindo escolha ao destino mesmo diante de elementos que caracterizam a perenidade. Preencher os vazios com palavras, dando-lhes sentido, também é função do fazer poético, tornando o instante, eterno. O menino, ao segurar a água na peneira com o fazer poético, representa a sua potência de vida. Símbolo marcante é a água. Elemento simbólico citado por Bachelard que funciona como “hormônio da imaginação”, e também por Durand, como símbolo ascensionista diairético, nesse caso como a possibilidade de um futuro vitorioso e feliz comparado à realidade vivida pelo menino naquele momento. A noção de potência da água e do menino sonhador coloca as peraltagens como possibilidade de vida. A linguagem poética é materialização desta potência. No texto, o arquétipo do inocente é evidenciado na busca por segurança que é despertada pelo medo constante do abandono. O amparo, a força e a motivação são situações que devem constantemente ser expressadas por aqueles que se encontram a sua volta. Semelhante ao modo como a mãe do menino que carregava água na peneira faz quando o apoia e o incentiva. O arquétipo do inocente manifesta-se também nestes mesmos sonhos que surgem na mesma vertente em que são conduzidos para outros afluentes pelo fluxo da corrente fluvial. Sabe-se apenas é que estas águas vão prover um mar de possibilidades e infinitos arquitetados pelo menino, sustentados pela legitimação da sua mãe e conduzidos pela sua inocência de desbravar o mundo pelas veredas do imaginário. Rejeitar a verdade, de modo a não se permitir ver ou saber o que realmente está acontecendo é uma das maiores características deste arquétipo. Negar algo só é permitido se for no intuito de descaracterizar a impossibilidade de vivência de uma situação extrema. O inocente tem como imagem

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primordial a possibilidade, o infinito, a máxima de que tudo é possível, não importa o que dizem os outros. Assim, percebemos que nossas possibilidades só se encerram quando não pudermos mais ver uma “flor brotar de uma pedra” ou quando não tivermos mais o “poder de pontuar a frase” e “cessar o vôo de um pássaro”. O inocente é protegido pela motivação do outro, mas também pela força contínua das águas que atravessam a “granulação da peneira”, por menor que ela seja. A legitimação do menino se estabelece pelo fluxo das águas que através da queda produzem energia que movimenta a vida, que só pode ser findada quando o nível deste rio baixar tanto que lhe permita secar.

(...) Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque gostava de carregar água na peneira Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando ponto final na frase. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor! A mãe reparava o menino com ternura. (...)

A escrita do menino, que lhe permite escolher a personagem que deseja ser, conferelhe o poder de “senhorar” o seu destino: a postura dominante frente ao devir, característica do simbolismo do Regime Diurno da Imagem. A subestrutura do autismo, ao se descolar do ambiente e de todas as agruras do destino, confere-lhe poder de autonomia. Através da escrita é possível mudar os cenários da existência. O menino, poeta, incorpora o poder vindo da potência: sua potência poética!

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A pureza do arquétipo do menino inocente se consolida no processo infinito de penetrabilidade da água. Na representação desse arquétipo, não existem barreiras, fronteiras, represas ou comportas que possam deter a força das águas, como uma infiltração, mesmo que silenciosa e indesejada, durante o seu fluir das ideias e da visualização do seu futuro. O ápice deste processo se instaura na contemplação deste fluir e no preenchimento destes espaços vazios por novas ideias, sonhos e possibilidades. Faz-se também através desta imersão, deste encharcamento, nesta “enchente de pureza e verdades” refutadas pelo simples prazer de se ser quem se quer neste momento. (...) A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.

Com todos os “despropósitos e peraltagens”, das críticas às suas esquisitices, com a escrita, o menino fazia prodígios: carregava água na peneira.

Considerações Finais Ao analisar o texto O menino que carregava água na peneira, de autoria de Manoel Barros, sob o enfoque do Regime Diurno da Imagem das estruturas antropológicas do imaginário, buscamos identificar as marcas simbólicas da narrativa. Símbolos que se transformam e se completam nos sentidos que o texto apresenta, em suas significativas relações entre o sonho, o ciclo da vida, a noção de potência e as imagens que se criam diante das impossibilidades. No texto de Manoel Barros (1999), observamos uma mãe que autoriza o sonho do menino de ir adiante, o zelo e o cuidado entre todos os elementos naturais que se criam e se transformam como os “espinhos na água”, “a casa sobre os orvalhos” e a “pedra que dá flor”, que nos permitem criar e viver toda a essência que alicerça o texto e protagoniza a vida em si. Podemos relacionar as cenas do texto com o imaginário e a potência poética das imagens. Os elementos da natureza servem de metáfora para o devir humano e sua representação no fazer poético. Para Jung (2002), o ar é o mesmo em todo o lugar, é respirado Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1049

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por todos, mas não pertence a ninguém, assim como os sonhos do menino, nas narrativas de Manoel Barros que se entrelaçam no que Jung chama de recipiente, que nunca podemos encher ou esvaziar por completo. Da mesma forma, a bacia semântica, e suas relações com a água, de Durand (2001) ao pensar o imaginário como reservatório-motor. “Pode-se dizer que o imaginário é o trajeto antropológico de um ser que bebe numa ‘bacia semântica’ (encontro e repartição das águas) e estabelece seu próprio lago de significados” (SILVA, 2003, p. 11). No poema analisado, a água apropria-se de sentidos múltiplos permitindo que ações imaginantes manifestem-se em permanente mobilidade criativa. Para Bachelard (1997), a água é o elemento da mistura, é um elemento transitório, ligado a um tipo de destino que se metamorfoseia incessantemente e traduz experiências de fluidez e maleabilidade. A água é uma realidade poética completa. As ações do menino nos fazem pensar que queremos ser melhores, queremos chegar mais próximo ao ideal humano e lançarmos uma trajetória heróica, que é proposta pelo menino, diante da vida e de todas as limitações que enfrentamos: “em todo adulto espreita uma criança – uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo, e que solicita atenção e educação incessantes. Essa é a parte da personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa” (JUNG, 2000). São esses despropósitos que fazem os corações “baterem” mais rápido e que conduzem nossas crenças em um caminho mais suave e leve. E como não compreender a legitimidade em criar atitudes imaginais, por meio da figura do menino, para suportar e combater os vazios e a angústia existencial. O encantamento do menino que carregava água na peneira nos remete ao pensamento de Bachelard (2001), que nos diz que o fazer literário é regido por fascinações. O ímpeto literário, para o autor, uma explosão da linguagem, é fruto da interdependência ativa entre imaginação e vontade. Diz Bachelard (2001, p. 6) que “a linguagem poética, quando traduz imagens materiais, é um verdadeiro encantamento de energia”. O fascínio produzido pela imagem de um menino que carrega uma peneira cheia de água nos sugere o indelével, o imensurável, a eternidade etérea tanto quanto a passagem inexorável do tempo, que tudo apaga e que tudo renova. O deleite literário num curto poema deve dar uma visão de universo e o segredo de uma alma, onde tudo transcende, tudo se inova e tudo que perece também renasce na potência literária de cada palavra.

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Mia Couto e a Simbologia de Barcos: Navegar, mais do que Possível, é Sonhável Mia Couto and Boats Simbology: Navigate, more than Possible, is Dreamable Mia Couto et les Symboles de Bateaux : Naviguer, plus que possible, est rêvable

Luara Pinto MINUZZI 1 PUC do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Resumo Buscar, nos meandros de O outro pé da sereia, romance do escritor moçambicano Mia Couto, quaisquer referências a barcos, barcas, naus, navios, canoas (enfim, a transportes aquáticos em geral) e perceber como a simbologia referente à viagem pela água em busca de aventuras, em busca daquilo que é completamente desconhecido, do que está completamente distante, relaciona-se com e enriquece tais narrativas são os principais objetivos desta pesquisa. Já a teoria do trabalho embasa-se, principalmente, nas obras do antropólogo Gilbert Durand, do filósofo Gaston Bachelard e do teórico das religiões Mircea Eliade, no que diz respeito às questões relacionadas ao imaginário e a seu funcionamento. Palavras-chave: Mia Couto; teorias do imaginário; literatura africana; simbologia de barcos. Abstract Search, in the narrative of O outro pé da sereia, novel by the Mozambican writer Mia Couto, any references to boats, barges, ships, vessels, canoes (finally, water transport in general) and realize how the symbolism related to journeys by the water in search of adventure and also in search of what is completely unknown, of what is quite far, relate to and enrich such narratives are the main objectives of this research. The theory of this work was grounded mainly in the works of the anthropologist Gilbert Durand, the philosopher Gaston Bachelard and theoritician of the religions Mircea Eliade, in regards to issues relating to the imaginary. Keywords: theories of the imaginary; Mia Couto; african literature; symbologies related to boats. Introdução "As armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Nov Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas 1

[email protected]. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1052

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Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando: Cantando espalharei por toda parte Se a tanto me ajudar o engenho e a arte." (CAMÕES, 2011, p. 11)

Naus, navios, barcos, barcas, canoas, jangadas: tantos são os tipos de transportes aquáticos quanto as diferentes simbologias das quais esses elementos foram carregados ao longo dos tempos. Se com Caronte (e com diversos outros barqueiros) essa simbólica é conduzida para a questão do transporte rumo ao mundo dos mortos, Jung aponta o leme em direção ao simbolismo da viagem de barco como um mergulho no inconsciente, nas origens – o que faz com que o mar possa também adquirir atributos maternos; se o mar é o único meio pelo qual os europeus poderiam chegar a terras longínquas, estranhas e desconhecidas, se essa jornada representava uma aventura cheia de perigos com destino a lugares fantásticos, ela também pode representar uma ida ao literalmente fantástico, ao mágico, ao imaginário, ao literário – sendo o ponto de partido o mundo real, concreto, não literário. Esses meios de transporte revestem-se de inúmeros significados – tudo depende para onde a bússola do imaginário de cada povo, de cada tempo, de cada indivíduo, de cada texto de literatura, aponta. A possibilidade para o simbolismo dos barcos escolhida para aqui ser discutida 2 é a busca pelo desconhecido e por aventuras – mesmo que essa busca represente grandes perigos e um real risco de vida. Essa viagem de barco como símbolo da procura pelo misterioso, pelo oculto, pelo diferente e pelo longínquo é bastante recorrente dentro da trama que se passa no século XVI do romance O outro pé da sereia, do escritor moçambicano Mia Couto 3: tal

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Este artigo é um excerto adaptado da dissertação de mestrado em Teoria da Literatura, defendida em 2012, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O título do trabalho é "Mia Couto e a simbologia de barcos: navegar, mais do que possível, é sonhável".

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Como uma forma de situar o leitor, apresentarei o resumo da narrativa pertencente ao corpus desta pesquisa. O outro pé da sereia é um romance que navega por duas histórias, por duas narrativas distintas: uma delas, ambientada nos anos 2000, foca-se em Mwadia, filha mais nova de Dona Constança, que deixara, há bastante tempo, a casa materna e sua cidade, Vila Longe, para morar com o marido, Zero Madzero, em um lugar ermo e distante, chamado pelo casal de Antigamente. Sem notícias de seus parentes, a moça volta à cidade natal, a fim de encontrar um lugar seguro para deixar a estátua de Nossa Senhora encontrada pelos dois na margem de um rio. Já a segunda, passada no século XVI, relata a viagem de navio de uma comitiva portuguesa ao reino de Monomopata, no interior de Moçambique – seu objetivo era levar a fé cristã aos "infiéis". Um dos elos entre as histórias é a imagem de Nossa Senhora, estátua que primeiro vai a bordo da Nau Nossa Senhora da Ajuda e que depois fica aos cuidados de Mwadia. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1053

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narrativa mostra como, em 1560, portugueses e escravos negros navegam pelas águas do oceano Índico na nau Nossa Senhora da Ajuda. O jesuíta Gonçalo da Silveira vai a bordo e seu objetivo é levar a fé católica à corte do Império de Monomotapa, localizada no interior de Moçambique, e ao seu imperador Nogomo Mupunzangatu. Justamente sobre essa meta do religioso e dos colonizadores portugueses (e de navegadores em geral), discute o filósofo Gaston Bachelard. O teórico (2002) explica que nenhum objetivo simplesmente, puramente prático explica e justifica uma viagem pelo mar, devido ao imenso risco, principalmente na época dos primórdios das grandes navegações (justamente aquela em que a narrativa da nau Nossa Senhora da Ajuda, de O outro pé da sereia, se passa), envolvidos em tal empreitada. Sobre essa questão, fala José Mattoso (1998), especificamente, em relação ao imaginário português marítimo medieval: o autor enfatiza os perigos dos mares e dos oceanos, pois existia a crença de que, quanto mais o homem se afastava da costa, do mundo habitado, maior o caos, maiores e mais estranhos os monstros e animais que poderiam ser encontrados. Bachelard também fala sobre esse Mar das Trevas (o Mare Tenebrarum), um "[...] mar imaginário que arrebatou a Noite em seu seio" (BACHELARD, 2002, p. 106), onde os antigos navegadores localizaram sua fonte de maior medo, insegurança e ansiedade. Segundo o filósofo, esse mar tenebroso é um lugar apavorante demais para o homem ser capaz de imaginar. Dessa forma, "[...] o real singular se apresenta como um além do imaginável – inversão curiosa que mereceria a meditação dos filósofos: ultrapasse o imaginável e terá uma realidade suficientemente forte para perturbar o coração e a mente" (Ibid., p. 106). O mundo, assim, era dividido entre espaço cósmico (o conhecido, o habitável) e o orbe terrestre, "[...] donde nascem toda a espécie de excessos, a confusão e o perigo mortal" (MATTOSO, 1998, p. 55). Ao se aventurar pelo oceano, o homem estaria se aventurando pela morte. Como aponta o narrador de O outro pé da sereia, os próprios mapas já evidenciavam essa crença na oposição entre o orbe terrestre e o espaço cósmico, entre o conhecido e desconhecido, entre o perto e o longe: "Tudo fora nomeado como se o mundo fosse uma lua: de um só lado visível, de uma só face reconhecível" (COUTO, 2006, p. 62). No livro, são relatados esses perigos enfrentados no mar, o que ressalta quão fundamental, para os portugueses, era o serviço prestado por eles aos seus colonizados, a ponto de os fazerem deixar seus portos seguros. Ao longo da jornada, a nau depara-se com terríveis tempestades e muitos tripulantes morrem devido a pestes que, silenciosamente, se

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disseminam entre todos, ricos ou pobres, mas muitos também falecem devido à fome – a situação era tão crítica que o médico a bordo, o goês Acácio Fernandes, explica: "sofria-se de castigos pela ousadia de navegar para além do horizonte, fazendo destino onde os céus se separam da terra" (COUTO, 2006, p. 111) – e Bachelard, acerca da recorrência da imagem dos perigos e das tempestades em alto mar, ressalta: "Haverá tema mais banal do que o da cólera do Oceano?" (BACHELARD, 2002, p. 178). Entretanto, não é apenas com tempestades e com climas adversos que uma viagem por alto mar traz perigos; o fato de o sol estar brilhando e de o tempo estar bom também pode anunciar desastres: "Há vinte dias que as naus haviam saído de Goa. A viagem demorava mais do que o esperado por acumulação de períodos de acalmia, com caladas consecutivas e um permanente murchar de velas" (COUTO, 2006, p. 157). Uma viagem mais longa do que o planejado significava menos comida e água e, consequentemente, mais óbitos, principalmente entre os escravos. Além disso, falando sobre as possíveis ameaças de se chegar próximo à praia, devido aos recifes e corais que poderiam estragar o navio, o capitão da nau Nossa Senhora da Ajuda sentencia: "Traiçoeiro como é, o mar não devia ter nome masculino. Devia era chamar-se 'a mara'" (Ibid., p. 249). Assim, a feminilidade vista a partir de seus aspectos tenebrosos e negativos é relacionada com as águas traiçoeiras, com as águas escuras, profundas e dormentes que Bachelard (2002) conecta à morte. Por tudo isso, por todo esse risco, sobre um dos escravos a bordo do navio, o narrador afirma que "[...] pediu a bênção para o destino cego que o aguardava, para além do oceano" (COUTO, 2006, p. 314). Para uma viagem com destino ao desconhecido, ao misterioso, são necessários todos os tipos de proteção: os materiais e os espirituais. Além disso, é preciso ressaltar o fato de esses perigos encarados no mar irem além de fenômenos físicos ou naturais: Quando saíra de Goa, ainda na proteção do estuário, a viagem surgia como um caminho dócil. Mas quando o mar se desdobrou em oceano e o horizonte todo se liquefez, lhe veio uma espécie de tontura, a certeza de que o chão lhe fugira e a nau vogava sobre um abismo. Silveira não tinha dúvida: chegara ao irreversível momento em que a água perde o pé e o mar abandona o suave maneirar dos rios. Dali em diante, o mundo se resumiria àquela nau, rompendo caminho entre domínios que eram mais do Diabo que de Deus (Ibid., p. 54 e 55).

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Dessa forma, é possível perceber a ambivalência do elemento aquático, que pode ser benéfico ao homem quando misturado com os outros três elementos, terra, fogo e ar (como estavam os portugueses no início da jornada, "na proteção do estuário"), ou terrível quando isolada, ou seja, quando longe da costa, quando se transforma em oceano e não há nada além de água a ser visto, como salienta Mattoso: Uma coisa é a água como elemento, quando entra em composição com os outros três, porque então é essencial, fecunda e benéfica, outra como lugar onde se encontra praticamente isolada de todos os outros elementos, porque aqui é, pelo contrário, esterilizante, perturbadora e mortal (MATTOSO, 1998, p. 51 e 42).

A água isolada, a água do mar é, de acordo com Bachelard (2002), inumana, pois não é capaz de servir, de ser utilizada pelos homens diretamente – dessa forma, a água terrestre tem a supremacia sobre a marítima. Durand igualmente disserta sobre a ambiguidade desse elemento, mas também do próprio oceano, mostrando que, apesar de terrível, o mar aberto possuía suas fascinações e que o português começou a desenvolver uma visão diferente em relação a viagens marítimas, o que contribuiu para a sua liderança no tocante às grandes navegações: Oceano claramente ambíguo, "matéria de desespero", baptizada Cabo das tormentas por Bartolomeu Dias (surgindo ao Gama em todo o seu horror no canto V de Os Lusíadas), mas simultaneamente "Cabo da Boa Esperança", tal como foi baptizado por D. João II, o "novo navegador", Adamastor ou Tétis (DURAND, 1997, p.91).

Os perigos e o medo relacionados ao fato de o elemento água estar totalmente afastado dos outros elementos quando em alto mar é igualmente evidenciado no seguinte excerto do romance de Mia Couto: "O mar é um infinito sem fundura: navio que se perdesse no escuro era como se tombasse no último dos abismos" (COUTO, 2006, p. 59). Mwadia (personagem da segunda história do romance que se passa no século XXI), fingia estar sendo visitada por espíritos (e, nesse caso, pelo espírito de Nimi Nsundi, escravo pertencente à tripulação da nau Nossa Senhora da Ajuda) para impressionar um casal de americanos, que viajaram ao continente africano em busca de uma "África original". Em um desses momentos de atuação, ela afirma: "Água, é tudo água, repetia Mwadia. São ondas e ondas, rios cujas margens são rios, vou num oceano sem fim" (Ibid., p. 233).

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Devido ao terror de estar em meio à água pura, à água distante dos outros elementos, distante da terra, Nimi Nsundi carrega sempre consigo um saco com areia de sua região de origem. Quando dá de presente uma dessas bolsas cheias da terra de Goa para Dia Kumari, o escravo explica para a aia: Essa era a tradição dos escravos: dava sorte navegar levando sacos com terra. Os que embarcavam nas naus – os anamadzi, os da água, como lhe chamavam – obedeciam a esse preceito. Quem não levasse consigo, numa bolsa de couro, uns torrões da sua terra natal corria o risco de se perder para sempre entre as névoas do mar (Ibid., p. 109).

Dessa forma, um pouco do elemento terrestre faz-se necessário quando se está viajando pelo oceano, a fim de que os navegadores não se percam por essa água infinita. Além disso, quando os europeus criam suas rotas de navegação e, assim, o totalmente desconhecido transforma-se em conhecido e íntimo, a matéria aquática modifica-se para a terrestre, o que reforça esse seu simbolismo relacionado à morte e aos perigos: o narrador comenta sobre como os portugueses desbravaram os cursos de água do interior da Zambézia, o que fazia com que "[...] o rio Mussenguezi se abrisse como uma estrada por onde o mundo chegasse e partisse" (Ibid., p. 306) – sendo que, nesse trecho, a palavra "estrada" remete à terra. E se o oceano representa os perigos e as ameaças, no Dicionário dos símbolos, organizado por Jean Chevalier, o navio surge como um contraponto, pois "[...] evoca a idéia de força e de segurança numa travessia difícil" (CHEVALIER, 1991, p. 632). Também para a tradição cristã, a qual pertencem os padres de O outro pé da sereia, o barco seria o local onde os crentes acomodam-se e protegem-se das ameaças e das tentações do mundo (CHEVALIER, 1991). Assim, a nau com nome de santa deveria representar para esses religiosos um porto seguro – e representa no sentido físico e material, abrigando-os das tempestades, da fúria e dos imprevistos do oceano. Porém, o que ocorre no plano espiritual é justamente o contrário do esperado: o padre Manuel Antunes é o primeiro a ter sua fé abalada ao ver o sofrimento que os portugueses traziam e infligiam aos africanos; posteriormente, Dom Gonçalo também fraqueja em sua crença, mas em uma intensidade menor que a de seu companheiro. Como mais um elemento a ser adicionado ao já grande inventário dos perigos que se enfrenta quando se navega para tão longe, Mattoso ainda cita os monstros encontrados tanto no mar quanto em pedaços de terra longínquos, extremamente afastados dos limites do que Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1057

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era considerado o orbe terrestre, a parte habitável do planeta: tritões, nereidas, delfins, monópodes, hípodes, ictiófagos (pertencentes, com certeza, aos domínios do Diabo dos quais fala o personagem Silveira). De acordo com o teórico, "[...] o mar é o elemento onde se encontram os seres mais excessivos, em maior número de espécies e mais híbridos e monstruosos. A vida animal não está nele sujeita à ordem, mas à confusão e ao caos" (MATTOSO, 1998, p. 54). O desconhecido gera tanta ansiedade no homem, que ele é capaz de criar as espécies mais terríveis para habitar essas longínquas terras: "Que vem a ser, afinal, uma forma horrorosa que ninguém nunca viu? É o ser que olhamos com os olhos fechados, é o ser de quem falamos quando já não podemos exprimir-nos. A garganta aperta-se, as feições convulsionam-se, congelam-se num horror indizível" (BACHELARD, 2002, p. 108). Durand ainda relaciona essa existência de monstros em lugares ermos e estranhos e o cristianismo: segundo ele, na tradição cristã, há uma enorme lista de religiosos que são capazes de dominar e vencer os monstros com a ajuda de uma cruz (lista da qual fazem parte S. Veron de Cavaillon e S. Beltrão de Comminges, por exemplo), o que ajudou a disseminar tal crença. A África, a partir do ponto de vista dos europeus, era um desses territórios fantásticos e terríveis, habitados por seres monstruosos, como fica claro no pensamento do padre: "Para Dom Gonçalo da Silveira, África não era tanto um lugar como um campo de batalha. [...] O menino [Gonçalo] tinha os olhos ávidos de histórias terríficas e, onde o pai pintava mouros e sarracenos, ele redesenhava monstros e assombrações" (COUTO, 2006, p. 252) – e tal pensamento, como fica claro a partir das explicações de Mattoso (1998), não é exclusivo do jesuíta, mas uma constante no pensamento medieval português, o que também explica Jorge Urrutia, em Leitura do obscuro: uma semiótica de África (2000): em inúmeros textos da época, os africanos aparecem como cães sem nariz ou boca, homens com os pés virados ao contrário ou com pés de cabra, etc.. Essa crença também não é específica do século XVI, como evidencia o pensamento da americana Rosie, quando está em um barco com destino à Vila Longe em pleno século XXI: "No percurso, Rosie espreitou as águas escuras, lentas e cansadas. Enconder-se-iam por ali traiçoeiros crocodilos, perigosos hipopótamos, insondáveis monstros?" (COUTO, 2006, p. 140). Além disso, é interessante perceber que a relação estabelecida pelos portugueses entre eles próprios e os africanos pode ser claramente vista a partir do Regime Diurno da Imagem,

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proposto por Gilbert Durand em As estruturas antropológicas do imaginário 4, devido ao caráter combativo e dicotômico desse contato: enquanto os negros são classificados como selvagens e estão ligados às trevas, ao inferno, aos monstros, ao inferior, ao barulho e ao caos 5, os europeus conectam-se com as características opostas a essas: eles são os seres das luzes, da ascensão, os seres ligados à pureza, ao branco e, consequentemente, ao Santo libertador e guerreiro, relacionado justamente a essa cor, como evidencia Durand (1997); os seres cuja missão é tornarem-se heróis para domar e transformar os primeiros. Tal dicotomia entre preto e branco é a dicotomia da "[...] sombra e da luz, do dia e da noite, do conhecimento e da ignorância, do yin e do yang, da Terra e do Céu" (CHEVALIER, 1991, p. 742). Além disso, na Bíblia, o negro aparece como evocador "[...] do nada e do caos, isto é, da confusão e da desordem, o preto é a obscuridade das origens; precede a criação em todas as religiões" (CHEVALIER, 1991, p. 743). Com essa oposição, "a Europa procurava dar (construir) uma imagem de si mesma, através da volta da sua contra-imagem. Com o nascimento de África, nascia a Europa com uma nova luz, renovada na sua pureza culta e benévola" (URRUTIA, 2000, p. 144). Dessa forma, os portugueses são puros e os africanos, impuros – portanto, é importante ressaltar, nesse momento, a função da água como purificadora, visto que a água é a "[...] a matéria naturalmente pura" (BACHELARD, 2002, p. 139): "é por ter a água um poder íntimo que ela pode purificar o ser íntimo" (Ibid., p. 149). Assim, a água não só lava as sujeiras materiais, concretas, mas também as espirituais – como os pecados e o paganismo, de acordo com o personagem Dom Gonçalo da Silveira. Bachelard, citando o sociólogo Edward Taylor, que descreveu um povo africano zulu, chega à conclusão que "o cafre só lava o corpo quando a alma está suja" (BACHELARD, 2002, p. 147). Dessa forma, o fato de os portugueses terem chegado pelo meio aquático a fim de resgatar os povos de seu obscurantismo, de transformá-los, de salvá-los, é bastante relevante devido justamente a essa propriedade purificadora da água.

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Nesse regime, de acordo com Durand (2002), prevalece a forma antitética. A ameaça noturna e todos os símbolos ligados a ela tem seus aspectos tenebrosos, ogrescos e maléficos do tempo aumentados a fim de que, de forma heroica, se encontre com precisão e eficácia as armas necessárias para esse combate. A polaridade, a oposição e o combate são característicos desse Regime, que vê a temporalidade como algo a ser evitado a todo custo. 5 No seguinte trecho do romance O outro pé da sereia, fica claro como os africanos, a partir da perspectiva dos portugueses, estão conectados ao caos, ao barulho e ao inferno: "Uma crescente inquietação efervescia no missionário: a vozearia dos cafres roubava-lhe a razão. Daí a pressa alvoroçada com que descia à terceira coberta: era urgente mandar calar os cânticos pagãos" (COUTO, 2006, p. 201). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1059

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Porém, em outro trecho do romance, fica claro o distanciamento entre os monstros que Dom Gonçalo esperava encontrar no continente africano e com o que ele realmente se deparou lá: Durante anos, D. Gonçalo anteviu o longo desfile de monstros que iria encontrar em África. Havia um imenso catálogo de criaturas diabólicas. Havia os ciápodes, com seu único pé gigante, os ciclopes, as galinhas lanosas, as plantas-bichos cujos frutos eram carneiros, os cinocéfalos, os dragões, os antípodas, as bestas de cabeça humana que encarnavam Satanás. Nenhum desses seres prodigiosos ele encontrara em meses de andança pelos sertões africanos. As mais maléficas criaturas com quem cruzara eram-lhe, afinal, bem familiares e tinham, como ele, embarcado nas naus portuguesas (COUTO, 2006, p. 310).

Aqui fica evidente a dicotomia entre o conhecido e o desconhecido, entre o que está longe e o que está perto. Entretanto, há uma inversão: os aspectos negativos do desconhecido, que costumava ser pintado como terrível e amedrontador, foram suavizados a partir do confronto com a recém descoberta monstruosidade do conhecido. A oposição estabelecida pelos portugueses sob o império do Regime Diurno da Imagem ruiu, tornou-se impossível e obsoleta. A partir dessa constatação, o próprio religioso, ao empreender a viagem com seus colegas portugueses a fim de salvar a alma dos africanos, conclui que "toda a sua vida imaginara que os demônios moravam no outro lado do mundo: em outra raça, em outra geografia. [...] Nos últimos dias Silveira confirmara que o Diabo fazia ninho entre os seus, os da sua origem, raça e condição" (COUTO, 2006, p. 255). Assim, quando ocorre uma terrível tempestade e as chances de o navio afundar e de todos morrerem tornam-se reais e próximas, a solução encontrada é atirar uma parte da carga para o mar: "Não era de um peso que se aliviariam. Mas de uma manifestação do pecado" (Ibid., p. 158) é a sentença do padre Manuel Antunes, mais jovem e menos convicto de sua missão em África do que Silveira. O homem pensa assim, pois comida e água para a subsistência dos escravos e demais trabalhadores do navio haviam sido deixadas em terra, a fim de dar espaço para especiarias caras, tecidos e pedras preciosas, além de outras mercadorias que enriqueceriam os lusitanos ávidos por lucros. Essa situação pode ser relacionada com o que afirma Bachelard em relação ao peso carregado pelos barqueiros da morte: "Se o peso que sobrecarrega a barca é tão grande, é porque as almas são culpadas" (BACHELARD, 2002, p. 82). Dessa forma, as mercadorias jogadas à água podem ser tomadas como a representação material da culpa (do pecado, como diz Manuel Antunes) dos portugueses e da sua gana por riquezas. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1060

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Entretanto, se adotarmos o ponto de vista dos africanos, dos locais que assistiram à chegada dos portugueses, percebemos que, para eles, os europeus também eram seres estranhos, totalmente desconhecidos, vindos da água, e, portanto, espécie de monstros, como explica Baba Inhamoyo a seu filho Xilundo, tripulante da nau: Xilundo não compreendia, por exemplo, que por baixo de toda a imensidão da terra repousava um mar oculto. As ondas que infinitamente se espraiavam, lá para as bandas de Sofala, eram apenas a face visível desse outro mar subterrâneo. Os brancos que chegavam em grandes barcos eram habitantes dessas águas profundas. Não vinham de longe, chegavam das profundezas. - São peixes, meu filho. Peixes dos fundos (COUTO, 2006, p. 311, 312).

Assim, os portugueses não só são peixes: eles são peixes estranhos, vindos de um oceano que não é esse que enxergamos, mas de um oculto, que guarda ainda mais mistérios – esse mar profundo pode estar relacionado com Kalunga, "[...] denominação do mar infinito, da cosmologia congo, a elipse no diagrama, é o termo usado para descrever a terra dos mortos, para a qual o mar é tanto uma barreira, quanto uma via de passagem. Kalunga é também a fronteira atravessada pelos escravos [...]" (FORD, 1999, p. 269,270). Portanto, Dom Gonçalo da Silveira, como português, igualmente não era pessoa, mas criatura aquática – segundo Inhamoyo, o padre era um dos "[...] grandes lagartos que vivem nos rios e apenas emergem quando se sentem na companhia dos respectivos donos" (COUTO, 2006, p. 312). Devido a essa natureza, Gonçalo não poderia morrer: "É que esse homem não é pessoa. É como a água, não nasce nem morre" (Ibid., p. 312). Dessa forma, é possível perceber que, assim como os europeus ficavam inquietos e inseguros em relação ao desconhecido e procuravam classificá-lo a fim de entendê-lo, os africanos também procuravam dar uma explicação ao que nunca haviam visto. Depois de ter discorrido sobre todos os perigos enfrentados em alto mar e do terror causado pelo oceano e pelas terras desconhecidas para além dele, percebemos que apenas uma razão muito profunda e essencial faria o homem deixar a terra firme, seu porto seguro, para procurar o não conhecido, o terrível. Mesmo com todos os riscos envolvidos em tal empreitada, os portugueses lançaram-se, com suas naus, ao mar e ao misterioso, o que nos leva a pensar em quão fortes seriam as razões que os levaram a se arriscar. Sobre essa questão, Bachelard revela que, "para enfrentar a navegação, é preciso que haja interesses poderosos" (BACHELARD, 2002, p. 76), que, para o teórico, são "[...] os

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interesses que sonhamos, e não os que calculamos. São os interesses fabulosos" (Ibid., p. 76). Ele conclui afirmando ser o primeiro marujo "[...] o primeiro homem vivo que foi tão corajoso como um morto" (Ibid., p. 76). E, no romance aqui discutido, fica bastante claro que a compra, venda e troca de escravos, assim como outras transações e práticas econômicas, ficavam em um segundo plano: o sonho dos portugueses era levar a civilização à África e cristianizar todos os povos pagãos, para o seu bem e salvação. O narrador apresenta tal anseio do jesuíta Dom Gonçalo da Silveira da seguinte forma: "Por fim, África inteira emergiria das trevas e os africanos caminhariam iluminados pela luz cristã" (COUTO, 2006, p. 51). Assim, o símbolo maior da viagem ao reino de Monomotapa era a imagem de Nossa Senhora, benzida pelo papa, costume explicado pelo americano Benjamin Southman a Mwadia: [...] era usual ornamentarem com figuras religiosas os barcos que transportavam escravos. Era um modo de santificar o crime, mas também uma maneira de se acrescentar um valor simbólico à viagem. Uma nau já não era apenas uma embarcação. Era um altar flutuante (COUTO, 2006, p. 192).

Dessa maneira, convenciam-se todos aqueles temerosos em relação aos perigos enfrentados em uma viagem marítima e aos possíveis perigos presentes nas terras distantes e desconhecidas para onde viajavam com objetivos e argumentos supostamente elevados, espirituais e relevantes. Tal explicação e justificativa para as grandes navegações portuguesas foi apenas engrandecida quando a estátua de Nossa Senhora sangrou: "A ferida sem cicatriz da padroeira era uma anunciação divina, uma espécie de grande exalação sem Corpo Santo. Aquela chaga aberta fazia crescer a fé entre os marinheiros e reforçava neles um sentimento de cruzada" (Ibid., p. 248). Em especial para Dom Gonçalo, essa empreitada significava apenas o desejo de espalhar sua fé, a fé cristã (a única aceitável, redentora, correta, em sua opinião) entre os povos negros: "A brancura daqueles espíritos, mais do que o Monomotapa, esse era o propósito daquela viagem" (Ibid., p. 201) – e, aqui, mais uma vez, o claro, o brilhante é tomado como positivo, como sinal de pureza e de bondade, enquanto o negro, como negativo, como algo a ser modificado. Aliás, é importante ressaltar a estreita relação entre transportes marítimos e a religiosidade. Primeiramente, o navio pode ser comparado com o centro de uma igreja – a nave – e, assim simbolizar a vida espiritual (CHEVALIER, 1991). Além disso, a igreja católica igualmente é representada por uma barca: a barca de Pedro, visto que, "[...] como Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1062

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Cristo se encontra ali presente, é o instrumento da salvação" (Ibid., p. 745). Por fim, a arca também pode significar um local protegido por Deus de catástrofes (como a arca de Noé) e a presença de Deus entre seu povo eleito (Ibid.). Como já explica Edward Said, em Cultura e imperialismo, motivos estritamente econômicos não seriam capazes de convencer os homens a se aventurarem pelo desconhecido e não sustentariam a situação de subordinação de um povo em relação ao outro por muito tempo – uma forte ideologia deve estar por trás dessa empreitada: Nem o imperialismo, nem o colonialismo é um simples ato de acumulação e aquisição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação, bem como formas de conhecimento filiadas à dominação: o vocabulário da cultura imperial oitocentista clássica está repleta de palavras e conceitos como "raças servis" ou "inferiores", "povos subordinados", "dependência", "expansão" e "autoridade". (SAID, 2011, p. 43).

Essa ideologia pode se manifestar através da religião, da literatura e dos discursos dos próprios homens. Os motivos colocados por Charles Boxer (2002), em O império marítimo português, como sendo os mais importantes para a inspiração lusa em relação às grandes navegações contém dois relacionados à religião: a busca de ouro e especiarias, além da procura de Preste João, rei muito poderoso que se acreditava ser cristão e com quem se esperava estabelecer uma forte aliança contra os muçulmanos, os inimigos, os infiéis que deviam ser combatidos – e essa luta consiste no quarto motivo. Durand também explica como a questão religiosa da peregrinação acabou por se misturar à ideia de aventura cavaleiresca – confusão que é o impulso para as Cruzadas e, consequentemente, para a nau Nossa Senhora da Ajuda. Assim, essa viagem que é a peregrinação, cujo intuito caracteriza-se por ser puramente religioso, o de chegar à Terra Santa, transforma-se em "[...] um combate Santo, uma justa reconquista do túmulo de Cristo" (DURAND, 1997, p. 113) – ou em um combate Santo contra o mal encarnado nos africanos, contra o paganismo, contra os demônios. Porém, nem sempre é fácil de identificar claramente os culpados e os inocentes. Nessa narrativa, essa questão sempre é colocada como sendo dúbia: os africanos sofreram, foram escravizados, despojados de sua liberdade e de sua identidade, mas, ao mesmo tempo, também escravizaram seus iguais. Quando entrevistados pelos americanos, as pessoas de Vila Longe pareciam nunca se lembrar de nada: nem de seu passado, nem do passado de sua gente, Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1063

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de sua raça. Um desses moradores, Singério, explica tal esquecimento: "Sabe por que aqui não lembramos? É porque sempre estivemos todos juntos, todos misturados: vítimas e culpados" (COUTO, 2006, p. 278). Além disso, a família de outro deles, Zero, era de canoeiros que colaboravam com os algozes de seu povo, pois os levavam, em canoas, aos locais desconhecidos e lhes ensinavam os caminhos. Voltando aos motivos que impulsionaram os homens a explorar mares e oceanos, não devemos nos enganar: as riquezas que poderiam ser encontradas nessas novas terras eram uma motivação bastante forte para os portugueses deixarem a segurança de suas terras e o conforto de seus lares – e a principal para muitos. O narrador de O outro pé da sereia comenta sobre a continuação da viagem da tripulação da nau Nossa Senhora da Ajuda por meio terrestre até o interior de Moçambique, uma região conhecida pelo sugestivo nome de "Mãe do Ouro": "O nome tinha as suas conveniências: se o metal tinha mãe é porque merecia, como todas as demais criaturas paridas, todos os cuidados de Deus" (COUTO, 2006, p. 249). Aqui, portanto, a explicação religiosa apenas é utilizada para encobrir a vontade, a ganância por lucro, por riquezas – o que também fica claro a partir do seguinte trecho: "O Zambeze era uma estrada por onde circulavam lustrosas riquezas. Deus chegava depois dos barcos" (Ibid., p. 308). Além da razão religiosa e da relativa à obtenção de lucros, Durand, na obra Imagens e reflexos do imaginário português, fala ainda sobre a tendência lusitana de focar apenas o oceano, o longínquo, de ter "olhar obstinadamente fixo no horizonte oceânico" (DURAND, 1997, p. 47), e ignorar o seu aqui. Segundo o antropólogo, "[...] é sempre para longe – quer se trate do oceano ou da alma – que se dirige a vocação portuguesa, vocação do impossível, do próprio excesso [...]" (Ibid., p. 48) e, além disso, "a força portuguesa sente mais profundamente o desafio do mar e as suas tempestades do que o aspecto titânico da terra [...]" (Ibid., p. 100). Aqui, mais uma vez, a religião cristã entra em cena, pois o teórico explica que essa tendência a olhar o longe foi reforçada pelo cristianismo e seus heróis e santos vindos de outros lugares, de localidades absolutamente diferentes e distantes. Assim, Portugal não se preocupa com o seu território, com sua pequena extensão de terra: "em Portugal os 'olhos interiores' vão iluminar a conquista dirigida para o além do mundo, para 'os mundos' que Portugal 'deu ao mundo'" (Ibid., p. 98). E esse olhar para fora está intimamente relacionado à sede por aventuras, pelo processo, pela odisseia da conquista – e não tanto à conquista em si, pois, como sublinha Durand, em geral, as expedições

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portuguesas a esses novos mundos com metais preciosos e especiarias custavam mais do que arrecadavam. Além disso, a conquista, muito mais do que com a escravidão e com a tomada das riquezas de um povo, em O outro pé da sereia, estaria relacionada com a conversão, com a transformação interior (mesmo que tal mudança interior fosse apenas aparente) dos africanos em cristãos, em pessoas mais parecidas com os portugueses. Isso fica claro a partir de uma explicação que Arcanjo Mistura, personagem da narrativa que se passa no século XXI, dá a Benjamin sobre a real submissão do povo africano: "Vocês não saíram de África quando vos levaram nos barcos como escravos. Vocês saíram quando entraram na igreja e se ajoelharam perante Jesus" (COUTO, 2006, p. 188). Dessa forma, podemos pensar no personagem Nimi Nsundi como um escravo não verdadeiramente escravizado, não submisso, pois conseguiu conservar suas crenças e seus valores de uma forma camuflada: o homem afirma que, assim que colocou os olhos na imagem de Nossa Senhora, já sabia que ela era, na realidade, Kianda, a deusa das águas. Ele explica sua suposta traição por venerar a santa dos portugueses para Dia com as seguintes palavras: Critica-me porque aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam isso de baptismo. Eu chamo de outra maneira. Eu digo que estou entrando em casa de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me ajoelho perante o altar da virgem. De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para me lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui (COUTO, 2006, p. 113).

Apesar de ter sido levado de sua terra natal em navios e de, durante essa viagem, os colonizadores terem tentado lhe tirar, além de sua liberdade, também sua identidade, sua essência, Nimi foi capaz de preservar suas crenças fazendo com que D. Gonçalo acreditasse na sua mudança, na sua transformação. Além disso, Durand procurou explicar essa história épica portuguesa, de conquistas e cruzadas, de navegações e incursões por terras desconhecidas, através de alguns grupos míticos constantes nas lendas e histórias de Portugal – dos quais dois serão citados aqui por estarem relacionados aos acontecimentos do romance do corpus. Em primeiro lugar, aparece o mitologema do herói fundador vindo de fora, sobre o qual já comentamos. O autor explica que "todo o sonho e a política de cruzada assentam no facto de a Terra Santa se situar longe, no Oriente" (DURAND, 1997, p. 88), então Dom Gonçalo da Silveira e os outros padres a Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1065

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bordo esperavam tornarem-se e perpetuarem-se na história como esses heróis vindos de fora que fundariam uma cidade, um reino devoto a Deus e a Cristo no Monomotapa – o que fica claro a partir da ânsia de converter seu imperador e sua população e da felicidade extrema do jesuíta quando finalmente consegue transformar o Imperador Nogomo Mupunzangatu em D. Sebastião, não mais um pagão, mas um homem da igreja. Já o segundo mitologema é o da "vocação nostálgica do impossível", ligado fortemente ao olhar no oceano e no além e expressa nas histórias de amores impossíveis, como as de Inês de Castro e de Soror Mariana. O impossível da viagem, o impossível da navegação, de desbravar territórios povoados por monstros, pelo desconhecido é, portanto, mais uma das motivações dos portugueses e da tripulação da nau Nossa Senhora da Ajuda 6. Além disso, assim como os portugueses embarcaram para uma viagem ao misterioso, ao longínquo, os africanos, transformados em escravos, também subiram em naus rumo ao desconhecido – mesmo que o tenham feito contra a sua própria vontade. Porém, essa viagem, para os negros, representaria uma verdadeira jornada em direção ao inferno (aquela imaginada por Dom Gonçalo da Silveira), a um local repleto de monstros, bestas e feras, a um local onde não havia comida ou água e onde doenças estranhas os atacavam para lhes tirar a vida. Xilundo, ao pensar nas gotas de sangue caindo dos dedos do escravo morto Nimi Nsundi no pavimento do porão do navio, chega à conclusão de que "[...] esse sangue não era de um homem mas de todo um continente escravo" (COUTO, 2006, p. 314). Os horrores pelos quais esses homens passam são não somente da ordem do material, mas também da ordem do sobrenatural: "Os barcos especializados em carregar mercadoria humana chegariam depois e infestariam de maldição os mares do Índico" (Ibid., p. 201). Assim, Nimi Nsundi, escravo congolês a bordo do navio, em uma carta de despedida para a criada indiana Dia Kumari, escreve: "A viagem está quase terminada. Daqui a dias chegaremos a Moçambique, os barcos tombarão na praia como baleias mortas. Não tenho mais tempo" (Ibid., p. 208). Nessa passagem, o personagem referia-se à sua tentativa de arrancar os pés da imagem de Nossa Senhora que Silveira levava consigo. Como, para ele, essa estátua era, na verdade, de Kianda, uma sereia, seus pés estariam desfigurando-a – e ele deveria consertá-la e libertá-la antes do término da viagem. Enquanto o homem arrancava um dos pés da figura da santa, Antunes o descobre e, assim, ele é condenado à morte, ou seja: se Nsundi referia-se à viagem de barco com destino a Moçambique como quase chegando ao 6

Os outros dois mitologemas citados por Durand são: o herói salvador que espera, escondido, o seu momento de regressar e a transmutação dos atos, da água em vinho ou do pão dos pobres em rosas. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1066

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fim, sua vida, sua jornada pessoal, igualmente estava próxima do término; ao dar vida à Kianda, deusa das águas, ele sentenciou-se à morte. Portanto, aqui aparece a viagem de barco, a viagem pela água como uma jornada com destino à morte e ao mundo dos mortos. A viagem do escravo a esses domínios desconhecidos lhe trouxe sofrimentos e dores; a chegada do navio ao seu destino representa para Nsundi a sua chegada ao destino último e fatal de todos os homens. Finalmente, podemos pensar, com Bachelard, que o "herói do mar é um herói da morte" (BACHELARD, 2002, p. 76). Os próprios portugueses se investiam da qualidade de heróis salvadores, mas, como eram heróis do mar, esse local privilegiado da morte, eram consequentemente heróis do domínio dos mortos – e foi extinção, doenças, desgraças e sofrimentos o que levaram para os povos encontrados na outra margem do oceano. As naus dos portugueses eram enormes barcas de Caronte que foram raptar os africanos e levá-los para o território dos falecidos, uma vez que esse homem e seu barco sempre vão ao inferno, como sublinha Bachelard, quando diz que "não existe barqueiro da ventura" (2002, p. 82).

REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. São

Paulo: Martins Fontes, 2002. BOXER, Charles. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. São Paulo: Abril, 2010. CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. Imagens e reflexos do imaginário português. Lisboa: Hugin, 1997. FORD, Clyde. O herói com rosto africano: mitos da África. São Paulo: Summus, 1999. MATTOSO, José (1998). O Imaginário Marítimo Medieval. In: Pavilhão de Portugal, exposição Mundial de Lisboa de 1998 – Catálogo Oficial. SAID. Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das letras, 2011. URRUTIA, Jorge. Leitura do obscuro: uma semiótica de África. Lisboa: Editorial Teorema, 2001.

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A constituição do si-mesmo e os valores do ser: os devaneios da intimidade em Bachelard, a invenção poética em Manoel de Barros e a psicanálise em Winnicott Self-constitution and the values of being: the daydreams of intimacy in Bachelard, the poetic invention in Manoel de Barros and psychoanalysis in Winnicott La constitution de soi et les valeurs de l'être : les rêveries de l'intimité chez Bachelard, l'invention poétique chez Manoel de Barros et la psychanalyse chez Winnicott

Renata LISBÔA 1 PUCRS – Porto Alegre - Brasil Resumo Gaston Bachelard dedicou boa parte de sua vida como pesquisador investigando os fenômenos do imaginário e suas relações com a criação poética. Concluiu que a imaginação criadora, alimentada pela mobilidade e deformação das imagens, é constitutiva do psiquismo e condição de sua renovação. O presente artigo visa examinar a constituição do si-mesmo com base na fenomenologia do imaginário de Bachelard, da psicanálise de Winnicott tendo como objeto de análise os poemas de Barros. Entende-se que as aproximações entre os devaneios de intimidade de Bachelard e a poética da infância de Barros propiciam reflexões pertinentes, visto que se torna possível explorar os valores do ser quanto ao seu aspecto primitivo, facilitando o caminho para que uma infância possa ser reimaginada. Palavras-chave: Bachelard; si-mesmo; poética da infância; devaneios da intimidade. Abstract Gaston Bachelard has devoted much of his time investigating the imaginary phenomena and their relationship to the poetic creation. It concluded that the creative imagination, fueled by the mobility and deformation of images, it is constitutive of the psychisme and condition of their renewal. This article aims to examine the constitution of the self based on the phenomenology of Bachelard imaginary, the Winnicott's psychoanalysis with the object of study such as Barros poems. It is understood that the similarities between the reverie of intimacy and poetic reflections of childhood provide relevant reflexions, since it makes it possible to explore the values of being as to its original appearance, facilitating the way toward a childhood can be re-imaginated. Key-words: Bachelard; self; poetics of childhood; reverie of intimacy.

“Toda a nossa infância está por ser reimaginada”. Bachelard 2

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BACHELARD, G. A poética do devaneio.São Paulo: Martins Fontes, 2009. P.94. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1069

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A construção do si-mesmo como um lugar da boa solidão Encontrar, dentro de si, um espaço de conforto que apazigue as aflições e que seja capaz de colocar o corpo em repouso, diante de tantas inquietações, denota ser a busca dos homens ao longo de sua história. Controlar o ímpeto da destruição e do disruptivo representa dispor de uma capacidade refinada que é conhecida como integração 3 e integração de si 4, e que diz respeito ao indivíduo poder lidar com suas forças antagônicas, com a vontade e o repouso, com o movimento e a quietude. Tal capacidade que acalma o ser, o coloca numa posição mais reflexiva, mais crítica e dotada de abertura para trocar, experienciar e abstrair. Aprender a morar em nós mesmos desde uma perspectiva bachelardiana, da imagem da casa natal e da casa onírica, do estado de relaxamento, de pausa provisória das tensões, parece ser o grande desafio do humano, ao considerarmos a dialética entre repouso e movimento, entre a vontade versus a inércia; atividade constante da força que impele a fazer, a produzir, a não cessar versus a capacidade para ficar só. Segundo o filósofo Jean-Jacques Wunenburger 5: G. Bachelard oppose donc bien “deux mouvements si nettement distingués par la psychanalyse: l’extraversion et l’introversion…Dans le premier ouvrage, on suivra surtout les reveries actives qui nous invitent à agir sur la matière. Dans le second, la rêverie...suivra cette involution qui nous ramène 3

Segundo Elsa Dias, baseando-se nas idéias de Winnicott: “A tarefa da integração no tempo e no espaço é a mais básica e fundamental das tarefas do amadurecimento. Com efeito, não há sentido de realidade possível – nem do corpo, nem do mundo, nem do si-mesmo – fora de um espaço e de um tempo; não há indivíduo se não houver uma memória de si, aquilo que mantém a identidade em meio às transformações; não há encontro de objetos se não houver um si-mesmo que possa encontrá-los. Todo o processo integrativo tem sua base na temporalização e espacialização do bebê, que começam a realizar-se no início da vida. Por isso, “a tendência principal do processo maturativo está contida nos vários significados da palavra ‘integração’. À integração no tempo se acrescenta o que poderia ser denominado de integração no espaço” (Winnicott, 1965n, p. 58). In: DIAS, E. A teoria do amadurecimento de D.W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 2003. 4

À medida que seu pensamento, da mesma forma que seu escrito, avançou, Bachelard foi se aproximando da psicologia analítica de Jung e da sua compreensão de sujeito. Deste modo, o fenomenólogo incluiu uma nota de rodapé na sua obra “A poética do devaneio”, em que destacou: “Gérard de Nerval escreve: ‘As lembranças da infância reavivam-se quando atingimos a metade da vida’ (Les filles du feu, Angélique, 6ª carta, ed. Du Divan, p. 80). Nossa infância espera muito tempo antes de ser reintegrada na nossa existência. Essa reintegração, sem dúvida, só se realiza na última metade da vida, quando descemos a outra encosta da montanha. Jung escreve (Die Psychologie der Uebertragung, op.cit., p. 167): ‘A integração do Si é, considerada em seu sentido profundo, uma questão da segunda metade da vida’. Quando atingimos a plena idade, parece que a adolescência que subsiste em nós ergue barreiras a uma infância que espera por ser revivida. Essa infância é o reino do si-mesmo, do Selbst evocado por Jung. A psicanálise deveria ser exercida por velhos” (nota de rodapé n.º 8, p. 102). In: BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1960/2009. 5

Bachelard, portanto, opõe bem dois movimentos tão notadamente distintos pela psicanálise, a extroversão e a introversão. Na primeira obra, nós seguiremos, sobretudo, os devaneios ativos que nos convidam a agir sobre a matéria. Na segunda, o devaneio seguirá esta involução que nos leva aos primeiros refúgios, que valoriza rotas de imagens e de intimidade.. Tradução livre da autora.

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aux premiers refuges, qui valorise routes les images de l’intimité (WUNENBURGER, 2014, p.88).

O que desperta interesse nesta reflexão diz respeito a prestar atenção nesses primeiros refúgios que valorizam rotas de imagens e de intimidade. Há uma preocupação sobre a incisiva deturpação que vem se evidenciando nas formas de ser e de habitar a contemporaneidade, em que o caráter do íntimo, da experiência da interioridade, do espaço de confiança e proteção, também da criação, do poder se reservar e dispor de uma condição de se autorizar a momentaneamente se retirar - diante dos apelos de um caldo cultural que clama para o mostrar-se, o exibir-se, o ser visto – assemelha-se à ideia do “quase impossível”. Bachelard 6 construiu um tecido teórico e metodológico que dá sustentação a certo caminho de aprofundamento do si mesmo e que congrega a dialética de duas forças anímicas principais: a vontade e o repouso. Por necessidade de escolha, prioriza-se a travessia do repouso, visto que se deseja colocar acento nesta perspectiva que ora se apresenta como preferência, como gosto, como júbilo, como desejo de escrever e mesmo, como esperança 7. Entende-se que este caminho articula-se ao mistério, aos enigmas, às escavações imaginárias e necessárias para irmos encontrando os tesouros, esses que parecem invisíveis e que, ao longo da estrada, dependendo de nossas metamorfoses, vão se desvelando. Entretanto, esse mistério que é existir e saber quem se é, aponta para o desejo de alcançar o que fala Bachelard (2008) sobre a consciência de estar abrigado. Como se fosse uma espécie de alojamento que se encontra toda vez que estamos diante de uma noite de vento, de sussurros e de perigos. É possível pensar que se trata de um conjunto de valores de proteção (Bachelard, 2008) experimentados pelas pessoas e que vai fazendo parte desta casa interior que nos abriga da solidão. Desta casa, que permite ao sonhador um fechamento, um fechamento em si mesmo, um espaço conquistado de recolhimento para que possa criar, sentir e ver o que de 6

(1990; 1996; 1997; 2001; 2008a; 2008b; 2009, etc.) In: O novo espírito científico (LNSC), A psicanálise do fogo (LPF), A água e os sonhos (LER), O ar e os sonhos (LAS), A terra e os devaneios da vontade (LTRV), A terra e os devaneios do repouso (LTRR), A poética do espaço (LPS), A poética do devaneio (LPR). As abreviações entre parênteses originam-se dos títulos originais em francês. 7

De acordo com o crítico literário e escritor Roland Barthes (2005, p. 11-13), sobre o ponto de partida e o desejo de escrever “Esse ponto de partida é o prazer, o sentimento de alegria, de júbilo, de satisfação, que me dá a leitura de certos textos, escritos por outros...Escrever se apresenta como uma esperança, a cor de uma Esperança – lembrar as belíssimas palavras de Balzac: “A esperança é uma memória que deseja”. Toda grande obra, ou mesmo toda obra que impressiona, funciona como uma obra desejada, mas incompleta e como que perdida, porque eu não a fiz eu mesmo e é preciso reencontrá-la, refazendo-a; escrever é querer reescrever: quero juntarme ativamente ao que é belo e, no entanto, me falta, me é necessário”. In: BARTHES, Roland. A preparação do romance II: a obra como vontade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1071

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fato diz de si. Portanto, trata-se de ressumar a contribuição de Bachelard no que diz respeito à noção da intimidade, partindo da relação entre os dois grandes arquétipos que são Mãe e Casa 8. Segundo o filósofo: A intimidade da casa bem fechada, bem protegida, reclama naturalmente as intimidades maiores, em particular a do regaço materno, e depois a do ventre materno. Na ordem da imaginação, as pequenas imagens reclamam as grandes. Toda imagem é um aumentativo psíquico; uma imagem amada, acarinhada, é um penhor de vida acrescida (BACHELARD, 1990, p.95).

Então, o próximo passo é avançar um pouco mais da porta e adentrar no estado de habitar oniricamente a casa dos sonhos, esta que anima a esperança, que aciona o veículo que conduz ao devaneio: as imagens do começo. Logo, imaginar uma imagem é mergulhar no sem-fundo do humano, solo do imaginário. Aliás, para o especialista em Bachelard, o filósofo Jean-Jacques Wunenburger: “O imaginário é compreendido como um tecido de imagens passivas e sobretudo neutras, não dotadas de existência verdadeira alguma. Só a imaginação se vê investida de propriedades criadoras” (WUNENBURGER, 2007, p.13). Para Wunenburger: A. Schopenhauer a, em effet, sensibilisé le vitalisme bachelardien à une structure psycho-physique primordiale par laquelle le sujet est le siège d’une force trans-subjective qui le pousse à actualiser, à activer sés tendances élémentaires pour les mettre au service des besoins et de désirs. Il existe donc bien pour G. Bachelard, dans les racines de l´être, une force efférente qui est à la source de ses activités comportementales et cognitives, et dont la finalité sans fin, éloignée de toute téléologie rationelle, innerve les aspirations d’um individu. L’analyse nietzschiéenne de la “Wille zu Macht”, n’est pas étrangère à cette anthropologie, qui vise à saisir em l’homme des dynamismes activistes, qui poussent à um accroissement de puissance et donc d’être, et qui orientent les acctes nouveaux vers une élévation 9 (WUNENBURGER, 2014, p.98).

A questão de procurar esta orientação de atos novos em direção a uma elevação passa pela construção de um interior que, conforme Bachelard, diz respeito a um tipo de devaneio 8

BACHELARD, G. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

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WUNENBURGER, J.J. Gaston Bachelard, poétique des images. Paris: Éditions Mimésis, L’oeil et l’esprit, 2014. “A. Schopenhauer sensibilizou o vitalismo bachelardiano na direção de uma estrutura psicofísica primordial pela qual o sujeito é a sede de uma força trans-subjetiva que o impele a atualizar, a ativar suas tendências elementares para colocá-las ao serviço das necessidades e dos desejos. Portanto, existe para Bachelard, nas raízes do ser, uma força eferente que está na origem das suas atividades comportamentais e cognitivas e cuja finalidade interminável, afastada de toda teleologia racional, estimula as aspirações de um indivíduo. A análise nietzschiana de "Wille zu Macht" (Vontade de poder) não é estranha a esta antropologia, que visa alcançar no homem dinamismos ativistas, que estimulem a um aumento de potência e, portanto, de ser, e que orientem os atos novos em direção a uma retomada de posição, a uma elevação”. Tradução livre da autora. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1072

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de intimidade material que valoriza a interioridade ao levar em conta a dimensão da intensidade. Esta imagem da intimidade formada sobre a força de algo que é misterioso e contínuo sinaliza a atualidade de um pensamento. Assim, a pertinência de estudar o pensamento de um filósofo do estatuto de Bachelard significa nada menos que poder se debruçar sobre o exercício de tentar compreender os anseios humanos a partir da constituição do si-mesmo. O fenomenólogo convida-nos a um percurso que é desenhado com o traçado da erudição, da complexidade e da fecundidade de um modo de compreender e ver a vida do homem. Tal modo denota ser aquele que se deixa tornear pela sensibilidade, pela beleza, por um projeto estético em que homens e mulheres resgatam a sua liberdade: a liberdade geradora de alegria. Somado a isso, há o compromisso com a verdade e a seriedade necessárias à abordagem do humano em suas múltiplas dimensões. Com efeito, e levando em conta este panorama, é válido ressaltar que existe certa preocupação atual com o futuro da humanidade. Um planeta vem sendo avistado como nosso próximo destino, assim como um dia, o super-homem foi transportado para a Terra. Essa sede do absoluto sempre acompanha o humano, contudo, ela vem sendo objeto de graves mutações 10. A busca de um território, o planeta Marte, por exemplo, abre uma grande janela para se pensar não somente o futuro, mas o passado. Não apenas a investigação por um novo solo, e por suas configurações físico-químicas e geológicas, mas, também, pela certeza de uma escassez cada vez mais evidente: aquela que sinaliza para a falta de raízes profundas que assentem o psiquismo no corpo, que dêem guarda para vivermos juntos. Tudo isto remete à aridez do nosso presente, o risco eminente de esfacelamento da condição empática, do acirramento da disputa por conquistas baseadas na lógica do desempenho e por intrusões de toda sorte que desordenam a dança harmonizada entre a vontade e o refúgio, entre a busca pela manutenção da vida e seu necessário repouso, a necessidade de apaziguamento das tensões que harmonizam a alma 11, e justamente por isso e com base nessa articulação, não anulam o ímpeto que relança o homem no fazer da vida e do mundo. 10

“A nostalgia do paraíso denuncia-se nos atos mais banais do homem moderno. O absoluto não pode ser extirpado; ele é tão somente suscetível de degradações”. In: ELIADE, M. Tratado de história das religiões. Lisboa: Cosmos; São Paulo: Martins Fontes, 1997. P. 509. 11

Para Ana Mello, pesquisadora do imaginário em Bachelard, a investigação bachelardiana abre perspectivas a uma ontologia simbólica. Tomando para si as imagens relativas aos grandes temas da ontologia tradicional (o eu, o mundo, Deus), o fenomenólogo reconstrói o cosmos e com ele todas as atitudes humanas. Nas palavras da pesquisadora: “A poesia é, na ótica de Bachelard, o campo privilegiado do imaginário, mas, ao voltar-se para ela, Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1073

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Até aqui, uma pergunta surge a partir desta contextualização: estaria o homem, de um modo geral, perdendo a capacidade de estabelecer relações íntimas? Estaria o homem perdendo a capacidade de se reservar e viver sua solidão? Partindo da teoria do amadurecimento pessoal de Donald Winnicott, psicanalista inglês que se deteve a investigar o desenvolvimento emocional primitivo, merece destaque o fato de que ele distinguiu de forma interessante o medo de ficar só ou o desejo de ficar só em relação à capacidade para fazê-lo 12. Como ele destacou: A capacidade de ficar só ou é um fenômeno altamente sofisticado, ao qual uma pessoa pode chegar em seu desenvolvimento depois do estabelecimento de relações triádicas , ou então é um fenômeno do início da vida que merece um estudo especial porque é a base sobre a qual a solidão sofisticada se constrói (WINNICOTT, 1983). É possível afirmar, segundo Winnicott, que se trata de algo sofisticado e que se liga à ideia de maturidade emocional. Neste ponto, vislumbra-se uma intersecção com o pensamento de Bachelard, visto que ele aborda de forma consistente e emblemática a constituição do psiquismo, considerando o prisma da mobilidade das imagens e da criatividade, perspectiva igualmente cara a Winnicott. Ambos revelam possuir um olhar que valoriza e se ancora nas raízes do primitivo e na constituição do si-mesmo. Denotam preocupar-se com uma autocompreensão de homem que se integra ao longo do tempo, ao reunir partes antagônicas e ambivalentes, ao invés de incentivar a sua cisão. Por sua vez, a integração baseada na riqueza das experiências iniciais, como a de poder ficar só na presença de alguém, remete o sujeito às regiões onde residem as boas solidões. Isso é sempre permeado por um sentido estabelecido através das relações pessoais.

sente-se afastar das pesquisas filosóficas. Como Cassirer, ele coloca em domínios diferentes o consciente racional, campo da filosofia e da ciência, e o imaginário. Enfatiza, em A poética do espaço que à fenomenologia caberia “o estudo do fenômeno da imagem poética no momento em que ela emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado na sua atualidade”... A imagem existe antes do pensamento. Essa posição de Bachelard assenta sobre a distinção entre alma e espírito, tomada de empréstimo das reflexões de René Huyghe. Aconsciência associada à alma é menos intencional do que a consciência ligada aos fenômenos do espírito. In: MELLO, A. Poesia e imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. P. 73-74. A fim de explicitar a referência em Bachelard, trazemo-la aqui: “Em sua simplicidade, a imagem não tem necessidade de um saber. Ela é a dádiva de uma consciência ingênua. Em sua expressão, é uma linguagem criança. Para bem especificar o que pode ser uma fenomenologia da imagem, para especificar que a imagem vem antes do pensamento, seria necessário dizer que a poesia é, mais que uma fenomenologia do espírito, uma fenomenologia da alma...René Huyghe, no belo prefácio que escreveu para a exposição das obras de Georges Roualt em Albi, observa: “Se fosse preciso procurar por onde Rouault faz explodir as definições..., talvez tivéssemos de evocar uma palavra um pouco em desuso e que se chama alma”. In: BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. P. 4-5. 12

WINNICOTT, D.W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1074

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Assim,

os

devaneios

de

intimidade

levam

a

pensar

que Bachelard e Winnicott oferecem condições para uma aproximação inédita a ser realizada, com base em suas trajetórias e em suas pesquisas. Isso é possível porque tanto um como outro, nas suas áreas de atuação e estudos, puderam explorar os valores do ser quanto ao seu aspecto primitivo. Nesse sentido, é imprescindível mencionar que ambos questionaram com veemência

o

método

da

psicanálise

tradicional

e

propuseram

caminhos metodológicos próprios que permitiram dar um salto em direção à apreensão do humano, ao incluir outras dimensões em questão, não se detendo essencialmente nos aspectos da sexualidade e indo adiante, fazendo avançar o pensamento e notando que a infância é o grande solo fértil para as invenções. Como postulou a analista winnicottiana Edna Vilete 13, Winnicott pode explorar a teoria do processo primário, examinando de maneira mais vertical os aspectos deixados de lado pela psicanálise freudiana e kleiniana, e que dizem respeito às comunicações que não são palavras, por exemplo; as comunicações silenciosas que portam a riqueza do simbólico que já se instalou ou que está por vir, por aparecer. Aqui, entende-se que podem ser incluídas as dimensões da criatividade, da intimidade, da capacidade para estar só, para viver uma vida moldada pelo sentimento de um estado poético, da liberdade e da contemplação. De acordo com Bachelard 14: “E o devaneio é, poderíamos dizer, contemplação primordial”. Nessa contemplação primordial, a imensidão íntima se faz presente. Conforme Bachelard 15: A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranqüilo.

Este excerto do filósofo nos proporciona construir uma reflexão importante: que a imensidão íntima permite pensar numa base para a boa solidão e o experienciar das

13

VILETE, Edna. Sobre a arte da psicanálise: Rio de Janeiro: Idéias e letras, 2013.

14

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. P.190

15

Idem. P. 190.

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profundezas do si-mesmo 16. A imensidão íntima, condição para a imaginação criadora e fruto da boa solidão, é um tema poético inesgotável 17, porque associa o grande ao pequeno, porque exprime uma profundidade.

A fenomenologia de Bachelard A razão de se explicitar o que é a fenomenologia do imaginário diz respeito a tornar inteligível o método de trabalho adotado para fazer esta pesquisa, isto é, o caminho pelo qual a pesquisadora percorre sua trajetória de investigação. Conforme Bachelard 18: “[...]o método fenomenológico leva-nos a tentar a comunicação com a consciência criante do poeta. A imagem poética nova – uma simples imagem! – torna-se assim, simplesmente, uma origem absoluta, uma origem de consciência”[...] Bachelard 19 sublinha que o método fenomenológico tem estreita relação com o colocar em evidência a capacidade de tomar consciência que se encontra na origem da menor variação da imagem. Ele põe acento na ideia da imagem poética e de sua renovação, propondo a noção de uma ingenuidade primordial que aparece na leitura dos poemas e das imagens que daí ressumbram. Dirá que segue a fenomenologia como uma escola de ingenuidade. Ao ler este breve trecho, nota-se que o filósofo valoriza a fenomenologia da atividade, da imaginação criante 20, a que não é descrita empiricamente. Passa a discorrer sobre a intencionalidade poética, a intencionalidade da imaginação poética, em que o poeta encontrará a abertura da consciência, esta que é capaz de ser ampliada, de reclamar as consciências maiores, que nos levam às grandes conexões, que desvelam a verdade do si-mesmo. E então, ele passará a abordar esse aumento de consciência, que está ligado ao psíquico, pelo campo da linguagem, da linguagem como sendo o terreno do simbólico. 16

Com o objetivo de explicitar este conceito em Winnicott, apresentamos o seguinte excerto: [...] o si-mesmo que não é o ego, é a pessoa que eu sou, que é somente eu [me], que possui uma totalidade baseada na operação do processo maturativo. Ao mesmo tempo, o si-mesmo tem partes e é, na verdade, constituído dessas partes. Tais partes se aglutinam, num sentido interior/exterior no curso do processo de amadurecimento, auxiliado, como deve sê-lo (principalmente no início), pelo ambiente humano que o contém, que cuida dele e que, de forma ativa, o facilita. [...] O si-mesmo e a vida do si-mesmo é a única coisa que outorga sentido à ação e ao viver, do ponto de vista do indivíduo[...]. In: WINNICOTT, D.W. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 1994. P. 210. 17

Op.cit. P. 195.

18

BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2008. P.1.

19

Idem.

20

Idem. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1076

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De acordo com Wunenburger(2007), Bachelard, mais do que Sartre, irá testemunhar o lugar de destaque que a imagem ocupa na vida mental, atribuindo-lhe uma dignidade ontológica e uma criatividade onírica, que são fontes da relação poética com a realidade. Na mesma proposta de reflexão, Mello (2002, p. 73) afirma que: “Em Bachelard, a cosmologia simbólica, expressa nos quatro elementos e seus derivados poéticos, une o mundo imaginário ao mundo da sensação... Bachelard não enclausura o imaginário em quadros fixos, mas enfoca a imaginação como força criadora dinâmica”. Ao pensar nesta união entre o mundo imaginário e o mundo das sensações, é interessante lembrar da força que os temas do inconsciente e do devaneio possuem na obra do filósofo ao se pensar na criação poética. Neste caminho, torna-se indispensável adicionar o tema da imensidão íntima, que está diretamente relacionada aos outros dois. No dizer do fenomenólogo: “Descobrimos aqui que a imensidão íntima é uma intensidade, uma intensidade de ser que se desenvolve numa vasta perspectiva de imensidão íntima. Em seu princípio, as ‘correspondências’ acolhem a imensidão do mundo e transformam-na numa intensidade do nosso ser íntimo” (Bachelard, 2008, p.198). Esta intensidade do nosso ser íntimo se amplia quando, diante da possibilidade desta contemplação, desta liberdade contemplativa – em geral, vivida mais integralmente pelas crianças -, um espaço se desvela, um abrigo seguro que conforta e favorece que se sonhe outros mundos: “Parece, então, que é por sua “imensidão” que os dois espaços – o espaço da intimidade e o espaço do mundo – tornam-se consoantes. Quando a grande solidão do homem se aprofunda, as duas imensidões se tocam, se confundem”(MELLO, 2002, p.207). Sendo assim, é factível afirmar que se está falando de comunhão, e, possivelmente, de epifania. Da emoção como matéria para a poesia. Conforme o pesquisador francês Michel Collot (1997), a emoção também está ligada a um horizonte que faz transbordar o sujeito, mas, por meio do qual ele se exprime: “Elle est le versant affectif de cette relation au monde qui me semble constitutive de l’expérience poétique. Mais plus encore que l’horizon, elle échappe à la représentation, et ne peut prendre forme qu’em investissant une matière, qui est à la fois celle du corps, celle du monde et celle des mots”(COLLOT, 1997, p.2-3) 21. O homem poético e as imagens da solidão 21

COLLOT, M. La matière-émotion. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. “Ela é o lastro afetivo desta relação com o mundo que me parece constitutiva da experiência poética. Porém, mais ainda que o horizonte, ela escapa à representação, e não pode tomar forma senão investindo uma matéria que é, ao mesmo tempo, do corpo, do mundo e das palavras”.Tradução livre da autora. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1077

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São necessários, portanto, mais elementos para se desenvolver esta relação entre a imensidão íntima, a possibilidade de viver a boa solidão para que a imaginação criadora faça o seu trabalho e a infância possa ser vivida na plenitude dos seus devaneios. Logo, faz-se indispensável convocar ao texto o filósofo e crítico Mikel 22 Dufrenne, a fim de um aprofundamento da discussão. Ao falar sobre o si mesmo, abre possibilidades para o estabelecimento de novos desdobramentos. Ninguém é verdadeiramente si próprio a não ser obedecendo, como o poeta à inspiração, a algum apelo que sobe das profundezas onde sua natureza se enraíza na Natureza. Seria preciso demonstrar que, com efeito, uma ética naturalista não recusa ou compromete a liberdade nem tampouco a responsabiliza. A Natureza convida o homem a ser ele mesmo, e ousaríamos dizer que quer e prepara nele a liberdade bem como a consciência (DUFRENNE, 1969, p. 241).

Obedecer à inspiração significa poder parar um instante e se escutar. Praticar o breve desligamento do mundo e auscultar o chamado de dentro, essa antiga e conhecida voz que apela para ser acolhida e valorizada. Essa voz genuína, essa voz que liga o homem à vastidão do mundo, à beleza, à esperança, às suas criações e às suas solidões, às suas boas solidões. Então, ainda com Dufrenne: O homem poético não é o homem tenso e crispado, é o homem conciliado e calmo, gracioso, o que reencontra em si próprio a forma da liberdade natural e da espontaneidade, pelo que governa a natureza obedecendo-lhe, e se integra no mundo de modo mais harmonioso que violento. O homem poético é o que não se deixa prender em sua própria armadilha, que vive aquém do infortúnio da consciência separada e separante. Sente-se responsável pelo mundo... (DUFRENNE, 1969, p. 243).

Não há dúvida que nesta ligação entre o poético, a infância e os devaneios voltados para as boas solidões, o homem vai se conciliando consigo. Através destes “departamentos psíquicos” que fornecem as substâncias instauradoras do simbólico, que propiciam ao sujeito “endireitar-se” e tomar o seu prumo, este homem ascende ao estágio que lhe permite sonhar e ser si mesmo. 22

As contribuições de Dufrenne são fundamentais para problematizarmos a criação poética, a fenomenologia do imaginário e a psicanálise winnicottiana, visto que elas dão uma solução no sentido de complementar as contribuições de Bachelard. Conforme o que escreveu em seu texto: “A Natureza é antes de tudo a realidade inesgotável. O em-si, como diz Sartre, que carrega o para-si. O ser do ente. Todavia, não o sistema ou a totalidade dos entes, pois a ideia de totalidade é já talvez uma ideia da razão ou do sentimento. O mundo enquanto se desdobra numa experiência afetiva, ou o universo numa construção intelectual, já implicam no homem como um correspondente. Trata-se ainda aqui apenas do ser indeterminável, e em todo o caso indeterminado, do ente. Mas cuidado para não distinguir o ser e o ente! Se a Natureza tem um sentido, é o ente mesmo de sua realidade, o ente como ser” In: DUFRENNE, M. O poético. Porto Alegre: Globo, 1969. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1078

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Por conseguinte, não há obstáculo frente à possibilidade de franquear o diálogo entre a fenomenologia bachelardiana, a psicanálise winnicottiana e a poesia de Manoel de Barros, considerando as pesquisas que vem sendo feitas no sentido de aproximar o homem de sua infância, de reunir as potências criadoras e instauradoras de imagens que são palavras e que resgatam alguns fios soltos que se desprenderam na infância e que acabam por obstaculizar o exercício de devanear e de fruir um espaço que é íntimo, que é imenso, que tem intensidade e calor. Tudo isso emerge como condição de fortalecimento desse homem poético que, por ser livre, é capaz de enfrentar as intrusões de um mundo que lhe demanda alto desempenho, sucesso constante, urgências excessivas, fraturando, assim, o elo de ligação vital que lhe permite ter uma vida psíquica vibrante e criadora: a capacidade de estabelecer relações íntimas e verdadeiras, de poder sentir que leva uma vida que é sua, que é viva e que é criativa 23. Com o intuito de enobrecer a escrita, apresentamos nosso objeto de estudo, que se concentra na análise dos poemas de Manoel de Barros e no estudo da criatividade como sendo a fonte de renovação do psiquismo e da conquista da integração do si-mesmo. Manoel de Barros, poeta brasileiro da geração de 45, transformou-se num grande alquimista do verbo. Desenvolveu, através de seus poemas, um belo projeto estético, em que tem no centro a Natureza como realidade inesgotável. Ao olhar para a infância com olhos de fontes, o poeta transfigurou a forma de escrever poesia, indicando que as “coisas jogadas fora por motivo de traste” são alvo da sua estima 24. Nas palavras de Antônio Houaiss: É certo que a invenção poética de Manoel de Barros tem personalidade própria rara entre os nossos poetas, rara mesmo entre os nossos grandes poetas. É por isso que ele é um poeta maior. Mas não é só por isso. Num momento em que somos insuflados de divino, todavia, ao mesmo tempo, praticamos as maiores torpezas com nossos semelhantes, é um esplendor ver luzir de forma tão convincente e harmoniosa a certeza de que entre o caramujo e o homem há um nexo necessário que nos deveria fazer mais solidários com a vida. Mas Manoel de Barros vai além: prova com a doçura e adequação de suas palavras que, se quisermos, a vida pode ser uma passagem de beleza em meio à beleza natural, uma prece de harmonia na vida universal, uma nuga de graça, um momento de bondade, em que há algo de irônico, de lírico, de doce, de solidário, de esperançoso! A poesia de Manoel de Barros nessa conjuntura nacional e humana em geral, é 23

WINNICOTT, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

24

BARROS, M. Poemas rupestres. Biblioteca Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2013. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1079

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um maravilhoso filtro contra a arrogância, a exploração, a estupidez, a cobiça, a burrice – não se propondo, ao mesmo tempo, não ensinar nada a ninguém, senão que à vida (Rio de Janeiro, 5 de outubro de 1992, HOUAISS, Apud BARROS,M. Meu quintal é maior do que o mundo. Antologia. [recurso eletrônico]) 25.

Precisa-se deste filtro que retém as violências, precisa-se desta peneira que diferencia o interior do exterior, o dentro do fora, o masculino do feminino. Busca-se a poesia para entrar no ser, para resgatar a esperança que põe o eu a sonhar, a devanear e a brincar. Não é à toa que Bachelard sublinha a imagem da escada como sendo esse caminho em direção às lembranças imperecíveis, pois não são elas que nutrem justamente a possibilidade de serenarmos as nossas inquietudes? Manoel de Barros vem iluminar as avenidas e ruelas da nossa existência ao oferecer a sua poesia, elevando-nos ao mistério, ao encontro conosco mesmo, à fruição das boas solidões. Ler a sua poesia é encontrar este canto, é abrir o cofrezinho, é se tornar uma miniatura. Ao nos transformarmos em pequenos, podemos adentrar mais facilmente em nós mesmos, nas nossas lembranças, nas nossas raízes oníricas. Para ilustrar essa proposição, Manoel de Barros, como sinalizou Houaiss, é um filtro indispensável, porque consegue ser este poeta maior: O abandono do lugar me abraçou de com força. E atingiu meu olhar para toda vida. Tudo que conheci depois veio carregado de abandono. Não havia no lugar nenhum caminho de fugir. A gente se inventava de caminhos com as novas palavras. A gente era como um pedaço de formiga no chão. Por isso o nosso gosto era só de desver o mundo. (BARROS, 2010, p.463).

O eu-lírico transvê o modo como o mundo vê e como ele “desvê” o mundo. Já no início, anuncia o excesso de sentido do abandono, explicitando claramente o que é uma imagem-símbolo, uma imagem-palavra, uma imagem que remete à plurissignificação. O abandono é o nascimento de algo e aí consta um paradoxo; o que fascina é a maneira como o 25

HOUAISS, Apud BARROS, M. Meu quintal é maior do que o mundo. Antologia. [recurso eletrônico]). Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

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eu-lírico brinca com as imagens-palavras. Pode-se substituir abandono por espaço, por abrigo, por possibilidade de novas ocupações. Renovadamente, podemos fazer uso das palavras, encontrando nelas seus cantos, seus matizes, suas loucuras, suas fronteiras. Essa experiência do abandono, que pode ser a boa solidão, abraça o eu-lírico por toda a vida, marcando o seu modo de olhar. Conforme Dufrenne, as coisas são poéticas quando nos falam e o homem é poético quando se declara, na inocência e na graça da fantasia. O que é poético no mundo, segundo o filósofo, é a fantasia do aparecer, bem como sua liberdade e exuberância: “O poético revela uma espécie de ternura, ou ao menos uma cumplicidade, por parte da Natureza que se coloca à nossa altura e ao nosso alcance” (DUFRENNE, 1969, p. 250). Houaiss tem razão ao dizer que Manoel de Barros traz um pouco de doçura, de solidariedade e de esperança. Berta Waldman, na profundidade do seu pensamento, também assinala este aspecto na poesia de Manoel de Barros: Revificada na terra, a palavra poética deve acompanhar a realidade em estado de metamorfose, juntando-se a ela. Para habilitá-la ao percurso dessa aventura, o poeta mutila a sintaxe, faz os verbos deslizarem para substantivos e vive-versa, incorpora palavras de uso regional que se trituram e se misturam a outras de tradição clássica, modifica o regime dos verbos, pratica uma verdadeira alquimia que plasticiza a linguagem, fazendo-a soar estranhamente cristalina e humilde (WALDMAN, 1990, p. 23).

Para “desver o mundo” é necessário estar abrigado na boa solidão, essa que permite ser, que dá condições ao si-mesmo estar disponível para as invenções. A consciência de se sentir abrigado se liga a uma noção extremamente importante, quando se fala de mundo interior. Tal consciência diz respeito a alcançar dentro de si uma espécie de retaguarda, onde recursos ou alternativas funcionam como ferramentas que podemos usar para nossa proteção, quando as ameaças de fora se instalam e configuram um risco. Portanto, recorrer às paredes e ao chão de uma casa que ampara e contar com um teto protetor, ancora o ser, as coisas, as lembranças; uma condição que põe a salvo o ser, a fim de que ele possa, repousando, encontrar-se com essa região no seu interior em que é permitido devanear em segurança e contatar com essa habitação onírica que é a ponte para novos sonhos e novas experimentações. Para Bachelard: Assim, abordando as imagens da casa com o cuidado de não romper a solidariedade entre a memória e a imaginação, podemos esperar transmitir Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1081

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toda a elasticidade psicológica de uma imagem que nos comove em graus de profundidade insuspeitados. Pelos poemas, talvez mais que pelas lembranças, chegamos ao fundo poético do espaço da casa. Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de auto valorização. Ele usufrui diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós (BACHELARD, 2008, p. 26).

Tem-se a impressão, portanto, de ter-se chegado neste ponto mais profundo da vida do homem e de suas qualidades. Existe, a partir disso, a compreensão de que esta vida deve ser permeada de novidade, alimento tão fértil e mantenedor de um psiquismo saudável. Por outro lado, vive-se a sensação de que há uma força cada vez mais feroz que avança para uma ideia de auto-extermínio. O planeta vem manifestando igualmente os sinais de sua fratura causada por homens que se distanciaram dessa possibilidade de se sentirem abrigados por algo e que acabam extraindo e explorando irresponsavelmente a terra, as águas, os elementos que são, paradoxalmente, fonte de sua própria proteção, fato bastante curioso. Na proliferação de situações em que o homem se mostra um ser dissociado de si mesmo, bem como do ambiente em que vive, insere-se a presente reflexão, como uma possibilidade de transmissão de um pensamento que visa profanar a ideia do homem capaz de se abrigar em si mesmo, nas suas recordações, sem medo de estar consigo e, sobretudo, habilitado a desfrutar de uma condição humana que é ancorada no devaneio de intimidade. Nesse devaneio de intimidade, inevitavelmente, reportamo-nos aos começos do homem. Ao mais arcaico, ao que principia em nós. E desde este olhar, a infância é convocada como o quintal do mundo em cada um.

Os devaneios voltados para infância: território das boas solidões De acordo com Castor Ruiz (2003), mergulhar no sem-fundo humano é mergulhar no imaginário, esse manancial criativo que sente o mundo de forma criadora; um mistério que brota de nossa subjetividade na forma de criação e que transforma o húmus insignificante da natureza em mundo humanizado.

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Na criação deste mundo próprio – que tem como fonte os cofres, as gavetas e os armários 26, as crianças e os poetas parecem aproveitar e usar a linguagem de uma forma menos utilitária (Conceição, 2011) algo que para os adultos fica mais fugidio, devido à primazia de experiências pautadas por relações de causa e efeito, próprias ao excesso de racionalidade e ao excesso de processo secundário, levando em conta a psicanálise tradicional. O poeta, sabiamente, destacou: “Nada há de mais presente em nós senão a infância. O mundo começa ali” (BARROS, 2006, p. XVII.). Conforme Bachelard: Assim, uma casa onírica é uma imagem que, na lembrança e nos sonhos, se torna uma força de proteção. Não é um simples cenário onde a memória reencontra as suas imagens. Ainda gostamos de viver na casa que já não existe, porque nela revivemos, muitas vezes, sem nos dar conta, uma dinâmica de reconforto. Ela nos protegeu, logo ela nos reconforta, ainda. O ato de habitar reveste-se de valores inconscientes, valores inconscientes que o inconsciente não esquece (BACHELARD, 1990, p.92).

Se prestarmos mais atenção aos apelos silenciosos e quase invisíveis dos homens, escutaríamos

outras

vozes,

uma

polifonia

mais

ampla

e

muitos

pedidos

de

refúgio. Bachelard nos lança a examinar melhor nossos anseios anunciando que se nos mantivermos atentos, poderemos encontrar espaço para acalmá-los e satisfazê-los. Homens, mulheres e suas crianças latentes demandam acolhimento desde os tempos primevos. Logo, a teoria bachelardiana alarga as vias que propiciam o alcance deste lugar, o lugar da solidão. Trata-se de uma solidão que não é tristeza, mas é reflexão, é silêncio, é oportunidade de escutar a si mesmo, muito embora isso seja assustador algumas vezes. Neste sentido, as crianças parecem auxiliar os adultos, porque se lançam no universo das sensações e das percepções mais destemidas, mais autênticas, mais melancólicas. Assim como os poetas. Chega o momento, portanto, de anunciar outro poema de Manoel de Barros que vem enaltecer a proposta da escrita, intensificando a qualidade das perguntas. Também se presta a explicitar o teor da pesquisa, que pretende recuperar as vozes engendradas no calor dos bons silêncios e da profundidade de uma intimidade que se desvela produtora e criadora de boas imagens, trazendo consigo esperança: 26

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. “No cofre estão as coisas inesquecíveis; inesquecíveis para nós, mas também para aqueles que daremos os nossos tesouros. O passado, o presente, um futuro nele se condensam. E assim o cofre é a memória do imemorial” (p. 97). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1083

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Ele sabia que as coisas inúteis e os homens inúteis se guardam no abandono. Os homens no seu próprio abandono. E as coisas inúteis ficam para a poesia (BARROS, 2010, p.91).

É interessante pensar, através do poema, o quanto se assemelham coisas e homens, da mesma maneira que Dufrenne estabeleceu um paralelo entre o homem poético e as coisas poéticas. Curiosamente, entre os dois está a Natureza, que se exprime através da fala e do olhar profundo e livre do sujeito lírico. O abandono, então, aparece como ressonância nesta obra de Barros para indicar um acento na humildade, e no calor da intimidade, um espaço onde precisamos nos guardar e sermos guardados. O abandono passa a ser uma paisagem. É transformado e “transvisto” pelo olho do sujeito lírico que o deixa com ares de companhia, de presença viva, de cuidado. As coisas, aparentemente inúteis, ficam para poesia, esse manancial de invenções, de experiência de liberdade e de ampliação das belezas que residem no ser. Elas se configuram apenas como “aparentemente inúteis”, porque o eu-lírico segue criando poemas, debruçando-se sobre as palavras, entregando-se ao seu ofício com encantamento e satisfação. Destarte, o abandono das coisas e do homem podem voltar a se conectar, ganhando vida e importância. O significante, então, deixa de remeter ao surrado significado do “lugar vazio, descuidado” e distancia-se do óbvio, relançando novos sentidos para engendrar outras imagens libertadoras dos verdadeiros silêncios. Para Waldman (1990, p.29): “A exploração das dimensões pré-conscientes do ser humano, da memória, a fala inovadora vinculada às matrizes da língua, a psique infantil, o sonho, a loucura, o sertão “do tamanho do mundo”, compõem um registro com o qual a poesia de Manoel de Barros tem muito a ver”.

Antes de concluir, faz-se mister destacar a contribuição de Bachelard no que diz respeito aos devaneios voltados para a infância, tendo em vista que eles contribuem para amplificar a discussão, verticalizando-a. Ao falar sobre as imagens da infância, ele aponta para uma reflexão pertinente que se refere às imagens da solidão: “Assim, as imagens da infância, imagens que uma criança pode fazer, imagens que um poeta nos diz que uma criança fez, são para nós manifestações da infância permanente. São imagens da solidão. Falam da continuidade dos devaneios da grande infância e dos devaneios do poeta” (BACHELARD , 2009, p. 95).

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Ao chegar ao final do percurso, compreende-se com mais lucidez os passos que foram necessários dar, a fim de se alcançar uma dada elaboração, que decanta neste instante e diz respeito à relevância do aprofundamento no estudo das imagens, que revela a descida no interior do ser - que é antes poesia do que memória -, que não é queda, é movimento da vida psíquica das crianças, que corajosa e livremente entram em si mesmas para habitar essas regiões misteriosas que constituem o psiquismo, os devaneios, os sonhos, logo, o inconsciente. Com base nesta análise, uma conclusão parece surgir: o poético no homem pode ser esta salvaguarda da novidade psíquica, esta que renova o próprio homem liberando-o para sonhar, devanear, escrever poesia, dançar e expandir o seu mundo. Isto é o que vai garantindo a possibilidade de construir experiências de intimidade, pois elas só serão possíveis quando houver espaço para essa beleza que é a de encontrar aquilo que se cria. É isso que vai configurando a ética que estetiza a vida. As boas solidões nascem de espaços que se alargam, que foram dilatados psiquicamente e anteriormente habitados por vitalidade, alegria e ascensão, para a criança acessar o que tem de mais genuíno. Não podemos nos furtar a ressaltar a contribuição de Emil Staiger sobre a disposição anímica, em que a espontaneidade pode surgir embalada pelos ritmos primitivos e reconfortantes da criança que brinca livremente 27. O poético, então, parece ser este imã capaz de propiciar ao homem a conexão e o contato com as matérias necessárias ao devaneio, ao acolhimento, ao repouso que instaura novas imagens e que são fontes de renovação da vida psíquica. De acordo com a sabedoria de Bachelard (2009, p.97): “Ao sonhar com a infância, regressamos à morada dos devaneios que nos abriram o mundo. É esse devaneio que nos faz primeiro habitante do mundo da solidão. E habitamos melhor o mundo quando o habitamos como a criança solitária habita as imagens”.

Referências Bibliográficas BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1960/2009. ______. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 27

STAIGER, E. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1975. Conforme o crítico literário escreveu “A ‘disposição anímica’ (Stimmung) por exemplo, é apenas um momento, um curto prelúdio, a que se segue o desencanto, ou de nôvo um outro som. Mas quando esses momentos se sucedem, quando o poeta é arrastado nos altos e baixos da corrente anímica seus versos acompanham, linogràficamente, essas mudanças, onde fica a unidade de que necessita sua obra de arte? Há poesias dessa espécie, em ritmos livres, em que cada verso dá a impressão de total espontaneidade, em que o todo se precipita como corrente, sem margens, sem princípio nem fim. P. 29. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1085

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______. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. BARROS, M. Memórias Inventadas: a segunda infância. São Paulo: Planeta, 2006. ______. O menino do mato. São Paulo: Leya, 2010. ______. Poemas rupestres. Biblioteca Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2013. ______. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. COLLOT, M. La matière-émotion. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. CONCEIÇÃO, M. Manoel de Barros, Murilo Mendes e Francis Ponge: nomeação e pensatividade poética. Jundiaí: Paco Editorial, 2011. DIAS, E. A teoria do amadurecimento de D.W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 2003. DUFRENNE, M. O poético. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. HOUAISS, A. Carta. Apud BARROS, M. Meu quintal é maior do que o mundo. Antologia. [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. MELLO, A.M.L. Poesia e imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. RUIZ, C. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo: Edunisinos, 2003. STAIGER, E. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1975. VILETE, Edna. Sobre a arte da psicanálise: Rio de Janeiro: Idéias e letras, 2013. WALDMAN, B. A poesia ao rés do chão. In: BARROS, M. Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. WINNICOTT, D.W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983. ______. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ______. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 1994. WUNENBURGER, J-J. O imaginário. São Paulo: Loyola, 2007. ______. Gaston Bachelard, poétique des images. Paris: Éditions Mimésis, L’oeil et l’esprit, 2014.

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Grupo de trabalho Temas Transversais A Atelier de recherche Thèmes Transversaux A

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Da “boa vida” a um “Bem Viver” num quotidiano à deriva: um olhar mitanalítico From «good living» to a «Good life» in a disordered quotidian: a myth-analytical perspective De la «bonne vie » à la «vie bonne» dans un quotidien à la dérive : un regard mythanalytique

Alberto Filipe ARAÚJO 1 Universidade do Minho, Braga, Portugal Iduína Mont’Alverne CHAVES 2 Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil

Resumo No presente estudo, chama-se a atenção para ideologização e mistificação feita em torno das promessas do capitalismo avançado e da própria pós-modernidade, de novamente fazer ressurgir a Idade de Ouro onde a “boa vida” e o “bem-estar” confundidos estariam inexoravelmente ao alcance de todos num presente que seria já amanhã e não num futuro cantado por novos amanhãs parafraseando aqui o clássico aforismo comunista de “Os novos amanhãs que cantam”! Na consecução do objetivo proposto, dividiremos o nosso estudo em duas partes: a primeira debruça-se sobre a promessa da “boa vida” na modernidade prometeica à decepção trágica do “mau viver” num tempo ainda capitalista, enquanto a segunda parte, sob o olhar de Orfeu, fala-nos de uma “boa vida” face a um “Bem Viver” num quotidiano à deriva. Palavras-chave: boa vida; mito; terra da brincadeira; mau viver; bem-viver. Abstract In the present article, we were interested in calling the attention to the present ideologization and mystification of the promises of a new Gold Age made by advanced capitalism and even by post-modernity, where the good living and welfare are confused and available to all the next day and not in some far away future like the classic communist aphorism that says that «New tomorrows are singing»! Our article is divided in two parts: the first takes into account the promise of a «good life» in the promethean modernity and the tragic deception of a «bad living» in a yet capitalist time; the second part, under the gaze of Orpheus, tell us about a «good life» face to face to a «living well» in our unquiet daily life. Keywords: good living; myth; land of playing; bad living; good life.

Introdução 1

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2

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Uma das fortes preocupações que tem marcado a agenda dos tempos hipermodernos, que a todos nos envolve, é precisamente se as formas de capitalismo liberal, que se assemelham cada vez mais a uma “nova religião” (uma espécie de doutrina de tipo sacrossanto e salvífico), trouxeram, ou não, em nome do progresso, da perfetibilidade e da felicidade na terra, a bem-aventurança de uma “boa vida” (sinónimo pra nós de “bem-estar”), ilustrada, por exemplo, pela “Terra da Cocanha” (1567) de Piter Bruegel, o Velho, e pela “Terra da Brincadeira” das Aventuras de Pinóquio (1883) de Carlo Collodi. Aquilo que pretendemos dizer é que, por um lado, o “Bem Viver”, sinónimo para nós de “Vida Boa”, não deve ser confundida com o conceito de “boa vida” (e de “viver bem”) e o lugar que este mesmo conceito ocupa no imaginário social atual, e por outro, à luz da mitanálise de Gilbert Durand, questionámo-nos sobre os mitos diretores subjacentes (os mitos da Idade de Ouro de Prometeu, de Narciso, de Dioniso e de Orfeu) quer à “boa vida”, quer à “Vida Boa”. Sobre os mitos agora referidos, que parecem dar conta da natureza mítica da temática tratada pela literatura especializada dedicada à pós-modernidade e ao tema da “Vida Boa” ou do “Bem Viver”, podemos dizer que os encaramos não como meras metáforas mas como mitos que encerram em si uma verdade com a qual muito temos a aprender. Estamos, pois, convictos que a sua verdade destila profeticamente, ainda que sob uma roupagem simbólica que carece de uma hermenêutica adequada – a mitanálise de Gilbert Durand por exemplo – questões e preocupações que a pós-modernidade agora coloca e debate. A “boa vida” no imaginário social da sociedade dos tempos hipermodernos encontrase muito identificada com o poder e utilidade da riqueza e aquilo que esta permite consumir ao nível dos bens materiais, assim como a garantia do conforto, a prolongação da própria vida (lembrando aqui o mitologema do elixir da juventude ou a “fonte da juventude” enquanto símbolo de imortalidade ou de rejuvenescimento eterno) e de uma prosperidade sem limites, além de tudo fazer para realizar a satisfação dos desejos privados do sujeito. Numa palavra, a pós-modernidade valoriza unidimensionalmente o ter consubstanciado em bens de consumo e hedonísticos suportados por uma moral relativista. O ter passou a ser o novo dogma da vida pós-moderna, esquecendo o ideal da “Vida Boa” consagrado predominantemente pela modalidade do ser na linha que Erich Fromm desenvolve na sua obra Ter ou Ser (1987). O objetivo que nos propomos no presente estudo é chamar a atenção para a ideologização e mistificação feita em torno da promessa que o capitalismo avançado e a dinâmica da própria pós-modernidade, retomando à sua maneira as ideias e os ideais

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educativos, políticos e filosóficos das Luzes, fariam novamente ressurgir a Idade de Ouro (colocando-se aqui o retorno deste mito). Propagando demagogicamente a ideia que a “boa vida” e o “bem-estar” confundidos estariam inexoravelmente ao alcance de todos num presente que seria já amanhã e não num futuro cantado por novos amanhãs parafraseando aqui o clássico aforismo comunista de “Os novos amanhãs que cantam”! No entanto, a história recente tem mostrado e demonstrado que o caminho que os progressos económicos e tecnológicos têm contribuído para que a desigualdade, a injustiça social e a pobreza tenham aumentado a ritmo alucinante. Na consecução do objetivo proposto, dividiremos o nosso estudo em duas partes: a primeira debruça-se sobre a promessa da “boa vida” na modernidade prometeica à deceção trágica do “mau viver” num tempo ainda capitalista, enquanto a segunda parte, sob o olhar de Orfeu, fala-nos de uma “boa vida” face a um “Bem Viver” num quotidiano à deriva. Por fim, e a modo de esboçarmos a nossa grande conclusão em termos gerais, diremos o seguinte: ainda que de um modo pessimista e cético pensamos que não devemos abandonar de perseguir o ideal de uma “Vida Boa”, ou seja, de um “Bem Viver” que enalteça as formas do ser e daquilo que Félix Guattari denomina de “ecosofia” (1991, p. 8) em que a preocupação e a responsabilidade com o meio ambiente não estivesse desligada das preocupações sociopolíticas e da subjetividade humana de acordo com um novo imperativo categórico que deriva do princípio de responsabilidade defendido por Hans Jonas, que diz que devemos agir de tal forma que os efeitos das nossas ações sejam compatíveis com uma vida humana autêntica e digna na Terra (1990: 30). Neste sentido, colocamos a nossa esperança que um “Bem Viver” na Terra ainda seja possível sob o signo do mito de Orfeu: este mito simboliza a crença no (im)possível no seu gesto que resgata Eurídice do Tártaro (reino de Hades), ou seja, Orfeu por amor desce ao mundo inferior (descensus ad inferos) com o solene objetivo de resgatá-la.

1.

Da promessa da “boa vida” na modernidade prometeica à deceção trágica do “mau viver” num tempo ainda capitalista. Sob os olhares dos mitos da Idade de Ouro, de Prometeu de Narciso e de Dioniso Pinóquio, ao contrário daquilo que o seu narrador pretendia, procurava por todos os

meios fugir do modelo de homo laborans (HANS, 2012, p. 41-51) para viver e representar a figura de homo ludens (HUIZINGA, 2012): esta sempre dedicada à brincadeira, ou seja, a um

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ócio despreocupado. De fato, a sua intenção mais forte, enquanto boneco de madeira, era de entregar-se aos prazeres de tipo hedonista da “boa vida”, que não deve ser confundida com a noção de “Vida Boa” que possui uma conotação aos mais variados níveis da existência e cujas implicações na vida do sujeito ultrapassam em muito as meras dimensões do repouso e do divertimento. Curiosamente, se a metáfora da Terra da Brincadeira ocupou o imaginário social e mítico da Modernidade, também não é menos verdade que nos tempos hipermodernos a promessa de que uma Terra da Brincadeira seria possível também não esmoreceu. Por outras palavras, a promessa de uma “boa vida” e o consumo do ócio não seriam já uma miragem, uma mera ilusão, mas, pelo contrário, uma realidade concreta acessível a uma maioria crescente da sociedade. Este tipo de promessas, feitas na sequência de uma pósindustrialização, de um pós-fordismo, está, graças a uma implementação aclarada da automatização e robotização e sistemas informáticos, popularizado perigosamente pelo culto do bem-estar individual e de uma qualidade de vida (ainda que sempre adiados) apregoada por um marketing concorrencial e massificador, cada vez mais sem escrúpulos, típico dos mass media especializados e divulgadores generalistas da ideologia global do bem-estar coletivo, isto é, de “boa vida” e muito menos de um “Bem Viver”: a “boa vida” este já não seria mais uma quimera e um atributo das elites socioeconômicas e cultuais privilegiadas, mas seria já extensivo à população das sociedades desenvolvidas, capitalistas avançadas. Porém, e paradoxalmente, se a promessa de um “boa vida”, e menos de uma “Vida Boa”, oferecida pelos arautos e artesãos da Modernidade esbarrou com a realidade dura de um trabalho massificado e explorador, com as condições socioeconômicas precárias de um grande número de sujeitos da sociedade industrial, também as sociedades capitalistas avançadas (para uns pós-capitalistas) fracassaram nas suas promessas de oferecerem cada vez mais lazer, mais tempo livre (entendido como tempo de não trabalho) e mais ócio. Fracassaram não só pela ilusão que essas mesmas promessas em si encerram, mas também por elas assentarem prevalentemente no paradigma do ter, esquecendo os valores do ser (FROMM, 1987), com a consequência de o sujeito individualista, narcísico (mito de Narciso) tender a confundir o “Bem Viver” com a “boa vida” baseada no prazer imediato e efêmero (hedonismo – mito de Dioniso com a sua sombra de prazer e de êxtase orgiástico MAFFESOLI, 1985; MICHAUD, 2012). E como não há prazer sem consumo, o sujeito acaba

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por afogar-se inelutavelmente no poço de um “mau viver” porque sempre insatisfeito, sempre descontente, sempre entediado, enfim, sempre vazio! Neste contexto, assiste-se a uma mudança do paradigma mítico, dado que o imaginário cultural e social passa a estar povoado por outros símbolos e mitos. Na perspetiva de Gilles Lipovetsky, “o laborioso Prometeu está sem fôlego”, o nosso tempo desembaraçou-se da ideologia mecanicista e progressista do passado, dando lugar à lógica do individualismo, relativismo, hedonismo e consumismo vividos numa “bacia semântica” contaminada pelos mitologemas do mito da Idade de Ouro. Narciso e Dioniso são as figuras mitológicas emblemáticas que presidem à nova forma de vida das sociedades sobre-desenvolvidas, que buscam o prazer e felicidade de modo desenfreado em que a fragmentação social e o crescimento da desorientação individual e coletiva parecem ser uma constante.

1.1. A promessa da “boa vida” da Modernidade sob o signo dos mitos da Idade de Ouro e de Prometeu Este mito fornece um modelo arquetipal ao paradigma da “boa vida” porque no fundo identifica-se também com o chamado “País da Cocanha” (a terra mítica da abundância sonhada e desejada na medievalidade) bem retratado por Bruegel em 1567. A Idade de Ouro encerra em si um patrimônio ancestral integrado no ciclo de idades míticas descritas, entre outros, por Ovídio no livro I das Metamorfoses (76-215): A primeira idade foi a do ouro/ em que, sem lei nem castigo, espontaneamente/ os homens praticavam a boa-fé e a justiça./ Não temiam os castigos, nem estavam escritas no bronze/ ameaçadoras leis e a turba suplicante/ […] A terra era virgem, sem precisar de enxadas ou charruas/ nem ser sulcada pelo arado, produzia tudo, em liberdade: / alegres, com os alimentos que ela dava, sem trabalho/ […] A Primavera era eterna, e os doces zéfiros acariciavam/ […] rios de leite e néctar corriam e o loiro mel escorria do verde carvalho (vv. 89-112).

Uma das caraterísticas principais desta “idade mítica” – a do ouro – é a da felicidade eterna e perfeita. A esta grande característica, junta-se outras que são as da saúde eterna, da paz, da partilha dos bens, da abundância, da harmonia, da justiça e da juventude eterna. Tratase de um conjunto excelente de características próprias de uma idade situada fora do tempo histórico, logo projetada no “tempo das origens” que escapa a qualquer tipo de data (o célebre in illo tempore de Mircea Eliade: o mito da Idade de Ouro designa “uma época em que a

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humanidade era suposta viver sem artifícios, sem invenções técnicas, mas também sem instituições, sem mediação de leis, numa espécie de estado de natureza oposto à cultura” (WUNENBURGER, 2002ª, p. 27-28). Jean-Jacques Wunenburger ensina-nos que faz parte da natureza do mito ajudar-nos a imaginar, ajudar-nos a pensar, mas também fornece razões de viver e de agir. Deste modo, não podemos surpreender-nos que a Modernidade prometeica tenha reatualizado, na base da tríplice crença do Progresso indefinido da humanidade, da superioridade da Ciência e da hegemonia da Técnica, o mito da Idade de Ouro na versão lúdica do ócio, ou de um tempo de lazer, que permitiria que o comum dos mortais pudesse viver uma “boa vida” o que não significa necessária e automaticamente um “Bem Viver”. Aliás, a este respeito não deixa mesmo de ser sintomático aquilo que o autor escreve: Conclui-se, portanto, que, confrontados às condições ordinárias da vida (mortalidade, sofrimento, trabalho, desventura ou conflitos com outro), os homens cultivaram sempre a imagem de uma outra vida, para eles mesmos como para a sua sociedade, onde a existência, com duração infinita, se desenrolaria com facilidade, no luxo e no prazer, sem labor nem violência, numa concórdia bem-aventurada (2002ª, p. 40).

A Era Moderna prolongou o imaginário mítico da Idade de Ouro sob a capa de uma outra figura mítica, a de Prometeu (SÉCHAN, 1951; GUAL, 2009). Esta figura mítica subjaz à ideologia moderna do domínio da natureza e da busca do progresso através desenvolvimento científico-tecnológico, bem como da necessidade de regularização e previsibilidade, no sentido de instaurar uma nova ordem numa sociedade nova povoada de “homens novos” libertos gradualmente de um tempo escravizado por um trabalho agrilhoante. O projeto prometeico, de natureza mercantilista progressista, urbanística, industrializadora e positivista, é ordenador, disciplinador e visa a eficiência: “Este mito define sempre uma ideologia racionalista, humanista, progressista, científica e, algumas vezes, socialista” (DURAND, 1996, p. 91). A Modernidade fabricou a ilusão, animada por obras utópicas como a Nova Atlântida de Francis Bacon (1624), que, graças ao progresso técnico-científico, uma “boa vida” poderia ser usufruída por um maior número de sujeitos agora resgatados da “forja” ardente: ao homo laborans sucede a miragem do homo ludens, estudado por Johan Huizinga. É, portanto, na base de uma esperança progressista, alimentada pela crença no progresso, da ciência e da técnica, que a Modernidade crê ser capaz de oferecer aos filhos dos novos tempos uma vida cada vez mais liberta do trabalho e, por conseguinte, mais disponível para o Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1093

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consumo do ócio (CASTRESANA, 1990). É precisamente aqui que reside aquilo que os irmãos Skidelsky denominam o “erro de Keynes” que profetizou que os progressos tecnológicos permitiriam, num futuro próximo, viver desafogadamente porque o sujeito liberto, cada vez mais do peso do trabalho, poderia dedicar-se àquilo que mais lhe daria prazer e felicidade: “O erro de Keynes foi crer que a ânsia de ganância despoletada pelo capitalismo podia saciar-se com a abundância, deixando as pessoas livres para gozar dos seus frutos numa vida civilizada” (SKIDELSKY; SKIDELSKY, 2012, p. 55). Por outras palavras, importa, e é aquilo que fazem os autores Robert e Edward Skidelsky, não esmorecer na denúncia deste erro, visto que já sabemos que a profecia de Keynes, que previu em 1930, graças aos progressos tecnológicos no espaço de um século (2030), que uma “terra de abundância” (um novo Éden, uma nova Idade de Ouro) seria novamente possível e nela a humanidade viveria com desafogo, com felicidade e praticamente sem necessidade de trabalhar (SKIDELSKY; SKIDELSKY, 2012, p. 27-55), é uma ilusão prometeica de graves consequências para o futuro da humanidade. Por outras palavras, desde a modernidade prometeica até à pósmodernidade, sem esquecer o regime capitalista neoliberal que lhes está associado, um ”País de Cocanha”, uma nova Idade de Ouro, onde todos poderiam viver sem sofrimentos, sem injustiças e particularmente sem trabalho (2012, p. 58-61), era uma certeza convertida em dogma. No entanto, constata-se que a profecia de Keynes, à semelhança de tantas outras, não só não se está cumprindo como também dificilmente algum dia se cumprirá, pois o desenvolvimento e o progresso económicos e tecnológicos, apostando cada vez mais num rendimento crescente, está, antes, conduzindo os sujeitos a uma “sociedade do cansaço” (HAN, 2012), cada vez mais desigual quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista econômico, quando aquilo que se prometia era justamente o seu contrário, ou seja, a sobreabundância de tudo para todos de forma, se possível, instantânea (PIKETTY, 2013). 1.2. Da ilusão da “boa vida” da Modernidade à desilusão do “mau viver” de um tempo ainda capitalista sob o signo dos mitos de Narciso e de Dioniso Zygmunt Bauman designa a época que vivemos por Modernidade Líquida, na medida em que a sua principal característica tem a ver com a constante mudança e esta fluidez é a qualidade dos líquidos e dos gases. Assim, a leveza e a facilidade de movimento da contemporaneidade contrastam com o peso e a solidez da modernidade. Assiste-se, por outras palavras, à falência de um mundo sólido que dará lugar a uma sociedade líquida (Zygmunt Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1094

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Bauman). Richard Sennett, citando o próprio Marx a propósito do desmoronamento do mundo moderno, afirma: «Tudo o que era sólido volatiliza-se» (2007, p. 21). O destronamento do passado (tradição) e a profanação daquilo que foi considerado sagrado, constitui o derreter dos sólidos, ou seja, a falência dos antigos padrões através da aceleração das mudanças: “O que leva tantos a falar do «fim da história», da pós-modernidade, ou a articular a intuição de uma mudança radical no arranjo do convívio humano e nas condições sociais sob as quais a política-vida é hoje levada, é o facto de que o longo esforço para acelerar a velocidade do movimento chegou ao seu ‘limite natural’” (BAUMAN, 2001, p. 17-18). Na época da instantaneidade, ou seja, da aceleração, o poder tornou-se extraterritorial e tudo é afetado pela fragilidade, em nome de uma maior emancipação e libertação do indivíduo. Em nome do individualismo, do consumismo, do relativismo moral e do hedonismo o habitante dos tempos hipermodernos não se contenta em tudo viver, em tudo assumir, em tudo querer, a tudo dizer que sim e que não numa escala temporal possível e ainda percetível. Realmente já não se contenta, pois a agenda hedonista, consumista, relativista e individualista do sujeito atual é gerida agora por um Cronos hiperacelerado, como se estivesse sob o efeito de substâncias psicotrópicas do tipo ecstasy, que escapa a qualquer racionalização colocando mesmo em causa a inteligibilidade de um projeto técnicoinstrumental e racional já testado ao longo da Modernidade (BLUMENBERG, 2008). As profundas transformações sociais alteram significativamente a nossa maneira de pensar e de viver. Tudo muda a um ritmo vertiginoso, dando lugar a um mundo global e a uma nova forma de cultura que Gilles Lipovetsky designa por cultura-mundo: Com a cultura-mundo, alastra por todo o globo a cultura da tecnociência, do mercado, dos media, do consumo e do indivíduo e com ela toda uma série de novos problemas, não só de âmbito global (ecologia, imigrações, crise económica, miséria do terceiro mundo, terrorismo, etc), mas também existenciais. A cultura globalitária não é apenas um facto, mas, ao mesmo tempo, uma interrogação profunda e inquieta sobre si mesma. É o mundo que se transforma em cultura e a cultura em mundo: é uma cultura-mundo (2010, p. 14).

A nova cultura proporciona ao indivíduo uma infinidade de experiências e o quotidiano passa a ser vivido segundo um consumo bulímico, devido à intensificação das ofertas e à circulação alucinante de bens e serviços, bem como ao aumento exponencial da circulação das pessoas e da informação. Deste modo, as sociedades desenvolvem “uma dinâmica de pluralização, de heterogeneização e de subjetivação” (2010, p. 21), expondo o Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1095

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indivíduo a uma explosão de alternativas que complexificam o seu mundo ao ponto de desorganizar as consciências, “os modos de vida e as existências. O mundo hipermoderno está desorientado, inseguro e desestabilizado, não ocasionalmente, mas quotidianamente, de maneira estrutural e crônica” (2010, p. 24). Não acreditamos no sentido da História. Por isso, sentimo-nos perdidos. O desencanto e a incerteza tomam conta do nosso quotidiano e, apesar das conquistas realizadas pela ciência e pela técnica, o ser humano está cético e inseguro. A instabilidade em que vivemos, resultado de um mundo pós 11 de Setembro, leva Lipovetsky a afirmar que estamos perante uma ordem mundial caótica. A desorientação manifesta-se a todos os níveis, desde os abalos incontrolados da economia, passando pelo descrédito na política, até às esferas da vida social ao nível da família, das relações entre as pessoas ou da educação. A incerteza contaminou todos os domínios da nossa vida: “assistimos ao crescimento do caos intelectual e da insegurança psicológica, das crenças esotéricas, da confusão e da desorientação generalizadas” (2010, p. 29). Aumenta o mal-estar social, cultural e ético e a desordem afeta indivíduos e sociedades. A promessa da modernidade no sentido do planeamento e da ordem, através de um progresso indefinido, revela agora as suas limitações e os seus perigos que os mitos de Narciso (o individualismo puro e ingénuo – BETTINI; PELITZER, 2010; RENGER, 1999) e de Dioniso (o triunfo do hedonismo consumista) ilustram: o primeiro simboliza a cultura em que vivemos, enquanto centramento do indivíduo em si mesmo e, tal como Pinóquio, uma “criança” manipulada pelas suas inclinações e pelos seus desejos, marioneta das ilusões e incapaz de enfrentar a realidade fora de si: “O narcisismo designa a emergência de um perfil inédito do indivíduo nas suas relações consigo próprio e com o seu corpo, com outrem, com o mundo e com o tempo, no momento em que o capitalismo autoritário dá a vez a um capitalismo hedonista e permissivo” (LIPOVETSKY, 2010, p. 48). Podemos então salientar que, neste sentido, a nova ética permissiva e hedonista alastra-se: “o esforço deixou de estar na moda, o que significa coerção ou disciplina austera é desvalorizado em proveito do culto do desejo e da sua realização imediata” (2010, p. 54). O mito de Narciso aparece, nas palavras de Gilles Lipovetsky, como “estratégia do vazio” (2010, p. 54). Um vazio caracterizado pela superficialidade das relações, pela indiferença face ao outro, pelo “vazio emotivo” que também Pinóquio experienciava relativamente ao Outro, porquanto era um boneco animado que desconhecia a experiência da autonomia na sua expressão mais congruente. O indivíduo vazio e só tende a querer preencher este mesmo vazio

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frio e solitário pelo consumo exacerbado e por um culto de prazer sem limite na esperança de sentir-se mais preenchido, mais humano. Deste modo, a individualização promove a auto expressão e a valorização pessoal, milhões de homens e mulheres procuram a felicidade, libertando-se do passado e do compromisso e apostando em começar de novo. Neste contexto, Narciso fascinado por si conduz-nos ao mito de Dioniso que remete para o imaginário da Terra da Brincadeira enquanto busca do prazer desenfreado e da vida intensa e plena. Dioniso, o deus da vinha, da orgia e do grito estridente, da aparição, do arrebatamento e da orgia que provoca o êxtase, simboliza atualmente todo um imaginário do excesso, da desordem e de um frenesi selvático (WUNENBURGER, 2002, p. 177-188; KERÉNYI, 2007; BRUN, 1969). Dioniso irrompeu nas sociedades democráticas através da expansão dos valores hedonísticos, da aspiração a novos modos de vida e à expressão direta das emoções. Trata-se de um encantamento pelo excesso e pela festa, reflexo do hedonismo contemporâneo. Assistimos a uma busca desenfreada do hedonismo e do sensualismo de costumes, no consumo, na moda e no lazer. O quotidiano assume uma dimensão lúdica e as cidades evocam, para Lipovetsky, uma espécie de Idade de Ouro através da sua dimensão festiva e generosa, contemplando espaços de distração e convivencialidade e promovendo a distração e o espetáculo. Por seu lado, a sociedade de consumo promove a esperança de felicidade através dos produtos e das marcas, conferindo distinção a quem as consome e contribuindo para a construção de uma personalidade por medida. A sociedade contemporânea promove a individualização dos modos de vida, a privatização dos prazeres e a comercialização do tempo livre, em nome de um ambiente pluralista e relativista. Habitamos um imaginário de conforto e liberdade, em busca dos prazeres que a técnica e o comércio possibilitam, de modo a melhorar a qualidade de vida e a desenvolver as subjetividades emocionais. 2.

Uma “boa vida” face a um “Bem Viver” num quotidiano “enfermo”? Sob o olhar de Orfeu Num quotidiano vivido sob aceleração temporal e estressado em que a grande maioria

se cansa e se extenua realizando aqui mil tarefas, acolá mil obrigações, pergunta-se, na verdade, se ainda se poderá falar de uma “boa vida” e de um “Bem Viver”: “A pura agitação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente” (HAN, 2012, p. 35). A respeito da aceleração, Hartmut Rosa é claro ao afirmar que a experiência mais significativa daquilo que ele designa por Modernidade tardia é a aceleração, ou seja, como o tempo é agora percebido e Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1097

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vivido: não há tempo para nada, nem para viver na medida em que tudo se tornou cada vez mais rápido, escapando cada vez mais ao controlo do sujeito. Por outras palavras, o trágico é que a ampulheta do tempo, este com o seu horizonte, suas estruturas e ritmos, torna-se cada vez mais fugidia e escapa-nos das nossas mãos cada vez mais desencarnadas à semelhança de mãos vampirescas (ROSA, 2010, p. 11-12). Num quotidiano enfermo e identificado com um modelo pós-industrial, consumista, que agrilhoa o homo laborans a uma agenda de cunho produtivista e baseado na ideia de progresso sem fim, torna-se realmente difícil ocorrer um tempo livre para o lazer que é uma das condições, ainda que não a única, para que o sujeito usufrua de uma “boa vida” e experiencie mesmo de uma “Vida Boa”. Aquilo que pretendemos dizer é que somos muito céticos e pessimistas sobre a possibilidade de um “Bem Viver e de um “Bem Con-Viver” devido precisamente ao atual paradigma de desenvolvimento com o seu modelo económico de contínua expansão, de produção e de consumo e, por outro lado, devido à ideologia da PósModernidade (individualismo, relativismo, consumismo e hedonismo) com a sua lógica científica, tecnológica e mercantil. Se nos perguntarem se uma “boa vida” pode acontecer, a nossa resposta é menos pessimista, ainda que de imediato perguntemos o que é que se necessita para gozar de uma “boa vida”. Ainda que saibamos aquilo que o imaginário social atual entenda por “boa vida” e aquilo que ela possa significar, a saber: hedonismo, consumismo, riqueza e felicidade. Mas, curiosamente, dos poucos que ainda podem gozar de “boa vida” não são poucos aqueles que se queixam de tédio, enfim, de um aborrecimento profundo e mesmo de falta de sossego. Paradoxalmente não é só a pressão do rendimento do trabalho, da técnica disciplinária ou do sujeito convertida numa espécie de máquina multitasking que entedia, que provoca um aborrecimento profundo, um forte desassossego e forte inquietação, mas também agora é a própria “boa vida” que em si, ainda que sob outra forma, conhece a hiperatividade neurótica do trabalho e esta torna-se mortal quando, como nos ensinou Nietzsche, descarta todo e qualquer elemento contemplativo. Ainda que a lógica do sistema econômico capital neoliberal e a própria cosmovisão e mundividência da ideologia pós-moderna possam garantir algumas condições para a “boa vida”, já, pelo contrário, estamos persuadidos, malgré nous, que o tempo hedonista e consumista atual consubstanciado na obsessão neurótica do “ser rico” compromete dramaticamente a possibilidade de um “Bem Viver” que também é inseparável de uma

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concepção ecológica tal como a defende Félix Guattari na sua obra intitulada As Três Ecologias (1989). Este “bem Viver” passa também pela implicação de toda a condição existencial do sujeito na suas vertentes sociopolítica, ecológica e psicológica. Daí que o autor defenda a necessidade das três ecologias (a do meio ambiente, a das relações sociais e a da subjetividade humana) estarem ligadas entre si. Neste sentido refere: Apesar de estarem [as formações políticas e as instâncias executivas] começando a tomar uma consciência parcial dos perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades, elas geralmente se contentam em abordar o campo dos danos industriais e, ainda assim, unicamente numa perspetiva tecnocrática, ao passo que só uma articulação ético-política – a que chamo ecosofia – entre os três registos ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana, seria suscetível de clarificar convenientemente estas questões (GUATTARI, 1991, p. 8).

Chegados aqui, podemos pois afirmar que o “Bem Viver”, ou a “Vida Boa”, só acontece se aquele que procura viver comprometidamente uma “Vida Boa” souber sentidamente articular os três registos atrás referidos que são, e lembramos, os do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana, além de recuperar uma qualidade há muito perdida que é a capacidade contemplativa. Mas pensamos que esta possibilidade, ainda que possa acontecer mais no plano ideal do que no real humano, torna-se em tempos de cólera, como aqueles que se vivem hoje, uma possibilidade cada vez mais remota senão mesma rara. Daí a nossa súplica a Orfeu para que o poeta mítico, no seu infinito amor por Eurídice e pelo som melodioso e divino que ressoava da sua lira, possa sobre nós derramar a virtude da esperança para que nós, simples mortais, possamos, ainda que num dia só, viver a graça de uma “Vida Boa”. Neste contexto, importa refletir sobre as razões do nosso ceticismo, e mesmo pessimismo sobre a possibilidade da realização de uma “Vida Boa”. Cansado, Pinóquio simboliza o projeto da Modernidade, os seus desejos e as suas necessidades constituem manifestações da utopia da “boa vida” simbolizada pela “Terra da Brincadeira” das suas Aventuras (COLLODI, 2004, p. 145-157). O homem acredita no poder da razão para alcançar uma vida plena, repleta de bem-estar e de harmonia, onde o tempo do trabalho dá lugar ao prazer do ócio. O progresso anuncia a libertação em relação à natureza e uma abundância de recursos. Sob o signo prometeico, o mundo é transformado de maneira a proporcionar um conforto crescente e a garantir uma época dourada: “os homens e as mulheres sempre sonharam com um mundo sem sofrimento, sem injustiças e, sobretudo, sem

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trabalho” (SKIDELSKY; SKIDELSKY, 2012, p. 58). Este mundo estava agora supostamente ao alcance da realização humana, nomeadamente encontrava-se potencializado pelas utopias científicas produtoras de “mundos in-felizes”, aumentando assim o nível de expetativas dos indivíduos no tocante à ilusão de que agora, ou num futuro breve, os seus desejos de ter e de prazer seriam alcançáveis sem esforço em demasia. A este respeito, sabemos também que a Pós-Modernidade não deixou este crédito por mãos alheias fixando, aliás, metas que são hoje grandes decepções para o indivíduo: de um Prometeu eufórico e triunfador com a Modernidade passou-se na nossa contemporaneidade fáustica e frankensteiniana a um Prometeu já cansado e sem fôlego ou então, como diria François Flahault, um Prometeu crepuscular (2008). Uma nova Idade de Ouro heróica foi prometida, pelos engenheiros do crescimento técnico-científico, ao sujeito pós-moderno, como se de uma nova religião se tratasse, não se lhe exigindo nenhuma fé nem nos deuses da antiguidade greco-romana, nem em qualquer das religiões do Livro. Aquilo que esses arautos do “melhor” e da “felicidade” terrena apenas pediam é que o habitante da Tecnopolia (POSTMAN, 1994) se tornasse seguidor do culto consumista, hedonista e individualista. Por outras palavras, o sujeito substituía, assim, a fé nos antigos deuses pela fé na deificação tecnológica (uma das invenções mais letais do capitalismo avançado) sem se dar conta, de tão alienado que está, que a Tecnologia deificada é um “deus” que não serve porque com a sua promessa de felicidade seduziu e encantou os indivíduos ao longo de gerações com a ideia secularizada de que um novo “Éden” na terra seria possível, ou seja, que graças aos avanços tecnológicos e informáticos uma “era de lazer”, sem precedentes, seria possível e esta proporcionaria condições mais de uma “boa vida” do que de um “Bem Viver” a uma sociedade cada vez mais iludida em que a libertação do trabalho seria realizável no aqui e no agora: o homem na terra desposaria de novo o estado antes da “queda”, isto é, a sua condição paradisíaca típica da Idade de Ouro em que a crença quer de uma “vida boa”, quer de um “Bem Viver” substituiria inelutavelmente a crença na ideia clássica moderna de progresso indefinido. Esta crença parece ter ruído ao ter revelado a sua dimensão paradoxal que consiste no seguinte: por um lado, sempre afirmou que a “boa vida” e o “Bem Viver” são perfeitamente realizáveis e, por outro, constata que o homo laborans, hiperativo e hiperneurótico, encontra-se cada vez mais agrilhoado ao Cáucaso do trabalho com a consequente perca da sua capacidade contemplativa que, por sua vez, está vinculada “à absolutização da via ativa na qual é corresponsável pela histeria e pelo nervosismo da

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moderna sociedade ativa” (HAN, 2012, p. 51). E quando do trabalho o sujeito parece livrarse, ele encontra-se de tal modo agrilhoado ao seu rochedo, está de tal modo neurótico e alienado que tende a confundir o “Bem Viver” com o ato de consumir e com a obtenção do prazer instantâneo, ou seja, com a “boa vida”, ficando depois sem qualquer tipo de força anímica para questionar-se por que se sente tão vazio, tão desassossegado e tão angustiado. O sujeito dos tempos hipermodernos, à semelhança de Prometeu, pagou caro a sua ousadia em acreditar que o Olimpo desceria à terra, assim como Pinóquio pagou um preço elevado por ter acreditado que a sua vida na Terra da Brincadeira seria um eterno presente, acabando por confrontar-se com o lado obscuro da sua ilusão de um “Bem Viver” que, no limite, não passa de uma “boa vida” mal vivida. Deste modo, o sujeito atual, à semelhança de Pinóquio, anula a esperança de um dia afinar o seu diapasão pela natureza do homo ludens (Johan Huizinga) cujas pedras de toque são as da serenidade e da Poética do Devaneio (BACHELARD, 1988). Ou seja, Pinóquio é aquele que identifica a “boa vida” com uma dada conceção de felicidade, que faz do prazer o seu principal leitmotiv, vivida na Terra da Brincadeira. Esta aceção está ligada especialmente àquilo que Byung-Chul Han designa de “ludificação” (2014, p.77-85): “A ludificação do trabalho explora o homo ludens” (2014, p. 78), e nós poderíamos afirmar, por ele inspirado, que a ludificação do prazer castrou ou amputou a alma do próprio homo ludens da sua ligação com o sagrado, com o rito e com o cultual. O que seria para nós desejável é que este homo ludens fosse capaz de experienciar uma “Vida Boa”, não no sentido daquele veiculado pela Terra da Brincadeira, mas antes baseado e norteado pela conceção grega de eudaimonia identificada em geral com um estado de ser admirável e desejável. Por outras palavras, já não se trata aqui de um bem-estar psicológico produzido na base de um determinado prazer, mas sim de um estado mais ôntico que não deve ser confundido com um estado de ânimo agradável, mas antes identificado com uma vida plena e completa que não se esgota na mera esfera psicológica, projetando-se antes numa felicidade virtuosa ainda que difícil de alcançar. A razão do afirmado, prende-se que nós, nos tempos pós-modernos, mergulhados numa contínua aceleração temporal quase nunca temos tempo para questionarmo-nos sobre os motivos que temos para sermos felizes, quanto mais um tempo eudaimonico para uma felicidade virtuosa, para evocarmos aqui o legado aristotélico. E mesmo quando pensamos possuir as coisas boas da vida, tais como saúde, segurança, respeito, amizade, autonomia (razão prática no sentido aristotélico) harmonia com

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a natureza e ócio (SKIDELSKY; SKIDELSKY, 2012, p. 174-189), perguntamo-nos se ainda não estamos longe de alcançar aquele estado eudaimonico que nos aproxima do estado virtuoso. Algo que pensamos que em muito poderia contribuir para que este estado de graça, se assim nos podemos exprimir, fosse pelo menos sentido e que o sujeito tudo fizesse para recuperar e revitalizar a sua capacidade de saber escutar, mais do que muito falar, e o ideal da vida contemplativa há tanto tempo perdido e esquecido pela “sociedade do cansaço” (HAN, 2012). Por sua vez, este ideal de vita contemplativa pressupõe já uma “pedagogia do olhar” (HAN, 2012, p. 53-60), bem como as pedagogias do silêncio e da paciência (GUSDORF, 1963), e que em muito podem ajudar o sujeito a recuperar a sua condição de Pessoa e de humanidade plasmadas no ideal que o “Bem Viver” (ou da “Vida Boa”) também é. Por este ideal, o sujeito, agora mais humano, poderá certamente despertar, sob a ação da lira de Orfeu, da profunda letargia na qual a sociedade do rendimento o mergulhou (HAN, 2012, p. 25-32). Daí perceber-se melhor um dos sentidos, de dois, que Han deu ao cansaço enquanto tal (2012: 71-79). É um tipo de cansaço que, por não ser amigo, incapacita o homem de contemplar e de sentir sossegadamente a quietude da vida, que a música por Orfeu tocada bem pode simbolizar (GUTHRIE, 1956, p. 344-347), devido às consequências da sociedade de rendimento: “O excesso do aumento de rendimento provoca o enfarte da alma” (HAN, 2012, p. 72). É o chamado cansaço esgotante, narcotizante e absurdo. No entanto, o mesmo autor (Byung-Chul Han) contrapõe a este cansaço um outro – aquele que é reparador das forças perdidas, aquele que desperta as energias do sujeito, enfim, aquele cansaço eloquente que é fundamental para a existência humana. Muito sintomaticamente, Han, a propósito deste tipo de cansaço terapêutico, se assim podemos dizer, evoca Orfeu salientando: “Um certo cansaço, a modo de Outro Orfeu à volta do qual se unem os animais mais ferozes e que no fim podem estar cansados com ele. O cansaço dá o compasso aos solitários distraídos” (HAN, 2012, p. 79). Finalmente, à pergunta acima colocada sobre se ainda é possível sentir-se o sopro do ludus, na aceção que Johan Huizinga lhe confere (2012, p. 3-31, 217-236), em tempos enfermos como os nossos que padecem de depressão e da síndroma de burnout enquanto sintomas de uma crise profunda da liberdade (HAN, 2014, p. 12), nossa resposta, já prefigurada ao longo do presente estudo, é pessimista pela simples razão de que a arte da vida contemplativa e da virtude parecem ser cada vez menos alcançáveis. Todavia, nem por isso

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devemos idealmente deixá-las de querer atingir, ainda que para tal, à semelhança de Orfeu, tenhamos que descer ao mundo ctónico e sombrio de Hades para lhe implorar que liberte Eurídice, aqui encarada como metáfora da “Vida Boa” e, por que não, de um “Bem Viver”!

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A natureza e o imaginário no ethos jornalístico The nature and the imaginary in the journalistic ethos La nature et l'imaginaire dans l'ethos journalistique

Carlos DOMINGUEZ 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Resumo A aproximação das leis da natureza não opera apenas nas técnicas científicas. Buscamos, assim, a relação das teorias do imaginário de Gilbert Durand e o que Levi-Strauss escreveu sobre o pensamento selvagem. Por conta disso, consideramos que o ethos jornalístico necessita outro olhar sobre a natureza e os saberes tradicionais para recuperar sua sintonia com a sociedade e os valores da atualidade, distintos do que era pregado na modernidade. E, assim, o ethos jornalístico é mais que valores impregnados na narrativa do progresso científico. Marx fundamentou sua concepção materialista da natureza, que permitiu o desenvolvimento do saber ambiental contrário à dominação capitalista. E esta percepção tem de estar embebida no imaginário e na simbolização da natureza no indivíduo. Por isso, as relações jornalísticas estão no fundamento do social na emoção do amor. Palavras-chave: natureza; ethos; jornalismo; imaginário. Abstract: The approximation of the laws of nature does not operate only in scientific techniques . We seek , therefore, the ratio of imaginary theories of Gilbert Durand and what Levi -Strauss wrote about the wild thought. Because of this , we believe that the journalistic ethos needs another look into the nature and traditional knowledge to recover your harmony with society and the current values , different from what was preached in modernity. And so the journalistic ethos is more than impregnated values in the narrative of scientific progress . Marx based his materialist conception of nature, which enabled the development of environmental knowledge contrary to capitalist domination. And this perception must be steeped in the imagery and symbolism of nature in the individual. So the news in the social relations are the basis of the emotion of love. Key words: nature; ethos; journalism; imaginary.

O pensamento selvagem Onde está à cabeça dos narradores do cotidiano de hoje, repórteres de ofício? Quais os valores que compõem o ethos destes repórteres que buscam desvendar mistérios do mundo de hoje? O que a natureza, um rio e suas águas podem irrigar no imaginário de um repórter ao 1

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falar de saberes da relação do homem com o natural, com si mesmo, com esta parcela de seu ser expresso no outro? Como compartilham saberes um repórter de uma grande cidade e um ribeirinho que vive próximo a um rio e tem sua vida ameaçada por um projeto de criação de uma hidrelétrica? Se os termos de Levi-Strauss fossem usados por um teórico do jornalismo ele diria que é necessário que o jornalista de vazão ao seu pensamento selvagem e não apenas ao pensamento científico. Tem de haver emoção, não só razão. Assim, este ofício fruto da modernidade científica e racional poderia também dar conta de ser um “método” que conseguisse com maior sucesso abarcar os dilemas ambientais mundiais, como a construção de grandes hidrelétricas e a inundação e destruição de florestas. É uma questão de pontos de vista: “O pensamento selvagem é lógico no mesmo sentido e da mesma maneira que o nosso, mas da forma como somente o nosso é quando aplicado ao conhecimento de um universo em que reconhece simultaneamente propriedades físicas e propriedades semânticas” (LEVISTRAUSS, 1961, p.296) Buscamos em Levi-Strauss a sabedoria de reconhecer a pensamento selvagem como um pensamento tão necessário ao ser humano como o pensamento científico. Coube ao antropolólogo apontar, em parte, para a busca de uma solução ao paradoxo entre o pensamento científico da modernidade eurocêntrica e o pensamento dos povos ditos primitivos pelos teóricos europeus. Diz Levi-Strauss sobre o período neolítico e o paradoxo em relação ao pensamento moderno e científico: “O homem neolítico ou da proto-história foi, portanto, o herdeiro de uma longa tradição científica; contudo, se o espírito que o inspirava, assim como a todos os seus antepassados, fosse exatamente o mesmo que o dos modernos, como poderíamos entender que ele tenha parado e que muitos milênios de estagnação se intercalem, como um patamar, entre a revolução neolítica e a ciência contemporânea?” (LEVI-STRAUSS, 1961, p.30)

Para o autor, o pensamento selvagem é o “substrato de nossa civilização” (LEVISTRAUSS, 1961, p.31). E o paradoxo só tem uma solução possível: existem ao mesmo tempo dois modos distintos de pensamento científico, “um muito próximo da intuição sensível e outro mais distanciado”. Os dois, porém, não possuem valores maiores ou menores nem tem uma evolução cronológica. Ao assumir seus pontos de vista como parcelas de formas de conhecimento distintas sobre uma mesma realidade, a ciência (ou o jornalismo) aceita sua parcialidade e pode, assim, retomar uma aproximação abandonada há centenas de anos com o pensamento selvagem e sua maneira peculiar de visualizar o mundo por imagens e não pelas

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faculdades da razão. O próprio pensamento selvagem é intemporal, ele quer apreender o mundo, como totalização sincrônica e diacrônica ao mesmo tempo, e o conhecimento que dele toma se assemelha ao que oferecem num quarto espelhos fixos em paredes opostas e que se refletem um ao outro (assim como aos objetos colocados no espaço que os separa) mas serem rigorosamente paralelos. Forma-se simultaneamente uma multidão de imagens, nenhuma das quais é exatamente parecida com as outras. (LEVI-STRAUSS, 1961, p.291) Assim, Levi-Strauss introduz o conceito de imagines mundi, maneira como o autor exemplifica como o pensamento selvagem aprofunda seus conhecimentos sobre as coisas. Afirma ele: “O pensamento selvagem aprofunda seu conhecimento com o auxílio de imagines mundi. Ele constrói edifícios mentais que lhe facilitam a inteligência do mundo na medida em que se lhe assemelham. Nesse sentido, pôde ser definido como pensamento analógico. Mas nesse sentido ele se distingue do pensamento domesticado, do qual o conhecimento histórico constitui um aspecto” (LEVI-STRAUSS, 1961, p.291). Ficam, deste modo, diferenciadas e, também aproximadas, as noções destas formas de pensamento, o selvagem e o científico. De fato, um pertence ao outro. Tem a mesma origem e estão dentro da multiplicidade de possibilidades do ser humano apreender aspectos das suas relações com o natural. As percepções apontadas por Levi-Strauss sobre a ciência da modernidade nos parecem perfeitamente aplicáveis às questões levantadas hoje sobre as teorias da informação e o jornalismo. Diz o antropólogo que “Para que uma teoria da informação pudesse ser elaborada, sem dúvida era indispensável que se descobrisse que o universo da informação era uma parte ou um aspecto do mundo natural. Mas, uma vez demonstrada à validade da passagem das leis da natureza às informações, isso implica a validade da passagem inversa: aquela que, há milênios, permite aos homens aproximarem-se das leis da natureza pelos caminhos da informação.” (LEVI-STRAUSS, 1961, p.297). Ou seja, a aproximação das leis da natureza não opera exclusivamente por meio de técnicas científicas. Este é o percurso teórico. E, assim, o ethos jornalístico é bem mais que isso. Comecemos pelo aforismo de Heráclito: “Ethos antropou daimon”. Heráclito, filósofo pré-socrático (500 a.C.), uniu as duas palavras no aforismo 119 (SODRÉ, 2002, p.82-83). As traduções são inúmeras. Para o teólogo Leonardo Boff (2003), Heráclito deixou para trás o sentido convencional das palavras e captou sua significação escondida: “morada (ethos) acaba sendo a ética e o anjo bom (daimon), a inspiração para sua vivência”. Propõe Sodré (2002)

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que a palavra ethos, de onde deriva Ética, serve para designar a instalação humana em um espaço. Argumenta Sodré que o fragmento de Heráclito já teve diversas traduções: “o caráter do homem é o seu deus ou o seu demônio”; “Deus é morada do homem” (J.P. Vernant); “O homem mora nas imediações dos deuses” (Heidegger). Diz Sodré (2002, p. 82-83) que “introduz-se aí o sentido de 'morada'. Isto quer dizer que o homem, enquanto atravessado pelo transe de sua origem e seu destino, relaciona-se radicalmente com o sagrado” Para Carneiro, aluno de Heidegger, a tradução do fragmento é “a morada do homem é o extraordinário”. E o extraordinário seria Sócrates, o filósofo que nunca deixou de escutar seu daimon. Assim entende Oliveira (2010, p. 36) ao propor que “O termo daimon da sentença de Heráclito, explicitado pela tradução de Carneiro Leão como extraordinário, tem na figura de Sócrates aquele que encarna em vida a prática da escuta do divino, relacionandose com ele da maneira mais apropriada ao homem: no pensamento”. Esta sentença acima é vital para buscarmos um entendimento do que seria o ethos no jornalismo. Recuperando temos que: “aquele que encarna em vida a prática da escuta do divino (...) relacionando-se (…) no pensamento”. O pensar. O extraordinário pensar. Pensar para escutar o divino. Para ter, obter e receber inspiração. Para ter saber. Para duvidar do que aí está dado. Para indagar. Para questionar os mais poderosos hábitos e costumes, práticas e técnicas, leis e reis. De tanto questionar, Sócrates teria sido condenado à morte. O filósofo da pergunta incansável e da fala incessante. Atitudes que poderiam muito bem fazer parte dos atributos de um jornalista. O pensar e o falar sobre o que é pensado, o questionar são características da virtude grega que se manifestam em uma prática inspirada pelo divino. O homem enquanto atravessado pelo transe de sua origem e seu destino. Em se tratando de princípios e/ou valores que são específicos de um determinado grupo de uma dada sociedade, e sendo estes mesmos valores indispensáveis para a execução de uma ação única e rotineira, temos a permanência e acúmulo de saberes que vão sendo preservados na memória social. É o que Sodré chama de ethos na acepção moderna do termo. “O ethos de um indivíduo ou de um grupo é a maneira ou jeito de agir, isto é, toda a ação rotineira ou costumeira que implica contingência, quer dizer, a vida definida pelo jogo aleatório de carências e interesses, em oposição ao que se apresenta como necessário, com deve ser” (SODRÉ, 2008, p.46). Para Sodré (2008), a noção de ethos advém de duas Categorias – forma social (Georg Simmel), forma de vida (Wittgenstein), podendo ser detalhada como ambiente cognitivo que o dinamize, unidade dinâmica de identificação de um

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grupo, modo de relacionamento com a singularidade própria. No ethos atuam a forma social e a de vida, como formas simbólicas que, historicamente, orientam o conhecimento, a sensibilidade e as ações do indivíduo. O uso cotidiano da expressão na área do Jornalismo, porém, firmou como sentido principal essa conceituação complexa (MORIN, 1988). Este costume, este modo de fazer de acordo com determinados valores - falando sobre o Jornalismo - foi se estabelecendo com o passar dos tempos, de acordo com as interações sociais dos jornalistas e a sociedade onde atuavam. A civilização grega, em seu período clássico, era oral. Quem imortalizou a cultura grega foram o aedos, poetas que cantavam os versos dos autores. Quando os romanos passam a usar o papiro egípcio, por volta do século X, para escrever a Acta Diurna, um documento periódico que informava a vida política e social do Senado Romano, já é possível falar em uma espécie de jornalismo (GALVANI, 2008). Não conhecemos muito da vida dos que produziam a Acta Diurna. De acordo com Pena (2013), foi à invenção da imprensa dos tipos móveis, em 1040, na China, e sua popularização na Europa, por Gutemberg, que levou as cidades comerciais e já de alguma vida urbana, como Veneza, a criarem as letteri d'avisi, embriões das gazetas que ao adquirirem periodicidade vieram se tornar o que hoje chamamos jornais. Estes mesmos jornais, de acordo com Shudson (2010), duzentos anos depois, foram os responsáveis por adotar em 1870 o uso da notícia como principal formato de veiculação de informações. Informações do cotidiano. Do dia a dia. Da política, sim, mas também da polícia, do esporte e também, inevitavelmente, da economia. Havia um ambiente propício para o nascimento do jornalismo moderno dentro dos sistemas sociais capitalistas republicanos. Como bem observa Alsina (2009, p. 46), sobre a construção social da realidade e, por conseguinte, da notícia, é ela um processo “ao mesmo tempo, social e intersubjetivamente construído”. Diz Alsina que a atividade jornalística tem um papel socialmente legitimado para gerar construções da realidade publicamente relevantes. Como no ethos do jornalista, atuam hoje formas simbólicas que, historicamente, orientam o conhecimento, a sensibilidade e as ações desse indivíduo que opera na construção da realidade por meio da imprensa na produção, circulação e consumo de notícias? É o que pretendemos equacionar mais adiante. Por hora, podemos dizer que este ethos nunca é o mesmo. Os daimon nem sempre foram escutados. Muitas vezes até foram silenciados, individualmente ou coletivamente. E a natureza. Para relacionarmos a natureza com o fazer jornalístico vamos retroceder ao nascimento da modernidade capitalista e a análise de Karl Marx sobre a relação do homem

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com a natureza mediada pelo trabalho. Foi em O Capital que Marx demonstrou que sua concepção materialista da história estava integrada com a concepção materialista da natureza. Para fazer esta trajetória nos apoiaremos fundamentalmente na obra de Foster (2005), A Ecologia de Marx. O autor inglês, pesquisador da obra de Marx, esclarece que, a crítica mais comum dirigida pelos ambientalistas contra Marx, é a acusação de que Marx teria tido uma visão “prometeica” e “produtivista” da história. O que parece é que o ambientalismo autêntico [...] exige nada menos que a rejeição da própria modernidade. A acusação de ter um caráter prometeico, é, portanto, uma maneira indireta de marcar a obra de Marx, e o marxismo como um todo, como uma versão extrema de modernismo, mais facilmente condenada neste particular do que o próprio liberalismo (FOSTER, 1997, p. 162).

Segundo Foster, no entanto, “a visão de mundo de Marx era profundamente – e na verdade sistematicamente – ecológica (em todos os sentidos positivos em que se usa o termo hoje) e que esta perspectiva ecológica era derivada de seu materialismo” (FOSTER, 2005, p.9). O que ficava claro na obra de Marx, afirma Foster, era que “a humanidade e a natureza estavam inter-relacionadas e que a forma específica das relações de produção constituía o âmago dessa inter-relação em qualquer dado período” (FOSTER, 1997, p.165). E cita o próprio Marx para ilustrar o seu pensamento: O homem vive da natureza, isto é, a natureza é o seu corpo, e tem que manter com ela um diálogo ininterrupto se não quiser morrer. Dizer que a vida física e mental do homem está ligada à natureza significa simplesmente que a natureza está ligada a si mesma, porque o homem dela é parte (MARX, apud FOSTER, 1997, p. 165).

Para Foster, é necessário o esforço de um aprofundamento da crítica ao marxismo, em especial daquela que afirma a pouca afinidade da teoria de Marx com a ecologia. Marx, de acordo com a obra de Foster (2005, p. 85), foi “profundamente influenciado pelo materialismo não determinista que ele achava ter encontrado em Epicuro”. Este pensador grego, que foi o objeto da tese de Marx em 1842, tem como sua grande obra Sobre a Natureza, onde o filósofo critica o determinismo de Empédocles e Demócrito. “Os acontecimentos que os seres humanos ocasionavam da liberdade humana, não da mera necessidade. Nem do mero acidente” (FOSTER, 2005, p. 85). Se para Demócrito a necessidade era tudo, Epicuro reconhece três coisas: “o acaso, a contingência e a possibilidade de liberdade”. (FOSTER, 2005, p. 82). A essência do pensamento de Epicuro se Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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manteve na obra posterior de Marx, onde desenvolveu a crítica da sociedade em que vivia. Não é a realidade da humanidade viva e ativa com as condições naturais, inorgânicas, da sua troca metabólica com a natureza, e daí a sua apropriação da natureza, que requer explicação ou é resultado de um processo histórico, mas a separação entre estas condições inorgânicas de existência humana e esta existência ativa, uma separação que só é postulada na relação trabalho assalariado com o capital.” (MARX, Grundrisse, apud FOSTER, 2005, p. 13)

Neste ponto, compreendemos que a questão é o trabalho, sendo ele que promove o afastamento progressivo do homem da fruição da natureza. Tais fundamentos dos escritos de Marx sinalizam para uma visão crítica da organização social do trabalho na sociedade capitalista que vivenciamos até hoje. Deste modo, “des-envolver é tirar o envolvimento (a autonomia) que cada cultura e cada povo mantém com seu espaço, com seu território” (PORTO-GONÇALVES, 2012, p. 81). Do lado de lá a natureza, besta-fera a ser dominada. Do lado de cá, a ferramenta de dominação, a razão tecnocientífica ocidental. Nesta polaridade, o que não era progresso, era considerado atraso e ignorância. Este senso comum, porém, não permite verificar outras nuances do próprio jornalismo e seus próprios valores. Existem, portanto, outros aspectos a serem considerados, como a essência do humano, valores que afirmam, do nosso ponto de vista, na concepção do jornalismo como uma forma de conhecimento. Neste sentido, Foster demonstra que a teoria marxista não tem incompatibilidade com a proposição de soluções da crise ambiental planetária. Muito pelo contrário. Karl Marx não é, para Foster, um pensador “prometeico”, que se dobra ao mito do progresso do iluminismo científico. Marx é um pensador materialista na tradição do grego Epicuro, dialético, uma vez que a relação do homem com a natureza é central no seu pensamento por ser o ponto inicial para tratar da relação homem e trabalho e também por conta da “falha metabólica” na relação do homem com a natureza por conta da organização social capitalista. Para os materialistas, a vida nascia da terra, em vez de descer dos céus. Aponta Foster (2005) o direcionamento no pensamento de Epicuro: nenhum determinismo ou essencialismo – isto é, acontecimentos baseados na mera propriedade das coisas – poderia explicar 'acontecimentos' que estavam 'feitos', segundo Epicuro, porque tais 'acontecimentos' pertenciam ao reino do acidental (contingência). Gostaríamos de destacar a seguir a questão do conceito de falha metabólica, central na obra de Marx e decisivo para esta visão do ambientalismo e sua relação com o jornalismo e

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seu ethos.

A falha metabólica Stoffwechsel, a palavra alemã para metabolismo, é uma das categorias conceituais da análise teórica de Marx – e implica uma noção de “troca material” subjacente à noção dos processos biológicos estruturados de crescimento e decadência, englobados pelo termo. Foi usado na definição do processo de trabalho em geral, para descrever a relação do homem com a natureza através do trabalho: O trabalho é, antes de qualquer coisa, um processo entre o homem e a natureza, um processo pelo qual o homem, através das suas próprias ações, medeia, regula e controla o metabolismo entre ele e a natureza. Ele encara os materiais da natureza como uma força da natureza. Ele põe em movimento as forças naturais que pertencem ao seu próprio corpo, aos braços, pernas, cabeças, mãos, a fim de apropriar os materiais da natureza de uma forma adaptada às suas próprias necessidades. Através deste movimento, ele atua sobre a natureza externa e a modifica, e assim, simultaneamente altera a sua própria natureza... Ele (o processo de trabalho) é a condição universal da interação metabólica (stoffwechsel) entre o homem e a natureza, a perpétua condição da existência humana imposta pela natureza. (FOSTER, 2005, p. 221)

Esta noção é apresentada por Marx como um conceito central de “falha” na “interação metabólica entre o homem e a terra”, isto é, “metabolismo social prescrito pelas leis naturais da vida”, através do “roubo” ao solo de seus elementos constitutivos, exigindo a sua “restauração sistemática”. Esta contradição se desenvolve através do crescimento simultâneo da indústria e da agricultura, ambas de larga escala, sob o capitalismo, com a primeira oferecendo a segunda os meios para a exploração intensiva do solo. Marx argumentava que o comércio de longa distância dos alimentos e das fibras para o vestuário tornava o problema da alienação dos elementos constitutivos do solo muito mais que uma “falha irreparável”. Explica Foster que a noção de metabolismo e sua falha foram utilizadas por Marx aplicada ao social: “A grande questão, todavia, é o modo como esse sistema é regulado, sobretudo no caso da sociedade humana. No caso de Marx, a resposta era o trabalho humano e seu desenvolvimento dentro de formações sociais historicamente específicas” (FOSTER, 2005, p. 228). E o metabolismo de um sistema social vivo? Como se regula? Pela informação e não mais pelo trabalho! Seria esta uma variação a ser verificada. Mas não seria mais correto dizer Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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pelo trabalho para obter uma determinada informação? E este trabalho para obter uma determinada informação não é uma descrição precisa do trabalho jornalístico? Assim, a regulação do sistema pela interação metabólica está, hoje, ainda, sujeita a mesma falha descrita por Marx, uma vez que vivemos dentro de um sistema capitalista. Foster (2005) indica que sim. E considera que os ramos mais atuais do pensamento ambiental optaram por propor que a sociedade se organize por meio de produtores associados, rompendo com o modo de produção típico do capitalismo. Para Marx, uma parte crucial da sua concepção materialista de natureza, isto é, à sua base na história natural – sempre foi o modo como a alienação da terra se havia desenvolvido em relação a alienação do trabalho – problema hoje tratado pela etnoecologia radical (e pela ecologia materialista cultural de um modo mais geral). O mais importante a ser enfrentado pela sociedade de produtores associados, Marx enfatizou reiteradamente na sua obra, seria tratar do problema da relação metabólica entre seres humanos e a natureza, sobre as condições industriais mais avançadas prevalentes na esteira da crise revolucionária final da sociedade capitalista. (FOSTER, 2005, p. 304)

Por muito tempo a modernidade foi referenciada incansavelmente como o bordão do progresso tecnológico, na mídia e além dela. Uma redução de um imaginário complexo, em que sonhos, desejos e realizações portam contradições que buscam um equilíbrio, a apenas um dos seus aspectos, tornado necessário, incontornável – o progresso. Uma noção de progresso limitada que era alimentada diariamente jornalismo. Neste ponto, o jornalismo enquanto empresa capitalista de venda de informações manter-se-ia ao lado das forças progressistas técnico-científica. Este senso comum, porém, não permite verificar outras nuances do próprio jornalismo e questioná-los em seus próprios sofismas. O jornalismo é, então, uma ação cultural do ser humano que adaptou a prática de informar mutuamente a necessidades inerentes do ser humano enquanto ser social. Esta necessidade de dar voz ao daimon teve muitas alterações no tempo histórico. Com o advento da imprensa moderna, o fazer obteve uma repercussão crescente dentro dos regimes democráticos republicanos nas sociedades ocidentais, cada vez mais urbanizadas e com civilização centrada em valores técnicos, científicos e de capital. Longe de ser, entretanto, uma estrada aberta para o progresso do futuro, esta trajetória é sinuosa. E mais. No seio de toda a reflexão moderna repousam no imaginário social do jornalista os mitos ancestrais da necessidade de dar voz aos afetos e sentimentos. De ligar os acontecimentos frios ao calor de vidas múltiplas. O que foi sendo integrado ao ethos moderno do jornalismo era colado no

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painel das redações um dia como mantra e no dia seguinte já era passado. O caráter de oscilação e variação demonstrava a sintonia dos jornalistas com sua sociedade, plurais nos pensares e saberes. A relação orgânica dos saberes jornalísticos com as demandas sociais das épocas foram se sucedendo. O nascimento da imprensa-negócio na modernidade trouxe valores arcaicos e os mesclou com atualidades do sistema capitalista. Para o bem e para o mal. E trouxe as falhas do sistema para a discussão pública. Ao invés de ser monolítica, a imprensa se construiu pelo trabalho de homens e mulheres que a usaram para fins múltiplos, como um grande canal de discussão pública de questões importantes para dadas organizações sociais. Diluídos em uma infinidade de mensagens jornalísticas diárias – as notícias - os valores presentes neste ethos de obter e divulgar informações são constantemente construídos, analisados, comparados, aplicados e até substituídos por outros valores. Na mesma medida, o passado e as práticas mais antigas são recuperadas e reposicionadas no universo simbólico que rege as práticas jornalísticas. Assim, episodicamente, surgem valores outros, novos, oriundos de situações inéditas e imponderáveis que exigem definição de ações culturais. E assim, os discursos jornalísticos são renovados. E seu ethos profissional tem momentos de busca do extraordinário, onde brilha o daimon do jornalista que executa o impensável e destrói verdades. Momentos estes que se intercalam com retrocessos onde os poderes constituídos da política, da economia, da religião, da guerra e da técnica obscurecem o contato do jornalismo com o social e silenciam o daimon. Antes, porém, é preciso detalhar a questão do ambientalismo e a complexidade. Estes dois saberes produziram para o mundo do século 21 uma forte crítica e contestação às posições estabelecidas pela modernidade. Podemos aqui estabelecer que o pensamento ambiental tem em seu interior um valor de crítica ao capitalismo que bebe nas fontes de Marx. Não é só isso. A questão da complexidade da crise ambiental forçou a inclusão nesta crítica de outras variáveis e conceitos.

O ambiental e a complexidade no Jornalismo Um dos autores que fez sua trajetória teórica saindo de uma filiação inicial a perspectiva marxista e, hoje, abre seu referencial para buscar estabelecer uma outra epistemologia ambiental é o mexicano Enrique Leff. Este autor aborda as questões ambientais da atualidade fazendo o percurso teórico que demonstra a existência da contradição inicial do capitalismo e o trabalho, apontada por Marx, mas também inclui uma segunda contradição

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elementar, a da natureza versus o capitalismo. Utilizando o legado da análise crítica de Marx e de seus seguidores, como Althusser e Lukacs, o pesquisador mexicano inclui o legado do pensamento teórico da pós-modernidade para articular com o saber ambiental a complexidade proposta por Morin (1986), as questões da diferença propostas pelo pensador francês Derrida e de diversidade e de outridade de Levinas. Leff colheu frutos também nos jardins de saber de Bachelard e Foucault. O que Leff propõe é a criação de uma nova racionalidade, fruto da relação direta destes saberes. A racionalidade ambiental abre caminho para superar a estrutura social estabelecida e os paradigmas de conhecimentos instituídos. A sustentabilidade é um propósito que está além das capacidades das ciências e da tecnologia para reverter à degradação ecológica e gerar crescimento sustentável. (LEFF, 2012, p. 118).

A equação em busca de uma sustentabilidade da diferença, da diversidade e da outridade passa pela mobilização de novos atores políticos, entre eles os jornalistas, “orientados por valores e saberes incorporados em suas identidades culturais” (LEFF, 2012, p. 119). Assim, é necessário pensar uma nova dialética. Leff advoga por uma dialética social que emerge do diálogo de saberes. Este percurso teórico vale ser recuperado. E está em nosso entender diretamente ligado à proposição de um ethos diferenciado para o jornalismo do século 21. Comecemos pela racionalidade ambiental: A racionalidade ambiental inclui novos princípios teóricos e meios instrumentais para reorientar formas de manejo produtivo da natureza. Esta racionalidade fundamenta-se em valores (qualidade de vida, identidades culturais, sentidos da existência) que não aspiram a alcançar uma condição de cientificidade. (LEFF, 2012, p. 50).

Assim, de acordo com a proposição de Leff, o capitalismo instaura uma racionalidade “antinatura” que tem um custo na natureza a qual incrementa a “produção de entropia” por meio da degradação ambiental. Tem o capitalismo uma primeira e vital contradição insolúvel entra a ecologia e o capital. E também uma segunda contradição que se estabelece entre a primeira (relações de produção e forças produtivas, ou seja, exploração da força de trabalho pelo capital) e as “condições sociais de produção”, estas relacionadas por uma dialética do social (LEFF, 2012, p. 97). A segunda contradição, que foi sendo elaborada por teóricos ambientais desde 1980, é

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Pensada para inscrever a natureza na perspectiva da reestruturação das condições de produção e das relações sociais no capitalismo induzidas pela crise ambiental, mas não para encarar as contradições depois que o capitalismo se ecologiza-se, depois que internalizasse essas condições emergentes. (LEFF, 2012, p. 97-98).

O que Leff chama de internalização são as inúmeras tentativas de empresas multinacionais de aumentar seu faturamento e acumulação de riquezas pelo uso de instrumentos como o marketing verde que cria discursos de desenvolvimento sustentável para atividades industriais extremamente degradantes do ambiente e de altíssimo impacto nos sistemas biológicos ainda preservados. Um exemplo que serve bem a esta tese é o discurso da “energia limpa” que os governos e construtoras de usinas hidrelétricas produziram. Nada mais falacioso. Este discurso, no entanto, segue sendo proferido, como vemos na análise do noticiário sobre os projetos das hidrelétricas de Garabi e Panambi, projetadas para serem construídas no Rio Uruguai, entre o Brasil e a Argentina, por especialistas, políticos, empresários e membros do staff das empresas públicas de energia do Brasil e da Argentina. Jornalistas dos veículos dos dois países reproduzem a exaustão 2. É o discurso presente nas fontes usuais e oficiais que conferem uma hipotética credibilidade às notícias. Entretanto, dentro do circuito de cientistas e especialistas no tema de hidrelétricas não faltam vozes que proferem um discurso distinto e apontam que não há nada de limpo na geração de energia por meio de hidrelétricas. Constata-se neste ponto que a atual sociedade complexa não pode ser entendida na dualidade da oposição de uma antítese ou a negação de uma proposição, como no caso da colocação do capital em oposição simples à ecologia, o que para Leff é apenas uma lembrança do que estava oculto e encoberto pela “presença positivista do capital” que significa todo o discurso contrário a ele como de “fora da realidade” pela racionalidade dominante. É interessante destacar que outro discurso é possível: “a natureza fala através dos processos de significação, interpretação e apropriação social da natureza”. Ou seja, a natureza fala pela voz dos que vivem nela e com ela. A voz dos ribeirinhos é a voz do rio. É uma voz que existe nos saberes distantes da modernidade. É uma voz que identifica a mescla de culturas e povos que 2

Em nossa pesquisa de tese junto ao PPGCOM da UFRGS, a ser defendida ao final de 2015, desenvolvemos a análise de jornais regionais do Brasil e Argentina que tratam do tema da construção de hidrelétricas no Rio Uruguai, na fronteira entre os dois países. Como conclusão parcial, até o momento, podemos dizer que a presença de fontes oficiais nos noticiários é predominante, sendo que a voz dos moradores ribeirinhos é silenciada no noticiário. Parte do instrumental de análise é a questão das intersecções dos conceitos de ethos jornalístico, natureza, ambientalismo e discurso, que apresentamos neste artigo. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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ocupam a região há 20 mil anos. É uma voz polissêmica, repleta de sentidos e depositária de múltiplas racionalidades. Ouvir a natureza falar é um valor essencial à composição de um ethos jornalístico. Para ouvir a natureza, o jornalista necessita ter outras vozes em seus ouvidos. A ecologista, filósofa e física, Vandana Shiva, que liderou um movimento de mulheres na Índia para impedir o desmatamento de grandes florestas, permitindo a preservação dos saberes ancestrais das comunidades, há diferença entre os saberes presentes nas lógicas das racionalidades científicas tradicionais e os saberes ancestrais. Em uma comunidade no Himalaia o espírito da ciência local sobre as florestas era definido na seguinte frase: “O que as florestas produzem? Solo, água e ar puro”. Junto ao setor industrial da comunidade comercial do local a questão era respondida da seguinte forma: “O que as florestas produzem? Lucros com resina e madeira” (SHIVA, 2003, p. 17). Por conta da percepção destes diferentes sentidos nos discursos, o movimento ecológico das mulheres garhwalis, denominado Chipko, passou a não reproduzir apenas o conflito, mas a disseminar um saber científico de uma relação filosófica com a natureza distinta da dominante. Novos sentidos foram formulados e colocados em circulação pelo discurso. Para evitar que a cultura vire apenas comércio. Edgar Morin, falando sobre o pensamento duplo, diz que: Nossos ancestrais caçadores-coletores que, no curso de dezenas de milhares de anos desenvolveram as técnicas da pedra e elaboraram depois as do osso e do metal, dispuseram e usaram em suas estratégias de conhecimento e de ação um pensamento empírico / racional / lógico e produziram, ao acumular e organizar um formidável saber botânico, zoológico, ecológico, tecnológico, uma verdadeira ciência. (MORIN, 1986, p.167).

Todo este aparato foi ignorado pelos primeiros antropólogos e tal pensamento excludente permanece arraigado em setores da academia e nos saberes que julgavam possuir a chave de toda a racionalidade. A racionalidade não é uma só. É múltipla. Assim como a cultura que é criada pelo pensamento. E assim também é o jornalismo, produção de conhecimento, ação cultural oriunda de pensamentos de indivíduos inseridos no socialnatural. O jornalismo é múltiplo para ouvir as múltiplas vozes dos que falam a voz múltipla da natureza. Aqui, minha atenção retorna à questão do ethos jornalístico. É aqui que as complexidades se cruzam, na formação de sentidos baseada em valores oriundos de uma determinada forma de relação com o social, a ser exercida por um trabalho que não pode Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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ignorar a questão da natureza e se voltar apenas para o capital, sob pena de perder seu vínculo fundamental, fundador e que determina o que é ser jornalista. Se há uma falha metabólica na relação do homem com a natureza por meio do trabalho, produzindo contradições no próprio sistema de produção capitalista e nas relações sociais, não pode haver o silenciamento destes embates no discurso jornalístico. Acredito que este ponto é primordial para o entendimento do jornalismo enquanto uma ação cultural única e, por essência orgânica de origem, uma forma de trabalho colaborativa. Colaborativa entre os próprios jornalistas e entre os jornalistas e a sociedade de onde estes se originam e com a qual acontece uma interação cotidiana, mediada sim por interesses outros, interesses de ordem do capital, que no atual momento, precedem os conceitos fundadores do jornalismo e transformam a atividade, originalmente crítica, em um modelo de manutenção do status quo do modo capitalista, operando no silenciamento de vozes outras. Ao camuflar as diferenças, alteridades e outridades, o trabalho jornalístico forma sentidos que inibem a polissemia da natureza e, consequentemente, do social. Entendemos que não é possível separar a crise ambiental mundial da questão da produção capitalista, onde a análise de Marx mantém-se atual na demonstração da falha metabólica entre o homem e a natureza, muito embora o próprio Marx aponte que é o trabalho que visa à acumulação de capital que de fato produz esta falha. A manutenção dos valores simbólicos do domínio da natureza e o mito do progresso prometeico é uma característica do capitalismo e não de quem o critica. A questão da outridade perdida foi analisada por Morin que afirma a existência do pensamento duplo em toda a história da humanidade, sendo composto em todos os modos de conhecimento

e

de

ações

um

“simbólico/mitológico/mágico”

e

outro

“empírico/técnico/racional”, encontrando-se os dois modos imbricados completamente em um “tecido complexo” e, mesmo assim, com uma “distinção de fato”. Esta relação dialética entre os dois modos do pensamento é, para Morin, “unidual”, ou seja, uno e duplo: Hemos hablado de 'modo de conocimiento y acción'; ahora hay que emplear también el término de pensamiento, em el sentido em el que el pensamiento constituye el modo superior de las actividades organizadoras del espíritu que, em, por y a través del lenguage, institue su concepción de lo real y su visión del mundo. (MORIN, 1986, p.168).

Para Morin, a constituição do pensamento simbólico leva sempre em consideração esta dualidade. E o que faz o jornalismo se não trabalhar com o pensamento simbólico, muito

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embora tenha sim sua parcela imprescindível de empírico/técnico/racional? Esta constatação me leva a repensar mais uma vez o jornalismo como uma ação cultural humana que pode atuar na “liberdade” do pensamento e da “imaginação”. Pode atuar, tem o potencial para operar na experiência da linguagem de forma autoral para estimular a cooperação social e não a destruição do tecido social pela exacerbação do individualismo e consumo irrestrito de mercadorias como única finalidade da organização social. Esta relação é que tem de ser construída pelo jornalista de um modo distinto ao que em grande medida se pode observar na formulação cada vez mais voltada para o lado técnico da profissão. Pensamos que esta tentativa está fadada ao fracasso. É importante, assim, pararmos para detalhar a experiência da observação e da linguagem que a explica. Como muito bem coloca Maturana: O ser humano é observador na experiência, ou no suceder do viver na linguagem. Porque se alguém não diz nada, não diz nada. A explicação se dá na linguagem. O discurso que explica algo dá-se na linguagem. Uma petição de obediência do outro, quando se faz uma afirmação cognitiva, dá-se na linguagem(...) nós, seres humanos, existimos na linguagem. (MATURANA, 2001, p. 20)

A percepção de muitos teóricos, ativistas, pesquisadores do ambientalismo da atualidade é influenciada pelas proposições de Maturana e a pela divulgação de seu conceito revolucionário de autopoiese, que já apresentamos anteriormente. Da mesma forma, para pensarmos a questão do discurso e da linguagem, é importante manter o norte teórico que as pesquisas de Maturana revelaram e que adotamos como embasamento para falar na necessidade de ações de colaboração no jornalismo para que haja uma evolução do fazer jornalístico, da mesma forma que o biólogo chileno usa para explicar o detalhamento da história da evolução dos seres vivos. Para obter o conhecimento no jornalismo vivo, social, cultural, humano é necessário colaboração. No caminho explicativo da objetividade entre parênteses nossa corporalidade é nossa possibilidade, porque é nossa biologia. Este caminho nos abre um mundo de respeito por nós como seres vivos, porque nos damos conta de que aquilo que podemos fazer, podemos fazer na medida em que o fenômeno do conhecer é um fenômeno do vivo. (MATURANA, 2001, p. 31).

O conhecer pertence à esfera do vivo. E o jornalismo é uma forma de conhecimento. E se a necessidade é incorporar a temática universal da crise ambiental, como um dos valores de formação do sentido do fazer jornalístico, a visão apontada por Maturana se completa com os

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parâmetros colocados por Leff, Morin e Shiva anteriormente descritos. Maturana afirma que não podemos ver o mundo com olhos que não incluam a emoção e a experiência da objetividade que vislumbre as múltiplas realidades que um observador tem no seu cotidiano. E não a experiência de uma objetividade que cria uma ilusão de poder universalizar um domínio de conhecimento que seja independente do observador. Para Maturana, “o que nos acontece é que, quando estamos no caminho explicativo da objetividade sem parênteses, pretendemos poder fazer referência a uma realidade independente, e é a referência ao independente de nós o que daria universalidade à nossa afirmação.” (MATURANA, 2001, p.37). Para o biólogo chileno, no entanto, para buscar uma explicação do conhecer, o caminho é outro. Está na interação social delimitada pela emoção: Ainda, digo também que na medida em que as emoções fundam os espaços de ação, elas constituem os espaços de ação. Sim, não há nenhuma atividade humana que não esteja fundada, sustentada por uma emoção, nem mesmo os sistemas racionais, porque todo sistema racional, além disso, se constitui como um sistema de coerências operacionais fundado num conjunto de premissas aceitas a priori. E essa aceitação a priori desse conjunto de premissas é o espaço emocional. E quando se muda a emoção, também muda o sistema racional. (MATURANA, 2001, p. 37)

A constatação de que é na relação do emocional com o racional que se forma o sentido das ações é importante se optamos por entender o jornalismo como uma ação cultural. É necessário que o jornalismo faça uso do emocional. Pois, ao não fazê-lo, ou melhor dizendo, ao alegar não fazê-lo em prol de uma objetividade inexistente, apenas consegue colocar-se em uma posição artificial de distanciamento, onde prioriza um sistema de coerências operacionais que se apoia na falha metabólica entre o homem e a natureza. Afasta-se assim o jornalismo de sua essência mais cara: ser e estar no social, de forma dinâmica e atuante. Em outras palavras, estou dizendo: o social é uma dinâmica de relações humanas que se funda na aceitação mútua. Se não há aceitação mútua e se não há aceitação do outro, e se não há espaço de abertura para que o outro exista junto de si, não há fenômeno social. As relações de trabalho não são sociais. As relações de autoridade não são relações sociais. Os sistemas hierárquicos, como um exército, por exemplo, não são sistemas sociais: são uma maquinaria de um tipo no qual cada pessoa deve fazer algo, mas não é um sistema social. (MATURANA, 2001, p. 37)

O social dinâmico proposto por Maturana, que está apoiado nas relações sociais fundadas na emoção, leva a uma ética que tem o outro e suas diferenças como o princípio Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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maior do existir e de preservação da vida e dos sistemas vivos biológicos. É a ética pela vida. E mostra que o domínio da razão é apenas uma suposição conveniente de uma determinada época da modernidade. Aproximando o pensamento de Maturana com o modo de fazer jornalismo, podemos dizer que, por exemplo, a noção de critérios de noticiabilidade estaria confortavelmente dentro desta reflexão sobre a ética. Com base em que escolhemos – enquanto jornalistas – determinado assunto para ser publicado? Para responder a esta questão surgiu à teoria dos critérios de noticiabilidade. São listados os critérios mais usuais como interesse, novidade e abrangência, porém não é explicado como de fato estes operativos são usados por quem define a notícia, no caso os jornalistas. No caso da cobertura jornalística da obra de uma grande barragem no rio Uruguai, que permitirá a instalação de uma hidrelétrica, o outro são os moradores da região que serão atingidos pela obra: os ribeirinhos. São pessoas que estão fora do espaço de aceitação mútua dos jornalistas que produzem o noticiário. Estão fora da ética. Estão fora do ethos. Estão silenciados discursivamente dentro da falha metabólica que afasta o trabalho jornalístico da questão da natureza, pensada como parte do ambiente necessário para a sobrevivência do ser humano como um animal social. Entre o jornalista que cobre o acontecimento e os ribeirinhos do rio Uruguai não há aceitação mútua. Se pensarmos o jornalismo como integrante dos sistemas vivos, estaremos no universo das interações sociais. Para a biologia de Maturana, a história de um ser vivo é uma história de interações que desencadeiam nele mudanças estruturais: se não há encontro, não há interação, e se há encontro, sempre há um desencadear, uma mudança estrutural no sistema. A mudança pode ser grande ou pequena, não importa, mas desencadeia-se nele uma mudança estrutural. De modo que uma história de interações recorrentes é uma história de desencadeamentos estruturais, de mudanças estruturais mútuas entre o meio e o ser vivo, e o ser vivo e o meio. (MATURANA, 2001, p. 61).

Em não havendo interação social entre o jornalista e o ribeirinho, não há mudança estrutural no sistema. Passa assim a ser o jornalismo praticado em um aparato que apenas mantém as diretrizes do sistema, evitando, ao usar o silenciamento, a exposição de discursos outros que pudessem colocar em contradição o sistema dominante que prioriza o interesse comercial. No meu entendimento, a definição de critérios de noticiabilidade, também chamados de valores-notícia, resulta desta interação comentada por Maturana. Esta interação transformaria em hábito e valores práticas e saberes por conta da recorrência no exercício da Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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profissão, sua praxis, que no decorrer do tempo se fixam ou se alteram no ethos da profissão. Porém, a ausência de interação, congela a práxis e produz um sentido único. A essência do jornalismo teria caráter de influência mútua entre os homens de uma sociedade por se tratar de uma interpretação do ser e do acontecer. É uma “ação cultural”, uma obra do pensamento humano, que influencia no modo como percebemos a sociedade, e que esta intrinsecamente ligada a valores humanísticos que determinam sua finalidade. Sua menor unidade - a notícia tem de impactar a sociedade ao tratar dos valores que esta sociedade considera, naquele momento, essenciais para a manutenção da organização social, ou mais ainda, para a sua evolução enquanto sistema ou organismo vivo. Aí o jornalismo tem o seu valor e finalidades definidos como instrumento do saber humano, imaterial, que influencia e é por esta influenciado. Ou seja, toda a nossa discussão acaba se encaminhando para a relação do saber humano com a realidade. E como se dá a apreensão da realidade, do natural? O diferencial nesta relação, para Maturana, é que não é possível separar a ilusão da interpretação. Por isso, as relações sociais estão no “fundamento do social através da emoção do amor” (MATURANA, 2001, p.48). Amores e afetos são para o biólogo o que de fato interferem nos juízos éticos. No emocional é que nos aproximamos e entramos em contato com os outros membros da nossa sociedade. Não são os preceitos da razão que possibilitam uma ética de convívio, mas sim o amor. Recordando que para o autor, a partir do momento em que assumimos que nenhum observador pode diferenciar entre uma percepção e uma ilusão assume-se que é a operação do observador que define a semelhança. O critério de semelhança ou equivalência é especificado na operação de distinção do observador. E esta operação de distinção, para Maturana, estaria baseada na emoção, no amor. Fazemos juízos de valor pela operação mental de distinção de semelhanças ou diferenças em ações culturais que nada mais são do que as relações entre os indivíduos. Somente existindo amor e emoções pela execução de uma pauta complexa e cansativa, é que muitos jornalistas no mundo inteiro investigaram crimes contra o ser humano e, assim, dignificaram a profissão e fizeram com que ela fosse aceita como uma faceta importante do nosso arranjo social. Outros jornalistas – por fatores que não cabe enumerar agora e, sim, mais adiante – não tiveram a mesma dose de amor ao ethos jornalístico. Refiro-me àquele algo mais, indizível, o verdadeiro daimon a soprar na orelha do trabalhador do discurso que o impele a continuar quando não há mais por que fazê-lo. Não se advoga a ideia romântica de um trabalho quixotesco, mas sim o foco em obter um determinado conhecimento sobre um

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fato que é negado por instâncias detentoras de informação e poder. É a investigação jornalística. É o trabalho de coleta e filtragem de dados. É a transformação de informações brutas em um discurso coerente e contextualizado. No caso do Brasil, prefiro exemplificar com o caso do repórter Randau de Marques que, em 1968, publicou uma série de reportagens sobre a contaminação por produtos químicos de gráficos e sapateiros da cidade de Franca (SP) e foi considerado subversivo pelo regime militar que dominava o Brasil. O trabalho de Marques marcou época por se tratar de furo jornalístico envolvendo uma questão ambiental, tema até então pouco usual na imprensa nacional. A ação do repórter produziu um retorno social entre todos os trabalhadores que deixaram de ser contaminados. Para Maturana, as operações de produção de conhecimento estão contidas na linguagem. De modo que, para se dizer que há recursão, para se dizer que há linguagem, no caso das coordenações de ação, temos que fazer referência à história. O observador que diz isto tem que poder fazer referência à história. De modo que nenhum comportamento isolado, nenhum gesto, nenhum movimento, nenhum som, nenhuma postura corporal, por si só, é parte da linguagem. Mas, se está inserida no fluir de coordenações consensuais de ação, é parte da linguagem. (MATURANA, 2001, p. 59)

O fluir de coordenações consensuais é uma parte da linguagem. O fluir das águas é uma imagem do natural. A linguagem do natural está expressa no fluir dos corpos. Na água, voltamos ao útero. A água é um dos elementos vitais para a vida. É uma das essências do natural. Ver a água faz com que possamos observar a nossa origem. E as narrativas da origem são narrativas mitológicas. A linguagem do mito traz uma maneira de interpretar o mundo. Uma das formas de linguagem para expressar o natural é o mito. Como Morin apresenta a questão, o mito é “inseparável da linguagem e, como Logos, Mythos significa em origem palavra, discurso” (MORIN, 1986, p. 173). No entender de Morin, os dois conceitos nascem juntos na linguagem e depois se distinguem. “O pensamento mitológico tece conjuntamente o simbólico, o imaginário e eventualmente o real” (MORIN, 1986, p. 174). Esta tecitura mencionada por Morin nos interessa em especial. Buscamos neste trajeto encordoar saberes que estão no território de interesse para a proposição de um ethos jornalístico. Neste trajeto buscamos pensar o momento de efetivação de uma prática jornalística e sua expansão mundial durante a modernidade. E a predominância do discurso econômico como matriz dominante é claramente perceptível, no caso, um projeto binacional de construção de uma hidrelétrica no rio Uruguai, na fronteira do Brasil com a Argentina. A formação de um ethos jornalístico necessita da paixão e da emoção que o natural Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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oferece ao pensamento humano, formando novas linguagens e outros discursos. Outros saberes para outra leitura do mundo, onde não é mais o progresso econômico embasado na ciência que domina a formação de sentidos. Deve se vista não como uma crise, mas como uma nova chance de sintonizar com a maioria da população a arte de fazer jornalismo como uma ferramenta de intervenção social em benefício do equilíbrio das condições de vida mínimas, negadas hoje para mais de 1/3 dos habitantes da terra. Não basta apenas entender a formação da vida como uma composição cooperativa da natureza. É preciso incluir uma pequena partícula de outro imaginário na racionalidade ocidental. É necessário semear pelos campos infindos do simbólico as leituras silenciadas do mundo, escanteadas com a colonização da América para os rincões de fundo de mato que habitam os ribeirinhos da civilização do futuro. Está imersão nas águas conduz o ser humano ao seu nascer, a sua fonte de sentido, a miríade de sentidos possíveis. É levar a racionalidade ambiental ao um mergulho profundo no mundo não-ocidental. O mundo do continente que mescla todos os povos. Da terra de muitos. Do grito dos afogados.

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Mídia, imaginário e a relação com a responsabilidade social Media, imaginary and the relationship with social responsibility Médias, imaginaire et le rapport à la responsabilité sociale Sueli FERREIRA SCHIAVO 1 Universidade Paulista, São Paulo, Brasil

Resumo Este texto inserido no projeto de pesquisa da autora, reflete sobre a atenção que se deve ter às imagens técnicas veiculadas pelos suportes de mídia eletrônica, pelo caráter estruturante com que incidem sobre o imaginário, desencadeando pensamentos, simbolismos, vínculações com aprendizados da infância. Trata-se de uma revisão bibliográfica e documental fundamentada nos trabalhos de estudiosos que analisam sobre mídia, imagens e imaginário, tais como: Gilbert Durand, Malena Contrera, Norval Baitello Jr., Vilem Flusser, entre outros. O estudo levantou dados estatísticos e visões téoricas e analisou sobre o enfrentamento dessa atual situação que acontece no Brasil. Palavras-chave: mídia; imagens; imaginário; imaginação; criança. Abstract This text is inserted in the author's research project, it reflects about the attention it should be given to technical images conveyed by supports of the electronic media, by the structural nature that they affect on the imaginary, triggering thoughts, symbolism, connections with childhood learning. It is a bibliographical and documentary review based on the works of scholars who analyze on media, images and imaginary, such as: Gilbert Durand, Malena Contrera, Norval Baitello Jr., Vilem Flusser, among others. The study raised statistical data and theoretical views and analyzed about facing this current situation that happens in Brazil. Key words: media; images; imaginary; imagination; child. Introdução O objetivo deste texto que constitui parte do projeto de pesquisa da autora é a reflexão sobre a atenção que se deve ter às imagens técnicas, conforme definição de Flusser (2008) que será apresentada mais adiante. As imagens técnicas são as veiculadas pelos suportes de mídia eletrônica e possuem um caráter estruturante com que incidem sobre o imaginário, desencadeando pensamentos, simbolismos, vínculações com aprendizados da infância e culturais. Trata-se de uma revisão bibliográfica e documental realizada nos trabalhos de estudiosos que analisam sobre mídia, imagens e imaginário, buscando considerar possíveis 1

E-mail de contato com a autora: [email protected].

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caminhos

para

o

enfrentamento

dessa

atual

situação

que

acontece

no Brasil.

No psiquismo humano as imagens veiculadas nos meios eletrônicos ultrapassam a mera representação e se associam às imagens internas na produção de sentidos e a ordenação de crenças e valores. Na obra Estruturas Antropológicas do Imaginário, Gilbert Durand (2012, p. 441) apresenta a construção de uma “classificação isotópica das imagens”. Para Durand (2012, p. 381) o regime 2 das imagens não é estreitamente determinado pela orientação tipológica do caráter, mas parece influenciado por fatores ocorrenciais, históricos e sociais”. Ao classificar como regime explica Durand (2012, p. 64) que se trata de “agrupamento de estruturas vizinhas”. Conforme é possível entender de Durand (2012), há influência das imagens incidindo tanto no indivíduo quanto nos grupos sociais. Isso significa que as imagens que estão na natureza e nos diferentes meios em que são captadas pelo processo perceptivo humano se associam à cultura vigente que é moldada pelo processo educativo formal e informal. Considera Durand (2012, p. 397) que, “toda cultura inculcada pela educação é um conjunto de estruturas fantásticas, […] sob a forma de apólogos, fábulas, exemplos, lugares seletos na literatura, no museu, na arqueologia ou na vida de homens ilustres”. Isso significa que há mais a ser considerado quando se observa a propulsão com que as imagens são projetadas nos diferentes meios eletrônicos, pois ultrapassam limites necessários para que aconteça a percepção e a reflexão sobre as imagens internas. Segundo Contrera e Baitello Jr. (2006), a profusão de imagens pode promover um processo de anestesiamento no telespectador/consumidor dos conteúdos produzidos para os aparatos eletrônicos. Trata-se de uma sedação, um distanciamento da percepção do corpo pela atenção voltada para as imagens. O que está considerado diz respeito a que os seres humanos nos aspectos biológicos, psicológicos e sociais se constituem em um lento desenvolvimento, a intensa exposição às imagens técnicas desde os primeiros anos de vida, como se tem observado nos grandes centros urbanos pelo uso significativo de aparatos eletrônicos, tais como: celulares, tablets, computadores, entre outros, caracteriza na atualidade uma condição de interferência nos processos da subjetivação humana. Há a possibilidade de direcionamento dos conteúdos produzidos para essas tecnologias, pois vive-se em um modelo de sociedade orientada pelo consumo. O avanço contemporâneo do uso de suportes eletrônicos não encontra precedente histórico. Não há informação ou registros analisando a influência sobre as pessoas desde o 2

Durand (2012, p. 443) classifica as imagens em Regime Diurno e Regime Noturno (nota inserida pela autora). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1128

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início do uso de aparatos tecnológicos até o período atual, essa atenção é mais recente. Os dados estatísticos sobre a massificação do uso de aparatos eletrônicos e os reflexos nos grupos sociais ainda não fazem parte das considerações de uma política pública. Essa complexidade que repercute no corpo e na mente das pessoas, prescinde de recursos que denotem o reconhecimento de que há riscos associados, principalmente no caso das crianças pequenas. Produtores e disseminadores de conteúdos se isentam de qualquer compromisso sobre o que os resultados estatísticos e qualitativos observados no comportamento de grupos sociais possam demonstrar. Entretanto, as estatísticas indicam que os seres humanos de diferentes idades, principalmente as crianças, dedicam um período significativo de tempo diário no uso de aparatos tecnológicos. Por exemplo, em uma pesquisa realizada em 2014, dados apresentados apontaram comportamentos e números estatísticos do uso de celulares por crianças e adolescentes: O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) divulgou os resultados da TIC Kids Online Brasil, pesquisa anual do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) sobre o uso da internet pelos jovens. O estudo entrevistou mais de 2 mil crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos a respeito dos equipamentos, local e atividades realizadas durante o acesso. Segundo a pesquisa, 81% dos jovens acessam a internet todos ou quase todos os dias. Ela apontou o aumento do uso de celulares para a atividade: 82% contra os 53% de 2013. Em contrapartida, o acesso por desktops despencou: de 71% em 2013 para 56%. O estudo também atestou a grande presença nas redes sociais (79% dos entrevistados possuem perfis em sites do gênero) e o uso da internet para trabalhos escolares (68%). Em resposta à pesquisa, o UNICEF, a Safernet e o Google promoveram a campanha “Internet Sem Vacilo” para combater o cyberbullying, incentivar comportamentos positivos e abordar temas delicados, como o sexting (troca de mensagens e imagens íntimas), a privacidade, relacionamentos online e preconceito na rede. (IDGNOW, 2015)

O uso massivo de mídia eletrônica é também observado em crianças muito precocemente. Os recursos eletrônicos maximizam o acesso a informação de um número muito grande de pessoas em diversas localidades. Há também potencialmente por meio desses recursos a ocorrência de fenômenos de violência. Isso traz associado uma necessidade de atenção dos entes sociais, conforme apontava sobre esses riscos Silvia Livingstone (2013), relativo a suas observações dos dados de pesquisa do uso de Internet por crianças, O acesso à Internet tem potencializado a exposição de uma ampla gama de riscos on-line, alguns dos quais são comuns no mundo off-line (tais como o bullying, a pornografia e a exploração sexual), enquanto outros são novos ou Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1129

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pelo menos têm sido substancialmente reconfigurados na vida das crianças comuns (tais como o aliciamento de crianças, a violação de dados pessoais e da privacidade, o rastreamento da localização geográfica, as formas indesejadas de envio de mensagens sexuais e de assédio sexual, além da facilitação de casos de automutilação). A rápida difusão da Internet e de outras tecnologias on-line coloca diante dos formuladores de políticas públicas, dos governos e do setor produtivo a importante tarefa de identificar os riscos associados ao uso da Internet. (LIVINGSTONE, 2013, p. 19)

O uso de aparatos eletrônicos está associado com um interesse que fascina e captura a atenção. As necessidades humanas de afeto, pertencimento, estar em grupo, passam a ser mediadas pelo uso de recursos tecnológicos, que segundo observa Hans Belting (2012), muitas vezes não se distinguem esses aparatos em relação às imagens que são transmitidas por meio deles. Segundo Belting (2012) precisa da intenção humana de fazer a distinção entre imagem e o respectivo suporte midiático para separar um do outro e não se confundir.

Imagem e magia Considerando o conceito de imagem e a complexidade desse tema, Vilém Flusser (1985) que se refere ao conceito de imagens técnicas para considerar as produzidas com o uso de recursos tecnológicos digitais para serem visualizadas em aparatos eletrônicos coloca, Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões espácio-temporais, para que se conservem apenas as dimensões do plano. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação. (FLUSSER, 1985, p. 7)

Neste recorte conceitual da obra de Flusser, a imagem está considerada em um suporte midiático, está relacionada com a abstração que os seres humanos possuem em seu processo cognitivo para a compreensão que recompõe mentalmente as dimensões representadas pela imagem. Recursos como perspectiva, gradiente de cores, diferentes ajustes na intensidade da iluminação, entre outros utilizados para tornar em escala a imagem o mais próximo possível de um modelo de realidade. Segundo Flusser (1985) essa abstração está relacionada com a imaginação, que significa um reflexo da ação das imagens nos processos de subjetivação. Isso é corroborado pelo que coloca Hans Belting (2006) sobre a imagem, como algo que pode estar fora ou dentro do processo de percepção humana. Para Belting, há um processo de interação do corpo com a imagem que usa de diferentes sentidos humanos.

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Em termos antropológicos eu contestaria qualquer dualismo rígido, que tão freqüentemente separa a representação interna da externa – utilizando-nos aqui da terminologia atual em pesquisa neurobiológica – e que, portanto, as designa para duas áreas inteiramente distintas. Certamente nosso cérebro é local de representação interna, mesmo no processo que simplificamos ao chamar simplesmente de percepção. […] as imagens não existem só na parede (ou na tevê) nem somente em nossas cabeças. Elas não podem ser desembaraçadas de um exercício contínuo de interação. (BELTING, 2006, p. 73)

Belting (2006) reforça que, em relação ao corpo, a imagem em um mesmo determinado momento pode estar tanto fora como dentro. Nesse processo de percepção das imagens para Belting, há o que esse autor considera uma interação do corpo com a imagem, existindo algo que capta e faz prestar atenção, porque faz algum sentido para a pessoa. Para Gilbert Durand (2000) na consciência humana a representação da imagem pode ser complexa, porque pode estar buscando interpretar algo que não se tem acesso de conhecer senão pela construção de uma ideia a respeito. A consciência dispõe de duas maneira para representar o mundo. Uma directa, na qual a própria coisa parece estar presente no espírito, como na percepção ou na simples sensação. A outra indirecta quando, por esta ou por aquela razão, a coisa não pode apresentar-se à sensibilidade, como por exemplo na recordação da nossa infância, na imaginação das paisagens do planeta Marte, na compreensão da dança dos electrões en torno do núcleo atómico ou na representação de um além da morte. Em todos estes casos de consciência indirecta, o objecto ausente é representado na consciência por uma imagem, no sentido lato do termo. (DURAND, 2000, p. 7)

Segundo Durand, as imagens podem ou não ligar a um significado ou a um sentido e instiga que, “a diferença entre o pensamento directo e pensamento indirecto não é tão definitiva”. (DURAND, 2000, p. 8) Some-se a toda essa complexidade relacionada da imagem o que Edgar Morin considera sobre a linguagem e a magia, Por meio da palavra, no sinal, da inscrição, do desenho, esse objeto adquire uma existência mental até mesmo fora de sua presença. Assim, a linguagem já abriu a porta à magia: desde o momento em que toda e qualquer coisa traz imediatamente ao espírito a palavra que a identifica, essa palavra produz imediatamente a imagem mental da coisa que ela evoca e confere-lhe presença, ainda que ausente. (MORIN, 1975, p. 107)

Na obra Introdução ao Pensamento Complexo, Morin (2007) discute a consciência humana, “de uma maneira incerta sem dúvida, reflete o mundo: mas se o sujeito reflete o Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1131

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mundo, isto pode também significar que o mundo reflete o sujeito. [...] Assim, tanto pode ser o objeto o espelho para o sujeito como o sujeito para o objeto". (MORIN, 2007, p. 42) Esse processo de espelhamento como Morin (2007) menciona, contribui para a compreensão de como acontece a influência, a pessoa tem a sua subjetividade afetada pela magia das imagens. Há também a ser considerado o que Jung (2000, p. 16) coloca sobre as imagens universais que são arcaicas, os arquétipos. Segundo Jung (2000, p. 23) “a humanidade sempre teve em abundância imagens poderosas que a protegiam magicamente contra as coisas abissais da alma, assustadoramente vivas”. A produção de imagens internas para Jung (2000) está relacionada à própria existência humana e seus desafios. Isso acontece de forma cumulativa. Pelo que consideram esses autores, percebe-se que o tema imagem é um campo vasto, dispõe de muitas variantes de análise, está intimamente relacionada à existência humana e se distingue e se confunde entre as imagens externas e internas. Pelos aparatos tecnológicos na atualidade há uma profusão de imagens criadas que são projetadas com muita rapidez, um fluxo intenso, que tem uma intenção e que busca um sentido que seja compreendido por todos que a acessam. Sobre esse refletir o mundo, Flusser (1985) explica que na arte pré-histórica a magia das inscrições como as encontradas nas cavernas estava relacionada aos mitos, formas humanas de compreender a realidade e as vivências e que hoje a produção audiovisual apresenta um modelo ritualizado, que não necessariamente está relacionado às vivências, mas que pode influenciar o comportamento dos receptores. Alerta Flusser (1985) haver uma significativa diferenciação na atualidade, porque há um direcionamento de alguns para muitos dentro de um modelo de sociedade em que há um processo que envolve massificação. A produção e distribuição dessas imagens é comandado pelos responsáveis de uma extensa cadeia produtiva que envolve diversos conglomerados privados usando de diferentes tipos de tecnologias e programações. Malena Segura Contrera e Noval Baitello Jr. (2006) analisam criticamente o que representa essa profusão de imagens criadas e reproduzidas por meio eletrônico. Vivemos em sociedade iconofágicas, e o fenômeno que temos é ainda mais extremo: inventa-se a imagem sem sequer a mínima referência a nenhum fenômeno percebido, sem a necessidade sequer de mentir, de simular. O que importa já não é nem mais a imagem simulada, é apenas o processo de mostragem, de explicitação, do consumo e do auto-consumo que se realiza por meio desse processo. As experiências da percepção concreta (ou seja, as imagens que A. Damásio chama de sômato-motoras ou os processos cognitivos que F. Varella chama de enactivos) simplesmente não entram no Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1132

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jogo. É a era do homem que não é mais capaz de conjugar sua experiência perceptiva com sua vivência interior (a dissociação plena de uma era esquizofrênica), já que toda a forma de percepção e de vivência interior passa a ser submetida à era da vertiginosa produção de imagens funcionais que só se referem a si mesmas. Dessa forma, põe-se a perder o poder maior das imagens percebidas (imagens exógenas) que reside justamente em acionar o repertório de significados que o receptor possui em sua memória cognitiva advindo de outras imagens que compõem esse repertório imaginativo composto de uma gama de variedades sensoriais (imagens sômato-motoras, inclusive). Na contemporaneidade, por conta do exaustivo uso comercial das imagens visuais, essas imagens visuais percebidas evocam, por parte do receptor, apenas o desencadeamento cognitivo de mais imagens visuais do mesmo tipo, gerando um quadro muito próximo dos labirintos de espelhos nos quais a proliferação infinita das imagens apenas conduz ao nada. (CONTRERA; BAITELLO JR., 2006, p. 120-121)

Contrera e Baitello Jr. referem-se aos déficits que podem se acumular no desenvolvimento pela profusão de imagens que não ligam a um processo reflexivo do pensamento sobre as

experiências e necessidades humanas. Conforme entendem esses

autores isso pode promover uma sedação em que se continua a consumir intensamente as imagens, sem uma crítica sobre isso. Também pode representar uma limitação

da

imaginação, como imagens em ação interativa nos processos internos cognitivos. Na obra O cinema ou o homem imaginário, Edgar Morin (1970) trata das imagens e da relação delas com os afetos, porque à medida em que se identifica com aquela proposta de conteúdo apresentada, a pessoa movimenta ideias da fantasia ou da ilusão de sua própria vivência. Entretanto, para Morin, o expectador vive na imagem o espelhamento de uma experiência mental que ao mesmo tempo é como se estivesse lá, mas não estava. Morin (1970) comenta sobre essa magia. A magia do cinema se vai inscrever no quadro da lei geral da estética. O imaginário estético é, como todo o imaginário, o reino das necessidades e aspirações do homem, incarnadas e situadas no quadro de uma ficção. Vai alimentar-se às fontes mais profundas e intensas da participação afectiva e, por isso mesmo, alimentar mais intensas e profundas participações afectivas. (MORIN, 1970, p. 121)

Conforme Morin, há uma magia que confere ao expectador uma experiência imaginária relativa aos afetos nos audiovisuais produzidos para os meios eletrônicos. O seres humanos são afetados pela produção audiovisual. Na obra O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade, Flusser (2008) faz uma distinção em relação ao gesto sobre como eram produzidas tradicionalmente as Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1133

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imagens e como os meios digitais produzem as imagens técnicas. Coloca Flusser (2008, p. 19) que, “a imagem tradicional é produzida por gesto que abstrai a profundidade da circunstância, isto é, por gesto que vai do concreto rumo ao abstrato. A tecno-imagem é produzida por gesto que reagrupa pontos para formarem superfícies, isto é, por gesto que vai do abstrato rumo ao concreto”. Isso significa que a imagem tradicional, na concepção de Flusser (2008), promove uma ligação com um objeto que é possível de ser identificado na realidade direta que pode ser experienciada, enquanto que por meio dos recursos tecnológicos, é possível inventar uma realidade imaginária que não necessariamente tem correspondência com o real. Essa diferenciação, que também propicia ao expectador um tipo de experiência, pode-se compreender como mimética, pois implica em uma semelhança. Flusser (2008, p. 29) reforça, “a recepção das imagens técnicas exige de nós consciência que resista ao fascínio mágico que delas emana e ao comportamento mágico-ritual que provoca”. Esse entendimento sobre a influência do aspecto mágico contribui para compreender porque as imagens técnicas levam ao consumo de mais imagens. Christoph Wulf (2013) na obra Homo Pictor – imaginação e aprendizado mimético no mundo globalizado, coloca que: A mimesis pertence ao âmbito da educação, da socialização e das relações de poder. Processos miméticos não são meros processos de imitação ou reprodução. Pelo contrário, eles requerem uma configuração individual por parte das crianças, dos jovens e dos adultos. A medida dessa diferença individual, nos processos miméticos, varia de acordo com os diferentes condicionamentos. (WULF, 2013, p. 78)

Conforme Wulf (2013), o processo de influência externa que se reflete no fenômeno mimético varia de intensidade no comportamento das pessoas por uma questão relacionada aos condicionamentos e à configuração individual.

Essas diferenciações individuais

apontadas por Wulf (2013) permitem compreender, em relação ao que constam de conteúdos nos meios eletrônicos, o porquê de algumas pessoas demonstrarem pelo seu comportamento, estarem mais influenciadas do que outras quanto às mesmas experiências vivenciadas. Para Wulf (2005, p.122), “comportamentos e reações dos que realizam a mimese se expressam corporalmente, são imitados e são memorizados na forma de imagens, sequência de sons e de encadeamento de movimentos”. Isso faz lembrar o comportamento de adultos cada vez mais frequentemente observável em locais públicos com fones de ouvido, olhando ou manuseando seus celulares com a atenção direcionada ao aparelho. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1134

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Wulf (2005, p. 125) questiona, “quais são as informações transmitidas pelas imagens às crianças? […] Qual é a relação entre o mundo interior de imagens do indivíduo, isto é, imaginário individual, e o mundo das imagens da cultura, isto é, imaginário coletivo?”. Considerando-se o que é possível observar atualmente no comportamento de pessoas em ambientes públicos com o uso frequente de aparatos tecnológicos, assim como o recorte apresentado neste texto sobre os dados estatísticos relativos ao riscos para crianças quanto ao uso dessas tecnologias eletrônicas, corroboram a compreensão de estudiosos sobre a influência das imagens e do imaginário sobre os grupos sociais. Para Wulf (2005, p. 126). “o homo sapiens conhece um mundo duplo: o mundo dos objetos que estão ao seu redor e o mundo das representações, mundo da imaginação”. Baseando-se na crítica de Flusser quanto ao uso abusivo de aparatos tecnológicos, colocam Silva e Baitello Jr. (2013, p. 2-3), “no contexto contemporâneo, onde a produção das chamadas imagens técnicas impera, passa o homem a denominar-se funcionário, isto é, pessoa que brinca com aparelho e age em função dele (FLUSSER, 1985, p. 9). Por sua vez, a máquina por meio da qual se estabelece a produção recebe a designação de aparelho, um brinquedo que simula um tipo de pensamento”. Esses autores reforçam a questão de que não é mera brincadeira o uso do tempo das pessoas. Dedicados ao uso de aparatos tecnológicos o tempo das pessoas para as atividades que envolvam trocas afetivas presenciais estará comprometido. Mediadas por conteúdos e programas que são produzidos e distribuidos por conglomerados privados, fica-se na dependência do compromisso ético e da responsabilidade social de quem define os conteúdos dessas imagens, uma vez que, pelos fundamentos apresentados, há interferência na constituição dos sujeitos nos diferentes grupos sociais.

Conclusão Este estudo refletiu sobre a influência das imagens técnicas da mídia eletrônica sobre o imaginário dando ênfase ao período da infância, por ser a criança mais vulnerável. A ênfase considerada foi em relação à questão da responsabilidade social, entendida como o cuidado com a formação social dos sujeitos. Dados estatísticos foram levantados e ponderou-se que tem havido uma aumento significativo do uso da mídia eletrônica. Fundamentou-se na visão de estudiosos sobre a influência das imagens que são produzidas e distribuidas por meio dos aparatos tecnológicos.

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No que diz respeito ao processo de compreensão da imagem, este esteve relacionado à magia, diferentes autores consultados consideram a questão da imaginação, que diz respeito à associação das imagens externas às imagens internas pela pessoa em um processo criativo. O imaginário esteve relacionado com o aspecto coletivo do conjunto das representações no tocante aos afetos e às imagens arcaicas e da história social e cultural. Os dados estatísticos apontaram um aumento no percentual de consumo de imagens relacionado com o tempo despendido no uso de aparatos tecnológicos. Considerando-se principalmente no caso de crianças, isso apresenta riscos potenciais associados, porque esses recursos tecnológicos capturam a atenção e o tempo que poderia estar dedicado a outras atividades da infância e provoca um processo de sedação. Um dos pontos levantados diz respeito a que as imagens técnicas não necessariamente conectam as pessoas ao mundo real e às experiências vivenciadas, podem promover a geração de déficits sensoriais e levam à necessidade de consumo de mais imagens. Pelo que foi compreendido pelas análises de estudiosos há diferentes questões sociais e culturais a serem observadas. Considera-se que seria importante para o interesse dos grupos sociais, haver a disponibilização de informações de modo a observar riscos associados à influência do uso de aparatos tecnológicos. Tais informações poderiam se refletir na construção de políticas públicas que permitem cuidados e a garantia de direitos. Diante das considerações levantadas, a responsabilidade social no que tange a produção de conteúdos produzidos pelos conglomerados privados e distribuidos por meio dos aparatos tecnológicos, é uma questão que está posta para os diferentes entes sociais.

REFERÊNCIAS BAITELLO JR., Norval. A serpente, a maçã e o holograma: esboços para uma teoria da mídia. São Paulo: Paulus, 2010. CONTRERA, Malena Segura. Mediosfera: meios, imaginário e o desencantamento do mundo. São Paulo: Annablume, 2010. CONTRERA, Malena Segura; BAITELLO JUNIOR, Norval. Na selva das imagens: Algumas contribuições para uma teoria da imagem na esfera das ciências da comunicação. Significação – Revista de Cultura. São Paulo: Programa de Pós Graduação em Meios e Processos Audiovisuais - ECA-USP, v.33, n. 25, 2006. DURAND, Gibert. A Imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 2000.

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FLUSSER, Vilém. Zona Cinzenta entre Ciência, Técnica e Arte, Cadernos de Ciência e Tecnologia, vol. 06, nº 1, jan./abr, 1989. ______. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Editora Hucitec, 1985. ______. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008. IDGNOW. Uso de internet móvel dispara entre jovens brasileiros, aponta pesquisa. Redação. Publicada em 29 jul. 2015. Disponível em: < http://idgnow.com.br/internet/2015/07/28/usode-internet-movel-dispara-entre-jovens-brasileiros-aponta-pesquisa/ >. Acesso em 05.07.2015. LIVINGSTONE, Silvia. Prefácio. In: Pesquisa Tic Kids Online Brasil 2012. São Paulo: Comitê Gestor de Internet do Brasil, 2013. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007. ______. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Moraes Editores, 1970. SILVA, Maurício Ribeiro; BAITELLO JR., Norval. Vínculos hipnógenos e vínculos culturais nos ambientes da cultura e da comunicação humana. In: XXII Encontro Anual da Compós - Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 2013. Salvador. Anais..., UFBA, 04 a 07 de junho de 2013.

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Imaginários sociodiscursivos transgressivos sobre Black Blocs Socio-discursives and transgressives imaginaries about Black Blocs Imaginaires socio-discursifs et transgressifs sur les Black Blocs Ivan Vasconcelos FIGUEIREDO 1 Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Brasil

Resumo A pesquisa analisa os imaginários sociodiscursivos transgressivos sobre a tática Black Bloc projetados em notícias veiculadas pela Agência Brasil. O corpus é formado por oito notícias da referida agência no período de 1 a 31 de outubro de 2013. A intenção é investigar a reconstrução midiática dos imaginários anarquistas e anticapitalistas dos adeptos brasileiros da ação. O quadro teórico-metodológico tem como base a Teoria Semiolinguística charaudeana. A pesquisa revela que os imaginários sobre o Black Bloc emergem de julgamentos morais socialmente aceitos que reduzem e simplificam o movimento em torno da violência, o que obscurece o entendimento de atos políticos e ações sociais. A transgressão da tática – enquanto exercício de liberdade – é refutada pelo seu emprego social, a partir do qual o bloco passa a ser inimigo de manifestações pacíficas. Palavras-chave: imaginários sociodiscursivos; Black Bloc; transgressão; violência; mídia Abstract This paper analyzes socio-discursives and transgressives imaginaries about Black Blocs produced by “Agência Brasil”. The corpus is composed by eight news veiculated from 1 to 31 October 2013. The objective is investigate media’s reconstruction of anarchists and anticapitalists imaginaries from Brazilians Black Blocs. The theoretical-methodological frame is based on Charaudeau’s Semiolinguistic Theory. The research reveals that Black Blocs’ imaginaries are originated from major moral and social judges that simplify the movement around violence. This representations neglects to understand political and social acts like activism. The transgression of the tactic – as an exercise in freedom – is refuted by its social practice, from which the block becomes the enemy of peaceful protests. Key words: socio-discursives imaginaries; Black Bloc, transgression; media.

Introdução A tática Black Bloc estampou manchetes da imprensa brasileira em 2013. Em meio a milhares de manifestações e bandeiras, por que um grupo reduzido de manifestantes ocupou, preponderantemente, o espectro midiático? A resposta, talvez, reside na desobediência civil 1

[email protected] Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana 1138 pavarino em 14 de novembro de 2015

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transgressora, ou seja, o uso não autorizado da violência pelo cidadão e o seu enquadramento espetacularizado. Nesse cenário, a presente pesquisa investiga como a Agência Brasil projetou imaginários sociodiscursivos sobre a tática Black Bloc de 1 a 31 de outubro de 2013. O corpus é constituído pelas oito notícias que contém menção à tática ao longo do mês. O quadro teórico-metodológico tem como base a Teoria Semiolinguística charaudeana. A noção de imaginários possui o aporte de Castoriadis (1982). Para a operacionalização da análise, utiliza-se o conceito de imaginários sociodiscursivos de Charaudeau (2004; 2008). Como temáticas transversais, a transgressão é debatida a partir de Foschield (2005), Haarscher (2012) e Hastings, Nicolas e Passard (2012). Por meio de Ogien e Laugier (2011), discute-se a desobediência civil. No âmbito da violência como representação, tem-se como alicerces Benjamin (2011), Iasi (2014) e Žižek (2014). Por sua vez, a tática Black Bloc é problematizada por meio de Dupuis-Déri (2014), Kovich (2014) e Solano, Manso e Novaes (2014). A tática Black Bloc originou-se na Alemanha na década de 1980 com o intuito de criar espaços discursivos de resistência para gerar visibilidade às bandeiras e causas sociais. As filiações ideológicas oscilam entre “marxismo, feminismo radical, ambientalismo, anarquismo – e essa diversidade ideológica era vista em geral como garantia de liberdade” (DUPUIS-DÉRI, 2014, p. 40). Na contemporaneidade, ideologias do cotidiano também passaram a ser incorporadas aos motivos de adesão dos participantes. A utilização em outras partes do mundo ocorreu a partir dos anos 1990, por meio da contracultura punk e de extrema ou ultraesquerda, sendo sintoma de crescente insatisfação mundial, aponta o autor. Contrariamente ao enquadramento convencional da mídia, segundo Dupuis-Déri (2014, p. 165), a marca identitária da tática está em suas “raízes históricas e políticas” e não no “recurso à força”. O bloco possui – ao menos – duas frentes. A primeira, defensiva, tem o intuito de oferecer apoio logístico, psicológico, jurídico, médico e fornecer alimentação aos demais participantes, além de realizar operações de reconhecimento de campo e comunicação. De forma consoante, parte dessa frente realiza ações musicais de integração para manter o ânimo dos ativistas. A linha de frente, mais visível e mais conhecida pelos atos públicos, é formada por integrantes que visam proteger o direito de protesto dos demais manifestantes e também enviar mensagens contra o sistema e governantes. Dentre os artefatos, estão bastões, estilingues, bolas de bilhar e coquetéis motolov. Nem sempre essa linha entra em operação.

Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana 1139 pavarino em 14 de novembro de 2015

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Ao analisarmos a projeção de ethé de Black Blocs em fotografias da BBC no mesmo período desta pesquisa, em Figueiredo (2015, p. 179), notamos um superdimensionamento da “desordem violenta, qualificando negativamente a desobediência civil transgressora [praticada por adeptos da tática]. A refutação dessa transgressão opera dentro da mostração das marcas identitárias, em que o Black Bloc passa a ser o inimigo das manifestações pacíficas”. Desse modo, a disputa pela representação da violência seria a marca divisória da aceitação ou não das bandeiras e causas em manifestações. Naquela ocasião, concluímos que a sociedade tolera desobediências civis desde que não rompam totalmente com as normas sociais previamente aceitas para o regime democrático nem afrontem o funcionamento do sistema e/ou o Estado. Diante dessa perspectiva, no presente estudo pretendemos verificar se a agência noticiosa brasileira se utiliza da mesma estratégia discursiva em seus dizeres. Para tanto, partimos da seguinte hipótese: os imaginários sociodiscursivos atuam de forma enfática na formação de uma aparente polarização de visões antagônicas entre o ideal e aceitável para protestos sociais, estabelecendo limites e zonas de tolerância ao “poder dizer” e “poder fazer” do cidadão. Com isso, as transgressões externas são rechaçadas. No caso da tática, o ato em si - atingir o alvo símbolo do questionamento – toma o espaço discursivo da própria denúncia e crítica ao sistema econômico e as formas de governar os bens públicos. A mídia é entendida aqui como sistema intricado, interdependente e transpassado pelas esferas simbólica, econômica e política. De forma assimétrica e dotada de poder, tal prática sociocultural atua na reconstrução de discursos que articulam e veiculam, em larga escala, conhecimentos, crenças e valores por meio de saberes simplificados que auxiliam os sujeitos a construírem percepções e julgamentos de “historicidade” (sensos de passado e presente), “mundanidade” (compreensão de mundo) e “socialidade” (sensos de pertencimento a comunidades), conforme Thompson (1998). Assim, a materialidade do texto informativo, por exemplo, é apenas um traço visível de uma complexa rede de condições sociais anteriores à produção e circulação das mensagens. Nessa dinâmica, a análise dos imaginários sociodiscursivos projetados pela mídia permite observar o lugar e papel do imaginário na constrição de saberes, assim como apreender como tais ideias formatadas são utilizadas como estratégias discursivas que oferecerem universos comuns e facilmente reconhecíveis aos sujeitos, tendendo a facilitar a adesão ao projeto de fala inicial do enunciador.

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Imaginários: Conceituações A análise do discurso da Agência Brasil neste estudo perpassa as seguintes etapas: (I) mapeamento da dimensão situacional do contrato de comunicação; (II) levantamento da dimensão discursiva, caracterizando os imaginários sociodiscursivos; (III) a partir dos dados, debate à luz de teorias sobre violência, desobediência civil e transgressão. De acordo com Charaudeau (2006; 2009), a investigação de um discurso começa pela caracterização da dimensão situacional e das condições do contrato comunicacional (jogo de expectativas entre as partes), permitindo mapear e identificar “Quem fala a quem?”, “Com qual objetivo?”, “Por qual meio?” e “Com que efeitos”. A Agência Brasil é foi criada em 2007 com a implantação da Empresa Brasil de Comunicação. De caráter público, atua como “informaduto”, ou seja, conjunto de meios de produção e distribuição de informação que suprem a carência e demanda de cobertura dos veículos de comunicação. Na ótica das condições do contrato comunicacional, a Agência Brasil possui sujeito comunicante compósito formado por repórteres, editores, fotógrafos, dentre outros profissionais; no plano do dizer, o sujeito enunciador é situacional e procura se revestir da ausência da figura do locutor (característica do texto jornalístico). Os enunciados são direcionados aos seguintes sujeitos interpretantes: potenciais consumidores de informação (veículos midiáticos e leitores diretos). Por sua vez, os sujeitos destinatários são projetados como aqueles com interesse em conteúdos noticiosos supostamente mais isentos e imparciais - por não estarem atrelados a uma dimensão produtiva comercial. Por meio do gênero “notícia”, os enunciados da Agência se revestem das características da linguagem jornalística e passam a ter efeitos de veracidade, imparcialidade e compromisso com a verdade. Tais percepções são supostamente anseios esperados pelos sujeitos interpretantes nas condições do contrato de comunicação informacional. A segunda etapa analítica empregada aqui perpassa pela dimensão discursiva, qual abarca a organização enunciativa do discurso, a forma de tomada do dizer e também a reconstrução de imaginários sociodiscursivos. Para Charaudeau (2006; 2007), os imaginários sociodiscursivos são dimensões materializadas e perceptíveis dos processos de representações sociais, sendo sustentados por uma gênese de saberes (crença e conhecimento) que revelam as estratégias empregadas na prática textual. Conforme o autor (2006, p. 207), “eles dão testemunho das identidades coletivas, da percepção que os indivíduos fazem e os grupos têm dos acontecimentos, dos julgamentos que fazem de suas atividades sociais”. Ademais, os

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imaginários não fixam uma relação antagônica de falso/verdadeiro ou certo/errado, mas carregam visões de mundo, valores e crenças sobre determinado assunto dado em uma situação de comunicação. Sendo assim, os sujeitos não têm contato direto com o real, mas somente com as significações que constituem, por meio da linguagem, uma visão sobre este real. De forma breve e simplificada, o imaginário é o modo como os sujeitos constroem a própria realidade e cultura, constituindo-os como “humanos”. Na visão de Castoriadis (1982), sujeito e sociedade são fluídos e se estruturam como magmas. Uma investigação sobre os imaginários acessa, portanto, somente um traço delimitado do social, mas nunca o seu todo. Com isso, o imaginário social não está diretamente vinculado a um sujeito construído para transportá-lo via um suposto “inconsciente coletivo”. O autor (1982, p. 286) afirma que as significações imaginárias “criam assim uma ‘representação’ do mundo, inclusive da própria sociedade e de seu lugar nesse mundo; mas isso não é em absoluto um constructum intelectual”. Nesse processo, temos acesso às significações da realidade e não ao real em si fora do plano da linguagem. Para Castoriadis, a categoria do imaginário é a única forma que permite acessar e compreender o passado e presente da história humana, tendo em vista que o real é construído discursivamente. De acordo com Charaudeau (2006; 2007), os imaginários são oriundos do movimento de dupla interação homem/mundo e mundo/homem, dentro de uma lógica provisória do que se acredita como verdadeiro e absoluto. Assim, a instituição não seria a única regente do mundo das significações como um tipo de cimento social, uma vez que “esta é apenas a parte visível do superego social regulamentado, que constrói (e é construído por) todo grupo social”, diz Charaudeau (2006, p. 204). As relações entre os sujeitos se “autorregulam” discursivamente, conferindo uma forma temporária de saberes parcialmente estáveis e naturalizados. Nessa visão, os imaginários são “sociais” a partir do instante em que a simbolização de mundo ocorre na dimensão da prática social e suas interfaces artísticas, políticas, jurídicas, religiosas, dentre outras. Por sua vez, a designação “sociodiscursivos” caracteriza o processo de representação que edifica universos de pensamento, sensos de veracidade e discursos que procuram explicar os fenômenos de mundo e os comportamentos humanos. Charaudeau (2006) entende que as representações sociais são apenas mecanismos de engendrar saberes, onde a percepção e análise dessa dimensão somente ocorreriam em sua

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materialização discursiva. Para tanto, o autor (2006, p. 193-203) contesta a possibilidade de apreender as representações diretamente, pois estas são vistas como “fenômeno cognitivodiscursivo geral”, cuja operação somente poderia ser possível em uma dimensão tangível: os imaginários sociodiscursivos. O alicerce dos imaginários sociodiscursivos, conforme Charaudeau (2007), está nos sistemas de pensamento coerentes: pathos (o saber como afeto), ethos (o saber como imagem de si) e logos (o saber como argumento racional). Na proposta do autor, esses saberes estão didaticamente classificados como “conhecimento” e “crença”. Os saberes de conhecimento visam o estabelecimento de um efeito de verdade (fora da subjetividade do sujeito) sobre os fenômenos de mundo, estruturando-se em dois tipos preponderantes: “científico”, modos de ver e dizer das ciências com visada de neutralidade discursiva; “experiência”, traços da realidade experimentada e relatada pelos viventes, sem compromisso com provas sobre o dito. Já os saberes de crença procuram descrever ou explicar o mundo de um modo não verificável, partindo da relação sujeito/mundo. A primeira dimensão é a “revelação”, a qual permite a propagação de doutrinas e ideologias sem provas concretas. Por outro lado, os saberes de crença também podem estar respaldados na “opinião”, ambiente dado pelo engajamento do sujeito que julga os fatos de mundo a partir de uma posição avaliativa validada socialmente. A sustentação de tais argumentos ocorre em lógicas afetivo-racionais, tais como “o necessário”, “o provável”, “o verossímil”. Essa dimensão se subdivide, segundo Charaudeau (2007), em “opinião relativa” (julgamento pontual emitido pelo sujeito ou grupo) e “opinião coletiva” (saber de um grupo com visada definitiva e essencializante).

Desobediência Civil e Transgressão A transgressão testa as fronteiras sociais dadas entre a norma e liberdade, conforme Hastings, Nicolas e Passard (2012). O emprego da tática Black Bloc procura descortinar justamente a fronteira de valores instaurada nas sociedades contemporâneas. Diante de uma vidraça de banco quebrada, se instala o debate sobre os limites e a relação hierárquica entre os graus de violência simbólica, física e sistêmica. De modo correlato, os privilégios dados ao sistema econômico em detrimento ao cidadão são colocados à luz do dia. Segundo esses autores, a transgressão é um fato social total construído no e pelo discurso, cuja experiência é vivenciada pela sociedade, a qual passa a ser revisitada para

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atualizar os seus conjuntos de aspectos intocáveis e indiscutíveis, testando a solidez da socialização. Portanto, a transgressão é uma característica intrínseca ao ser humano, pois o sujeito seria formado por liberdade e moralidade, afirma Folscheid (2005, p. 20). Assim sendo, a humanidade teria o anseio de impor limites para opor-se a um suposto caos; tais restrições são criadas dentro de registros morais com o propósito de regular a vida em sociedade. Até mesmo as democracias instituem limites ao poder dizer e fazer, analisa Haarscher (2012). O ato transgressivo, caracterizado como liberdade individual de expressão, também é regulado dentro de condições de permissividade, tendo em vista que a esfera social constrói normas sociais que impõem regras e tolerâncias às próprias contestações de tais normas. A desobediência civil caracteriza-se justamente como um dos modos de contestação dessas normas sociais. A ação política se instala na fronteira tênue de aceitabilidade transgressiva que se desenvolve nos cidadãos entre “o dever de obedecer às leis promulgadas por uma maioria” e o “direito de defender suas liberdades e o dever de lutar contra a injustiça” (OGIEN; LAUGIER, 2011, p. 58). As condições de permissibilidade residem na designação ethótica dos sujeitos, os quais passam a ser rotulados enquanto atores de dois tipos: os desobedientes que seguem as leis e os que a confrontam e ultrapassam os limites permitidos. O primeiro tipo, os “désobéisseurs”, é caracterizado por sujeitos que exercem a desobediência civil, mas de modo pacífico ao lado da lei, afirmam Ogien e Laugier (2011, p. 211). Já o segundo grupo, os “désobéissants”, é constituído por aqueles que rejeitam as regras e normas. Nos protestos, praticam uma ação direta não violenta capaz de romper com as formas tradicionais de mobilização política, com o objetivo é criar um espaço discursivo para cobertura midiática. A mídia é vista como um critério necessário de mediação que confere visibilidade e força à reivindicação. A tática dos “désobéisseurs” era empregada por Black Blocs na década de 1990 nos Estados Unidos. Porém, os ativistas perceberam que a visibilidade para as causas perpassa por uma necessária cobertura midiática, o que não ocorria da forma como esperavam. Para tanto, os adeptos da tática passaram a utilizar a estratégia dos “désobéissants” na contemporaneidade, visando a espetacularização dos protestos. Enquanto sintoma de uma pane democrática, a desobediência civil é parte integrante da democracia, em que grupos desassistidos clamam por direitos. Em termos conceituais, os

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atos de desobediência civil não são violentos. É justamente nessa fronteira que residem as ações da tática Black Bloc. Em nosso entendimento, a permissibilidade desses tipos de desobediência se constitui no jogo pelo estabelecimento de imaginários. No caso do Black Bloc, o divisor está na significação da violência. Ao fazerem uma ação direta contra bancos, por exemplo, os adeptos da tática são representados como “vândalos” e, assim, são colocados no plano da transgressão. Consequentemente, passam a não mais estarem autorizados a exercer a desobediência civil dentro dos padrões morais e sociais esperados. Evidentemente, o jogo de significações duais e cristalizadas - “vândalos” versus “pacíficos” - impede compreender as manifestações brasileiras de 2013 em sua complexidade. O Movimento Passe Livre de São Paulo (MPL-SP), um dos primeiros articuladores das manifestações de junho, não surgiu em 2013, apenas ganhou maior repercussão na imprensa tradicional e nas redes sociais. Conforme o MPL-SP (2013), as primeiras formas de organização horizontal com cobertura midiática ocorreram na Revolta do Buzu em Salvador em 2003. No ano seguinte, ocorreu a Revolta da Catraca em Florianópolis. Contudo, as jornadas de 2013 ganharam amplitude de causas e bandeiras em formato de articulação horizontal, ultrapassando a questão da mobilidade urbana. Entretanto, o cerne da discussão está na luta pela reapropriação do espaço urbano e a experimentação de novas formas de organização social. Assim, as catracas do transporte urbano simbolizam, para o MPL-SP, um processo de discriminação entre, “segundo o critério da concentração de renda, aqueles que podem circular pela cidade daqueles condenados à exclusão urbana”. Impulsionada por outras bandeiras e causas sociais, a agenda das ruas clama por reforma política e a retomada do espaço urbano para o convívio social, aponta Rolnik (2013). Desse modo, a insatisfação é sintoma da forma como as normas e jogos sociais regem a socialização. Para Harvey, […] a cidade neoliberal aprofundou e agudizou os conhecidos problemas que nossas cidades herdaram de quarenta anos de desenvolvimentismo excludente: favelização, informalidade, serviços precários ou inexistentes, desigualdades profundas, degradação ambiental, violência urbana, congestionamento e custos crescentes de um transporte público precário e espaços urbanos segregados. Nesse contexto, o surpreendente não é a explosão, mas que ela tenha tardado tanto (HARVEY, 2013, posição 711 2).

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Por se tratar de um livro versão Kindle, apresento aqui a posição e não o número de página. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana 1145 pavarino em 14 de novembro de 2015

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Nessa dinâmica social, ao invés de enquadrar a pluralidade reivindicações e greves para dar mais espaço à tática Black Bloc, a imprensa tende a ofuscar a visibilidade pública da questão em torno do espaço urbano público. Afinal, o que está por trás do enquadramento da violência (e sua negação) praticada por adeptos do Black Bloc pelos veículos de comunicação tradicionais? Conforme apontaremos a seguir, a resposta caminha em direção a retirar a legitimidade e o “poder dizer” e “poder fazer” desse tipo de desobediência civil, impedindo transgressões que passem a ocupar papéis do Estado (como o exercício da violência) e também contraponham a ideologia dominante.

Imaginários Sobre Black Blocs: Transgressão e Violência As formas de protesto dos “désobéissants” Black Blocs são condenadas e julgadas moralmente na esfera social e na reconstrução dada por discursos midiáticos, como os da Agência Brasil. O cerne da tolerância da desobediência civil ultrapassa os sentidos de protesto aceito ou não, mas impõe-se, sobretudo, como uma dinâmica de proteção das próprias ordem e normas sociais, assim como dos poderes majoritários e representativos do sistema. A primeira notícia do corpus, de 7 de outubro de 2013, insere o Black Bloc em um padrão narrativo da imprensa brasileira para tratar do assunto: a polarização “pacíficos”, desobedientes civis autorizados para o protesto (désobéisseurs), versus “vândalos”, desobedientes (désobéissants) transgressores desautorizados para a manifestação em decorrência do emprego de suposta violência contra bens e prédios. Na matéria intitulada “Polícia dissolve com bombas manifestação em apoio à educação na Cinelândia”, a tática é encenada como ruído que iria contra o espírito do bem comum da manifestação “legítima” em prol da educação. Já no lead temos: “Policiais do Batalhão de Choque dissolveram com uso de bombas a manifestação intitulada Um Milhão pela Educação, que se iniciou pacífica [...]. Os policiais só intervieram quando um grupo de centenas de Black blocs começou a depredar o prédio da Câmara de Vereadores, que teve algumas janelas incendiadas” (AGÊNCIA BRASIL, 2013a: grifos nossos). Os trechos demarcados evidenciam a visão reducionista sobre a tática somente pela linha de frente, não procurando compreender o simbolismo das ações, tal como justificam os adeptos, em que o alvo seria a mensagem. A narrativa prossegue elencando, quantitativamente, os danos e a intervenção do Estado na transgressão. O encerramento da notícia assinala: “Os professores [...] em nenhum

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momento participaram de nenhum ato de violência, ficando afastados o tempo todo dos Black blocs” (AGÊNCIA BRASIL, 2013a). A notícia procura relatar o desenrolar cronológico dos fatos, em uma perspectiva que aciona memórias discursivas sobre as normas sociais permitidas para a categoria manifestação e protesto. Os imaginários sobre os Black blocs são sustentados por (I) testemunhos do vivido, em que o repórter relata os acontecimentos em ordem sequencial e temporal, procurando gerar efeitos de veracidade ao dito. Tal relato, por sua vez, tende a ser não refutável e interpretado por meio de quadros de referência do campo da crença da opinião comum, visando construir saberes definitivos e essencializantes de que a tática teria atrapalhado a manifestação “pacífica” (logo, supostamente legítima) em prol da educação. Desse modo, podem ser acionados julgamentos morais como: a violência não caberia ao cidadão, mas somente ao Estado, figura à qual este cedeu seus direitos. Assim, os Black blocs são designados – pelo contexto e a forma de relatar o fato – como agentes violentos. A desobediência civil transgressora dos “désobéissants” é reconhecida, descrita e refutada por tentar ultrapassar os limites da ordem social prevista para o sistema democrático: o cidadão está autorizado a desobedecer desde que não desempenhe o papel do Estado (no caso, a violência). A segunda matéria, do mesmo dia, relata mais cenas de “vandalismo” em: “Manifestantes incendeiam ônibus na Avenida Rio Branco e jogam coquetel-molotov no consulado americano”. O texto narra a cena do confronto entre adeptos da tática e Batalhão de Choque, identificando – no lead – que se tratavam dos mesmos manifestantes do protesto em prol da Educação da primeira notícia. As ações são quantificadas para dar a noção dos atos violentos: “incendiaram um ônibus na Avenida Rio Branco, depredaram mais dois, e jogaram dois coquetéis-molotov no consulado americano” (AGÊNCIA BRASIL, 2013b). Novamente, narra-se a intervenção da Polícia para cessar os protestos. Tal como na notícia anterior, o dizer jornalístico projeto sensos de que os adeptos da tática exercem uma violência não autorizada. Porém, pela primeira vez, a Agência emprega julgamento de valor explícito contra os ativistas: “Os vândalos tentaram incendiar um segundo ônibus, mas fugiram com a chegada da polícia sem que o veículo fosse incendiado” (AGÊNCIA BRASIL, 2013b: grifos nossos). Cabe pontuar que as notícias não quantificam nem problematizam como foi a intervenção violenta do Batalhão de Choque. Esse silenciamento favorece a legitimação do emprego da violência pelo Estado.

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No dia seguinte, a Agência Brasil retorna aos locais dos protestos para narrar e contabilizar os prejuízos na área da Cinelândia, no Rio de Janeiro, onde as duas notícias anteriores narraram a atuação dos Black blocs. A manchete classifica o resultado da ação da tática como “destruição”. No terceiro parágrafo, a matéria afirma: “O protesto seguia de forma pacífica, até chegar à Cinelândia, onde um grupo de manifestantes conhecidos como Black blocs, que ignoraram a lei que proíbe o uso de máscaras, incendiaram um ônibus e depredaram mais dois” (AGÊNCIA BRASIL, 2013c: grifos nossos). Com isso, a Agência reforça o contexto de uma violência sem causa e passa a designar os adeptos da tática como “fora da lei”, cujo efeito de sentido pode remeter a ação criminosa. A notícia recorre fontes testemunhais para dar veracidade à refutação dos atos. Na posição de vítimas da situação, um gerente de lanchonete e uma vendedora são entrevistados. O primeiro aponta posicionamento contrário aos ataques Black Blocs: “Todos nós ficamos revoltados com as injustiças por parte do governo do Rio, mas eu acho que quebrar as coisas não é o melhor caminho para resolver a situação [...]. Por meio de saberes de crença de opinião comum, com visada universalizante, o testemunho aciona modos de enquadramento de outros campos para observar e julgar um ato “novo”. No relato da vendedora, são projetados saberes de crença de medo quando o cidadão faz uso da violência, convocando imaginário de caos e desordem: “Eles [clientes] não vêm para cá, com medo de serem vítimas desses mascarados”. (AGÊNCIA BRASIL, 2013c: grifos nossos). Logo, nas vozes de “cidadãos comuns” afetados pelos protestos, a Agência arregimenta saberes de crença de opinião coletiva, cuja função é essencializante. A quarta matéria, veiculada também em 8 de outubro, contabiliza os danos e perdas do primeiro protesto durante manifestação em prol da educação. Os três primeiros parágrafos procuram atestar numericamente os prejuízos, agora com 13 pessoas como vítimas. A notícia é construída com base apenas em dizeres do governador do Rio, Sérgio Cabral, o qual passa a julgar os atos enquanto figura representativa do Estado. Em discurso indireto, afirma: “os black blocs [...] querem apenas causar caos e pânico durante os protestos no Rio. Para ele, a PM atuou de maneira muito correta, garantindo a manifestação tranquila”. Já em discurso direto, o governador prossegue: “[São grupos que] desejam o caos das instituições, agridem governos, igrejas, imprensa, bancos, mas a maioria da população repudia isso. A população quer trabalhar, viver, ter serviços públicos, quer se manifestar” (AGÊNCIA BRASIL, 2013d: grifos nossos).

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Os excertos projetam imaginários da violência transgressora como fator negativo que abalaria a ordem e o direito ao protesto. De modo explícito, ocorre a polarização entre “désobéisseurs” e “désobéissants” transgressores. Por meio de saberes de crença de opinião coletiva, o governador incita a ordem social e, com isso, nega a legitimidade dos atos da tática e seus objetivos. Ao final da notícia, o papel da polícia é esclarecido pelo governador: assegurar a manifestação pacífica e agir no “combate aos vândalos”: “Aí, sim, entra a polícia para controlar” (AGÊNCIA BRASIL, 2013d). A luta por sentidos ocorre, mais uma vez, no domínio sobre a representação da violência. Nessas quatro notícias, os adeptos não são ouvidos para darem suas versões sobre os fatos. As narrativas procuram designá-los por meio de uma progressão que arregimenta provas e efeitos de veracidade que saem do repórter como observador do desenrolar dos acontecimentos, passando pela qualificação e opinião nas vozes de testemunhas da “destruição” e, enfim, o encerramento da fonte oficial via posição do governador. Há, com isso, uma evolução na gradação dos sentidos de designação: o ato violento passa a ser narrado em uma dramaticidade de guerrilha urbana, em que os atores são classificados como “vândalos” e suas ações qualificadas como errôneas na forma de protestar. Como reflexo, os violentos passam a gerar “medo” nos consumidores e, por fim, despertam – na posição oficial do Estado – caos e pânico na cidade. Após projetar imaginários negativos sobre a tática, a Agência, em 11 de outubro, destaca a nota à imprensa da Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro, o qual apoia “a utilização de recursos legais duros contra praticantes de atos de vandalismo, promovidos por grupos de mascarados [...] identificados como Black blocs [...]” (AGÊNCIA BRASIL, 2013e). Construído somente com base na nota de assessoria de comunicação e em entrevista com o presidente da entidade, o texto prossegue afirmando que os “comerciantes estão entre os mais prejudicados pela ação de manifestantes violentos”. Curioso observar que a Agência abre espaço para o posicionamento justamente dos alvos da linha de frente da tática, mas sem procurar explicar os motivos das vidraças quebradas. Com o uso de aspas do dizer do presidente da entidade, a matéria associa Black blocs a vandalismo: “chamados Black blocs, que deixam rastro de violência e destruição”. O entrevistado conclui: “É preciso ação firme contra a destruição de patrimônio [...]” (AGÊNCIA BRASIL, 2013e).

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A cobrança da Federação do Comércio por punição a atos de vandalismo se concretiza na matéria seguinte. A Agência Brasil (2013f) volta a noticiar sobre os Black Blocs no dia 16 de outubro de 2013, trazendo os reflexo da manifestação em São Paulo no subtítulo da matéria: “confronto deixa marcas de destruição e saldo de 56 detidos”. A notícia descreve a ação contra lojas, agências bancárias, bem como o enfrentamento e ferimentos a quatro policiais. Sem consulta a fontes, o texto retoma a narrativa do contexto de violência para classificar a tática. Porém, traz como destaque o efeito de punição contra os atos: a prisão. Dessa forma, a violência transgressora, até então, refutada no plano simbólico, é concretizada pela ação do Estado. Mais do que explicar, adjetivar e caracterizar os sujeitos e suas ações, a designação “violento” (e suas variações) tem impactos diretos na prática social. Dupuis-Déri (2014, p. 31) afirma que essas palavras e similares possuem “efeitos políticos muito reais, pois privam uma ação coletiva de toda a credibilidade, reduzindo-a à expressão única de uma violência supostamente brutal e irracional da juventude”. O julgamento moral de ataques contra bens materiais esconde outras formas de ver e debater as faces dos protestos. Assim, as violências anarquista e estatal (de modo sistêmico ou coercitivo pela polícia) estariam no mesmo patamar? Para Dupuis-Déri (2014, p. 84), “Quase todos os regimes liberais atuais, que dizem incorporar valores de liberdade, igualdade e justiça, foram fundados com base em atos muito mais violentos do que as ações diretas conduzidas pelos ativistas de hoje”. Na ótica do autor, há um esforço pelo monopólio da violência como sustentação da autoridade política do Estado, cuja significação se instala por meio do imaginário de uma suposta barbárie se os cidadãos praticarem atos violentos. Nos relatos coletados por Solano, Manso e Novaes (2014), os ativistas dizem que a estigmatização de Black Bloc como “vândalo” e o consequente processo de criminalização via significação impediriam o entendimento sobre a “real” violência, a sistêmica. Para Žižek (2014, p. 161), a estimatização da violência como má “é uma operação ideológica por excelência, uma mistificação que colabora no processo de tornar invisíveis as formas fundamentais de violência social”. Nessa perspectiva, o autor condena a “falsa antiviolência” e aceita a existência da violência emancipatória. Benjamin afirma que: [...] o caráter violento de uma ação não deve ser julgado segundo seus efeitos ou fins, mas apenas segundo a lei de seus meios. Sem dúvida, o poder do Estado, que tem olhos apenas para os efeitos, se contrapõe precisamente a essa modalidade de greve como se fosse violência, em contraste com as Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana 1150 pavarino em 14 de novembro de 2015

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greves parciais que, na maioria das vezes, são de fato formas de chantagem (BENJAMIN, 2011, p. 142).

A Agência Brasil parece se afastar dessa complexidade ao tratar da tática e seus modos de atuação, seguindo a lógica da simplificação do debate em torno da violência. Žižek (2014), explica que as sociedades ocidentais contemporâneas possuem duas formas de violência: (I) a “violência fundamental” (nos termos de Benjamin: “violência mítica”, isto é, violência estatal fundadora da lei), a qual sustenta o funcionamento “normal” do Estado; (II) e a “violência divina”, nos termos benjaminianos, fornece bases para contrapor o Estado em manifestações tidas como “irracionais” e sem demandas programáticas concretas. Da ordem da representação, a interpretação de um ato como violento ou não depende do grupo e contexto sociocultural. De acordo com Žižek (2014, p. 166), há uma interrelação entre violência subjetiva e sistêmica: a “violência não é uma propriedade exclusiva de certos atos, distribuindo-se entre os atos e seus contextos, entre atividade e inatividade”. O autor esclarece que a causa da violência reside, portanto, no “medo do próximo” que se funda na “violência inerente à própria linguagem”. Interessante pontuar que a luta pelo sentido da violência também se instala dentre os ativistas: [...] teríamos, então, duas categorias de violência: aquela exercida fora da filosofia da tática, que não conduz a uma reflexão, impulsiva, repelida pelos mais politizados; e aquela, simbólica, que segue os dogmas teóricos da prática Black Bloc (SOLANO, MANSO, NOVAES, 2014, posição 1054-1060). Depois de seis notícias que cristalizam imaginários sobre a tática Black Bloc como violenta e as pune simbólica e materialmente, a Agência amplia a perspectiva sobre a tática. Em “Black Bloc é tema de audiência na Câmara de Deputados”, é a primeira vez que se convoca uma especialista para explicar a tática. Logo no lead, a violência passa a ser designada como “sintoma de uma ‘doença institucional’”. Em seguida, explica-se o histórico de desenvolvimento dessa modalidade de protesto de inspiração anarquista. No terceiro e quarto parágrafos, a Agência – na voz da professora Esther Gallego – esclarece que os adeptos “são jovens de classe média, maduros politicamente e que querem uma mudança estrutural no sistema político brasileiro”. Para a especialista, “eles usam a violência para chamar a atenção”. Ao recorrer a um advogado e coordenador do blog Para Entender Direito, da Folha de S. Paulo, o texto afirma “Sem a violência, eles não teriam se tornado atores políticos. Mas, para a democracia, isso não funciona. [...] Mesmo aqueles que

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agiram de forma criminosa podem ter reivindicações legítimas” (AGÊNCIA BRASIL, 2013g). A última notícia, de 23 de outubro, revela que a Ouvidoria dos Direitos Humanos fará um relatório sobre atuação da polícia nas manifestações. Na procura por entender a dinâmica dos protestos, o ouvidor tenta traçar o que denomina de “relatório isento e imparcial”. Sobre a tática, ele relata a observação da movimentação de manifestação ocorrida em 15 de outubro na Cinelândia, no Rio: “Nós conseguimos perceber o início do confronto, quando os Black blocs se direcionaram para a Assembleia e se depararam com a Tropa de Choque, e aí houve o primeiro confronto que desencadeou uma série de outros confrontos entre policiais e manifestantes” (AGÊNCIA BRASIL, 2013h). Nota-se uma mudança no modo de tratar os fatos. Se, anteriormente, a Agência classificava os adeptos da tática como violentos e causadores da intervenção policial, neste último excerto, pela voz do ouvidor, é relegada a designação de “violência” atribuída somente aos ativistas: apesar de ressaltar a cena de confronto, o texto classifica as duas partes envolvidas como agentes causadores. Tal como a mídia tradicional, o roteiro traçado pela Agência Brasil segue parte da linha descrita por Dupuis-Déri: Quando um Black Bloc entra em ação, a resposta da mídia costuma seguir um padrão típico. Na mesma tarde ou manhã seguinte, os editores, colunistas e repórteres falam mal dos arruaceiros dos Black Blocs, chamando-os de “vândalos”. No dia seguinte, porém, o tom costuma ser mais neutro. Os leitores são informados de que os anarquistas estão por trás de táticas envolvendo armas como coquetéis Molotov, assim como o uso de escudos e capacetes para se defender. Esses artigos às vezes fazem referência a grandes Black Blocs do passado. Em seguida, citam alguns acadêmicos, assim como representantes da polícia e porta-vozes de movimentos sociais institucionalizados, que se desassociam dos “vândalos”. No máximo, o jornalista cita alguns participantes do Black Bloc, que, então, passam a ter a chance de se defender e explicar por que agem daquela forma (DUPUISDÉRI, 2014, p. 20).

A cobertura da Agência descreve os atos como violentos, convoca atores para qualificá-los em designações como “vandalismo”, “caos”, “desordem” e, por fim, abre espaço para que especialistas apontem versões sobre a tática. Entretanto, os adeptos sequer foram citados e/ou entrevistados para darem suas versões sobre os fatos. Em um plano sociohistórico, o tratamento dado à tática Black Bloc pela Agência Brasil tende a excluir a inserção da ação em uma tradição que procura refletir sobre possíveis Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana 1152 pavarino em 14 de novembro de 2015

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mudanças sociais por meio de protestos em espaços públicos. Segundo Ortellado (2014), a tática surgida na Alemanha foi ressignificada em solo estadunidense, em especial, no ano de 1999, em Seatle com a prática de desobediência civil não violenta, inspirada em Gandhi e Martin Luther King Jr. O pressuposto era que a desobediência civil deveria gerar efeitos políticos com a cobertura da violência policial pela imprensa, o que passou a não ocorrer de forma contínua pelo que diagnosticaram como ausência de uma imprensa livre e atuante. Sem o amparo da visibilidade midiática, a tática redefiniu a ação: ainda contando com a cobertura da mídia, passou a exercer a desobediência com destruição seletiva da propriedade privada, onde o alvo seria a mensagem. Tal prática foi a utilizada pelos adeptos brasileiros nas jornadas de 2013 e 2014, por exemplo. “[...]A destruição seletiva de propriedade privada não é feita de maneira arbitrária, mas segue regras pactuadas pelos ativistas: não podem ser alvo dos pequenos comércios e as ações não podem resultar na agressão a pessoas ou animais” (ORTELLADO, 2014, posição 2999-3006). O emprego da estratégia surtiu efeito na cobertura nacional. Os adeptos paulistanos, por exemplo, tinham cerca de 70 a 200 integrantes, conforme Solano, Manso e Novaes (2014), e suas ações “não pacíficas” ocorreram apenas em 23 das 584 manifestações de 2013, segundo dados da Polícia Militar paulistana indicados a esses autores. Assim, como minoria de eventos dentro de outra magnitude, os Black Blocs passaram a ocupar as manchetes da imprensa justamente pela linha ofensiva e a sua designação de vandalismo. Com isso, a destruição como artimanha de espetacularização midiática, entretanto, passa a ser designada como violenta pela grande imprensa brasileira e também pela Agência Brasil. É justamente nessa categoria da representação da violência que residem os limites do entendimento e aceitação/recusa do emprego da tática. Assim como Ortellado (2014), Solano (2014) também afirma ser necessário relativizar o enquadramento da tática como violenta: “a agência bancária incendiada e o policial ferido não pertencem aos mesmos graus na hierarquia das violências” (posição 1237). Os adeptos da tática relatam à autora que os atos não se caracterizam como violência, mas “performance – é um tipo de espetáculo” (posição 502). No ataque à PM, segundo Solano, Manso e Novaes (2014), há uma desumanização do homem fardado, o qual passa a ser o símbolo da corporação e, consequentemente, em nosso entendimento, a representação da violência sistêmica e estatal. Sobre os protestos 2013 no Brasil, Iasi (2014, p. 172) considera que “a irrupção violenta das massas nas ruas [...] funcionou como um choque de realidade, rompendo a

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película ideológica e nos jogando abruptamente no deserto do real”, desvelando “as formas fundamentais da violência social”, nos termos de Žižek (2014). Diante essa irrupção, a Agência Brasil arregimentou uma série de significações para tentar explicar e qualificar o fenômeno da desobediência civil transgressora. No caso da tática Black Bloc, a imagem pública é diferente da que circula entre os adeptos. Para Kovich (2011), “The ethos of the black bloc is one of solidarity and collective care 3”. A autora assinala que a intencionalidade é evidenciar possibilidades de uma nova sociedade a partir de novos modos de ser, interagir e se organizar uns com os outros.

Considerações Finais As transgressões, rupturas, desordens e diferenças fazem parte da dinâmica das cidades. Entretanto, as categorias imaginárias de “civilidade” e “ordem” estão atreladas a representações de poder dados por discursos de grupos dominantes, os quais procuram regular o “poder dizer” e também os corpos. Os imaginários sociodiscursivos projetados pela imprensa possuem efeitos de cristalização em longo prazo, por meio de saberes de crença essencializantes e universalizantes, os quais depositam, na memória discursiva, opiniões que podem sobreviver mais facilmente aos embates discursivos. Como visto, a tática Black Bloc foi retratada pela Agência Brasil apenas pela linha ofensiva, apresentando uma visão simplificadora sobre a forma horizontal de governança em protestos e garantia de liberdade de expressão. Diante das ações, a designação “violência” permanece como fio condutor em todas as oito notícias, perpassando desde níveis de relato até julgamentos de valor explícitos. O risco de se ter acesso aos conhecimentos de mundo via imaginários reside justamente no modo como os sujeitos têm contato com o real. Tal como adverte Castoriadis (1982), temos acesso somente às significações da realidade e não ao real em si. Ao considerarmos que a imprensa possui posição central nos jogos discursivos da esfera social, as visões redutoras sobre os sujeitos e objetos de mundo passam a ser reverberadas com maior intensidade, tendo em vista que o cidadão/consumidor de informações não consegue contrapor todos os quadros de referência com vivências pessoais, por exemplo. Na

missão

de uma agência pública, caberia ao emissor procurar justamente observar novos e outros

3

Tradução nossa: “O ethos do Black Bloc é de solidariedade e cuidado coletivo”. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana 1154 pavarino em 14 de novembro de 2015

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ângulos dos acontecimentos, para além do espectro da imprensa comercial, o que não ocorreu plenamente. Para o entendimento mais geral sobre o tratamento da Agência Brasil sobre a tática, para estudos futuros – cabe ampliar o recorte temporal do corpus (um mês), pois este não permite generalizar o posicionamento do veículo para as demais notícias que tenham em cena adeptos Black Bloc. Assim, abre-se espaço para pesquisas posteriores a fim de entender a forma de emprego dos imaginários e suas cristalizações ao longo das narrativas durante todo o ano de 2013.

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Memórias do futuro: novas práticas para moda e comunicação Future memories: new practices for fashion and communication Mémoires de l’avenir : nouvelles pratiques pour la mode et la communication Paula Cristina Visoná 1 Paula Coruja 2

Resumo Neste trabalho, elaboramos uma proposta de identificação da identificação de tendências de ciclo longo, a fim de viabilizar a constituição de memórias do futuro – visões que sirvam para fundamentar caminhos para o desenvolvimento de novas práticas em campos como comunicação e moda. Partimos do princípio de que tendências surgem de ideias, e que essas permeiam vozes-consciência no cotidiano social, configurando-se como sensibilidades que emergem a partir de relações interindividuais. Nos apoiamos no dialogismo de Bakhtin (1994), na sociologia compreensiva de Mafesolli (1988) e na antropologia interpretativista de Geertz (1978) para abordar tais atravessamentos. Nos apoiamos, também, nos estudos culturais britânicos, para compreender como as representações sociais e identidades são construídas e problematizar o papel da comunicação a partir de apropriações interdisciplinares. Palavras-chaves: tendências; moda; comunicação; identidades. Abstract In this paper, we present a proposal for identification of the long-cycle trends identified in order to enable the formation of memories of the future - visions that serve to support ways for development of new practices in fields such as communication and fashion. We assume that trends emerge from ideas, and these voices permeate consciousness in everyday social life, configured as sensitivities that emerge from interpersonal relations. We support the dialogism Bakhtin (1994), the comprehensive sociology of Mafesolli (1988) and interpretive anthropology of Geertz (1978) to approach such crossings. We support, as in British cultural studies, to understand how the social representations and identities are constructed and discuss the role of communication from appropriations interdisciplinar. Keywords: trends; fashion; communication; identities.

1. Introdução A investigação propõe apresentar uma proposta de identificação da identificação de tendências de ciclo longo – tendências socioculturais – a fim de viabilizar a 1 2

[email protected] [email protected]

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constituição de memórias do futuro – visões que sirvam para fundamentar caminhos para o desenvolvimento de novas práticas em campos como comunicação e moda. Para tanto, partimos do princípio de que tendências surgem de ideias, e que essas permeiam vozesconsciência no cotidiano social, configurando-se como sensibilidades que emergem a partir de relações interindividuais. A materialização dessas vozes-consciência se dá por meio de signos que podem ser entendidos como corporificações desse algo latente que representa e potencializa a comunicação entre os indivíduos no meio social (SANTAELLA, 2007). Para Flusser (2007), essa tarefa é viabilizada pela substituição desse algo latente, a fim de construir canais de relação. Ao alinharmos ambas perspectivas é possível compreender a imanência de um determinado padrão (uma tendência), permeando relações subjetivas-objetivadas, num dado período temporal, que se estabelece em nível micro e macro. Nesse sentido, parece existir uma imanência sociocultural na efetivação da tarefa de materialização sígnica, visto podermos interrelacionar a necessidade de produção de signos a de dar forma ao substrato social de um determinado período (ECO, 1999). Ao cruzarmos produções sígnicas circunscritas à comunicação e moda, em um dado período de tempo, podemos localizar tanto o surgimento de uma ideia, como sua pertinência e posterior desenvolvimento. Todas essas construções se dão por meio de ações e interações estabelecidas no cotidiano interindividual, pois esse é um espaço propício à geração de vínculos associativos e de uma “fluidez e uma pulsação que atam os indivíduos mesmo quando não atingem a forma de verdadeiras organizações” (SIMMEL, 2006: 17). Portanto, identificar tendências de ciclo longo tem a ver com perceber nos fatores que compõe o mosaico de acontecimentos, que formam o cotidiano, as latências e as imanências, configuradas como vínculos associativos entre por meio da produção sígnica. Nos apoiamos no dialogismo de Bakhtin (1994), na sociologia compreensiva de Mafesolli (1988) e na antropologia interpretativista de Geertz (1978) para abordar tais atravessamentos, a fim de propor uma compreensão amplificada de como essas dinâmicas se estabelecem na contemporaneidade. Para nos auxiliar nesse processo de compreensão, os estudos culturais britânicos e latino-americanos também serão nossos referenciais por evidenciarem a estrutura de produção e sentido que a comunicação e a indústria da cultura produz nos consumidores. Essa perspectiva também ajuda a compreender como as representações sociais e identidades são construídas (HALL, 1999) e problematiza o papel da

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comunicação a partir de apropriações interdisciplinares, fundamentais no relacionamento de moda e comunicação.

2. Materialização das tendências sociais Ao nos apoiarmos nos apontamentos tecidos por Santaella (2007), podemos considerar que tudo é signo. Sendo assim, é possível afirmar que o pensamento será a primeira instância de constituição síginica, portanto, materialização. Para compreender melhor como isso se dá, nos alinhamos a argumentações oferecidas pelos sociólogos Berger e Luckmann (2009). Segundo os teóricos, a materialização pode ser entendida como produção, que é fruto de interconexões, que, primeiramente, se dão em nível subjetivo, para após assumirem formas em instâncias de representação que compõe o mosaico sociocultural coletivo. Trata-se, ainda conforme Berger e Luckmann, da expressividade humana, que alinha produtores e produtos além de situações face a face, expandindo as formas de expressão e viabilizando objetivações conforme vão se estabelecendo novas relações intersubjetivas (IBIDÉM, 2009). Digamos que, por meio da produção humana (em diferentes níveis), podemos acessar aspectos imanentes da ordem do sensível, que tanto é individual, quanto coletivo. O acesso se dá via materialização sígnica, que funciona como meio de expressão em si. Claro, não estamos aqui defendendo que essa dinâmica não tenha certos limites. Relacionar tudo a qualquer coisa é uma tarefa perigosa, que nos leva apenas ao deslizamento contínuo dos sentidos, seja em nível sígnico, seja em nível interrelacional sociocultural (ECO, 2012). Estamos considerando que a produção humana transforma-se em linguagem, que reflete cadeias que articulam imaterialidade e materialidade, conectando intersubjetivamente indivíduos de modo a constituir narrativas. A existência de narrativas subentende a existência de sentidos: significados estabelecidos como mecanismos de reconhecimento do nível de elaboração sígnica efetuado num dado momento, para dar conta de comunicar – tornar comum – uma sensibilidade social. Portanto, uma ideia. É uma relação de interdependência que se estabelece, e que aponta para a emergência de padrões – tendências – que irão se desenvolver de modo a interrelacionar produções nas mais diferentes áreas. Estamos, então, falando sobre tendências com um ciclo de desenvolvimento mais amplo, visto interrelacionarem conhecimentos distintos. Diferente do que acontece, por exemplo, com as tendências efêmeras de moda.

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Segundo Caldas (2004), as tendências de ciclo longo são tendências sociais, que, na visão de Massonnier (2008), também podem ser intituladas de macrotendências sociais. Empreender a tarefa de identificação desse tipo de tendência subentende tanto um apuro perceptivo sensorial e qualitativo, quanto uma proposta metodológica que estabeleça certos limites a essa dinâmica. Já compreendemos que tudo é signo, mas, é mister estabelecer quais são as produções mais relevantes em um dado momento, pois, estamos justamente buscando compreender quais sensibilidades estão emergindo das ações e interações entre indivíduos num dado período temporal; como isso pode ser entendido como uma tendência de ciclo longo e, por fim, como isso irá impactar no desenvolvimento de novas produções – portanto, apresentar nuances no devir cultural. Estamos considerando elaborações futuras, em vários níveis. Essa relação subjetividade/objetivação/relações intersubjetivas foi analisada pelo antropólogo Clifford Geertz no sentido, justamente, de gerar um entendimento para cultura que permitisse acessar certas instâncias emergenciais latentes – sempre tendo em mente um ambiente onde existam múltiplas relações interindividuais para desenvolver tal tarefa. Desse modo,

o antropólogo pôde conceber uma definição de cultura que o

aproximasse da imanência simbólica que permeia as relações, independente do contexto sociocultural que estiver sendo relevado. Conforme Geertz, em seu clássico estudo A Interpretação das Culturas (1978), cultura são teias de significado que veiculam relações de valor – significações, em vários níveis – atribuídas de modo a refletir a relação material/simbólica em um dado contexto territorial, onde coexistem diversas esferas, agentes, instâncias, instituições, ... (IBIDÉM, 1978). Seguindo esse raciocínio, através das relações entre materializações sígnicas, efetuadas para dar conta de elaborações tanto em nível de pensamento, como em nível de palavras, gestos, eventos, etc., constroem-se significados. Esses, por sua vez, são articulados de modo a proporcionar sentido, demonstrando o teor de elaboração atingindo em um determinado momento, por um número delimitado de indivíduos, que se interrelacionam em um determinado ambiente. Segundo Geertz, esses significados se alinham em intrincadas redes, sendo a tarefa de interpretação uma empreitada que se estabelece a partir da leitura (acesso) a essas redes (IBIDÉM, 1978). Ou seja, a tarefa de interpretação parece simples quando há produção sígnica que busca dar conta de algo, digamos, comum a um número maior de indivíduos –

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pressuposto importante para a construção de redes de significados, como nos ensina Geertz. Segundo essa perspectiva, essas redes de significados são fortes, pois permeiam várias relações intersubjetivas/objetivas. Mas, e quando essas redes ainda são tão fracas que não é possível percebê-las no emaranhado de outras redes manifestas, estabelecidas? Ou, quando há simultaneidade dessas redes, pois, existem vários ambientes de geração de significados funcionando ao mesmo tempo? Bem, nesses contextos talvez seja importante entender melhor o que dá liga às redes. Partindo do princípio de que a produção humana já se inicia em nível mental – pressuposto anteriormente apontado a partir de Berger e Luckmann (2009) – podemos especular que há algo que ativa esse processo. Já consideramos que, pelo viés da sociologia, esse algo é uma sensibilidade social. Mas, partindo de Bakhtin, podemos considerar que esse algo é a ideia. Em sua teoria intitulado Dialogismo, Bakhtin considera que a ideia é o que torna o pensamento humano vivo (portanto, encarnado, sígnico, produção), visto que a ideia vive e nasce no ponto desse contato entre vozes-consciências (IBIDEM, 2008, pg.:98). Ainda consoante o autor: ..., a idéia é interindividual e intersubjetiva, a esfera da sua existência não é a consciência, não é a comunicação dialogada entre as consciências. A idéia é um acontecimento vivo, que irrompe o ponto de contato dialogado entre duas ou várias consciências. Neste sentido a idéia é semelhante ao discurso, com o qual forma uma unidade dialética. (BAKHTIN, 2008:98)

Seguindo essas considerações, podemos argumentar que o que permite a construção de redes interrelacionais produtivas é a ideia, que potencializa a geração de múltiplas produções, pois, ativa o contato com novas vozes-consciência no momento em que se torna signo, construindo, assim, uma ampla teia de significados. Esse grau de sentido se constitui devido à interpretação, visto a materialização sígnica ser fruto de elaboração subjetiva/objetiva. Nesse sentido, o entendimento de signo para Bakhtin (2008) está alinhado a compreenção de Umberto Eco (2012): o signo é uma representação que veicula aspectos tanto individuais, quanto socioculturais coletivos. Seguindo esse raciocínio, toda encarnação sígnica (e, podemos considerar, toda produção humana), interrelaciona indivíduos, contextos e épocas. Seguindo esse viés, perceber uma rede de significados emergentes tem a ver com observar contextos – ou áreas – específicas, por um determinado período de tempo. A efetivação dessa prática visa a identificação de certas, digamos, repetições: os padrões que conectam produções em diferentes contextos. Ou seja, tendências. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1162

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Ainda não levamos em conta o que já anunciamos anteriormente, portanto, como se dá essa prática de identificação desses aspectos intangíveis quando a produção, a ser relevada, é múltipla, profícua e simultânea. Cabe, agora, introduzirmos esses aspectos.

3. Novas interações interindividuais e o impacto das tecnologias A partir do fenômeno da globalização – que se intensificou nas últimas décadas – é possível localizar a ampliação das possibilidades de interação nos ambientes sociais mais diversificados devido, principalmente, às alterações fomentadas pela maturação e convergência das tecnologias. Essas passaram, por sua vez, a atuar como moderadoras das práticas diárias dos indivíduos e suas relações, configurando uma nova lógica cotidiana (SGORLA, 2009). Essa perspectiva, segundo Fausto Neto (2006), acabou por engendrar uma nova arquitetura organizacional da sociedade, que passou a sofrer alterações em sua composição a partir do processo de midiatização maximizado, tornando-se não-linear, descontínua, segmentada, e complexa. O impacto desses aspectos implicou na emergência de múltiplas formas dos indivíduos se interrelacionarem. Esses aspectos, como considera Santaella (2008), potencializaram fenômenos de hibridização, desdobrando-se, por fim, em novas formas de produções/materializações sígnicas. Para Marc Augé (2006), esse fenômeno é um subproduto da supramodernidade atual, com o excesso como pauta principal, considerando informações, imagens e individualismo como elementos que, atrelados às novas tecnologias da comunicação, conformam os indivíduos como parte da esfera do imediatismo e da instantaneidade. Para o antropólogo, essas conformações funcionam como identificações, não mais como identidades (IBIDÉM, 2006). Isso afeta, inclusive, na própria maneira de expressão subjetiva: pela força - e pela efemeridade - das múltiplas identificações, a materialização sígnica passa a ser cada vez mais fragmentada, múltipla e coletivizada. Portanto, modificam-se as maneiras de produção, mudam, também, as redes de significados que interconectam essas produções. Isso porque o ambiente de materialização sígnica não é mais um único contexto delimitado, pois, o tornar comum é móvel, e a essa lógica comunicacional permeia as produções contemporâneas. Nesse momento, parece importante introduzirmos uma nova lógica interrelacional vigente: a ubiquidade.

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Segundo Santaella (2010): “A ubiquidade destaca a coincidência entre deslocamento e comunicação, pois o usuário comunica-se durante o deslocamento.” (IBIDÉM, pg.:17). Ou seja, a produção se dá ao mesmo tempo em que o deslocamento acontece. Isso é possível, pois, como vimos a partir de Augè (2006), o impacto das tecnologias comunicacionais está articulado ao imediatismo e à instantaneidade. Ao produzir signos de maneira móvel, os indivíduos também acabam por modificar suas relações com os ambientes de produção. Essa nova lógica não só impacta nas formas de produção, mas, também, nas relações entre os produtores e seus contextos de materialização sígnica. Estamos considerando, aqui, transformações também nos ambientes de produção. Recorrendo, novamente, a Santaella (2010), veremos que a ubiquidade irá transformar os ambientes interrelacionais, que passam a ser vistos como ubíquos: “... são espaços hiperconectados, espaços de hiperlugares, múltiplos espaços em um mesmo espaço, (...). São espaços povoados por mentes multiconectadas e, por consequência, coletivas, compondo inteligências fluidas. (...) os espaços ubíquos intensificam a potencia inata da mente para a fluidez, pois permitem que múltiplas realidades desfilem em nossa mente.”(SANTAELLA, 2010, pg.: 18)

Analisando por um outro viés, podemos considerar que o princípio da ubiquidade – e da configuração dos espaços ubíquos – tem forte relação com a ideia de afetividades efêmeras, que Maffesoli (2002) irá localizar quando analisa o socius contemporâneo. Claro, compreendemos que a tecnologia contribuiu para o estabelecimento disso. Consideramos isso anteriormente, ao falarmos sobre tecnologia x midiatização. Nesse sentido, parece que o próprio ambiente social foi estimulador da transformação, tanto em nível de produção, como do espaço de produção na atualidade. Isso acaba por nos conduzir de volta ao que dá liga às materializações/produções, mesmo que sejam efêmeras, simultâneas, ou, móveis. A partir de Bakhtin (2008), compreendemos que a ideia é o que conecta vozes-consciência. Para tanto, é viva e interindividual. Além disso, as ligações podem ser vistas como o espaço de identificação entre os sujeitos e esses pontos de identificação acontecem na cultura, imbricada na comunicação.

4. Identidade, moda e comunicação Comunicar é um processo amplo e complexo. Comunicamos ao falar, ao olhar, ao representar – com desenhos, fotos ou outras iconografias -, e, até mesmo, ao vestir. Moda, aqui entendida através da indumentária, é um dos elementos de maior visibilidade na Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1164

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atualidade. E é interessante observar o quanto grupos, que partilham uma mesma identidade, usam a moda/indumentária como símbolo de comunicação. Os grupos formados, muitas vezes, distinguem-se pelas cores e modelos de vestimenta, que funcionam como símbolos de identificação corporal provisória. Para falar de identidade, primeiro precisamos falar de cultura, conceito que nos ajuda a compreender a complexidade das relações e produções da nossa sociedade. Cultura, assim, precisa ser entendida de forma mutilinear, ou seja, compreender que há múltiplas linhas de desenvolvimento cultural e que todas são válidas e interessantes em seus próprios termos. O britânico Raymond Williams compreendeu a pluralidade do conceito e que cada cultura possui atividades e padrões específicos e que esses critérios não podem ser utilizados para julgar atividades de outra. Cultura deve, assim, ser entendida como relacional. Assim, com olhar plural, “(...) cultura é uma descrição de um modo particular de vida que exprime certos significados e valores, não só na arte e no saber, mas também nas instituições e no comportamento habitual” (WILLIAMS, 1984, pg.57)

Desse modo, moda deve ser agora considerada como uma prática significante da vida cotidiana, parte desse sistema geral de significados. Moda é um fenômeno cultural, que marca realidades sociais e culturais. Assim, através da moda, os sujeitos são constituídos e entendem os outros sujeitos por partilhar desse mesmo código. Moda, e aqui salientamos novamente que tratamos de indumentária, é um elemento cultural constitutivo de grupos sociais e da partilha de identidades dos sujeitos dentro desses grupos, não apenas como reflexo ou representação. Mas se entendemos a moda como fenômeno cultural e que é, nesse sentido, constitutiva das identidades, é necessário pensar sobre identidade. E conceituar identidade, principalmente em tempos de “pós” (modernidade, estruturalismo, colonialismo) pode ser complexo e sempre discutível. Historicamente, o sujeito foi visto como tendo uma identidade única e imutável, visão que não explica a contemporaneidade, em que os sujeitos são vistos de forma mais fragmentada e fluida. A identidade, de forma primária, pode ser entendida a partir das semelhanças entre indivíduos. “A identidade é simplesmente aquilo que se é”, diz Tomaz Tadeu da Silva (2014), que acrescenta que apesar da positividade aparente do conceito, a afirmação do que se é delimita, também, tudo aquilo que não se é, aquilo que acentua as diferenças. Para ele, somente quando estão em relação, diferença e identidade são capazes de fazer sentido. A partir dessa aproximação por igualdades, se desenvolveu o estudo das identidades culturais. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1165

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Segundo Stuart Hall (1999), a identidade cultural enfatiza aspectos relacionados ao pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas, regionais, nacionais, entre outras. Ele apresenta três concepções de identidade, relacionadas aos períodos vividos pelos sujeitos na história: o do iluminismo, o sociológico e o pós-moderno. Na concepção do sujeito do iluminismo, o "eu" era o centro essencial da identidade de uma pessoa. No sujeito sociológico, começa a noção de que a identidade existe a partir da interrelação entre sujeito e sociedade: "A identidade costura (ou, para usar uma metáfora médica, 'sutura') o sujeito à estrutura" (HALL, 1999, p.12). Ou seja, uma relação de identificação e associação com o outro, mas também de entender como a estrutura dos discursos hegemônicos funcionam para que determinados sujeitos ocupem determinados papéis ou se posicionem dentro do sistema. Por último, temos o sujeito pós-moderno, cuja identidade não é fixa, essencial ou permanente, mas "é definida historicamente, e não biologicamente" (HALL, 1999, p.13). Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte, é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu". (HALL, 1999, p.13)

O conceito de identidades deslocadas de Hall ajuda a compreender um pouco mais o que está em discussão nos debates sobre identidade. Identidade tem muito a ver com igualdade, unidade, coerência, continuidade, conceitos que, na chamada pós-modernidade, perdem seu poder explicativo. Além disso, é muito limitador tentar continuar separando não só os papéis sociais desempenhados pelos indivíduos, que também geram identidade, mas também tudo o que os identifica e diferencia. Esse entendimento é fundamental para, da mesma forma, compreender a moda como artefato da cultura que não só reflete, mas constitui identidades que não são mais unas, mas fluidas. Assim, se pensarmos, através da indumentária também comunicamos o que somos e tudo aquilo que não somos, além de todas as relações complexas imbricadas nessas identidades fragmentadas da pós-modernidade. Mas nem toda a fragmentação apaga aquilo que é possível entender dentro dessa codificação gerada através da moda. McCracken (2003) pontua que, ao mesmo tempo em que as pessoas relatam usar a moda como forma de diferenciação, não tentam fazer isso fora do código possível partilhado dentro da cultura.

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Ao pesquisar vestuário como linguagem, McCracken (2003) nota que quando os sujeitos eram confrontados com imagens “anômalas”, ou seja, de pessoas vestidas de forma pouquíssimo usual, utilizando toda a liberdade combinatória, os intérpretes não sabiam como decifrar aqueles códigos e, por isso, aquelas pessoas, o que faz que o estudioso conclua que a liberdade combinatória funcione apenas dentro de uma série de contextos e possibilidades. Assim, moda é um artefato cultural capaz de indicar (comunicar) mudanças, mas também continuidade. Nesse paradoxo entre mudança e continuidade, a comunicação de moda opera. Comunica o novo (formas, cores, comportamentos), ao mesmo tempo em que salienta continuidades, seja na repetição de certas (e mesmas) cores e formas, seja nos comportamentos e corpos dos sujeitos que vestem essa moda. Um exemplo disso está na pesquisa de Angela McRobbie (1998), que ao analisar revistas femininas, com destaque para os discursos, pontuou que esse é o meio mais antigo de construção da feminilidade normativa e que, com uma publicidade de moda que apresentava a mulher como um ser a disposição de ser “consumida” e que era sempre colocada em relação de “subordinação, passividade e disponibilidade sexual” (1998, p.265) aos homens. Nossos corpos, assim como as imagens geradas nessa comunicação da moda, não só informam, uma à outra, mas se imbricam, constituindo uma à outra. A comunicação de moda, nesse contexto, também pode ser vista como artefato cultural da sociedade, que estabelece esse movimento duplo, de refletir a sociedade e de gerar imagens que vão constituir os sujeitos dessa sociedade. Ao alinhar essas considerações ao que construímos anteriormente, é possível conceber uma relação entre tendências sociais – ou macro tendências – e moda. Isso rompe tanto a ideia de efemeridade intrínseca ao campo da moda em si, como nos permite vislumbrar um ponto de partida para a identificação de redes de significado ainda em latência. Isso se dá, pois, como deixamos claro acima, a moda tem uma relação forte com identidade, comunicação e cultura. Nesse sentido, a perspectiva é analisarmos não apenas as camadas superficiais da indumentária utilizada pelas pessoas, por exemplo, no contexto urbano. Ir além dessa produção sígnica – e dos sentidos operados – pode nos levar a buscar compreender outras materializações vinculadas a moda, como novas produções de corpos e comportamentos. Tendo esse viés analítico em mente, a moda acaba, ela mesma, por refletir as relações intersubjetivas que anunciamos anteriormente, contribuindo tanto para a

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identificação de uma ideia que esteja interconectando indivíduos no contexto sociocultural, como como mecanismo de materialização de novos arranjos sígnicos a partir dessa mesma ideia. Assim, a moda ser alinha aos mecanismos – e corporificações, podemos dizer – de padrões que vão além do campo em si, o que constitui um dos princípios da identificação de macro tendências sociais. Essa perspectiva também nos convida a deslocar o entendimento que temos sobre o campo da moda – como espaço de expressividade fugaz – e o alinhar a um outro apontamento construído anteriormente: da simultaneidade, seja do tornar comum, seja permeando o espaço. É fato que, como ambiente de afirmação de identidades, a moda será atravessada por múltiplos desejos e caracterizações, o que contribui para que tenhamos a ideia de campo pontuado pela impermanência. Mas, essa impermanência reflete, justamente, a simultaneidade de escolhas que permeia o socius contemporâneo. Portanto, outro fator que qualifica o campo da moda como espaço para a identificação de tendências de ciclo longo – e/ou, tendências socioculturais. Essa outra maneira de perceber a moda é o convite que fazemos, por fim, nesse estudo, acreditando que essa percepção mais apurada sobre o campo em si também pode contribuir para a construção de novos entendimentos sobre tendências, cultura e comunicação.

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A figura do sumo pontífice e a quebra de um tabu: o discurso do Papa Francisco e o imaginário da comunidade católica a respeito do tema homossexualidade The figure of the supreme pontiff and the breaking of a taboo: Pope Francisco's speech and the imaginary of the catholic community on homosexuality La figure du Souverain Pontife et un tabou brisé : le discours du Pape François et l'imaginaire de la communauté catholique concernant la thématique de l’homosexualité

Cristiane WEBER 1 Universidade Feevale, Novo Hamburgo, Brasil Ernani César de FREITAS 2 Universidade Feevale, Novo Hamburgo, Brasil

Resumo: O presente estudo tematiza o processo de construção do discurso do Papa Jorge Bergoglio e os impactos sobre o imaginário da comunidade cristã a respeito de um tema até então pouco explicitado pela igreja católica com seus antecessores: a posição do sumo pontífice a respeito do tema homossexualidade. Com ênfase na linguagem verbal, através das mais polêmicas e comentadas declarações do Papa Francisco, desenvolveu-se esse artigo para abordar as relações de formação discursiva, imaginário, cenografia e ethos que circulam entre a fala do sumo pontífice e os comentários em veículos noticiosos, com reações de internautas a partir dessas declarações. Para embasar a análise, as metodologias bibliográficas e documentais contam com o aporte teórico de autores como Maingueneau (2005;2013), Orlandi (2013), Charaudeau e Maingueneau (2014), Piccardi (2005), entre outros. Palavras-chave: discurso; homossexualidade; papa; imaginário; ethos. Abstract: This paper it´s about the discourse of the construction process of Pope Jorge Bergoglio and the impact on the imagination of the Christian community regarding a topic little explained by the Catholic Church with its predecessors: the position of the Supreme Pontiff on the subject homosexuality. With an emphasis on verbal language through the most controversial and discussed statements of Pope Francisco, has developed this article to discuss the relations of discursive formation, imaginary, stage design and ethos moving between the speech of the Pope and comments on news, Internet users with reactions from these statements. To support the analysis, bibliographic and documentary methodologies rely on the theoretical support of authors like Maingueneau (2005; 2013), Orlandi (2013), and Charaudeau Maingueneau (2014), Piccardi (2005), among others. Keywords: speech; homosexuality; Pope; imaginary; ethos. 1. Introdução 1

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Desde Simão Pedro, apóstolo e fundador da Igreja Católica (governando dos anos 30 e 67 depois de Cristo), já passaram pelo posto de sumo pontífice duzentos e sessenta e seis homens, considerados líderes do cristianismo. Em dois mil e quinze anos após o nascimento de Jesus, o papado foi gradativamente substituído a cada morte do gestor em questão. Nessa longa trajetória de homens à frente da Igreja, Joseph Ratzinger, uma liderança constituída pela congregação alemã, foi eleito Papa em dezenove de abril de dois mil e cinco, dezesseis dias após o falecimento de João Paulo II, considerado o “Papa Peregrino”, que ficou vinte e sete anos à frente do posto. Porém, oito após o conclave dos cento e quinze cardeais que o elegeram, Ratzinger – ou Bento XVI – veio a público para anunciar sua renúncia ao papado, alegando questões de saúde e fragilidade diante da avançada idade. Uma decisão que não abalava a Igreja nos últimos seiscentos anos, que se viu obrigada a uma nova eleição para decidir o futuro governante do catolicismo com seu antecessor ainda vivo. Foi assim que, em treze de março de dois mil e treze, o argentino Jorge Bergoglio foi eleito o novo sumo pontífice da Igreja. Em sua primeira homilia (discurso incumbido ao início de seu pontificado), Francisco fez uso de palavras como bondade, respeito e humildade repetidas vezes. Em um dos trechos de sua fala 3, o Papa fala sobre São José e sua guarda a respeito dos valores cristãos. Segundo o pontífice, Como realiza José esta guarda? Com discrição, com humildade, no silêncio, mas com uma presença constante e uma fidelidade total, mesmo quando não consegue entender. Desde o casamento com Maria até ao episódio de Jesus, aos doze anos, no templo de Jerusalém, acompanha com solicitude e amor cada momento.

As primeiras palavras de Jorge Bergoglio, compreendemos, já apontavam o caminho de sua fala, marcada por características como serenidade e respeito pelo próximo. Talvez por sua origem latina, Bergoglio tenha sido escolhido no intuito de recuperar fiéis ao catolicismo, após escândalos envolvendo padres em notícias de pedofilia e vazamentos de documentos secretos da Igreja. Em mais de mil discursos proferidos até hoje, o Papa tem chamado a atenção, entre outras declarações, por suas colocações cobertas por veículos de comunicação a respeito de 3

Trecho de discurso de homilia papal proferida em 19 de março de 2013. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2015. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1171

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um assunto que sempre foi um grande tabu para a Igreja: a homossexualidade. Um assunto fundamentado em opiniões na maioria contrárias às práticas de união homossexual ao longo da história da instituição. Em março de 2003, por exemplo, o então sumo pontífice em exercício, Papa João Paulo II, assinou o documento 4 “Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais”. No trecho de conclusão da carta, o texto traz a seguinte citação: A Igreja ensina que o respeito para com as pessoas homossexuais não pode levar, de modo nenhum, à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento legal das uniões homossexuais. O bem comum exige que as leis reconheçam, favoreçam e protejam a união matrimonial como base da família, célula primária da sociedade. Reconhecer legalmente as uniões homossexuais ou equipará-las ao matrimônio significaria não só aprovar um comportamento errado, com a consequência de convertê-lo num modelo para a sociedade atual, mas também ofuscar valores fundamentais que fazem parte do patrimônio comum da humanidade. A Igreja não pode abdicar de defender tais valores, para o bem dos homens e de toda a sociedade.

Bento XVI assumiu o mesmo discurso em seu papado. Porém, manteve um posicionamento mais rígido e discreto diante do assunto. Em uma das declarações mais fortes contra o casamento homossexual durante sua gestão, Ratzinger disse, em pronunciamento 5 de ano novo realizado a quase duzentos diplomatas, que “políticas que afetam a família ameaçam a dignidade humana e o próprio futuro da humanidade”. Tais declarações foram repetidas ao longo da história da Igreja e são aos poucos abordadas de forma diferente pelo atual Papa, que parece se posicionar de forma mais branda, aberta e midiática sobre o assunto. Como consequência desse novo posicionamento, os cristãos seguidores dos preceitos da Igreja se encontram em opiniões diferentes sobre o tema, ora criticando ora apoiando o Papa em seus dizeres acerca do assunto. Os comentários dos fiéis, entendemos, transitam na esfera do imaginário proposto pela formação discursiva de Francisco, que ao mesmo tempo reforça sua identidade – ethos – a partir de seus primeiros discursos, mas pode estar, concomitantemente, quebrando a hegemonia do ethos prévio colocado a um Papa, visto como um líder firme a respeito de um tema tão polêmico. 4

“Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais” é um documento aberto e disponível nos arquivos da cidade do Vaticano. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2015. 5 Trechos do pronunciamento foram reproduzidas em reportagem do Jornal O Globo sob a manchete “Casamento gay é uma ameaça à humanidade, diz Bento XVI”, veiculada em 9/1/2012. Disponível em . Acesso em 20 jul 2015. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1172

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A partir das manifestações discursivas sobre o tema, a presente pesquisa tem como questão norteadora: quais são os ethos aplicados ao Papa por seus fiéis quando o tema homossexualidade é tratado a partir das perspectivas da formação discursiva e do imaginário? O objetivo geral é o de analisar como se desenvolve esse discurso, que marca discursiva carrega e como a comunidade católica recebe essa fala, devolvendo ao Papa seu ethos prévio, ou aplicando um ethos formulado a partir de uma cenografia. Tendo como interface as notícias veiculadas sobre tais pronunciamentos (com reprodução da fala de Francisco em sistema de abre aspas 6) e os comentários apontados pelos fieis nos noticiários online, o presente artigo quer analisar como se manifesta esse discurso, tendo como fundo uma cenografia que é, ao mesmo tempo, criação e ressignificação do imaginário a respeito do tema. Buscou-se compreender como a homossexualidade é tratada no período atual, onde o Papa Francisco problematiza a questão e a traz para a discussão com os fiéis e a mídia, sem deixar em segundo plano o contexto histórico do tema perante a Igreja. Consideramos a coconstrução de atores sociais como: o Papa, por seus atos discursivos; os veículos de comunicação que transmitem os posicionamentos do sumo pontífice a respeito do tema; e a instância cidadã formada pelos fieis, que legitima esse discurso, concordando ou renegando tais declarações. Para a análise, tendo como corpora declarações de Francisco sobre o tema em noticiários e comentários online, cruzaram-se dois eixos: o do discurso propriamente dito e o das teorias de imaginário social. Pelo aporte teórico de Maingueneau (2013), buscou-se analisar os discursos pelos conceitos de ethos – principalmente o prévio, quando existe uma imagem pré-formada pela comunidade católica sobre o posicionamento de um Papa a respeito desse polêmico assunto. Em relação ao imaginário, teóricos como Orlandi (2013) abordam a ligação entre a análise do discurso e a relação de exterioridade do sujeito, constituída por uma ideologia, quando esta compreende o que medeia a relação do sujeito com suas condições de existência. Entendemos ser necessário abordar as teorias do discurso, uma vez que esse parece ser essencial na construção da imagem de alguém, principalmente se este alguém for um personagem midiático. Tal construção é fundamentada em aspectos como a identidade, o tom e a imagem que se quer passar, de si e do outro. A partir das proposições metodológicas, buscamos chegar aos conceitos que fundamentam a posição de Francisco perante a mídia e

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Nota da autora: abre aspas é um método de cobertura jornalística onde o repórter reproduz a fala direta de um entrevistado, em uma frase com as aspas, exatamente como foi proferida, tal como se fosse uma citação acadêmica. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1173

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seus fiéis, que se baseiam em tais declarações para emitir opiniões a partir do discurso e do imaginário social sobre um tema tão polêmico.

2. O estatuto do enunciador e do destinatário: um plano da semântica global Quando analisamos um discurso pelo conceito de semântica global não privilegiamos esse ou aquele plano discursivo, mas os integramos todos ao mesmo tempo, tanto na ordem do enunciado como no da enunciação. Segundo Maingueneau: [...] a vontade de distinguir o fundamental do superficial, o essencial do acessório, leva a um impasse, na medida em que é a significância discursiva em seu conjunto que deve ser inicialmente visada. Não pode haver fundo, “arquitetura” do discurso, mas o sistema que investe o discurso na multiplicidade de suas dimensões (2005, p.76).

Ao analisar essa multiplicidade de dimensões, Maingueneau (2005) se filia a uma concepção do linguista prussiano Wilhelm Von Humboldt, de que a linguagem não é um produto acabado e morto de espírito, postulando a existência de um plano dinâmico que rege os planos de uma língua. Sendo assim, segundo Maingueneau (2005), um enunciador não escolhe previamente um tema, depois um gênero literário e, posteriormente, faz a escolha das palavras para seu enunciado. São planos que se imbricam, que interagem e que são ligados pela estrutura de um discurso. Se pensarmos na comunicação universal da Igreja com seus fiéis, é possível perceber que esse diálogo é transpassado por um universo de orações, discursos e pregações que atravessam milênios. E, para isso, são realizados, ainda que inconscientemente, contratos acordados entre as lideranças e seus seguidores. Isso porque, quando nos comunicamos, estamos definindo um dos planos da semântica global, o estatuto do enunciador e do destinatário que, de acordo com Maingueneau (2005, p. 87), se trata do “estatuto que o enunciador deve se atribuir e o que deve atribuir ao seu destinatário para legitimar seu dizer”. Em suma: se trata de como eu falo e para quem eu falo. No contexto político e social das manifestações do Papa a respeito de qualquer tema, fica claro o sistema de restrições imposto ao longo da história da Igreja: os líderes anteriores a Bergoglio costumavam proferir suas falas do alto da Igreja de São Pedro, a milhares de fiéis na Praça que leva o nome do mesmo apóstolo. Na análise, veremos como o Papa Francisco incita polêmicas através de suas falas, hoje muito mais ligadas a mídias como os noticiários online. De qualquer modo, seu discurso

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continua sendo direcionado aos fiéis, que respondem a um determinado assunto a partir do imaginário que lhes é atribuído e formado em sua trajetória católica. Mais que isso, outros públicos são diretamente atingidos, o que causa uma comoção ainda maior sobre o polêmico tema em questão neste artigo. A teoria de Maingueneau (2013) do estatuto de enunciador e destinatário é reforçada em autores como Bakhtin (2000), que afirma que o discurso leva em conta um conjunto de elementos que irá produzir significados diversos. Portanto, é necessário que haja uma compreensão do enunciado fundamentalmente ligado a uma rede de percepções do destinatário. No processo de significações, a interdiscursividade tem papel que nos parece fundamental, pois postula um interdiscurso anterior ao discurso. Como explica Piccardi (2005), a interdiscursividade se inscreve em uma perspectiva de heterogeneidade da linguagem, em uma relação indissociável entre o eu e o outro. Essa autora frisa que Não existe discurso que não esteja sempre já afetado por esta heterogeneidade, por mais que, em muitos casos, a materialização de tais discursos (ou seja, os textos que os veiculam) se dê de tal forma a obscurecer com bastante eficiência esta heterogeneidade, criando efeitos de sentido que a mascaram. (PICCARDI, 2005, p. 34)

Assim, de acordo com Piccardi (2005), ao definir o interdiscurso como anterior ao discurso, o conceito sócio-histórico entre o eu e o outro deve ser sempre priorizado, privilegiando-se o espaço discursivo em que tais vozes se constituem.

3. A dêixis enunciativa e o modo de enunciação Todo ato de enunciação, segundo Maingueneau (2005), supõe a instauração de uma dêixis, ou seja, de um conjunto de localizações no espaço e no tempo que um ato de enunciação apresenta, graças aos embreadores 7. Isso não quer dizer em qual data ocorreu a enunciação, nem os locais onde foi produzida. De acordo com o autor, essa dêixis, em sua dupla modalidade espacial e temporal, “delimita a cena e a cronologia que o discurso constrói para autorizar sua própria enunciação”. (MAINGUENEAU, 2005, p. 89)

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Chama-se embreagem o conjunto das operações pelas quais um enunciado ancora na sua situação de enunciação, os embreantes (também chamados de elementos dêiticos), os elementos que no enunciado marcam a embreagem. São exemplos: os pronomes pessoais de primeira e segunda pessoa e os determinantes (MAINGUENEAU, 2013, p. 130). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1175

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Entretanto, um discurso não é somente determinado em seu conteúdo por uma associação entre uma dêixis discursiva e um estatuto do enunciador e do destinatário, mas é também uma “maneira de dizer”, denominada modo de enunciação. Vamos considerar um discurso na Praça de São Pedro feito pelo Papa, em qualquer temática. Jorge Bergoglio irá falar em tom de amabilidade para milhares de pessoas que têm em sua vocação a religiosidade, gerando uma comunicação entre pessoas de bem, em uma conversa sujeita à moderação, ao ritmo e à plasticidade recorrentes nos discursos papais. Dificilmente assistiremos a um discurso do líder religioso em tom áspero, ou com elevação no tom de voz. Veremos a seguir como os conceitos de ethos e cenografia influenciam diretamente nessa maneira de dizer, bem como a formação discursiva envolvem aspectos ideológicos e políticos imbuídos nas falas do Papa Francisco.

Formação discursiva: um conceito acerca de posições políticas e ideológicas O conceito de formação discursiva foi amplamente teorizado por dois filósofos fundantes da análise do discurso: Michel Foucault e Michel Pêcheux. Embora homônimos, ambos discerniam em alguns aspectos a respeito das definições do termo. Segundo Charaudeau e Maingueneau (2014), Foucault procurou contornar unidades tradicionais do conceito como teoria, ideologia e ciência para designar conjuntos de enunciados submetidos a um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas. Já Pêcheux, de acordo com os autores, consegue aproximar o termo para o âmbito da análise do discurso. No quadro teórico do marxismo althusseriano, Pêcheux, segundo Charaudeau e Maingueneau (2014), propunha que toda formação social caracterizada por certa relação entre classes sociais implica a existência de posições políticas e ideológicas, que não necessariamente são feitas de indivíduos, mas de marcos como o antagonismo, a aliança e a dominação. Esse é um conceito importante, acredita-se, para a análise dos discursos do sumo pontífice em questão: o grupo de fiéis responde sim a um sistema de regras, mas essas regras perpassam os indivíduos enquanto enunciadores e destinatários, promovendo conexões que estão para além do enunciado. Sendo assim, a partir de uma ou várias formações discursivas interligadas, há determinantes do que pode ou não ser dito, a partir de certa posição dada em certa conjuntura (CHARAUDEAU;MAINGUENEAU, 2014). A formação discursiva aparece, segundo Charaudeau e Maingueneau (2014), inseparável do interdiscurso. O interdiscurso tem relação multiforme com outros discursos, ou

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seja, mantém delimitação recíproca com discursos anteriores. A formação discursiva também estabelece relações com o intradiscurso. As correlações entre os dois termos são explicados na conexão que estabelecem no discurso em si: o interdiscurso significa os saberes constituídos na memória do dizer; sentidos do que é dizível e circula na sociedade (como no caso dos discursos prévios de outros papas, os quais são de conhecimento da sociedade, praticante ou não do catolicismo); saberes que existem antes do sujeito; saberes pré-construídos constituídos pela construção coletiva. Já o intradiscurso se trata da materialidade (fala), ou seja, a formulação do texto; o fio do discurso (CAREGNATO;MUTTI, 2005). Compreendese, assim, que todo discurso está ideologicamente marcado e, portanto, carregado de significados. Orlandi (2013) ressalta que as posições ideológicas nascem de um processo sóciohistórico em que as palavras são produzidas. A formação discursiva, segundo Orlandi (2013, p. 43), “se define como aquilo que numa formação ideológica dada em uma conjuntura sóciohistórica dada – determina o que pode e não pode ser dito”. Portanto, cada palavra do Papa Francisco é parte de um discurso e os discursos se delineiam na relação com outros com dizeres que se alojam na memória.

4. Imaginário social: o Papa pode aprovar ou aceitar a homossexualidade? A figura Papal parece ser envolta na legitimação de uma identidade santificada desde os primeiros sumo pontífices da história. Tal santificação (que carrega sinônimos como pureza e decência) está também atrelada a um conceito de memória coletiva. Desde o início dos tempos, a figura do Papa é ovacionada e cada escolha de um novo representante da Igreja é envolta em grande expectativa mundial: a fumaça branca representa um novo apelo, um novo representante de Deus para todos os continentes. Para compreender melhor esse processo de santificação do homem, busca-se em Halbwachs (2006) o conceito de memória coletiva. De acordo com o autor, as nossas lembranças sobre algo podem sempre estar associadas a lembranças de outros, às suas percepções, como se a mesma experiência fosse recomeçada e vivenciada por diversas pessoas. Ou seja, cada pessoa que assiste à nova escolha revive sua própria existência e suas lembranças a respeito das conexões (ainda que pouco existentes) com a Igreja. Da memória coletiva discorre o conceito de imaginário. O imaginário é consequência de uma determinada linguagem: é de onde surge e se imbrica com todas as conexões sociais,

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incluindo a fé. De acordo com Orlandi (2013), o discurso que abrange um emissor e um destinatário é composto de um processo de significação constante, não estando essas duas figuras separadas de forma estanque. Não se trata, portanto, da fala do Papa isolada em si, pois o funcionamento da linguagem põe em relação sujeitos afetados pela língua e pela história, em um complexo processo de produção de sentidos e, portanto, de construção de imaginários. Cabe ressaltar que o imaginário e a formação discursiva estão intrinsecamente ligados no que diz respeito às interpretações possíveis de alguma fala (discurso) marcada ideologicamente. Como ressalta Silveira (2004), a liberdade de um sujeito individualizado e de certa forma livre de uma ideologia não passa de um efeito imaginário promovido pela própria ideologia. Conforme a autora ocorre uma imbricação entre discurso e ideologia que legitima a condição do sujeito enquanto descentrado, o que reafirma a caracterização material do discurso e do sentido, tendo em vista que a unidade do sujeito é da ordem do imaginário. Assim, afirma essa autora, [...] a responsabilização do sujeito enquanto cidadão que tem direitos e deveres sociais é também um efeito das relações imaginárias que promovem a dita “normalidade” da vida em sociedade. Essa responsabilização não faz do sujeito um ser dotado de vontades e intenções, livre do assujeitamento ideológico e totalmente consciente de seus atos e suas palavras; ocorre exatamente o contrário, pois o funcionamento dessas relações imaginárias legitima ainda mais a tese do necessário assujeitamento ideológico para a constituição e instituição do sujeito e do sentido no discurso (SILVEIRA, 2004, p. 53).

A construção do imaginário se dá, portanto, em um contexto ideológico onde fé e sociedade estão diretamente sobrepostos, marcados por discursos e práticas ao longo da história da religião. Legros et. al. (2014) ressalta ainda que, do ponto de vista antropológico, a religião pode ser definida como a atividade do homem na manipulação de símbolos do sagrado. Em qualquer sociedade, as crenças, os mitos, os comportamentos e os ritos são extraídos de um mundo profano “para serem promovidos ao lugar das coisas transcendentais, ou seja, sagradas” (LEGROS et. al., 2014, p. 217). A religião seria, portanto, um tipo particular de atividade simbólica, que consiste, de maneira geral, a dar sentido a elementos já significantes.

5. Cenografia + ethos: a fumaça branca que permeia o discurso Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1178

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A cenografia possui uma estreita relação com a semântica global, em espacial com alguns de seus planos constituintes: o estatuto do enunciador e do destinatário, a dêixis e o modo de enunciação (tom/incorporação), entre outros. Ao abordarmos o termo “cenografia”, é possível associá-lo diretamente ao termo “cenário”. De acordo com Ratto (2011, p. 14), cenografia é “o espaço eleito para que nele aconteça o drama ao qual queremos assistir”. Nos textos de comunicação, a cenografia assume um enlaçamento paradoxal. Segundo Maingueneau (2013), todo discurso, por sua manifestação mesma, pretende convencer instituindo a cena de enunciação que o legitima. Para tanto, antes da cenografia, esse autor nos apresenta dois conceitos que a antecedem e se conectam com esta: a cena englobante e a cena genérica. A cena englobante é a que corresponde, de acordo com Maingueneau (2013), ao tipo do discurso. Quando recebemos um folheto nas ruas, contendo o anúncio de promoções em uma farmácia, devemos determinar a que tipo de discurso esse folheto pertence: se religioso, político ou publicitário, como se trata o exemplo. Segundo esse autor, “a cena englobante na qual é preciso que nos situemos para interpretá-lo, em nome do que o referido folheto interpela o leitor” (MAINGUENEAU, 2013, p. 96). A cena genérica diz respeito ao gênero do discurso, sendo interessante verificar qual o estatuto genérico do enunciado, ou seja, se é um comunicado, um editorial, uma notícia, etc. (FREITAS, 2010). Já a cenografia, segundo Charaudeau e Maingueneau (2014) não é imposta pelo tipo ou pelo gênero do discurso, mas instituída pelo próprio discurso. A cenografia – que também pode ser chamada de cena validada – tem por função passar a cena englobante e a cena genérica para um segundo plano. Um discurso, portanto, impõe sua cenografia de imediato. Porém, a enunciação é que irá se esforçar para justificar seu dispositivo de fala. Em um exemplo prático, uma publicidade de uma rede de supermercados que conta a história de reencontros entre pai e filho tem como cena englobante o comercial de televisão que tem como objetivo angariar mais consumidores; como cena genérica a narrativa publicitária e, como cena validada, a história do pai e do filho, que emociona e interpela. O objetivo principal de “comprar mais em um supermercado de valores familiares” fica em segundo plano, mas continua ali, sendo difundido naquela mensagem. De acordo com os autores,

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Tem-se, portanto, um processo em espiral, na sua emergência, a fala implica certa cena de enunciação, que, de fato, se valida progressivamente por meio da própria enunciação. A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra; ela legitima um enunciado que, em troca, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cenografia da qual vem a fala é, precisamente, a cenografia necessária para contar uma história [...]. (CHARAUDEAU;MAINGUENEAU, 2014, p. 96)

Ainda segundo Charaudeau e Maingueneau (2014), além de uma figura de enunciador e de um correlativo coenunciador, a cenografia implica uma cronografia (um momento) e uma topografia (ou seja, um lugar), das quais ambas o discurso pretende surgir. Posteriormente na análise veremos como o discurso do Papa se contextualiza em um lugar e tempo específicos, que legitimarão sua fala a respeito do tema abordado no artigo. Dado o “cenário” onde ocorre um discurso e uma troca estabelecida entre os executores dos papéis linguageiros, temos a construção de uma identidade aplicada às personagens que fazem parte da troca discursiva. Cenografia e identidade construída, ou ethos, como define Maingueneau (2013), estão diretamente ligadas no processo de significamos que aplicamos ao outro ou como tentamos “vender” a nossa imagem. O conceito se refere principalmente a um ethos prévio, marcado por um estereótipo, uma imagem pela qual a comunidade cristã espera ao simples fato de se mencionar a figura papal. Assim, todas as vezes que falamos, escrevemos ou expressamos algo de outras formas, estamos imprimindo uma imagem a nós mesmos. De acordo com Amossy (2005), não é necessário que alguém descreva seu perfil ou faça um autorretrato, já que seu estilo, seu conhecimento, suas competências linguísticas, seu estofo cultural, tudo isso já constrói a representação de sua pessoa. Maingueneau (2013, p. 104) reforça que “toda fala procede de um enunciador encarnado; mesmo quando escrito, um texto é sustentado por uma voz – a de um sujeito situado para além do texto”. Em todas as nossas relações sociais, essa imagem se constrói nos parceiros do nosso ato de comunicação. Conforme Amossy, A apresentação de si não se limita a uma técnica apreendida, a um artifício: ela se efetua, frequentemente, à revelia dos parceiros, nas trocas verbais mais corriqueiras e mais pessoais. Parte central do debate público ou da negociação comercial, ela também participa das imagens de si no discurso: diálogos entre professor e alunos, das reuniões de condôminos, da conversa entre amigos, da relação amorosa. (2005, p. 9)

Estudiosos da antiguidade, de acordo com Amossy (2005), designavam o termo ethos que significava a construção de uma imagem de si para obter sucesso em uma oratória. Como Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1180

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uma representação ou um simulacro, a fim de obter sucesso em uma negociação, por exemplo. Pela corrente teórica de Roland Barthes, com os componentes da antiga retórica, o ethos está marcado pelos traços de caráter que o orador mostra ao auditório, pouco importando se está sendo sincero ou não, no intuito de causar uma boa impressão. O orador, portanto, fala: eu sou assim e não sou assim. Conforme Maingueneau (2013, p. 105), a “fala do enunciador que, por sua maneira de dizer, atesta de algum modo a legitimidade do que é dito, isto é, confere autoridade ao dito pelo fato de encarná-lo”. O ethos envolve de alguma forma a enunciação, sem necessariamente estar explícito no enunciado, construindo uma imagem de si, já que, conforme Benveniste (1989, p. 84), “a enunciação é a acentuação da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginado, individual ou coletivo”. Quando construímos uma imagem, no entanto, estamos contribuindo, no processo comunicacional, para que o outro também construa sua imagem e possa, ao mesmo tempo, construir uma imagem a nosso respeito. Na perspectiva de uma troca comunicacional entre um professor autoritário e um aluno rebelde, por exemplo, ambos exercem um sobre o outro uma rede de influências mútuas. De acordo com Amossy: A função da imagem de si e do outro construída no discurso se manifesta plenamente nessa perspectiva interacional. Dizer que os participantes interagem é supor que a imagem de si construída no e pelo discurso participa da influência que exercem um sobre o outro. (2005, p. 12)

Para além da representação exercida, a imagem também é construída pelos chamados papéis sociais e dados situacionais da sociedade. Trata-se, de acordo com Amossy (2005), de papéis preestabelecidos e que podem ser usados em representações de forma rotineira. O ethos, para Maingueneau (2013), está ligado diretamente a uma cenografia. E, dadas às múltiplas cenografias possíveis, um locutor pode aplicar a si uma cenografia para chegar a um determinado ethos. Nesse sentido, Maingueneau (2005) ressalta que não só vinculado à imagem ou ao som está o conceito de ethos. Com efeito, o texto escrito também possui um tom que lhe dá autoridade ao que é dito. O tom “permite ao leitor construir uma representação do corpo do enunciador (e não, evidentemente, do corpo do autor efetivo)”. (MAINGUENEAU, 2005, p. 107). Assim, a leitura faz emergir uma instância subjetiva que desempenha o papel de fiador do que é dito.

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O conjunto de determinações físicas e psíquicas ligadas à representação da personagem, de acordo com Maingueneau (2013), está ligado aos conceitos de caráter e corporalidade. Ao fiador do discurso, que será construído a partir de indícios textuais de diversas ordens, serão atribuídos um caráter (que diz respeito a uma gama de traços psicológicos) e uma corporalidade (uma maneira de se vestir e de se movimentar no espaço social). Assim, conforme Maingueneau: O ethos implica, com efeito, uma disciplina do corpo aprendido por intermédio de um comportamento global. Caráter e corporalidade do fiador provêm de um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, sobre as quais se apoia a enunciação que, por sua vez, pode confirmá-las ou modificá-las. Esses estereótipos culturais circulam nos domínios mais diversos: literatura, fotos, cinema, publicidade, etc. (2005, p. 108)

O universo de sentido de um discurso, portanto, é propiciado, segundo Maingueneau (2005), tanto pelo ethos como pelas ideias que transmite. Essas ideias se apresentam por uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser. A qualidade do ethos remete “à imagem desse fiador que, por meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade compatível com o mundo que ele deverá construir em seu enunciado” (MAINGUENEAU, 2005, p. 108). Assim, não podemos dissociar a organização dos conteúdos da legitimação da cena de fala. O ethos pode ser discursivo, pois visto que, conforme Freitas (2010), a eficácia da palavra não é puramente exterior (institucional) e nem puramente interna (linguageira). De acordo com esse autor, “não se pode separar o ethos discursivo da posição institucional do locutor, nem dissociar totalmente intercolução da interação social como troca simbólica” (FREITAS, 2010, p. 192-193). Isso significa que o ethos está intrinsecamente ligado a uma cenografia enunciativa que é ligada à memória coletiva. Sob o aspecto da incorporação, abordamos como age o ethos sobre o coenunciador. O coenunciador, segundo Maingueneau (2005), confere um ethos ao seu fiador (o que fala) e lhe dá corpo. Assim, surge uma comunidade imaginária dos que comungam na adesão a um mesmo discurso (os que apoiaram este ou aquele candidato nas eleições, por exemplo).

Metodologia: o desvelar ao passar dos muros da Praça de São Pedro

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Para analisarmos as declarações do Papa a partir dos eixos propostos, as metodologias utilizadas são a de pesquisa bibliográfica e a documental. Segundo Prodanov e Freitas (2013, p. 51), o método bibliográfico provém da pesquisa básica, que do ponto de vista da natureza da pesquisa científica, “objetiva gerar conhecimentos novos úteis para o avanço da ciência sem aplicação prevista”. Em relação ao seu objetivo exploratório, conforme Prodanov e Freitas (2013, p. 52), a pesquisa delimita o entendimento do tema abordado, de modo a “facilitar a delimitação do tema da pesquisa; orientar a fixação dos objetivos e a formulação das hipóteses ou descobrir um novo tipo de enfoque para o assunto”. Por permitir a exploração do tema sob diversos ângulos e aspectos, se trata da mais adequada para a proposição deste estudo. De acordo com esses autores, enquanto a pesquisa bibliográfica se utiliza da contribuição científica de vários autores, a pesquisa documental vai buscar documentos que ainda não passaram por um tratamento analítico. Segundo Prodanov e Freitas, Nessa tipologia de pesquisa, os documentos são classificados em dois tipos principais: fontes de primeira mão e fontes de segunda mão. Gil (2008) define os documentos de primeira mão como os que não receberam qualquer tratamento analítico, como: documentos oficiais, reportagens de jornal, cartas, contratos, diários, filmes, fotografias, gravações etc. Os documentos de segunda mão são os que, de alguma forma, já foram analisados, tais como: relatórios de pesquisa, relatórios de empresas, tabelas estatísticas, entre outros. (2013, p. 54)

Nesse estudo, como se trata de corpora com acontecimentos ocorridos periodicamente, ou seja, as últimas declarações do Papa a respeito do tema homossexualidade, a pesquisa documental se torna essencial para encontrar declarações registradas que componham a análise final. Entende-se por documento, de acordo com Prodanov e Freitas (2013), qualquer registro que possa ser utilizado como fonte de informação, permitindo uma observação crítica, leitura, reflexão e juízo fundamentado sobre o valor do material para o trabalho científico. Acredita-se ser importante ressaltar que se optou por não analisar as declarações do ponto de vista da análise dos textos de comunicação e sim as declarações entre aspas de Francisco, ou seja, sua fala em si e não o tratamento dado pela mídia. Os veículos online passam a ser, nesse estudo, o suporte para obtermos as declarações do papa e os comentários dos fiéis, de forma a analisar a repercussão do tema proposto para quem acessa aquele conteúdo. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1183

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Homossexualidade e religião: entre o Novo Testamento e o Novo Papa O tema homossexualidade está em alta nas discussões por todo o mundo nas mais diversas perspectivas: casamento, direitos civis, adoção. Porém, o assunto já estava postulado – e registrado - desde o início da era denominada pelos cristãos como Depois de Cristo. No livro considerado o mais antigo do mundo - a Bíblia Sagrada – há escritos que já condenavam a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo. Vejamos dois exemplos: o primeiro 8 diz respeito ao evangelho de São Marcos no Novo Testamento. Segundo o trecho, [...] desde o princípio da criação, Deus fez macho e fêmea. Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á a sua mulher. E serão os dois uma só carne; e assim já não serão dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.

Em um segundo 9 trecho, ainda dentro do Novo Testamento, em Romanos, a explicitação em relação ao modelo de união homem e mulher e sua contravenção é ainda reforçada por uma espécie de condenação. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza. E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro.

Das escrituras que fundamentaram a Bíblia como o livro-guia da Igreja até os dias de hoje, muitos discursos foram proferidos, também em uma lógica de interdiscurso. Não só pelo o que está registrado nas páginas do livro sagrado, mas por toda a analogia feita aos discursos anteriores da Igreja (dos Papas que os proferiram) nas palavras de Francisco – o intradiscurso. Essa relação pode ser percebida, entende-se, nas primeiras palavras de Francisco. Logo após assumir seu posto, em março de 2013, o Papa assinou (Figura 1) uma carta aberta sobre a homologação do casamento gay na Argentina.

Figura 1 – Trecho da carta aberta do Papa a respeito do casamento gay na Argentina

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Trecho retirado de O Evangelho segundo São Marcos, capítulo 10, versículos 6 a 9. Disponível em A Bíblia Sagrada, livro físico. Acesso em 30 jul. 2015. 9 Trecho retirado de O Livro dos Romanos, capítulo 1, versículos 26 e 27. Disponível em: A Bíblia Sagrada, livro físico. Acesso em: 30 jul. 2015.

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Fonte: reprodução a partir de notícia publicada no portal Terra em 30 jul 2015

A carta segue e, em outro trecho (Figura 2), o sumo pontífice se refere a um rechaço à lei de Deus. São utilizadas palavras que se remetem a uma discriminação contra crianças adotadas por casais homossexuais, bem como uma vontade de Deus ao amadurecimento humano entre um homem e uma mulher.

Figura 2 – Trecho da carta aberta do Papa a respeito do casamento gay na Argentina

Fonte: reprodução a partir de notícia publicada no portal Terra em 30 jul 2015

Entende-se que as palavras proferidas pelo Papa em um dos seus primeiros discursos abertos sobre o tema estão marcadas por uma ideologia que, segundo Charaudeau e Maingueneau (2014), é uma premissa de qualquer discurso, estando esse carregado de significados. Até esse primeiro momento, o que se pode analisar é que o Francisco optou por manter uma linha semelhante aos seus antecessores, principalmente Bento XVI, com uma espécie de condenação às práticas homossexuais. Assim, é possível acreditar que, em tendo assumido recentemente o pontificado, Jorge Bergoglio tenha optado por manter o raciocínio de seu antecessor, um declarado crítico da união civil entre homens/homens e mulheres/mulheres, ou mesmo de relacionamentos homoafetivos. Francisco, porém, começou a alterar seu discurso gradativamente e de forma muito tênue. Quatro meses após a assinatura da carta aberta referida, uma coletiva de imprensa a bordo de um avião começava a alterar a percepção de fiéis – e porque não dizer de seguidores de outras crenças religiosas – a respeito do Papa. Em notícia (Figura 3) publicada no portal G1 (Globo), que reproduziu a fala de Papa de Francisco quando questionado por um jornalista sobre o tema homossexualidade, é possível compreender outro posicionamento, muito mais brando e diferente do comunicado a respeito da união homoafetiva na Argentina. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1185

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Figura 3 – Reprodução de notícia publicada pelo portal G1 em 29/7/2013

Fonte: extraída do portal G1 em 30 jul. 2015

Ainda no contexto de formação discursiva adotada pelo Papa – e na qual ele está diretamente inserido, observa-se em Orlandi (2013) a teoria da formação ideológica dada em uma conjuntura sócio-histórica dada, determinando o que pode e não pode ser dito. Parece haver, com essa declaração dada na coletiva de imprensa em pleno espaço aéreo, uma ruptura entre esse condicionamento sócio-histórico e a posição da Igreja. Se vivemos em uma era onde a questão da homossexualidade é bastante discutida e provoca também rupturas em sistemas civis em diversos países, o discurso do Papa tende a estar afinado com esse momento. Não só por suas palavras, mas pela própria abertura ao tema de forma informal em um voo, na companhia de jornalistas que, sabia o Papa, iriam trabalhar a informação em caráter de instantaneidade. As palavras de Francisco “Quem sou eu para julgá-los?” vêm acompanhadas, no caso da notícia destacada, com a manchete que traz a expressão “abertura inédita”, o que provocou surpresa geral, por no mínimo dizer. Feita essa primeira declaração, o Papa – um sorridente latino - passou a ser notícia a cada nova citação ao tema. No final de 2014, novamente uma declaração proferida por ele mexeu com a comunidade católica. Aquele que assinou a carta aberta que considerava a união entre homossexuais um agravo às leis de Deus e que declarava que crianças adotadas por homossexuais sofreriam de antemão uma discriminação, na segunda declaração (Figura 4), em reunião com bispos católicos, considera-se, é mais sutil e aberto às ideias de aceitação de gays pela Igreja.

Figura 3 – Reprodução de notícia publicada pelo portal Estadão Online em 7/12/2014

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Fonte: extraída do portal Estadão Online em 30 jul 2015

Entende-se, a partir dessa segunda declaração, uma mudança clara entre o primeiro e o segundo discurso. Retomemos os conceitos de Maingueneau e Charadeau (2014), de cena englobante, cena genérica e cenografia. A cena englobante, no caso, é o que corresponde ao tipo do discurso, o que caracteriza a declaração uma fala religiosa com o intuito de aproximar a Igreja dos católicos e ativistas gays, até então críticos a respeito do posicionamento do cristianismo frente ao tema em questão. A cena genérica diz respeito ao gênero do discurso, o que nesse caso se refere à notícia publicada no portal Estadão Online. Já a cenografia, segundo Charaudeau e Maingueneau (2014) não é imposta pelo tipo ou pelo gênero do discurso, mas instituída pelo próprio discurso. É a fala do Papa e sua declaração, que coloca a missão de aproximar a Igreja desses fiéis em segundo plano (porém não menos importante), justificando seu dispositivo de fala, legitimando seu enunciado. Assim, quando declara apoio a essa causa, o Papa está conclamando a aproximação dos gays à Igreja e sensibilizar os católicos, de forma a quebrar os tabus até então existentes. Tais declarações tiveram repercussão imediata entre os fiéis, que passaram a fazer uso dos próprios portais noticiosos para declarar apoio e também repúdio à fala de Francisco. No primeiro exemplo (Figura 5), veem-se dois comentários que avalizam a fala do Papa em notícia sobre acolhimento de homossexuais a divorciados na Igreja.

Figura 5: comentário à notícia publicada no portal Estadão Online em 19/2/2015

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Fonte: extraída do portal Estadão Online em 30 jul. 2015

Em segundo comentário (Figura 6), um internauta é completamente contrário à posição de Francisco em relação ao tema, quando o sumo pontífice concedeu a entrevista coletiva sobre o aceite da Igreja aos homossexuais.

Figura 6: comentário à notícia publicada no portal G1 em 29/7/2013

Fonte: extraída do portal Estadão Online em 30 jul. 2015

Tais repercussões, compreende-se, estão ligadas ao imaginário coletivo sobre o tema homossexualidade e a religião. Como nos diz Orlandi (2013), o discurso que abrange um emissor e um destinatário é composto de um processo de significação constante, não estando essas duas figuras separadas de forma estanque. Os comentários online ou mesmo offline se delineiam não somente pela fala do Papa Francisco em si, mas por toda a relação histórica que a abordagem do tema se deu ao longo dos anos pela Igreja, em um complexo e constante processo de produção de sentidos e imaginários. Com as mais recentes declarações, o que era antes um posicionamento monolítico de um sumo pontífice a respeito da homossexualidade passa a ser questionado e moldado por novos imaginários, que se imbricam com questões culturais e sociais, não somente religiosas. A partir desses imaginários, que integram a formação discursiva, entende-se, surgem as atribuições de imagem e de identidade – de ethos, por assim dizer – por parte dos

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destinatários (aqueles que leem e comentam os conteúdos) a respeito de Jorge Bergoglio. Em relação a si próprio, o Papa demonstra um ethos marcado por um caráter de amabilidade, e diz, portanto: eu sou assim e não sou assim (ou eu me posiciono dessa forma em relação ao tema e não de outra maneira). Essa perspectiva é de caráter interacional, ou seja, ocorre na declaração de Francisco a um determinado público. Além disso, seu orador encarnado é a figura papal, não necessariamente sua pessoa em si. Dadas essas declarações, associadas a uma formação discursiva, uma cenografia e um imaginário, o ethos implica, como frisa Amossy (2005), na disciplina do corpo aprendido por intermédio de um comportamento global. Estabelece-se assim, que o Papa Francisco é fiador do discurso da Igreja Católica, e conecta ações responsivas de quem apoia ou repudia tais declarações. Isso ocorre, entende-se, a partir dessas representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, com enunciações de Francisco que confirmam ou modificam os estereótipos culturais. Cada declaração emite um, dez ou cem comentários, onde estão imbricados todos esses elementos citados: o imaginário a respeito da figura do Papa e sobre o tema homossexualidade; a formação discursiva onde está inserida a fala de Francisco; a cenografia e dela o ethos decorrente; e o fiador de todas as declarações já dadas pelo novo sumo pontífice sobre o tema.

Considerações finais A partir das notícias e dos comentários analisados, entende-se que as palavras proferidas pelo Papa são imbuídas de um discurso mais brando que o de seus antecessores, tratando o assunto com maior abrangência e frequência, porém mantendo as diretrizes da Igreja sobre o tema como norteadoras a sua fala. Com essa aplicação, os fiéis percebem-se envoltos em uma temática polêmica, porém discutida. E o ethos prévio, bem como o ethos aplicado, é alternado em concordância e discordância por posicionamentos radicais e abertos ao tópico de discussão. Tal dualidade tem feito com que críticos religiosos, fiéis ou mesmo não seguidores de crença religiosa alguma mencionem que o Papa parece estar indeciso em relação à posição da Igreja a respeito do tema homossexualidade. De fato, muitas outras declarações de Jorge Bergoglio já ganharam os noticiários, onde o sumo pontífice faz duras críticas ao casamento gay, mesmo depois de dados os discursos citados nesse artigo. Acredita-se ser importante frisar que esse estudo se deteve a analisar as declarações de Francisco em apoio à causa homossexual, tendo em vista o grau de ruptura que isso representa em relação à discussão

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sobre um tema tão polêmico, antes restrito às paredes do Vaticano e agora expostas de forma clara pelo novo Papa. Mais que isso, percebe-se como tais declarações mexem no sistema de comunicação de tabus entre a Igreja e seus seguidores, as intenções do Papa com essas declarações e a própria abertura da Igreja, ainda que parcial, para os ativistas gays. O casamento homossexual tem sido amplamente discutido e o próprio fato da religião católica abrir esse tópico, seja em reuniões entre cardeais ou em aparições de Francisco pelo mundo já promove uma quebra histórica de discursos parciais pelas altas lideranças do cristianismo. Acreditamos que o passar dos anos e um aceite mais efetivo – se ocorrer – por parte da Igreja aos homossexuais deva modificar mais imaginários, estabelecer novas rupturas, provocar novas interpretações e transitar novas identidades ao novo Papa. A partir do estudo, conclui-se, a convenção social da comunidade cristã, os sentimentos ligados às manifestações sobre o tema e este passado histórico se cruzam com as manifestações atuais do papa, gerando, acreditam-se, novos contextos imaginários e responsivos a respeito de um tema por muitos anos considerado esse indissolúvel tabu pelas lideranças católicas pelo mundo.

Referências AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. Tradução: Maria Ermantina Galvão; revisão da tradução Marina Appenzeller. 3. ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2000. BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral II. São Paulo: Pontes, 1989. CAREGNATO, Rita; MUTTI, Regina. Pesquisa qualitativa: análise do discurso versus análise de conteúdo. Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2006 Out-Dez; 15(4): 679-84. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v15n4/v15n4a17. Acesso em: 13 jul 2015 CHARAUDEAU, Patrick. MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário da Análise do Discurso/Coordenação da tradução Fabiana Komesu. 3. Ed., 1º reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2014. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. Cap I.

FREITAS, Ernani César de. Linguagem na atividade de trabalho: éthos discursivo em editoriais de jornal interno de empresa. Desenredo, Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, 2010. Disponível em: Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1190

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Um número no Lager: um estudo sobre o nome e alma no judaísmo, a partir da literatura da Shoah A number in the Lager: a study on the name and soul in Judaism, from the literature of the Shoah Un numéro au Lager: une étude sur le nom et l'âme dans le judaïsme, à partir de la littérature de la Shoah

Alecrides Jahne Raquel CASTELO BRANCO DE SENNA 1 UFRN, Natal, Brasil

Resumo: O presente artigo é parte de uma pesquisa de doutorado que está sendo realizada, sobre a literatura da Shoah (para alguns, literatura do Holocausto). O ponto em discussão na leitura apresentado no artigo é o significado do nome/alma para o judeu, sob o prisma do judaísmo Hassídico e no que isso implica quando se trata do numero atribuído aos prisioneiros no Lager. O artigo recorre a Gaston Bachelard, Walter Benjamin, Harald Weinrich e Jeanne Marie Gagnebin para discutir, a partir dos conceitos de memória e esquecimento, aspectos relacionados a essa literatura. Palavras-chave: Shoah; nome; número; memória; esquecimento. Abstract: The following study constitutes the preliminary results of an ongoing doctoral research on the literature of the Shoah (also known as "Holocaust Literature"). The main argument in the following readings is the meaning of name/soul for the jewish people, considering the Hasidic perspective, and what it implies for the number assigned to each prisoner in Lager. The present paper refers to ideas from Gaston Bachelard, Walter Benjamim, Harald Weinrich and Jeanne Marie Gagnebin to discuss, using concepts such as memory and forgetfulness, certain aspects related to this literature. Keywords: Shoah; name; number; memory; Forgetfulness.

“Apague os rastros...” (Bertholt Brecht)

Nas sociedades modernas, aparentemente, ‘apagar os rastros’ é uma palavra de ordem. A falta de personalidade dos ambientes nos versos de Brecht se estenderiam às relações sociais. ‘Apague os rastros’ era um comando fundamental, enquanto a Alemanha nazista 1

Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro do grupo de pesquisa Mythos-Logos (PPGCS-UFRN). E-mail: [email protected] Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1192

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perdia a guerra. Uma voz ressoa nos sonhos: “Krematorium ausmachen!”, repete inúmeras vezes em seu relato, Jorge Semprún (1995). A falta de personalidade também era ordem nos barracões dos campos de concentração, nas filas de contagem, na formação para o trabalho e para as refeições. Nas vestes, nas cabeças raspadas, no andar maltrapilho e trôpego. Quando um prisioneiro era morto, a ordem era essa mesma. Harald Weinrich (2001) conta que Semprún, famoso escritor espanhol, fora aluno de Maurice Halbwachs em Paris e, esteve prisioneiro também no campo de Buchenwald, junto com seu professor. Halbwachs não sobreviveu e, Semprún recebeu a ordem para apagar no fichário o nome e liberar o número para que pudesse ser usado por outro prisioneiro. Este diz que a ficha do historiador estava enfim, limpa, para ser utilizada por outro prisioneiro (SEMPRÚN, 1995). Muitos tiveram seus nomes apagados, em seguida seus números, mas, antes disso, suas memórias, a centelha de suas vidas.

O nome A questão do nome emergiu do seguinte trecho do livro de Primo Levi, que diz, em Se isto é um homem: Já nada nos pertence: tiraram-nos a roupa, os sapatos, até os cabelos; se falarmos não nos escutarão, e se nos escutassem não nos perceberiam. Tirarnos-ão também o nome: se quisermos conservá-lo, teremos de encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer com que, por trás do nome, algo de nós, de nós tal como éramos, ainda sobreviva. (2010, p. 25-6)

Mas, qual a importância desse nome? Que se conservado há de manter o indivíduo ancorado, seguro de si mesmo? Seria o nome aquilo que liga o judeu ao Israel de Deus, que diz quem ele é de onde veio que designa seu futuro enquanto futuro de Israel. Em seu livro Nomes o Rabino Zushe Wilhelm (2009), faz uma apresentação da tradição referente à atribuição dos nomes. É um texto indicado para a instrução de condução dos rituais. Segundo o autor, de acordo com a tradição, a personalidade é anteriormente definida pela força do nome escolhido pelos pais, sob inspiração divina. O nome que a criança recebe é registrado pertencendo eternamente a essa pessoa. Nos reinos celestial e terreno, o significado do nome da pessoa está intimamente relacionado à sua alma e o seu destino. Quanto à modificação desse nome, também existem leis especiais. Em caso de uma doença grave, com o risco de morte, por exemplo. Um nome é acrescentado ao original, o que implica uma “espécie de mudança de identidade do paciente” (Wilhelm, 2009, p. X).

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Ele ainda acrescenta: Os sefarim 2 sagrados afirmam que o nome pelo qual a pessoa é chamada constitui sua alma e sua força vital. Isso significa que, enquanto reside no corpo a alma infunde vida nele por meio do nome, ou seja, mediante uma combinação correta das letras do nome. (WILHELM, 2009, p.XI)

Segundo Wilhelm, existem longas explicações sobre a importância mística do nome judaico, especialmente no Tanya 3. O que não caberia aqui, evidentemente 4. Pode-se observar, entretanto, que se trata de um elemento fundamental dentro do universo simbólico do judaísmo, pois, em relação à pessoa, “O nome pelo qual ela é chamada é o recipiente que contém a força vital condensada inerente às letras do nome” (idem, p.XI). Maus de Art Spiegelman (2009) foi uma leitura que apontou paraa questão do número de forma contundente. A história em quadrinhos traz o relato de seu pai, Vladek, a partir de longas conversas. Ele conta sobre um momento bastante significativo para o seu pai, Vladek, em Auschwitz: um padre faz observações sobre o número que Vladek recebeu em sua tatuagem. Ele está chorando sentado em um canto na cela, e o padre se aproxima. Não era judeu. “Seu número começa com dezessete “k’minyan tov” dezessete é um ótimo presságio. Acaba com treze. É quando meninos judeus viram homens. Veja! A soma dá dezoito. Em hebraico é “chai”, o número da vida” (p.188). O que significaria que ele sairia vivo dali, em sua opinião. Essa se tornou a âncora de ânimo para Vladek Spiegelman. Há toda uma explicação trazida por Edwin Black (2001), que traz o significado específico de cada número que foi utilizado nos cartões perfurados da IBM – Internacional Business Machines. Mas não é dessa em específico que se trata a fala do padre. Mas, daquilo que todo conhecedor do hebraico sabe: cada letra do alfabeto hebraico possui um número, e as palavras são formadas tendo em vista o somatório desses números e seu significado final.

Memória e esquecimento A maior questão da pesquisa, aqui apresentada de forma sucinta, consiste em pensar a relação entre o sobrevivente, o nome no judaísmo e a figura do muselmann, entendendo que, a partir disso pode-se elaborar uma compreensão sobre o Lager, daquilo que ele significou não

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Livros sagrados, no singular escreve-se sêfer. Sobre a história do Hassidismo há o livro de Harry Rabinowicz “Chassidismo: o movimento e seus mestres”. Chassidismo ou Hassidismo, implica apenas uma questão de tradução. 4 E com as quais também não estou familiarizada. 3

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somente para as pessoas que lá estiveram, mas, para a compreensão do ‘ser’ humano. Tendo em mente a reflexão de que “a verdade do passado remete mais à uma ética da ação presente que a uma problemática da adequação (pretensamente científica) entre “palavras” e “fatos” (GAGNEBIN: 2009, p.39). Por isso, as narrativas da Shoah (“catástrofe”, em hebraico) trazem questões importantes do ponto de vista de uma literatura: Como usar uma linguagem que favoreça um entendimento mútuo, que seja inteligível para aqueles que não vivenciaram aquela situação fora do comum? Como imaginar o inimaginável? Narrar seria admitir a realidade daquilo que parecia irreal, quando vivido. Como diz Márcio Seligmann-Silva (2008): “Veremos que o testemunho de certo modo só existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade” (p.67). Assim fazem alguns sobreviventes do chamado Holocausto, ou Shoah. O passado não é algo cristalizado nas lembranças, mas, algo que é visto e revisto cada vez que é contado e recontado, e, está presente mesmo, em manias do dia a dia e pesadelos à noite (SPIEGELMAN, 2009; SEMPRÚN, 1995). A escrita do trauma não tem em seu eixo um norteamento cronológico. Em seu texto, Wladislaw Szpilman (2008) diz que para ele, o período em que viveu no gueto foi como um sonho, um único bloco de lembranças. Como nas palavras de Gagnebin: “a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente” (2009, p.44). Parece então, que esse “algo” ao qual se interroga, localiza-se entre o dito e o não dito, entre a lembrança e o esquecimento. É como algo entre o som e a música, a voz e a palavra. Exatamente aquele lugar em que não se tem certeza da realidade ou do sonho. Mas, ele está lá e, de alguma maneira, pode-se voltar a esse lugar enquanto for possível lembrar. Mas é aqui se evidenciam as palavras de Levi de que elas, tantas vezes contadas e recontadas, adquirem elementos externos, tomados de outros conhecimentos e se deforma. É assim que ele inicia o primeiro capítulo de seu livro Os afogados e os sobreviventes, intitulado A memória da ofensa (2004, p.19). E, assim como Elie Wiesel, em seu A noite (2006), esquecer o que aconteceu não faz parte dos planos 5.

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Weinrich (2001). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1195

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Primo Levi (2004) enfatiza que o muselmann 6 ele é alguém que já se entregou, chegou ao fundo do Lager. Era o nome que os veteranos usavam para descrever os que estavam “aptos” para a seleção. O número é a única identificação quando o indivíduo esquece quem é, quando tudo que antes foi, deixa de existir: ele se tornou um muselmann. Esse é o fim último da política de extermínio nazista. O seu fim nada mais é do que o esquecimento. A aniquilação do corpo, mas antes de tudo, a aniquilação do ser humano: A aniquilação de corpos humanos nessa sua dimensão originária de corporeidade indefesa e indeterminada como que contamina a dimensão espiritual e intelectual, essa outra face do ser humano. Ou ainda: a violação da dignidade humana, em seu aspecto primevo de pertencente ao vivo, tem por efeito a destituição da soberba soberania da razão. (GAGNEBIN: 2009, p.77)

A aniquilação das diferenças: o uniforme de Häftling 7, as cabeças e todos os pelos do corpo raspados, as filas, a palidez, o odor agridoce do ar 8. O trabalho forçado, o transporte em trens de carga e de gado, a denominação ‘peças’ referindo-se aos prisioneiros, nos relatórios dos nazistas. Tudo isso como demonstração da eficácia de uma máquina de morte bem lubrificada, e com uma finalidade bem específica, como nos mostra Arendt (2001): Como instituição, o campo de concentração não foi criado em nome da produtividade; a única função econômica permanente do campo é o financiamento dos seus próprios supervisores; assim, do ponto de vista econômico, os campos de concentração existem principalmente para si mesmos. (p.495)

Nachman Falbel, em seu livro Kidush HaShem: crônicas hebraicas sobre as cruzadas (2001), também analisa, resumidamente, essa questão do nome no Holocausto e diz que, para os judeus: “o desejo de lutar contra a morte anônima, a morte sem “nome”, permanece como um elemento de longa duração em sua história” (Falbel, 2001, p.19). Na Idade Média, as carroças carregadas de corpos para ser enterradas em valas comuns, também foi uma imagem recorrente na Shoah. O que faz lembrar a observação de Primo Levi, no início do seu livro Se isto é um Homem: “A história dos campos de extermínio deveria ser interpretada por todos como um sinal sinistro de perigo” (2010, p.09). O perigo de um simulacro? 6

Sobre essa personagem do Lager, o livro de Giorgio Agamben “O que resta de Auschwitz” possui um capítulo especialmente dedicado a essa discussão. 7 Prisioneiro. 8 Citado também por Chil Rajchman em “Treblinka: eu sou o último judeu”. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1196

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O esquecimento é o outro lado da moeda da memória. É parte dela, ambos estão intimamente relacionados. Como nos instantes bachelardianos, em algum momento, esquecer faz parte o lembrar, e, ambos, fazem parte do universo que é o indivíduo. O esquecimento está sempre ao lado, pronto para saltar quando uma pessoa quiser lembrar. Por isso, para ser duradoura, uma memória precisa lutar diariamente com o esquecimento. E para ser bem-sucedido nisso é preciso conhecer o esquecimento e registrá-lo minuciosamente em todas as suas manifestações atestadas. (WEINRICH, p.257)

O que leva à questão: estariam os sobreviventes, ao escrever suas memórias, na verdade, escrevendo ou inscrevendo seus esquecimentos? Podia lembrar-se de tudo que se viveu, ou senão aquilo que se perdeu? Elie Wiesel (2006), assim como Szpilman (2000) e Lili Jaffe (JAFFE, 2012), compartilham de suas impressões sobre o tempo. Um tempo que mais parece um sonho, um dia, uma noite. Elie Wiesel, seguindo a tradição Hassídica, conhecida de sua família, tornou-se um narrador. Após dez anos de silêncio. Comentando o livro O esquecido de Wiesel, Weinrich questiona: “Como eliminar o perigo do esquecimento ligado a toda troca de geração?” (p. 257).

Walter Benjamin e Gaston Bachelard: o desafio da tese Não existe uma história única, mas várias os judeus contam suas próprias histórias da Shoah. Histórias da descontinuidade. Os relatos são partes constituintes de histórias, de um mesmo período cronológico, localizadas nas circunvizinhanças uns dos outros. Diz Benjamin: “Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo “tal como ele foi”. Significa apoderar-se de uma recordação (Erinnerung) quando ele surge como um clarão num momento de perigo.” (2012, p. 11). Para isso, é preciso pensar os relatos com um conceito de história e abri-los em paralelo, deixar que falem, para, juntamente com a teoria, pensar os fios de Ariadne que as interligam. Pois, elas estão interligadas não só por versarem sobre a Shoah enquanto acontecimento culminante de um planejamento estratégico da Alemanha Nazista, mas, nas questões que evidenciam, sejam religiosas, as próprias angústias humanas, o sentimento de pertencer a essa humanidade. E como diz Benjamin: “O cronista, que narra os acontecimentos em cadeia, sem distinguir entre grandes e pequenos, faz jus à verdade, na medida em que nada de que uma vez aconteceu pode ser dado como perdido para a história.” (2004, p.10). Em Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1197

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Benjamim, rememorar implica uma presentificação do passado, no sentido de trazer o passado a partir do olhar do presente. O passado não é algo indiferente, mas só é memória posto que esteja relacionado ao presente. Neste estudo, recorre-se à noção do tempo descontínuo em Bachelard. Carvalho Filho (2012), apresenta sucintamente as discussões de A intuição do instante (2010), e, em uma frase resume o que nos interessa aqui: “Essa percepção do tempo como construção demonstra que só é possível vislumbrar a nossa visão temporal a partir do presente” (CARVALHO FILHO, 2010, p.62). A construção do relato só é possível a partir do presente numa construção de um conjunto descontínuo de eventos. Ou seja, o narrar os fatos não é mais que a tentativa de inscrever na horizontalidade as experiências da verticalidade. Isso porque, não é que ele seja inenarrável, mas que é preciso uma construção apenas alcançada em algum momento específico da vida do sobrevivente. Como é o caso de Semprún e Wiesel. A questão não é perscrutar lacunas nos relatos, mas, evidenciar os instantes presentificados no ato de rememorar. A partir disso, relacioná-los aos elementos da tradição judaica que eles identificam, para enfatizar os elementos que afloraram nas situações extraordinárias vivenciadas pelos sobreviventes. E as leituras prévias de construção do problema de pesquisa apontam a alma e o nome como fundamentais. A partir daí, pretende-se reconhecer os que orbitam em torno dos dois. O que indica questões sobre morte – não apenas a morte do corpo e as leis relacionadas a ela, mas, e principalmente a morte dos homens-casca (o muselmann). Esta última relaciona-se ao pensamento (o reflexo da alma nos olhos, como aparece em alguns relatos). Assim, não se trata de pensar apenas a memória, mas, a memória que é a presentificação de um tempo descontínuo, desenraizado. O sobrevivente, em seu ser desenraizado, apresenta um relato do tempo descontínuo? A alegação de que tudo não foi como em um sonho, como um bloco de acontecimentos, não cronológicos, possui uma configuração vertical? Eis algumas das questões que surgem no caminho.

Referências AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

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Um orixá evangélico: a transição de Exu para o culto da Igreja Universal do Reino de Deus A gospel orixá: the move of Exu into the ceremonies of the Universal Church of the Kingdom of God Un orixá évangélique : la transition d’Exu aux cultes de l’Église Universelle du Royaume de Dieu

Ivana SOARES PAIM 1 PUC, São Paulo, Brasil

Resumo No contexto das comunicações realizadas por redes sociais de compartilhamento de informação, este artigo aborda a transição de Exu, uma divindade das religiões afro-brasileiras para os exorcismos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) divulgados no YouTube. Foram selecionadas para a análise desenvolvida neste artigo, apenas as postagens de exorcismos que ligavam a ideia do Diabo cristão na IURD à deidade Exu. O referencial teórico mobiliza autores ligados ao estudo da imagem como “acontecimento” nas mídias, como Charaudeau e aqueles que versam sobre o sincretismo religioso e o imaginário como Malandrino e Durand. O artigo descreve o processo de hibridação entre a personificação cristã do mal e a imagem de Exu; e ressalta que desse processo de sincretismo religioso deriva um personagem neopentecostal tipicamente brasileiro. Palavras-chave: sincretismo; acontecimento midiático; Diabo; Exu. Abstract Having as a background the communications that take place in the Internet, this article talks about the transition of Exu, a deity came from the Afro-Brazilian religions into the exorcisms of Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), released in YouTube. Only the exorcisms that relate the image of Exu to that of the Christian Devil were taken in account for this research. The theories of Charaudeau about the midiatic happening, those of Malandrino about religious syncretism, as well as Gilbert Durand’s structures of the human imaginary guided the analysis of the subject. This article describes the process of hybridization between the Christian personification of the evil and Exu. Besides, this article points that from this syncretism comes a typical Brazilian religious character. Key words: sincretism; mediatic happening; Devil; Exu.

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Introdução: o Diabo como ajudante de igrejas Assim como a Igreja Católica esteve num processo de expansão entre os séculos V e X, as igrejas pentecostais e neopentecostais enfrentam essa fase atualmente e lançam mão da figura do Diabo da mesma forma que a Igreja Católica havia feito: usam o Diabo para aterrorizar os fiéis e legitimar sua existência como salvadoras. No Brasil, além de garantir largo número de fiéis com essa estratégia, as igrejas neopentecostais estabelecem uma relação de rivalidade com as demais religiões em progressão como as de origem afro-brasileiras, ou mesmo a católica, ao transformar os santos, os orixás ou os espíritos sagrados dessas religiões em meros Diabos. No mundo neopentecostal, santos, espíritos e orixás continuam a existir, mas são demonizados; dando ao fiel a impressão de que será tentado por eles a afastar-se de Deus. Converter no neopentecostalismo brasileiro significa “redefinir o demônio ou descobrir um novo demônio ativo em áreas não percebidas como demoníacas” (MARIZ. In: BIRMAN et al., 1997, p. 49). E assim, as igrejas neopentecostais fortalecem no fiel a ideia de que a igreja tem o poder de protegê-lo contra o Diabo, e atribuem a si mais credibilidade. Para alcançar o maior número de pessoas, além dos cultos presenciais espetaculares, muitas das igrejas neopentecostais tem utilizado meios de comunicação como o rádio, a tevê e atualmente a web. Por ser uma das igrejas neopentecostais de maior projeção no uso da tevê e por ter explorado um novo gênero de espetáculo litúrgico – os exorcismos televisionados – a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) será especificamente abordada neste estudo. Além da rede televisiva Record, a IURD possui a IURD TV aberta e online, e divulga no YouTube imagens de exorcismos de fiéis endemoninhados. Assim, este trabalho mostrará como o Diabo, aqui entendido como um personagem do imaginário cristão, aparece configurado nos “possuídos” da IURD e como essa imagem é produzida e reverberada na tevê e no YouTube, levando em conta as teorias de Charaudeau sobre o “acontecimento provocado” presente nas mídias e as ideias de Malandrino (2006) e Durand (2012) respectivamente, sobre o sincretismo religioso e as estruturas arquetípicas do imaginário que caracterizam a fusão dessas duas deidades: Exu e Diabo.

O acontecimento provocado de Charaudeau

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Ao se debruçar sobre os estudos já existentes acerca do acontecimento, principalmente aqueles de Ricoeur e Morin, Charaudeau aponta uma nova vertente de “acontecimento”, que de certa forma contradiz o conceito inicial daqueles pesquisadores, que associavam a ideia de “acontecimento” à ideia de ruptura de uma ordem e a de aleatoriedade. Charaudeau afirma que o acontecimento nas mídias é sempre construído e, portanto, pode ser inclusive programado e provocado (CHARAUDEAU, 2012, p. 189). As mídias de informação não se contentam em relatar acontecimentos, ou simbolizálos pelo viés de uma narrativa ideológica, mas criam situações que provocam o surgimento de acontecimentos, que nada tem de espontâneos desde o princípio de sua existência. Segundo Charaudeau, esses acontecimentos provocados são encenações organizadas de maneira que os confrontos de fala, ou as situações nas quais se envolvem os sujeitos atuantes, sejam vistos como um acontecimento notável, ou saliente. O acontecimento provocado faz da informação um objeto de espetáculo, ou seja, ele elimina a finalidade informativa em favor da captação (Ibidem, p.191). Esse acontecimento provocado provém de um sistema de apresentação ou de um dizer que não é somente um recurso para descrever e narrar o mundo, mas uma construção com fins de revelação de uma determinada verdade sobre o mundo (Ibidem, p. 189). Essa construção, seja ela um debate, ou uma entrevista de talk show é exibida na imprensa, na televisão ou mesmo atualmente na internet. Para Charaudeau, todo acontecimento midiático é provocado e prima pela busca da dramaticidade que garantirá sua espetacularização e assim, maior audiência; daí a escolha dos profissionais das mídias e dos convidados basear-se em sua capacidade de ser carismáticos, em chamar a atenção do público (Ibidem, p.197). Charaudeau aponta também o que chama de problemas relativos ao acontecimento provocado ao compará-lo com os acontecimentos narrados ou simbolizados, mas carregados da ideia de imprevisto. Afirma que se os últimos suscitam entraves por causa da questão da subjetividade dos agentes da comunicação, os provocados despertam problemas acerca dos limites de atuação das mídias. Segundo ele, “fazer da informação um objeto de espetáculo, é arriscar-se a ultrapassar as instruções do contrato, a eliminar a finalidade informativa em prol da captação, e a cair num discurso de propaganda com fins de autopromoção” (Ibidem, p. 191-192). Assim, as escolhas que determinam o tema, os atuantes e todo o sistema de encenação do acontecimento provocado, bloqueiam o desenvolvimento da argumentação criando assim uma ilusão ou efeito de verdade. Segundo o autor, esse efeito de verdade é mais evidentemente visto nos gêneros televisivos.

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Charaudeau salienta que a imagem televisiva pode produzir três tipos de efeito: o de realidade, quando se presume que ela reporta de modo direto o que surge no mundo; o de ficção, quando tende a representar analogicamente um acontecimento passado, como nas reconstituições; e o efeito de verdade, quando torna visível o que não era antes visto a olho nu, como mapas na perspectiva de voo de pássaro ou satélite nos dias de hoje, gráficos com dados abstratos, ou zooms de seres microscópicos, que mostram a realidade por um anglo diferenciado e penetram o universo oculto dos seres e objetos do mundo. É importante lembrar que Charaudeau tem como preocupação principal em sua obra elucidar a dificuldade em se realizar a democracia plena no discurso das mídias. Contudo, nesse trajeto de desvelamento do que chama de “simulacro de democracia”, o autor deixa elementos teóricos que servem para analisar acontecimentos provocados que não se atêm à questão de criar uma ilusão de democracia ou da função de informar, mas pretendem simplesmente persuadir e convencer o interlocutor com a mera propaganda. Nos próximos itens será estudado um tipo de acontecimento que tem estado presente atualmente em mídias como a tevê aberta e online, além do YouTube: os exorcismos provocados nos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus, que têm por objetivo principal, propagandear o suposto poder de proteção daquela igreja em fase de expansão e consolidação.

A construção do Diabo midiático da Igreja Universal do Reino de Deus Durante alguns cultos da Igreja Universal, destinados à purificação das almas e corpos dos fiéis, o pastor regente incita os presentes a permitir que o mal que se encontra neles, presumidamente, se manifeste em forma de Diabo para ser exorcizado por ele, pastor, e pelos obreiros, seus ajudantes. Melodias semelhantes àquelas de filmes de terror saem do órgão presente no altar e criam uma atmosfera de apreensão e expectativa. Os obreiros e o pastor colocam suas mãos sobre a cabeça de alguns fiéis e começam a chamar pelo Diabo que daquele corpo supostamente tomou posse. Não demora muito para que alguns fiéis comecem a se apresentar como se fossem Diabos encarnados, sofrendo desmaios, babando, falando com voz gutural ou mesmo gritando e se contorcendo. Nesse momento, a câmera já está ligada e remete a imagem do pastor regente em contato com um dos “possuídos” ao telão, situado no centro do templo e em suas laterais. Assim, a fala do endemoninhado e a do pastor são ouvidas por todos os presentes via microfone e autofalantes. Algumas dessas imagens

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provenientes desses cultos vão parar na IURD TV online e aberta, exibida pela Rede 21, e também no YouTube. Com essa breve descrição é possível notar que os exorcismos da Igreja Universal, assim como o Diabo em que neles surge são acontecimentos provocados: primeiro pela atmosfera criada durante aqueles cultos de purificação, que suscitam a expressão do personagem por alguns fiéis vulneráveis ao tipo de ritual religioso em que divindades são incorporadas; segundo porque naquele mesmo instante em que os exorcismos acontecem, as câmeras já os registram nos telões presentes dentro do templo, para que os fiéis mais distantes do palco possam vê-los e ouvi-los com mais facilidade; e terceiro porque, tempos depois, aqueles exorcismos são editados e colocados em programas da IURD TV como o “Ponto de luz”, ou o “Obreiros em Foco”, por exemplo. Assim, esses exorcismos e esses Diabos já nascem destinados à tevê. Isso porque na verdade, tratam de propaganda da proteção oferecida pela Igreja Universal. Essas construções televisivas de cenas de exorcismos pretendem revelar aos seus telespectadores ou mesmo internautas, que a IURD pode protegêlos do mal que está à solta e quer desgraçar sua vida financeira, afetiva e destruir sua saúde. O que importa para a Igreja Universal, que divulga esses exorcismos, em sua maioria, é estar sempre na berlinda. Os pastores, blogs ou canais que divulgam esses vídeos no YouTube pouco se importam com os comentários ofensivos que acompanham algumas de suas postagens, porque para eles a propaganda é mais importante do que o argumento. Por ter como principal objetivo a propaganda da proteção oferecida pela IURD contra o Diabo, os exorcismos ali realizados e divulgados nas mídias televisivas, apresentam um quadro ou roteiro já determinado, cujo fio condutor é: o pastor provoca a manifestação dos supostos Diabos que se manifestam no fiel naquele momento, e em seguida os expulsa daqueles corpos com o poder de sua palavra, respaldada pela força de Deus e da IURD. Assim, pastor e “fiel possuído” seguem esse roteiro, e por mais feroz que seja a apresentação do Diabo na expressão corporal do fiel, ele sempre será subjugado pelo pastor, que ao cabo de alguns minutos, o exorcizará. Esse quadro de configuração dos exorcismos já vem sendo desenhado e apresentado pela IURD desde 1988, quando Edir Macedo adaptou as “entrevistas com o Diabo”, proferidas pelo rádio em programas de David Miranda da Igreja Renascer, para seu programa na tevê Record (KLEIN, 1999, p.45). No caso dos exorcismos da IURD, os pastores corresponderiam aos profissionais de mídia e os fiéis “possuídos” a seus convidados. Os pastores sempre devem saber como

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chamar a atenção do público com seus discursos repletos de gestos e frases de efeito, embora dos fiéis possuídos não se exija tanto, mas que apenas respondam às perguntas do pastor de maneira animalesca, como se encarnassem realmente um Diabo. O papel do animador, no caso o pastor, no momento em que se desenrola o exorcismo é um papel gerenciador da fala e do comportamento do fiel “possuído”. É ele, o pastor, que introduz os temas e subtemas da conversa, dando ou não a palavra a seu inusitado convidado. Em um vídeo do programa “Duelo dos Deuses”, o bispo Guaracy pergunta a seu interlocutor endemoninhado: “Quer dizer que ele já veio feito de berço? (...) Quando ele saiu do ventre materno, quem veio nele de frente?” 2 Essas expressões “ser feito, e vir de frente” são comuns nas religiões afro-brasileiras e são colocadas aqui para auxiliar a construção de um Diabo que teve sua origem nos terreiros e casas de santo. E assim, além de garantir o escopo do exorcismo, cujos veios espetaculares são garantidos pela captação televisiva, o bispo constrói uma imagem do seu “interlocutor sobrenatural”. Sua origem afro-brasileira está também em expressões faciais e gestos corporais que remetem àquelas representações gestuais das divindades umbandistas ou candomblecistas. Em um trecho do vídeo, o fiel movimenta seus ombros e balança seu corpo como os umbandistas e candomblecistas fazem ao corporificar “Exu Sete Encruzilhadas”. Mesmo passando por um processo de edição, a imagem daqueles exorcismos conserva aspectos da transmissão ao vivo nos telões do templo: a marcação de elementos que denotam ausência de controle e artificialidade, como câmeras e fiação aparecendo; as falas do pastor interpelando os câmeras diretamente a filmar aqui e ali; pessoas correndo no meio da cena; o pastor pedindo atenção ao público. A imagem editada, que será exibida na IURD TV e na internet, ganha legendas propagandeando o local das próximas reuniões na localidade onde são mostradas; ganha os círculos embaçados protetores da identidade do fiel, e perdem um pouco sua nitidez ao serem postadas no YouTube. Nos exorcismos mostrados na tevê e compartilhados no YouTube, a imagem produz tanto o efeito de realidade quanto particularmente o de verdade. O efeito de realidade se dá pelo fato de os exorcismos serem gravados no momento em que o culto acontece, ou seja, mostram diretamente o que surgiu no mundo num determinado instante: essas cenas mostram que o “possuído” é levado ao palco onde se encontra o pastor, e o exorcismo ocorre na frente de todo o público da igreja, e na frente das câmeras que os registram diretamente, garantindo assim um efeito de realidade. 2

Bispo Guaracy em Goiânia/GO –Forte – (IURD TV). Vídeo postado em 15/04/2013 no YouTube. URL: https://www.youtube.com/watch?v=AUQAq5rFVBc

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Já o efeito de verdade se dá pela própria figuração do Diabo na expressão do “possuído” e pelo colóquio que trava com o pastor; ou seja, por meio de um discurso pautado por um tom de voz animalesco e de cunho maldoso a pessoa concretiza e torna presente a imagem do Diabo, um personagem do imaginário cristão. Nessas entrevistas, a câmera mostra um corpo que apresenta a manifestação do Diabo, personificação do mal no cristianismo, cuja existência está ligada à crença no mundo sobrenatural e misterioso, de difícil acesso, estabelecendo, portanto, o contato dos demais fiéis e do pastor com esse elemento do imaginário no âmbito do sagrado, vindo daí seu efeito de verdade. Ao criar os efeitos de realidade e verdade, os exorcismos dão maior credibilidade à proteção oferecida pela Igreja Universal, especialmente ao utilizar a figura do Diabo subjugado pelos pastores, representantes da Igreja. No entanto, é necessário ressaltar que esses exorcismos de viés televisivo oferecem sempre uma ilusão ou efeito de verdade ou realidade, pois já se originam no culto com o intuito de convencer os fiéis da força e proteção da Igreja. Além disso, ao serem reproduzidas na tevê e na web, vem recortadas, como partes de uma realidade selecionada pelo câmera, pelo diretor e pelo editor. Dessa forma, segundo Charaudeau (2012), a televisão mostra um olhar opaco sobre as coisas do mundo, pois já traz em sua imagem a interpretação e a intenção das pessoas que a elaboraram. Desses exorcismos provocados e televisionados surge então a figura do Diabo da IURD, que muitas vezes assume características de entidades pertencentes às religiões afrobrasileiras como as de Pombo-giras e Exus.

O sincretismo religioso segundo Malandrino e os mapas do imaginário de Durand Os arquétipos potenciais são energias psíquicas que geram os arquétipos observáveis, quando ativadas por estímulos da realidade e configuradas em uma forma perceptível por meio do material ou repertório imagético individual (MALANDRINO, 2006, pp.205-209). Como afirma a abordagem junguiana, o símbolo é a imagem oriunda do inconsciente, expressão de arquétipos que não podem nunca ser expressos diretamente. O símbolo é a energia psíquica transformada em imagem. Assim, dos estratos mais profundos da psique surgem imagens arquetípicas que podem dar origem a símbolos, a mitos e a rituais. O símbolo consegue harmonizar significados opostos e colocar em diálogo elementos conscientes e inconscientes da psique, e por essa razão, torna possível a abordagem da experiência religiosa sob a ótica das construções do imaginário (Ibidem, 2006, p. 190).

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Os símbolos religiosos têm o poder de colocar a consciência em contato com elementos do inconsciente sem causar desequilíbrio ao self, protegendo-o da destruição, pois esses símbolos organizam-se em rituais e narrativas mitológicas, que permitem à energia psíquica circular seguramente entre um plano e outro da psique (Jung, 2000, apud MALANDRINO, 2006, p.75). Na umbanda ou no candomblé, por exemplo, o médium deve passar por um longo aprendizado até que esteja pronto para “receber o santo”. Além do aprendizado específico, ele deve aprender também a sensibilizar-se ao toque dos tambores, a deixar-se estar num estado de transe ou semi-transe, para que acione os arquétipos coletivos e que deles faça derivar os símbolos ou divindades que melhor se encaixem a sua individualidade, seu “santo de cabeça”, ou orixá. Deve estar preparado para saber a hora em que tornará presente esse símbolo originado em seu inconsciente e a hora em que se desvencilhará dele no ritual. Assim, essa porção do inconsciente pode manifestar-se, cumprir sua função mística de religar planos incompatíveis racionalmente, sem que ponha em risco a integridade e o equilíbrio mentais da pessoa. O médium, os cambonos, auxiliares do médium, e todas as pessoas envolvidas no ritual obedecem à ordem da realização do culto ao orixá, e assim, tudo ali ocorre conforme o esquema ritualístico adotado. Quando não há um esquema a ser seguido, a energia psíquica fica solta, desorientada, e pode causar depressão, loucura ou outras perdas para a totalidade do self (ZACHARIAS, 1998, p. 81). Os indivíduos têm a possibilidade de escolher ou não uma religião ou estrutura simbólica que lhes proporcione mais sentido na experiência com a sua realidade mística. Podem mesmo mudar de religião a partir do instante em que os símbolos religiosos de uma primeira religião não cumprirem mais o papel de conectar sua mente consciente com a totalidade do self. Sendo as estruturas arquetípicas comuns e coletivas, continuariam desenvolvendo sua função de criar e partilhar símbolos mesmo se o indivíduo mudasse de religião (MALANDRINO, 2006, pp.76-77). As estruturas arquetípicas e simbólicas garantem um esquema seguro de deslocamento dessa energia, que obedece a organizações preestabelecidas e compartilhadas por membros de sua comunidade como rituais, normas de etiqueta e demais convenções. Durand propõe mapear as estruturas arquetípicas, formadoras de imagens simbólicas para que melhor possamos compreender os elementos que determinam sua caracterização imagética.

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Durand amplia as ideias de Jung sobre a formação das imagens arquetípicas porque considera que se dão não somente no interior da psique humana, mas que se formem graças a interação entre a subjetividade e a objetividade. Afirma que as imagens são frutos da deformação de cópias pragmáticas da percepção visual registradas pela memória, são recombinações de signos metaforizados, determinadas pelas pulsões psíquicas e as repressões do meio social. Assim, as imagens arquetípicas ou simbólicas são formadas na dinâmica de intercâmbio entre realidade e subjetividade; e Durand chama esse processo de trajeto antropológico, ou “a incessante troca que existe no imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 2012, p. 41). Com base nessa conclusão e em seus estudos sobre a obra de Piaget, Durand chega a uma metodologia da geração das representações simbólicas que chama de dominantes reflexas. Essas dominantes seriam malhas intermediárias entre os reflexos simples e os associados, como matrizes sensório-motoras nas quais as representações vão integrar-se, sobretudo se certos esquemas perceptivos vêm assimilar-se a esquemas motores primitivos. São elas as dominantes posturais, de engolimento e rítmicas, que estão em concordância com os dados de certas experiências perceptivas como o erguer-se ou o cair, o nutrir-se e o amadurecer-se sexualmente (Ibidem, 2012, p.35). Partindo da convergência da reflexologia, da tecnologia e da sociologia, Durand estabelece uma divisão binária da qual partirá toda sua estruturação do mapa simbólico do imaginário humano: o Regime Diurno e o Noturno. O Regime Diurno tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais da elevação e da purificação. Já o Regime Noturno subdivide-se nas dominantes digestiva e rítmica ou cíclica. A dominante digestiva abrange as técnicas do continente e do habitat, os valores alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora. A dominante cíclica agrupa as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos do retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos, como o clima e as estações do ano (Ibidem, 2012, p.58). Segundo Durand o Regime Diurno é o regime da antítese, pois de cara contrapõe luz e treva. Seus símbolos são aqueles ligados à luminosidade e à sombra, como os símbolos antitéticos de Deus e do Diabo, de vida e de morte. O Regime Diurno recusa a visão eufemística do tempo, vendo nele somente a negatividade da morte. Assim, aumenta hiperbolicamente o aspecto tenebroso e maléfico de Cronos, a fim de endurecer ainda mais as

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suas antíteses simbólicas, de polir com precisão as armas que utiliza contra a ameaça noturna, que são o cetro e o gládio. Trazer ao campo da imaginação o terror dos efeitos do tempo, já é uma forma de dominá-lo. Configurar o tempo em formas bestiais e tenebrosas já é automaticamente prepará-lo para ser vencido pela figura de um herói luminoso e armado, que se ergue eretamente como o cetro e punge sua vítima com o gládio (Ibidem, 2012, pp.84-165). No Regime Noturno “o antídoto do tempo não será procurado no sobre-humano da transcendência e da pureza das essências, mas na segura e quente intimidade da substância ou nas constantes rítmicas que escondem fenômenos e acidentes” (DURAND, 2012, p. 194). Ao regime heroico da antítese se contrapõem o regime pleno do eufemismo. Nesse regime a queda se eufemiza em descida e o abismo minimiza-se em taça, e a noite é apenas promessa da aurora. As linhas de força que determinam a estruturação dos símbolos sob o Regime Noturno são aquelas do engolimento e da descida, do acolhimento. O símbolo primordial e supremo engolidor seria o mar, pois é o abismo feminizado e materno que para numerosas culturas é o arquétipo da descida e do retorno às fontes originais da felicidade, o útero da mãe. A imaginação noturna é naturalmente levada da quietude da descida e da intimidade que a taça simboliza para a dramatização cíclica na qual se organiza o mito do retorno e daí a troca da taça pelos símbolos cíclicos do denário e do pau. O símbolo do denário encarna o desejo de dominar o devir pela repetição dos instantes temporais, vencer Cronos não com figuras estáticas, mas operando sobre a própria substância do tempo para domesticá-lo. Daí surgem as mitologias messiânicas e as de progresso. Já o símbolo de paus indica as modificações cíclicas pelo viés da genética, da hereditariedade, para o desenvolvimento progressista da maturação. Assim, paus é a síntese da ideia da árvore frutífera. Durand apresenta também a passagem de uma morfologia classificatória das estruturas do imaginário para uma fisiologia da função da imaginação. Esboça uma filosofia do imaginário a que chama de fantástica transcendental, pois demonstra como o imaginário humano estrutura-se universalmente, obedecendo a padrões comuns, que transcendem as culturas e os tempos. Segundo o autor, “há uma realidade idêntica e universal do imaginário” (DURAND, 2012, p. 378). O autor não afirma, contudo, que as estruturas arquetípicas produzam símbolos idênticos em todas as sociedades humanas, mas que há uma afinidade na constituição desse arcabouço imagético, como a oposição entre os Regimes Diurno e Noturno, que derivam de processos comuns a todos os seres humanos, como o nascer e o morrer, o

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engolir, o elevar-se na postura ereta, o cair, o perceber os ciclos rítmicos de sua natureza e da natureza que os envolve.

A transformação de Exu em Diabo nos exorcismos da IURD A ideia de Deus no cristianismo aproxima-se da determinante reflexiva de ascensão corporal, que coloca seu herói nas alturas e na claridade, um herói demiurgo e justo, cujo cetro e gládio sempre vencerão seu oponente. No catolicismo, divindades que compartilham os mesmos ideais de bondade e pureza de Deus como os santos, os mártires e os anjos também se opõem ao Diabo, e muitas vezes são representados como pessoas saudáveis, portando auréolas ou asas, no caso dos anjos, e tendo sob jugo o Diabo, geralmente configurado como dragão ou serpente de cor escura, animal aterrorizante de dentes afiados. Nessas representações o Diabo encarna toda a negatividade dos símbolos que povoam o imaginário do Regime Diurno. É ao mesmo tempo bestial e vorás, aterrorizando com seus dentes, chifres e rabo, e reforçando por antítese a força protetora dos heróis que o subjugam. O Diabo é também um símbolo da queda dentro do Regime Diurno, que toma um significado trágico, dramático e não eufêmico da ação do tempo. No Regime Diurno, a queda remete à perda, ao rompimento e à condenação. O Diabo está condenado a sofrer e causar tormento, a desestabilizar a ordem divina, e a sempre ser vencido. O resgate da imagem aterrorizante do Diabo católico feito pela Igreja Universal, de cunho protestante justifica-se pelo fato de que ambas as igrejas, embora em tempos diferentes, enfrentassem processos de expansão e consolidação de sua existência como instituições e precisassem afirmar sua função de proteger o fiel do mal, personificado em Diabo. Assim, a imagem do Diabo católico do século IX reverbera na expressão corporal dos fiéis da IURD, conservando suas características animalescas no rosnar e nas vozes guturais, nos ataques com unhadas aos pastores, nos gritos de desespero ao serem subjugados nos exorcismos. A Igreja Universal manteve a figuração do Diabo dentro dos limites do antitético Regime Diurno da imagem, não rompendo o uso tradicional dessa imagem dentro do cristianismo, mas continuando a reforçar os significados de destruição e morte encarnados no Diabo, e os de salvação e vida eterna atribuídos a Deus. Assim, é importante indicar quais são as características de Exu que ainda sustentam sua associação com o Diabo na Igreja Universal e quais o distanciam dele. Mesmo sendo de caráter plural, apresentando características muitas vezes contraditórias, o orixá Exu não chega

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a manter com nenhum outro orixá uma relação antitética, o que aproxima sua simbologia do Regime Noturno da imagem. Entre outras características que unem Exu a esse Regime está sua ligação ao sexo. Na cultura iorubá, de onde vem os orixás, uma família numerosa é sinal de prosperidade, de perpetuação da espécie, e assim, o sexo não é visto como algo pecaminoso, mas como algo desejado. Exu é patrono da cópula, que garante os filhos e dá continuidade à linhagem, associa-se aos símbolos pertencentes ao denário e a paus, ou seja, aos fenômenos cíclicos e de hereditariedade, que procuram controlar o tempo, não vendo nele apenas a imagem devoradora de Cronos. Exu associa-se então a ideia de ciclo de vida e procriação. Mesmo quando se apresenta de maneira agressiva e perturbadora é porque na verdade, deseja que a ordem e as regras sejam respeitadas. Na mitologia iorubana, Exu é também responsável pela passagem dos dois mundos, o Aye, terreno e o Orum, celestial, sendo ele o intermediário entre os orixás e os homens. Assim, para que um orixá possa vir à terra, ou para que um homem dirija suas preces a um orixá, oferendas devem ser dadas primeiro a Exu, que intermediará todo o processo. Se uma das partes se esquece do trato, a divindade se irrita e castiga o infrator. Na abordagem psicológica, Exu pode ser visto como símbolo regulador da passagem entre o self, no plano inconsciente e o ego, no consciente (ZACHARIAS, 1998, p.96). Na função de intermediador entre planos diferentes, Exu ainda pode ser aproximado do Regime Noturno, devido ao seu caráter regulador, que consegue transitar tanto pela claridade quanto pela escuridão, auxiliando e punindo, conforme as regras de Obatalá, criador do mundo. Tem o poder de resgatar a ordem com a própria desordem. Zela então pela continuidade e equilíbrio dos movimentos cíclicos, que garantem a vida na terra, dentro da mitologia, ou a integridade do self, no âmbito psicológico. Durante os rituais da umbanda ou do candomblé, Exu é apresentado pelo médium como um homem sedutor, de movimentos rápidos, comunicativo, contraventor de regras sociais, pois às vezes fala palavrões, e geralmente porta um copo com bebida e um charuto ou cigarro. É alegre e espirituoso, de risada forte e estrondosa, é bem franco e vez ou outra pode parecer grosseiro. Por ser um símbolo da força do sexo, da agressividade e por trazer em sua expressão gestual elementos que tornam presentes esses símbolos, Exu continua sendo associado ao Diabo cristão. No cristianismo, o sexo e a agressividade são mal vistos e devem ser extremamente controlados e muitas vezes até negados. E o que foi reprimido acaba

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fazendo parte da região sombria da personalidade do indivíduo ou do imaginário de um povo (ZACHARIAS, 1998, p.140). Assim, algumas características valorizadas na religiosidade iorubana, como o sexo, e a agressividade para a resolução de conflitos são desvalorizadas na religiosidade cristã, adquirindo um tom pejorativo e estigmatizado. Na construção do Diabo cristão nos palcos da Igreja Universal há a tentativa de colocar uma divindade do Regime Noturno em um padrão de imagem do Regime Diurno, o que acarreta a formação de uma divindade de caráter peculiar, típica de mais um processo de sincretismo religioso no Brasil, entre o neopentecostalismo e as religiões afro-brasileiras.

Considerações finais: “Exu das Almas Preciosas”, um Diabo cristão afro-brasileiro No processo de transporte de algumas divindades afro-brasileiras para os palcos da IURD, o modelo Diurno do Diabo cristão vence o padrão Noturno de Exu, mas esse novo Diabo, criado nos palcos da IURD, conserva alguns gestos e o nome da divindade Exu, assim como elementos de sua expressão gestual e vocal. Isso se explica devido ao fato de que muitos fiéis dessa igreja vieram de religiões afrobrasileiras, que já tinham como tradição a presença do transe e da apresentação de uma divindade por meio da expressão corporal. O próprio Edir Macedo, líder espiritual da Universal, afirma em seu livro “Orixás, caboclos e guias – anjos ou demônios?”, que já havia frequentado uma daquelas religiões. Por essas razões, pode-se dizer que ao migrarem das religiões afro-brasileiras para a neopentecostal, algumas pessoas trouxeram consigo traços de rituais mágicos e divindades daquelas religiões, ainda que transfigurados, e que hoje caracterizam os rituais e algumas crenças na Igreja Universal (ALMEIDA, 2009, p.123). Assim, ao compartilhar alguns aspectos específicos da umbanda e do candomblé como a provocação do transe, a expressão corporal de divindades pelos fiéis, e trazer características de orixás e guias para compor seu Diabo nessas expressões, a Igreja Universal funde-se com aquelas que tanto deprecia, num processo sincrético, que lhe atribui uma característica peculiar, que é a de ser uma religião neopentecostal tipicamente afro-brasileira. Muitos de seus fiéis supostamente possuídos se autodenominam Exus, tais como Exu do Lodo, Exu da Morte, Tranca Ruas, Exu Sete Encruzilhadas, Sete Catacumbas, Sete Facadas, Lúcifer, Exu Marabô, entre outros, comumente encontrados nas cerimônias das religiões afro-brasileiras, em que não são caracterizados como demônios. São chamados de demônios somente nos

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palcos da IURD. Porém, uma nova denominação de Exu nasceu no seio daquela igreja, e não é encontrada em nenhuma religião afro-brasileira até então: é o Exu das Almas Preciosas, não pertencente nem à umbanda e nem ao candomblé especificamente. Esse novo Exu demonizado traz de outros Exus afro-brasileiros apenas o gesto de ajoelhar-se perante divindade maior, Ogum, atualizada pela figura do pastor; a sensualidade na voz, em algumas de suas apresentações e o fato de apenas tentar e afastar da IURD fiéis e obreiros a ela ligados. Suas apresentações são televisionadas, tendo sido exibidas nos programas “Obreiros em Foco” e “Duelo dos Deuses” em sua maioria. Durante seus exorcismos, os pastores sempre reforçam o valor da persistência e da fé na Igreja Universal e em Deus para que os espectadores e telespectadores, principalmente obreiros, sejam convencidos a permanecer vinculados à igreja. As imagens televisionadas do Exu das Almas Preciosas servem de advertência àqueles que pensam em se desligar da IURD, pois se sentem cobiçados por esse demônio, colecionador de almas valiosas de integrantes da Igreja. Esse personagem caracteriza o processo de sincretismo religioso que ocorre nos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus, pois leva o nome e traços de uma deidade afrobrasileira, Exu, mas que existe somente dentro do contexto espetacular e televisivo da IURD.

REFERÊNCIAS ALMEIDA, Ronaldo de. A Igreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo: Terceiro Nome/FAPESP, 2009. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2012. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2012. MALANDRINO, Brígida. Carla. Umbanda: mudanças e permanências, uma análise simbólica. São Paulo: PUC/SP, 2006. MARIZ, Cecília Loreto. O demônio e os pentecostais no Brasil in: BIRMAN, Patrícia et al. O mal à brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, 1997, p.45-57. KLEIN, Alberto Carlos Augusto. Culto e Mídia, os códigos do espetáculo religioso: um estudo de caso da Igreja Renascer em Cristo. 1999. 140f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ZACHARIAS, José Jorge de Moraes. Ori Axé, a dimensão arquetípica dos orixás. São Paulo: Vetor, 1998.

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Imagens míticas na celebração do Reinado de Nossa Senhora do Rosário Mythic images in celebrating of Nossa Senhora do Rosário’s reign Images mythiques dans la célebration du Règne de Nossa Senhora do Rosário Vânia NORONHA 1 PUC Minas, Belo Horizonte, Brasil

Resumo O foco de análise deste estudo são as imagem míticas presentes no Reinado de Nossa Senhora do Rosario, manifestação típica dos negros, popular e importante em Minas Gerais. Sua origem é baseada na narrativa mítica, relativa à Santa e defini o modus vivendi de seus filhos. Para analisar as imagens adotou-se o paradigma da complexidade como base epistemológica e dentro dele, as teorias da antropologia da festa e do imaginário e a psicologia profunda. Estas referências teóricas permitiram analisar o arquétipo da Grande Mãe (Nossa Senhora do Rosário) e sua influência no "congadeiros". Espera-se que os resultados encontrados possam contribuir para o conhecimento sobre as comunidades afro-descendentes, ampliando nossa compreensão sobre a sociedade, a educação e mesmo sobre nós mesmos. Palavras-chaves: mito, arquétipo da Grande-Mãe, Nossa Senhora do Rosário, Congado, festa.

Abstract Its focus of analysis this study is Nossa Senhora do Rosário’s reign. This demonstration is typical of Afro-Brazilian people and it is very popular and important. Its origin is based on the mythical narrative concerning the Nossa Senhora do Rosário and represents the conception of the Saint’s devout and define their modus vivendi. The paradigm of complexity was chosen as an epistemological basis and inside it, the theories involving party and imaginary anthropology and profound psychology. These theoretical references allowed to analyze the archetype of Our Great Lady and its influence in the life “the sons of rosary”. Then, the proposed objectives for this study were successful. The found results are expected to contribute to the knowledge about afro-descendant communities, enlarging our comprehension about society and education and even about ourselves. Key-words: myth, archetype of Our Great Lady, Congado, Nossa Senhora do Rosário, celebration. Introdução Este texto tem como objetivo apresentar o Reinado de Nossa Senhora do Rosário e as imagens míticas presentes nesta católica, típica dos negros, popular e importante em nosso

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Estado 2. O Reinado (também chamado de reisado, Congado ou congadas) é o termo mais abrangente, que define um ciclo anual de festas em devoção a Nossa Senhora do Rosário e aos Santos Pretos, principalmente, São Benedito e Santa Efigênia. Envolve a realização de novenas, levantamento de mastros e bandeiras, procissões, cortejos solenes, coroações de reis e rainhas, cumprimento de promessas, leilões, cantos, danças, banquetes coletivos. Os festejos apresentam uma estrutura organizacional complexa, onde é possível identificar aspectos simbólicos e significantes, concretizados nos corpos de quem vive a manifestação, representando o legado de nações africanas e seus reinos sagrados em nosso país. Seus símbolos 3, imagens e rituais continuam presentes até os dias de hoje, e cada vez mais vão sendo escritos na corporeidade dos congadeiros, reproduzidos pela oralidade e pelo mito 4, caracterizando a vida e o modus vivendi de todos envolvidos na manifestação cultural. Que símbolos são esses? Que imagens se fazem presentes na manifestação? O que elas têm a nos dizer sobre nós mesmos? Para responder essas perguntas adotei a teoria da complexidade (Morin), a psicologia profunda (Jung, Campbell, Bachelard), a antropologia do imaginário (Durand) e a antropologia da festa (Duvignaud) com seus principais expoentes em diálogo com outros autores, como referencial teórico deste estudo. O Congado é uma prática cultural, permeada pelo simbólico, que nasce e transforma, dinamicamente, qualquer universo instituído (RUIZ, 2003). Entendido desse modo, pode se dizer que é uma prática simbólica, organizacional e educativa (PAULA CARVALHO, 1990), no qual os dois pólos da cultura – o patente e o latente - se tensionam, se equilibram e se relacionam de forma recursiva. Desse modo são produzidos uma cultura 5 e um imaginário 6 no

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A temática aqui discutida pode ser ampliada em Alves (2008).

3 A composição etimológica da palavra símbolo na língua alemã define mais claramente o seu duplo caráter: Sinn (sentido) que corresponde às variações das configurações socioculturais (variações das imagens) e Bild (forma), às invariâncias arquetipais (arquétipo) (DURAND, 1988, p. 1). 4

Campbell (1990) discute a atualidade dos mitos, afirmando que neles encontraremos elementos para compreendermos o presente e a nós mesmos. Para ele, os mitos são as pistas para encontrarmos as potencialidades espirituais dentro de cada um de nós e sua concretização se dá pelos símbolos. Os mitos continuam presentes na contemporaneidade, seus motivos básicos são os mesmos e têm sido sempre os mesmos, reforçando suas origens na experiência humana no passado.

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Cultura aqui entendida como um “circuito metabólico simultaneamente repetitivo e diferencial, entre o pólo das formas estruturantes - o instituído (cultura patente) - no qual manifestam-se códigos, formações discursivas e sistemas de ação, e o pólo do plasma existencial, das coisas do espírito, das vivências, dos espaços, da afetividade e do afetual, enfim do instituinte (cultura latente)” (PORTO, 1999, p. 95, inspirada em Morin). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1216

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trajeto 7 que se estabelece, dinamicamente, exigindo, de nossa parte, um esforço para compreendê-la. As imagens arquetípicas, presentes no mito de Nossa Senhora do Rosário e em todo o sistema mítico no Reinado, nos trazem elementos para melhor compreensão da duração, das mudanças e permanências, do eufemismo na manifestação, que se alocam nos fantasmas, nos ancestrais do povo negro que vive essa devoção, e que se tornam presença, por meio da oralidade, característica fundamental do Congado. Os Filhos do Rosário, homens e mulheres, crianças, jovens e velhos, vivem a sua fé fundamentada na narrativa mítica de Nossa Senhora do Rosário. Narrativa essa que permite aos congadeiros celebrarem, neste catolicismo reinventado, os mistérios gloriosos, dolorosos e gozosos de Jesus Cristo, cumprindo um ciclo festivo durante todo o ano e revivendo in illo tempore seu mito fundador e suas imagens arquetípicas. Uma das várias versões 8 orais sobre o mito de Nossa Senhora do Rosário conta que:

Lá na história de Nossa Senhora, lá no primórdio de tudo, quando Nossa Senhora apareceu no mar, os negros estavam ali e os brancos tentou tirar e não conseguiram. E aqueles negros humildes pediram a seus senhores: “Ah, pelo amor de Deus, deixa nós pelo menos tentar, porque ela não vem.” Porque o branco foi lá e colocô ela na capela e ela voltou para a água. Aí os negros com aquela coisa e tal. Os branco falô: “Vai, então, sua imundice, vai tentar então, porque vocês não andam com nossas roupas e ela não veio, então com vocês ela vai ir? Faça o que vocês quiserem.” Então uma triagem de sete negros, seis negros e uma negra (essa é a história que eu sei), foram na beira do mar cantar para Nossa Senhora pra ver se ela acompanhava eles. Nunca que eles imaginavam que ela ia acompanhar eles. Eles queriam simplesmente fazer só uma homenagem. Então, eis aí a lenda: o congo bateu, eram só sete negros, não era uma guarda de congo que foi lá bater, eles bateram no ritmo do congo. Os tambor, fizeram os tambor, consagraram do jeito deles, as coisas, do jeito deles e bateram no ritmo de congo e cantaram no ritmo de congo. Cada negro era de uma legião, um negro era cativo de moçambique, um negro era cativo de Congo, tem esses nomes na África. Tinha o negro cativo de Angola, o de não sei daonde, da Costa, cada qual com a sua tradição. Então, o negro do Congo bateu no tambor e falou: Vamos cantá. E cantou na linha dele tum tum tum, tum tum tum e cantou, na 6

O imaginário é, segundo Durand (2002) “o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens – aparece-nos como o grande denominador fundamental, aonde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano” (p. 18). 7 O conceito de trajeto antropológico foi cunhado por Durand (2002) e se refere ao produto da articulação entre o bio-psíquico e o sócio-cultural, o subjetivo e o objetivo, que permite ao homem realizar a sutura epistemológica entre Natureza e Cultura mediada pelo símbolo e, ainda, construir seus aparelhos simbólicos (PAULA CARVALHO, 1990). 8 Ver outras versões do mito em Martins (1997), Gomes e Pereira (2000), Giovannini Junior (2005), Lucas e Luz (2006), além do filme Salve Maria! (2006). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1217

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linha de congo. Ela [a santa] balanceou pra cá, balanceou para lá e veio um pouquinho. Eles emocionaram: Nossa Senhora envém. Aí o outro negro que ´tava com a mão no outro tambor: Vão bater, gente. E bateu no Moçambique. Moçambique era serra abaixo [ritmo do tambor], não existia serra acima, era tum tum tum tum, tum tum tum tum, era uma coisa serena. Moçambique original é serra abaixo. Eles tentaram mais uma vez, ficaram emocionados e bateram e cantaram. Isso faz parte do fundamento, quem sabe o que eles cantaram num fala, isso é segredo de estado, isto é uma coisa trancada debaixo de tantas chaves. E cantaram, no ritmo de Moçambique. Ela veio mais um pouquinho, chegou bem mais na areia. Essa é a lenda, eles ficaram bobo. O último negro, o mais sábio, o mais velho, falou: “Nós vamos bater agora no ritmo do candombe”, que era o ritmo deles original, da África. E bateram tucutucu tucutu tucutu tucutucu, uma mistura do congo, do moçambique e do batuque deles. Então, cada tambor bateu do seu jeito, então, cada qual fazendo a sua própria homenagem. “Ocê, fulano, bate o seu ritmo do congo”, “ocê vai conservar seu ritmo e eu vou no meu ritmo”. O candombe é uma jogada dos 3 ritmos. Cada tambor bateu de um jeito, quando eles fizeram isso, então, ela veio. Ela veio homenagear as três raças, os três ritmos. Só quando eles conscientizaram disso, que não foi mais pra um, mais pro outro, não, os três ritmos. O congo é isso, ele vai abrir o caminho, o moçambique vai trazer a coroa. O pouquinho de congo que eu entendo é isso, ele vai pra abrir os caminhos igual ele fez com Nossa Senhora, ele bateu, ela veio um mocadinho, por isso que o moçambique bate e a coroa vem. (Capitão Daniel, 2006).

Cada grupo, guarda ou terno de congado se apropria da narrativa mítica, a partir dos elementos aos quais seus próprios componentes atribuem aos significantes. Hollis (1997) afirma que: Todo mito é a dramatização daquelas energias invisíveis que fluem através do universo e por algum tempo habitam em nós. Enquanto grupo, contam a história humana completa e todo o drama cósmico. Cada um expressa um fragmento do conjunto, uma parte de um capítulo. Cada um de nós vive um verso ou outro, movendo-nos de acordo com ritmos mais profundos que os que a consciência consegue atingir. Sejamos gratos por essas imagens da mesma maneira que por sonhos, esses dinamismos nos dizem, em forma visível, o que o invisível esta operando, tanto na história como dentro de nós (p. 177). (Grifos meus)

Passo então a discutir algumas imagens míticas presentes na constelação de imagens do Reinado de Nossa Senhora do rosário.

Imagens míticas no Mito da Grande-Mãe A Grande-Mãe é a principal característica do arcabouço mítico africano, no qual estão presentes valores matriarcais (noturnos) fundantes de toda a manifestação do Congado. Diz Neumann (2003) que o aparecimento do arquétipo da Grande-Mãe, bem como seus efeitos, podem ser observados, ao longo de toda a história da humanidade, tanto nos rituais, nos Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1218

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mitos, nos símbolos, como nos sonhos, nas fantasias e nas realizações criativas dos sujeitos. Um traço fundamental desse arquétipo consiste no fato de que ele reúne atributos positivos e negativos e, ao mesmo tempo, grupos de atributos, numa coincidentia oppositorum (união de opostos). Essa ambivalência é a característica da situação original do inconsciente. O significado central da vivência da Grande-Mãe é o ciclo do sacrifício. O arquétipo da Grande Mãe representa, em geral, além da questão psicanalítica, a sobrevivência da religião e dos valores matriarcais, durante a cultura patriarcal guerreira dos povos invasores, ligados às atividades agrícolas dos povos primitivos. Esse vestígio da antiga consciência matriarcal da Deusa-Mãe, também, sobreviveu na devoção católica popular da Virgem Maria, entre os povos do Mediterrâneo e, depois, no catolicismo, em geral. No antigo simbolismo de ciclo agrário e, por essas características maternais, ela corporifica o útero da terra, onde a semente é plantada a cada ano e vinga em abundância de alimentos. Daí, o sentido de sacrifício e de morte, com um significado de renascimento. A deusa corporifica o ciclo de vida-morte, alimentado por sacrifícios, pois todas as formas de vida se alimentam de outras vidas e, do mesmo modo, se tornam alimento para outras (HOLLIS, 1997, p. 82). Assim, percebe-se o lado positivo da Grande-Mãe: aquela que fornece alimento e prazer, protege, aquece, conforta e perdoa. É o refúgio de todo sofrimento, alvo de todo desejo, em que a mãe é sempre a realizadora, doadora e auxiliadora. Por outro lado, a Grande-Mãe não é só boa, ela possui um lado negativo que retém, prende, aprisiona, sufoca, rejeita e até mata (NEUMANN, 1998). A constelação de imagens, os símbolos, e os esquemas presentes no arquétipo da Grande-Mãe, compõem o regime noturno apresentado por Durand (2002). Reportando à classificação isotópica das imagens do regime noturno, por ele proposta, verificaremos que alguns conjuntos simbólicos da inversão e da intimidade, que organizam as estruturas místicas do imaginário; e ainda, os cíclicos e rítmicos, que por sua vez, organizam as estruturas sintéticas; são identificados no mito de Nossa Senhora do Rosário. Como vimos no mito,

as águas e o simbolismo aquático estão presentes nesta

constelação de imagens. Nossa Senhora do Rosário é Yemanjá, Manganá (em língua banto), a Rainha do mar, a Rainha das águas. É a Grande-Mãe, que vem nas águas para salvar o povo negro, e esse fato define tudo o mais para o congadeiro. Este, por sua vez, é o marujo, o homem do mar, que ao retirar a Santa, exercita as mesmas atribuições de um marinheiro. É o filho que também cuida e zela pela Grande-Mãe.

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Nossa Senhora vem na barca (o andor). Este é um dos símbolos mais ricos da imaginação, é a “morada sobre a água” (DURAND, 2002, p. 249). Nesta constelação isomórfica do continente, a barca se articula com a gruta, caverna, casa, dentre outros símbolos. A tecnologia serve apenas para diferenciar os continentes fixos (cisternas, lagos, cubas, etc) dos móveis (cestos, barcos de todas as espécies, etc). Na noção de continente fundem-se as três atividades: transporte, transbordamento e coleção. De forma, sugestivamente, lunar, a barca será o primeiro meio de transporte. Em diferentes mitologias, é a arca que serve de transporte para a alma dos mortos, o que faz Bachelard (2002) perguntar-se se a morte não foi, arquetipicamente, o primeiro navegador. O barco (o navio) pode ser símbolo de partida, mas traz, ainda, a idéia de fechamento. Como símbolo de intimidade, o navio agrupa as pessoas, mas tem um limite, encerra. Tornase, além de meio de transporte, um habitat. Durand (2002) afirma que se o navio se transforma em casa, a barca 9 torna-se, mais, humildemente, berço, e mesmo que seja mortuária, participa, na sua essência, no grande tema do embalar materno. O barco de Nossa Senhora traz, portanto, a salvação para o povo negro. Nas imagens de Nossa Senhora do Rosário encontraremos duas variações: em uma ela se encontra assentada sobre o Santana (tambor de candombe), ladeada por dois santos, São Domingos e Santa Rosa (existe uma controvérsia, pois ela pode ser Santa Catarina, Santa Cecília ou ainda, Santa Clara), ambos segurando o rosário; em outra ela permanece em pé. As duas estão com o menino no colo e o rosário (terço) nas mãos. No andor/barca, a imagem de Nossa Senhora é conduzida à capela, construída pelos negros, de onde não sai mais. Na constelação de imagens do continente, a capela é a gruta, a caverna, a morada e, nos remete ao sepulcro materno. Os símbolos da intimidade, pelo complexo do regresso à mãe, vêm inverter e sobredeterminar a valorização da própria morte e do sepulcro (DURAND, 2002). O sepulcro deixa de ser sepultura e passa a ser berço mágico, o lugar do último repouso, o retorno à mãe, o sono no seio materno. Durand (2002) afirma que o sepulcro e o ventre materno equivalem 9

A barca é, muitas vezes, substituída pelo automóvel ou mesmo pelo avião (talvez por isso cause tanto fascínio ao homem). O automóvel é um microcosmo, como a morada ele anima-se, animaliza-se, antropomorfiza-se e, sobretudo, feminiza-se. Veículos pesados dos caminhoneiros e barcos de pesca possuem nomes de mulheres. O Santo protetor dos motoristas é São Cristóvão, símbolo ao quadrado da intimidade na viagem. Ele carrega um saco, um continente gulliverizado. O saco do passador gigante é a nave reduzida a pequenas dimensões. Nessa minimização o processo de gulliverização, da nave ao saco, nos leva a passagem do macrocosmo ao microcosmo. Navios de grandes dimensões se transformam nos pequenos continentes como a casca, a concha, a semente, o botão floral, o cálice vegetal, o cofre, a taça, o ovo, o vaso, o Santo Graal. (DURAND, 2002, p. 252). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1220

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ao que Jung denominou “do oco à taça”. A concavidade é o órgão feminino e encontra-se no conjunto caverna-casa, habitat e continente, abrigo e sótão, ligados ao sepulcro materno, que podem ser a caverna medonha ou a gruta maravilhosa. A gruta, a caverna, a capela. O caráter Feminino se faz presente. A capela consagrada à Virgem Mãe se torna sua morada. O simbolismo da casa 10 concentra um duplo: do microcósmico do corpo material (psicossocial) e do corpo mental (psicológico). A casa também é um vivente, ela redobra, a partir da personalidade de quem a habita. Possui cheiros, cores e sons, que constituem a cenestesia da intimidade. É, portanto, a imagem da intimidade repousante, do aconchego, do espaço feliz, do centro paradisíaco. Desse modo, torna-se isomórfica do nicho, da concha, do colo materno. É por isso que às vezes, sentimos necessidade de uma casa menor dentro da casa grande, um cantinho onde possamos “reencontrar as seguranças primeiras da vida sem problemas” ((DURAND apud BÉGUIN, 2002, p. 244). Os oratórios cumprem esse papel de redobramento. No mito de Nossa Senhora do Rosário e no arquétipo da Grande-Mãe, encontramos também os símbolos cíclicos e rítmicos que constituem a estrutura sintética do imaginário. No primeiro grupo, as imagens se ligam ao ciclo, ao retorno e às divisões circulares do tempo. No segundo, o pau, como uma redução da árvore com rebentos, o cetro, os arquétipos e símbolos messiânicos. As imagens que se ligam ao ciclo, ao feminino, a Grande-Mãe, podem ser encontradas no tambor e no rosário. A cultura da África noturna é marcada pelo tambor, ngoma (ingoma) 11 em língua banto. Em todas as festas da cultura negra, tudo é rítmico. O tambor é um instrumento primal, arquetipal, é a pulsação da vida; suas batidas fluem no ritmo do coração - sístole e a diástole, contração e descontração. É a ligação entre a terra, a Grande Mãe, e isso é, absolutamente, sintético, equilibrado, noturno. Os tambores e caixas tocados no Reinado de Nossa Senhora do Rosário são instrumentos sagrados que, segundo Lucas (2002, p. 235), “emitem suas ‘vozes’, construindo ‘palavras’ que ‘chamam’, ‘respondem’, ‘falam’ e ‘cantam’ a fé e a história dos filhos do Rosário”. São como “se fossem a extensão humana dos devotos” (PEREIRA, 2005, p. 354). Durand (2002) já discutia o parentesco entre a música, a melodia e as constelações do regime noturno, no intuito de possibilitar a relação da humanidade com o tempo que passa e a 10

Ver Eliade, 2001. A expressão pode designar ainda o grupo dos dançantes do Congado, ser referência ou chamado dos componentes, herança recebida dos antepassados (LUCAS, 2002).

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angústia da morte. Para o autor, a música também se constitui como possibilidade de o homem dominar o tempo, exatamente porque ela traz a intemporalidade, o domínio dos ritmos, da altura do som e dos diferentes timbres, tanto masculinos, como femininos. A música é uma metaerótica, um cruzamento ordenado (dos sons, timbres, vozes, ritmos, tonalidades) sobre a trama contínua do tempo. É isso que faz Durand (2002) concluir que a estrutura musical possui implicações sexuais, por isso, ela se apresenta como uma estrutura sintética de harmonização dos contrários, sendo que o tambor é a própria síntese criadora, a união dos contrários. O tambor liga-se à fecundidade, à criação, ao peixe, como nos mostra o autor ao tratar os rituais dos dogon, povo negro de Mali. Também ShivaNatarâja, o “Senhor da dança”, traz em uma de suas mãos um tambor que ritma a manifestação do universo. O rosário, assim como o tambor, é uma figura numinosa cíclica e equilibrada. Faz a síntese, união e harmonização dos contrários e nos remete ao enrodilhar da serpente, um dos mais importantes símbolos da imaginação humana, ligado à transformação temporal, à fecundidade e à perenidade ancestral (DURAND, 2002). O rosário ou o terço é o objeto usado para contar as orações, formado por contas grandes e pequenas. Após cada dezena de contas pequenas, há uma grande, e assim, cinco dezenas. O fio no qual ficam as contas dá uma volta, ficando a quinta junto à primeira dezena, início e fim, circularidade. Antes da contemplação dos mistérios, há uma parte inicial, constituída por duas contas grandes, três pequenas e uma cruz. Interessante pensar que o próprio formato do rosário é o símbolo universal, arbitrariamente definido, para o Feminino. Encontraremos sobre a cruz do símbolo a outra metade, desta circularidade, ou seja, o Filho. É por meio do rosário que a Virgem recebe o nome de Nossa Senhora do Rosário e, pelo mesmo motivo, é o instrumento que ela tem em suas mãos. A Grande Mãe, mais do que carregar o filho, promove a ligação entre o regime diurno e o regime noturno. Essa circularidade que gravita, em torno do domínio do próprio tempo, marcando o rítmico e cíclico, presentes tanto no tambor, como no rosário, nos remete à lua. É ela o arquétipo da mensuração, a primeira medida do tempo. Diz Neumann (2003) que esse é mais um dos arquétipos da Grande Deusa, o que a torna senhora do tempo, aquela que governa o crescimento. É ela e não o sol, o “legitimo cronômetro do alvorecer dos tempos” (p. 199), pois a sua contagem não se inicia à meia-noite.

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O ano, derivado das palavras annus, annulus, se torna uma figura, também, circular. Não é sem sentido os rituais de início de um novo ano, pois eles simbolizam o recomeço do tempo, Isso ocorre no Congado. Suas festas são marcadas, de acordo com o calendário litúrgico católico, que por sua vez, segue o gregoriano e sua divisão duodecimal, com referências lunares. Assim, obedecendo ao calendário litúrgico, eles definem a abertura e o encerramento do Reinado e suas pausas.

Imagens míticas nas práticas iniciáticas, sacrificiais e orgiásticas dos Filhos do Rosário Neste grupo de imagens relacionadas aos Filhos do Rosário identificamos o pau. É certo que a Grande-Mãe Nossa Senhora do Rosário possui muitos filhos e filhas, ama a todos, sem exceção. Estes por sua vez, são diferentes uns dos outros e, por isso mesmo, ocupam espaços diferenciados e realizam tarefas também diferenciadas, sempre com dedicação e empenho. São eles os atores que constituem o Trono Coroado, o séquito, que é composto pelo Rei e Rainha Congo, os Reis Perpétuos, os Reis de Santo - Nossa Senhora Aparecida, Santa Efigênia, São Benedito, São Jorge, São Cosme e São Damião, Nossa Senhora das Mercês, dentre outros (ainda a Princesa Isabel) - e os Reis Festeiros, sempre acompanhados dos guarda-coroas e fiscais. São, ainda, os caixeiros que tocam seus tambores, caixas, patangomes e gungas, orientados pelo Capitão Regente; e os dançantes (também brincantes, vassalos) que compõem o coro de vozes, realizam as coreografias e obedecem às hierarquias. Independente da função que se exerça na Guarda, os atores-devotos “se encarregam de desempenhar a contento o seu papel” (PEREIRA e GOMES, 2002, p. 70). É a experiência da fé vivida, corporalmente, por inteiro, na prática mítica e religiosa. Todos os rituais do Congado são constituídos como “configurações teatrais que dizem à comunidade aquilo que ela foi, é, e poderá ser, mediante um conjunto de atitudes, que devem ser analisadas pelos devotos” (PEREIRA e GOMES, 2002, p. 63). Tudo é vivido com muita concentração, exigindo a cumplicidade entre todos. Essa teatralização expressa a estética da festa e de seus rituais, espetacularizando a manifestação. Como nos diz Duvignaud (1983, p. 88) “o mito expresso em gestos é ainda mais rico que o mito narrado, não só porque ele aparenta um ‘como se’ da existência e nos engaja na vida imaginária, mas, sobretudo, porque extrai o mito da linguagem e o substitui na rede de uma comunicação”, que se dá, inevitavelmente, por meio do corpo, numa narrativa mitopoiética.

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Na constituição do imaginário, Durand (2002) adota o método de convergência para mostrar as vastas constelações de imagens que se constituem pelos símbolos. As matrizes originárias, nas quais vão se constituir os grandes conjuntos simbólicos, são definidas por Durand (2002), a partir de três grandes séries de gestos corporais dominantes: a postural, a de nutrição e a copulativa. Apesar de esse esquema contar com três estruturas, Durand (2002) classifica-as em dois regimes, um diurno e um noturno. O regime diurno é estruturado com base na dominante postural e se identifica com a tecnologia das armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais de elevação e da purificação. As armas, as flechas e os gládios seriam símbolos freqüentes. É na constelação de imagens do regime diurno apresentada por Durand que identifiquei como símbolo do mito dramático e cíclico do Filho, no Reinado, o pau, trazendo o modelo da metamorfose que é a árvore. O capitão José Bonifácio da Luz sintetiza a estrutura dos grupos de Congado na imagem da árvore: “O Candombe representa as raízes, os ancestrais; o Moçambique é o tronco e o Congo, está espalhado pelos galhos, movendo para onde o vento levar” (LUCAS e LUZ, 2006, p. 34). A árvore é um arquétipo cíclico, que se inicia com a semente, passando pela flor, o fruto, até a queda de folhas e o lançar de novas sementes, num devir dramático. No entanto, a sua verticalidade marca uma passagem do cíclico para um arquétipo progressista e messiânico, porque orienta, de maneira irreversível, esse devir, humanizando-o de algum modo, ao aproximá-lo da posição bípede, significativa da espécie humana. Diz Durand que o simbolismo da árvore-coluna estrutura a totalização cósmica. Pela sua verticalidade, se humaniza (coluna, estátua, figura humana esculpida na pedra, ou na madeira) e se torna símbolo do microcosmo vertical que é o próprio homem. A árvore é o arquétipo, por excelência, dos Filhos do rosário. As palavras do Capitão Toinzinho sintetizam bem essa imagem. Diz ele: “O Deus do negro é o toco”. Este é o fundamento do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Os mastros, segundo o Capitão Daniel, “são os pára-raios da festa, é ali que encontra a energia vital da festa. Significa que você colocou o seu Santo acima da terra, debaixo do céu e em cima de nós”. Desse modo, podemos concordar com Durand, quando este afirma que o simbolismo da árvore reconduz o ciclo à transcendência. Encontrei no Reinado, além desses, outros símbolos do arquétipo da árvore como o bastão (cetro, gládio), a cruz, o cruzeiro, as bandeiras. Esse arquétipo e suas manifestações se

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fazem presente em toda a discussão pertinente ao Filho, em suas práticas iniciáticas, sacrificiais e orgiásticas. Estas práticas (cerimônias) são isomórficas do mito dramático e cíclico do Filho, que se concretizam na festa - também ela (a festa) masculina, hermesiana e dionisíaca. É, portanto, o Filho, a festa. É ele quem reatualiza o mito, anualmente, numa linguagem rítmica e ritualística. As cerimônias iniciáticas no mito da fé do Congado são, como nos diz Durand (2002), “liturgias, repetições do drama temporal e sagrado, do tempo dominado pelo ritmo da repetição” (p. 306). Elas constituem as seivas que correm nas árvores, garantindo a vida, o alimento que nutre os Filhos do rosário. Em nossa pesquisa, percebemos que a maioria dos congadeiros procede de família que vive a tradição, passando de geração em geração o gosto e o interesse pelo Reinado. A tradição é a continuação daquilo que é essencial e persiste; é a figura da árvore ramosa, da evolução progressista, simbolizada pela árvore genealógica, de que nos diz Durand (2002). A cerimônia ritualística da coroação dos reis e rainhas é uma prática iniciática sagrada. Todas as pessoas que compõem o séqüito são obrigados a passar por ela. Os cantos especificam cada momento, desde o ajoelhar-se perante o altar, receber a coroa, a capa e o bastão, até o erguer-se e apresentar-se para a comunidade como um novo Rei ou Rainha. Os rituais são conduzidos pelos Capitães e a coroação é feita pelos Reis Congos ou Imperadores. Normalmente são realizadas em dias diferentes da festa principal e se tornam um grande momento festivo, quando, também, se oferecem comida e bebida. O capitão é o líder do grupo, ele deve conhecer os mistérios, os ensinamentos e as responsabilidades do Congado. Para o Capitão Rodrigo (2005)

“ser capitão é um

privilégio que poucos têm, pois também de muita responsabilidade, de muita fé. Porque na vida ninguém navega sem um capitão” . Cabe aos mais velhos observar aqueles que vão se destacando e mostrando interesse. Esses são os eleitos para se tornarem um capitão. Mas para isso, precisam cumprir um longo ciclo de aprendizagem e preparação, de modo que se apropriem dos conhecimentos e saberes da tradição. A iniciação para Eliade (2006) comporta uma tripla revelação: a do sagrado, a da morte e a da sexualidade. É nesse momento que o mito será comunicado ao neófito. Raros são os que atingem o topo da hierarquia, tornando-se um capitão-regente ou capitão-mor.

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Diz Durand (2002) que “a iniciação é mais do que um batismo: é um comprometimento. É transmutação de um destino” (p. 306). O símbolo do capitão é o bastão ou a espada, “sua alma”, segundo o Capitão Amaro. É o anima (o feminino) do Filho (animus, o masculino). Símbolo da natureza, da força da natureza e da magia. É o pau, o caduceu, o cajado, a haste verticalizante, o emblema de Hermes, que conduz o congadeiro no trajeto entre o mundo concreto (o cotidiano, a festa) para o mundo divino, ou seja, a transcendência. O bastão tem mana, é sagrado, um pedaço de madeira, natureza, imanência, “fuerza latente, inmersa em la materia e inseparable de ella” (DUVIGNAUD, 2002, p. 77) com poderes. É o que faz o Capitão Toinzinho afirmar que “aquele bastão, pra gente, ele é vivo”. O bastão, assim como toda a estrutura do Reinado, é dividido em fundamento, mandamento e sacramento. Saber um fundamento é ter acesso a um segredo, é se tornar um iniciado. Desse modo, o próprio capitão se torna um dotado de mana. A morte é o que permite aos Filhos do rosário, cumprirem seu ciclo, nascimento-morterenascimento. Com a morte eles passam a ser reverenciados pelos componentes do grupo e isso se dá, a partir do símbolo da cruz. Segundo Neumann (2003), a árvore é símbolo da vida e também da morte. Na morte, seu tronco se transforma em vaso que passa a conter o cadáver e, em seguida, é depositado na terra. Ressalta-se o caráter terra-útero, que toma o corpo de volta para si, em união com o caráter receptor da madeira acolhedora. Essa substância maternal da árvore da morte é simbolizada pela força, a estaca e também a cruz. Em todas as Guardas, encontramos também como fundamento do Reinado, o cruzeiro. É no pé do cruzeiro que os capitães firmam os seus segredos, conversam com os ancestrais. Na constelação de imagens, proposta por Durand (2002) a cruz é um simbolismo vegetal e identifica-se com a árvore, em seus arquétipos ascensionais. É, portanto, madeira erguida, árvore artificial, símbolo de totalização espacial. É, também, uma união dos contrários e, desse modo, se liga ao fogo, à sexualidade, ao movimento rítmico e cíclico. A festa é o “sacrifício inútil” de que nos fala Duvignaud (1997). No Congado, o que importa é a Virgem: é a ela que se dá o pouco que se tem. Para isso, vivem os congadeiros: para dar a ela “una parte de su sustancia” (DUVIGNAUD, 1997, p. 136). Mauss (1974) afirma que isso seria um ato de comércio, entretanto, Duvignaud (1997) contrapõe, dizendo que fomos nós que inventamos o sacrifício como uma transação, como uma economia de mercado com a divindade. Na festa não se tem a idéia de retorno. O sacrifício, na festa, “é o nada” que se destrói, “a coisa é a coisa e pronto”, é o que livra o homem da estrutura, da

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história, colocando-o diante de sua imanência, da natureza e do simbólico. O Capitão Amaro confirma que a festa é o dom do nada “muita gente não acredita, às vezes, acha até que não faz nada, que a pessoa ‘tá gastando à toa, mas é uma coisa que a gente faz com tanta fé” (2006). Às práticas de iniciação e do sacrifício ligam-se as práticas orgiásticas, que são as festas propriamente ditas, sob a regência de Dionísio, o consorte da Deusa. As festas e seus rituais são projeções lúdicas de todo um drama arquetípico, são atualizações mitológicas de um ciclo. Elas se constituem, ao mesmo tempo, num momento de negação de normas instituídas e de “alegre promessa vindoura da ordem ressuscitada” (DURAND, 2002, p. 312). Daí, sua função de nos colocar diante da angústia do tempo que passa e também da morte, destacando o seu caráter revigorante, pois, como nos diz Durand (p. 405) “o ritual tem o único papel de domesticar o tempo e a morte e de assegurar no tempo, aos indivíduos e à sociedade, a perenidade e a esperança”. Durand comunga com as idéias clássicas de Callois (1988) que também destaca esta função da festa no imaginário. Para Callois, é a festa que nos coloca diante essa noção da finitude, do tempo que esgota, extenua, nos faz envelhecer e desgasta. Ela renova a natureza e a sociedade ao apresentar-se como uma atualização dos primeiros tempos do universo, como a recriação do mundo, daí sua função revigorante. A festa é celebrada no espaço-tempo do mito e assim regenera o mundo real. É justamente ao renascer que o mundo tem a possibilidade de remoçar e de reencontrar a plenitude de vida e de robustez que lhe permitirá enfrentar o tempo durante um novo ciclo. É o caos reencontrado e de novo moldado simbolicamente. As festas reforçam a existência no homem de uma dimensão demens. De um modo geral, as festas em louvor a Nossa Senhora do Rosário e aos santos pretos seguem uma mesma estrutura ritualística: preparação, novenas e organização do espaço, subida da bandeira de aviso, levantamento de mastros, alvorada, “tirada dos reis”, almoço, procissão, missa conga, danças de combate, descida de mastros, podendo ter variações, de acordo com a tradição dos grupos (GIOVANNINI JUNIOR, 2005). A principal preparação para a festa é a novena, (ou trezena) que se inicia dois dias antes do levantamento da bandeira de aviso. É realizada em agradecimento a Deus por estar dando oportunidade à Guarda de realizar a festa. A reza do terço, ou do rosário, acontece nas sedes ou nas casas dos capitães. Em muitas Guardas, na abertura ou no encerramento das

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novenas, ainda é possível assistir à saída do boi da manta, que percorre as ruas dos bairros, as cidades, anunciando a chegada da festa, de forma lúdica. A festa é o ponto auge do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Ela inicia com o levantamento da bandeira de aviso, uma semana antes do dia marcado pela Guarda. No local da festa, as bandeiras são colocadas no topo do mastro e são erguidas. O mastro é o poste sagrado, é o Axis mundi que liga a Terra e o céu e o toca, de algum modo (ELIADE, 1992). Os mastros são levantados antes das festas de cortejo, com antecedência ou na véspera. O levantamento dos mastros com as bandeiras é sempre marcado por momentos de muita emoção, concentração e tensão. Ele “caracteriza o centro energético da festa” (GOMES e PEREIRA, 2000, p. 218). Sua ascensão é anunciada com fogos de artifício. Os mastros de madeira são o princípio do masculino da árvore, que é feminino. Como o falo da terra tem o caráter de penetração e crescimento, destacando o aspecto ascencional do círculo, seu caráter de transformação é, ainda, a ambivalência da árvore (NEWMANN, 1998, p. 54). É a imagem da árvore, firmemente plantada na terra, no fundamento, que nutre o congadeiro de sua fé e se eleva no ar, para que os filhos do rosário possam nela se abrigar, se proteger sob sua sombra, saciar sua fome e sede. A alvorada faz parte da tradição e é seguida por quase todas as Guardas. É uma chuva de fogos de artifícios, cantos e danças, realizados na madrugada de domingo, por volta das cinco horas da manhã, anunciando que vai ter festa ao longo de todo o dia. É também o momento mágico de “fechar as encruzilhadas”, limpando e protegendo as Guardas de todo o mal que possa atrapalhar o festejo, garantindo os bons fluídos. As performances executadas, pelas Guardas, durante os festejos, nas encruzilhadas, são sempre em forma de meia-lua e elas podem ser: para receber e cumprimentar o trono coroado, em sinal de respeito, neste caso, os congadeiros se dirigem um a um, ou em duplas até os reis e fazem reverências; podem abrir em fileiras pelas laterais e para fora, como se desenhassem um coração, recebendo todos os visitantes; ao contrário, as fileiras podem se cruzar por dentro e pelo centro, fechando na frente das bandeiras, para proteção, quase sempre quando encontram com uma Guarda que provoca demandas; e, por fim, os dançantes podem passar por trás do trono coroado, como se tivessem trazendo todos para dentro do Reinado. Percebe-se que o próprio corpo do congadeiro é um texto e exprime uma linguagem. É também ele, continente e conteúdo (MARTINS, 2000), lugar e veículo da memória e do esquecimento. Seu corpo em performance “é o lugar do que curvilineamente ainda e já é, do

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que pôde e pode vir a ser, por sê-lo na simultaneidade da presença e da pertença (p. 83). Assim é que todo momento ritual é permeado de cantos e danças específicos para aquele fim. A música (palavra cantada) e a dança são as essências dessa experiência religiosa (LUCAS, 2002). Em suas performances, o Congo vai à frente, em fileira e dança com o corpo aberto, às vezes saltitante. O Moçambique, com a responsabilidade de “puxar a coroa”, anda devagar, os componentes dançam bem próximos uns dos outros, formam um único grupo, numa dança que traduz a força da terra expressa pelos tambores e gungas. No início da manhã, a Guarda anfitriã prepara o cortejo para a “tirada dos reis e rainhas”. “Tira-se” o trono coroado primeiro, um a um, e, por fim, os festeiros, promotores da festa. Caminha-se sempre devagar, conduzindo as coroas até os altares. No altar, o trono coroado recebe as Guardas visitantes. Cada uma, por sua vez, desloca-se até os reis, canta e dança para eles e para Nossa Senhora. Após a prestação das homenagens, as Guardas se dirigem às cozinhas, nas sedes para o almoço. Um momento esperado por todos é a procissão. A Guarda anfitriã e os grupos convidados se organizam. Os andores preparados com muita dedicação e criatividade, pelos próprios devotos, são carregados por pessoas da comunidade. Algumas Guardas realizam a missa conga, ou missa crioula, após a procissão, outras preferem fazê-la no dia seguinte. É uma apropriação do ritual católico, mas aqui também o negro reinventou a tradição, incorporando novos elementos na encenação ritualística que seguem os rituais de uma liturgia comum, acrescida dos cantos e das danças dos corpos, ao som das caixas, gungas e patangomes. No momento da celebração da missa conga, os Filhos do rosário cantam o lamento do negro, relembrando o que seus antepassados viviam no tempo do cativeiro. É um momento emocionante, quando os tambores se calam, o Capitão “puxa o lamento” e os “vassalos” respondem apenas o coro. Após os três dias de festejos, cantando e dançando, subindo e descendo as ladeiras das cidades, debaixo de chuva e sol, carregando os instrumentos pesados, é hora de encerrar. Algumas Guardas ainda encontram energia para realizar as danças do “tempo dos escravos”. Hora de fazer “bizarria”, momento em que os Capitães descontraem e brincam com os outros. Pois, a festa é sempre muito tensa e tudo é levado muito a sério... Conclusão

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Para este breve texto destaco que o Reinado de Nossa Senhora do Rosário se constitui enquanto um universo simbólico complexo que por meio de suas práticas simbólicas (sociais, portanto, educativas) transborda de transdutores híbridos 12, ou seja, de elementos que se manifestam nos pólos patente e latente, onde estes são fermentados. É neste trajeto, transitando de um pólo a outro - porque nem o latente, nem o patente têm a primazia; ambos são constituintes do imaginário – que exprimem os modos de sentir (latente-afetual), pensar (patente - racional) e, portanto, de conduzir à ação, dos devotos de Nossa Senhora do Rosário, organizados em seus grupos sociais em nosso País, principalmente em nossa cidade. Trocando em miúdos, são os mitos, os ritos, as ideologias, os valores, os modos de ação dos Filhos do Rosário, os irmãos congadeiros. Num pólo, Nossa Senhora do Rosário é o imaginário, o mito. Ela é a natureza, a origem, a gestação. A Grande-Mãe que gera o filho e o protege. É o significante, o que abre. Pelo mito, ela sai das águas (natureza) e vem se encontrar com o Filho. No outro pólo, é Filho, que ao realizar a festa não a esquece, e desse modo, reatualiza o mito. A Santa visita o Filho e retorna aos céus, ascende, é a cultura, a religião. Isto é o transdutor híbrido: vem natureza (Grande-Mãe) e volta cultura (Santa). A festa é a culminância desta religiosidade, expressa pelo congadeiro e é a vivência da alternância da natureza para a cultura, do sapiens para o demens, do sagrado para o profano, da vida para a morte. De acordo com os princípios presentes na complexidade ela, de forma recursiva, dialógica e hologramática, está aberta ao campo do possível e do imaginário, de modo que, nela, o Reinado se constitui, vive, resiste, persiste e sobrevive. É a festa que me instiga a dizer: SALVE MARIA!!!

REFERÊNCIAS ALVES, Vânia Fátima Noronha. Os festejos do Reinado de Nossa Senhora do Rosário em Belo Horizonte/MG: práticas simbólicas e educativas. Faculdade de Educação USP. São Paulo: FEUSP, 2008. (Tese de doutorado) BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 12

Os transdutores híbridos são para Paula Carvalho (1990) o trajeto entre os dois pólos (latente e patente), onde estes podem captar, de forma potenciada e, como mediador simbólico, uma cultura emergente. Como têm uma sólida raiz no latente, emergem sem que tenhamos controle sobre eles, por isso não podem ser enfrentados apenas racionalmente. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1230

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A arte da fé: os ex-votos no imaginário religioso de Trindade-Goiás The faith's art: Ex votos at Trindade (Goiás) religious imaginary L'art de la foi : Les ex-votos dans l’imaginaire religieux de Trindade – Goiás

Givaldo Ferreira CORCINIO Jr. 1 ABC (Agência Brasil Central), Goiânia, Brasil

Resumo As religiões das diversas épocas da história lançaram mão de símbolos para reforçar seu papel de conexão privilegiada entre o divino e os homens. Os ex-votos presentes nas “salas dos milagres” nos santuários católicos registram aspectos da fé popular, constituindo um reflexo dessa elaboração mais pessoal das relações entre o divino e o humano. Embebido nessa relação e mergulhado no caldeirão de referencias que se faz presente no cotidiano coletivo, as imagens contidas nos ex-votos pictóricos presentes no “espaço sagrado” de Trindade-Goiás (centro dos festejos ao Divino Pai Eterno) possibilita-nos lançar um olhar sobre o imaginário religioso, abrindo espaço para questionar-nos se tal imaginário sustenta aquilo que denominamos de fé goiana. Palavras-chave: imaginário; imagens votivas; religiosidade; Trindade – GO, ex-votos. Abstract The religions, at all history epoch use symbols to reinforce their position of privileged connection between divines and men. The ex votos existing at catholics sanctuaries “miracles rooms” registries aspects of the popular faith, building a reflection they personal elaboration of this relationship. Immersed in this referential universe, existing in the collective quotidian life, the images at votives paints existing at Trindade (Goiás) “sacred space” possibilities to us looking for a religious imaginary, enabling make a question to ourself if this imaginary give existence to a thing called by us “fé goiana”. Key words: imaginary; votives images; religiosity; Trindade – GO; ex-votos.

1.

Uma aproximação Esse artigo é fruto da aproximação, enquanto objeto de estudo, dos ex-votos

localizados no Santuário do Divino Pai Eterno, situado em Trindade, Goiás. Iniciamos nossa reflexão compreendendo que tais objetos presentes nas chamada “sala dos milagres” do dito

1

Licenciado e Bacharel em História e Mestre em Comunicação. Participa do GEIPaT – Grupo de Estudos de Imaginário, Paisagem e Transculturalidade/ UFG. Email [email protected]

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santuário estão embebidos da força atribuída a relação existente entre sentido e signo e que, mergulhado no caldeirão de referências que compõem o cotidiano coletivo, possibilita-nos lançar um olhar sobre o conteúdo do imaginário religioso popular dos indivíduos da região central do Brasil, abrindo espaço para questionar-nos se tal imaginário sustenta aquilo que denominamos de fé goiana. A cidade de Trindade, distante 18 quilômetros da capital do estado de Goiás, Goiânia, é um importante espaço dentro do imaginário religioso popular goiano. Sendo identificada como uma espécie de "terra santa", tornou-se um centro de peregrinação de singular importância na região. A construção da participação de Trindade no imaginário religioso das populações localizadas nessa área inicia-se por volta de 1843, quando é construída uma pequena capela de sapé, que deu origem ao núcleo urbano de Trindade, para que a população dos arredores das terras de Constantino Xavier pudesse reunir-se para rezar o terço e praticar outras atividades religiosas, que anteriormente ocorriam na casa do agricultor, diante da imagem de um pequeno medalhão de barro de aproximadamente 10 centímetros que trazia a representação da coroação de Maria por Jesus Cristo e por Deus Pai, juntamente com a iluminação da cena pela pomba do Divino Espírito Santo, achado por ele e sua esposa no campo que lavravam 2. Segundo o relato corrente, a capela que foi construída somente poderia ser consagrada pelos padres situados na cidade de Campinas (hoje um bairro da cidade de Goiânia-GO) se possuísse uma imagem que atendesse determinados padrões estéticos, que seriam não possuir defeitos e ser maior que um palmo 3. Para obter tal imagem, Constantino teria se deslocado até a cidade de Goiás, então capital da província, onde pediu para o artesão Veiga Vale 4 fazer uma imagem que assim atendesse o que fora estabelecido, vendendo inclusive seu cavalo para reunir o pagamento para o artista. A igreja ali localizada passou para administração dos

2

Reside alguma controvérsia sobre a origem da primeira imagem de culto, o medalhão de barro, que inspirou a devoção em Trindade e que hoje não é mais exposta. Segundo Deus (2000 apud Aquino,2007) o relato atual, e propagado pela Igreja, de que o medalhão teria sido encontrado durante o preparo da terra de cultivo pelo agricultor Constantino Xavier diverge daquele que é encontrado num dos materiais religiosos mais antigos relativos ao assunto, no qual se afirma que o medalhão teria sido trazido pelo lavrador desde sua região de origem, sendo seu santo de devoção desde antes do estabelecimento na região. 3

Aproximadamente 20 centímetros

4

Esse artesão, tido como autodidata pela falta de dados sobre sua formação, é considerado o principal expoente da arte de esculpir santos em madeira de Goiás no século XIX. Sua obra possui traços barrocos, o que faz alguns estudiosos considerarem que o isolamento da região proporcionou a permanência mais duradoura dessa estética artística em relação aos centros difusores de arte do país. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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irmãos Redentoristas a partir de 1894 5 e estes procuram garantir à romaria um papel importante para a comunidade da região, divulgando e ampliando o alcance da narrativa pioneira, fortalecendo a imagem do Divino Pai Eterno como o santo de devoção dos goianos, e Trindade como sendo a capital da fé. Segundo a congregação que administra o templo religioso, anualmente passam por ali mais de 2 milhões de visitantes, apenas durante o período consagrado a “festa do Divino Pai Eterno”, que ocorre entre a última semana de junho e a primeira de julho. Podemos inferir que esse espaço adquiriu uma participação icônica para aqueles que compartilham a devoção nos entes representados na escultura da coroação da Virgem Maria por Deus Pai, Deus Filho Jesus Cristo - e o Espírito Santo, entidades chamadas de santíssima trindade do cristianismo católico. A própria imagem é denominada pelos fieis como “Divino Pai Eterno” ou apenas de “Pai Eterno”.

Figura 1: Pórtico com imagem do "Divino Pai Eterno" na entrada principal de Trindade-GO.

Foto de G. Corcinio (2013)

5

O relato sobre as transformações que são presenciadas na cidade de Trindade e no modo como a Igreja interfere na organização da devoção foi basicamente recolhido da dissertação escrita por Duarte (2004) Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1235

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A devoção ao Pai Eterno ganhou prevalência na manifestação popular, atribuindo à imagem do Divino Pai Eterno valor enquanto objeto da elaboração artística e cênica executada por artesãos e assumida pelos sujeitos dessa manifestação religiosa. Em especial, podemos citar o volume e a diversidade de formas nas quais a representação do Divino Espírito Santo (a pomba branca sucedida por raios luminosos) comparece na imaginária popular e constitui um referencial significativo para o papel dessa devoção na construção da relação entre o humano e o divino. O culto ao Divino Espírito Santo tem o seu surgimento localizado espacial e temporalmente em Portugal, nos séculos XIII e XIV. São associadas a ele diversas crenças, como o milenarismo e a do “Império do Espírito Santo”. Todas elas advém do pensamento atribuído ao abade franciscano Joaquim de Fiore, influenciando um sem-número de religiosos e poderosos em Portugal. Segundo , o surgimento desses festejos está vinculado, inicialmente, com a influência franciscana em Portugal, especialmente sobre a figura da Rainha Isabel de Saragoça (ca. 1270 - 4/julho/1336), também chamada de Rainha Santa Isabel de Portugal. Por estarem próximas das antigas festas da Primavera, as festas de Pentecostes, nas quais o Divino Espírito Santo era costumeiramente celebrado, emprestavam delas características marcantes, como a mesa farta e a caridade, com distribuição de alimentos aos pobres, pois, a primavera era momento de abundância. A festa do Divino Pai Eterno em Trindade, originalmente distintas das festas do Divino por conta do ente sagrado mobilizador do devoto, pois na segunda cultua-se a energia mobilizadora de Deus, na figura do Espírito Santo que é representado pela pomba, como esclarece Chevalier e Gheerbrant (2001), enquanto na primeira o culto está focado na junção das três energias matrizes da cristandade, a santíssima Trindade. Mas, no período colonial e imperial brasileiro a festa do Divino tinha grande penetração nas comunidades. Tal presença mostra-se viva ainda na atualidade na cultura e na representação religiosa, com a manutenção de um sem número de Festas do Divino Espírito Santo nas mais variadas localidades do país, assim como em músicas, obras de arte e outros artefatos. Assim sendo, podemos afirmar que essas festas (a do Divino Espírito Santo que se vê de norte a sul do país e a do Divino Pai Eterno de Trindade) tem algumas correlações possíveis de serem traçadas, apesar de não ser esse o enfoque pretendido aqui. Deste modo, a festa de Trindade comunica sentidos e signos que, partilhados com outras festas pelo país inteiro, trazem aspectos materiais e imagéticos importantes de serem

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compreendidos da religiosidade brasileira, com cores coloniais e captando elementos novos, em uma dinâmica de resignificação e revalorização de tais signos. Essas festas religiosas têm em seu bojo também o reconhecimento da relação entre o devoto e o ente divino. E esse reconhecimento pode ser externalizado por meio de grandes ações, como a própria romaria, com seus cânticos e o esforço corporal presente na jornada ou por ações mais particulares, quase anônimas, como é o caso da entrega de objetos votivos, onde tal reconhecimento mostra-se relacionado com uma troca entre devoto e a divindade.

2. Apresentando as graças: Os ex-votos das salas dos milagres A entrega dos objetos de desobriga de promessas em lugares de culto como agradecimento dos indivíduos pela obtenção de algo – material ou espiritual – pode ser Figura 1: Mosaico mostrando tipos de ex-votos encontrados na "sala dos milagres" do Santuário de Trindade-GO.

Foto de G. Corcinio (2015)

observado como uma prática permanente durante a história do cristianismo, remontando aos primeiros tempos de sua difusão pelo mundo romano. Entretanto, convêm pontuar que essa forma de relacionar-se com o divino não foi uma exclusiva criação cristã, estando presente Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1237

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nos movimentos de devoção dos mais diversos movimentos religiosos. Sua permanência fazse notar especialmente nos movimentos de religiosidade popular, nos quais presencia-se uma troca de presentes e reconhecimento entre o devoto e o ente divino. A tipologia de ex-votos que podemos elencar aqui é variada. Da escultura de madeira e barro, passando por objetos referentes a profissão ou enfermidade que o indivíduo enfrentou, chegando até obras como as próprias igrejas. Mais corriqueiras são as peças que se colocam em escala humana. Tais figuras (sejam eles esculturas de madeira e cera, fotografias, pinturas em pequenos tabuleiros de madeira e objetos do cotidiano que demonstram algum “livramento” de perigos ou conquista do dia-a-dia), tem sido exploradas sob um olhar estetizante, como apresentado por Lima e Feijó (1998), o que faz então que esses objetos deixem de ser compreendidos como constituídos por um imaginário sustentado por referências advindas dos diversos aspectos da fé popular, materializando reflexos da elaboração pessoal de seus executores – ou daqueles que encomendam a eles – sobre a relação entre o divino e o humano. Esse olhar acadêmico e artístico que busca analisar os objetos votivos a partir de um olhar estetizante comparece nas abordagens de muitos autores, como Lima e Feijó (1998), que refletem sobre o executor dos ex-votos, muitas vezes, não possuir uma percepção formal da potência de sua obra como objeto artístico, sendo que essa só é percebida quando o observador se distancia do utilitarismo atribuído as peças apresentadas na “sala dos milagres”. Para eles: Mesmo não havendo intenção ultima de fazer arte com esses objetos, ela não deixa de existir. Historicamente, essa qualidade transcendente em certos objetos manufaturados somente é constatada por gerações posteriores que os enxergam numa perspectiva diferente da de quem os produziu, esvaziados que foram de seu utilitarismo. (LIMA e FEIJÓ, 1998, p.18)

Essa analise, que acaba por valorizar o ex-voto por uma linha artística, afasta o olhar sobre essas peças como documento. Outros autores, entretanto, buscam problematizar os exvotos para além de uma abordagem sobre um pretenso aspecto pitoresco ou de antiguidade curiosa. Exemplo disso é a exposição de Vovelle (1997), onde reflete sobre ex-votos encontrados na região de Marselha (França): Como documento cultural, o ex-voto é uma mensagem codificada, desenhada e pintada, transmitida por pessoas que em sua maioria não dispunham de outros meios de expressão para testemunhar suar crenças, receios e esperanças. Confissão inconsciente ou extorquida mediante Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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artifícios, o ex-voto revela os elementos da psicologia do milagre e do sistema de atitudes diante do perigo, da doença e da morte... (VOVELLE, 1997, p.113)

Compreender os ex-votos como documento possibilita uma reflexão diferente desses objetos de fé. Materializando aspectos mais profundos do que a preocupação artística e estética ou mesmo da atenção à necessidades objetivas como o emprego ou a cura de enfermidades, os ex-votos podem ser olhados como objetos prenhes de um imaginário denso e múltiplo. Conforme afirma Bachelard (2008), o poder da imaginação, enraíza-se de fato nas profundezas do ser, sendo que ela tem poder de significação e energia de transformação sobre as imagens. Desse modo, o imaginário não se desenvolve em torno de imagens livres, mas impõe-lhes uma lógica, uma estruturação, que faz do imaginário um “mundo” de representações que, ao observamos os ex-votos, podemos vislumbrar sua energia transformadora e transfiguradora de sentidos, conectando mundos visíveis e invisíveis de forma intensa e provocadora. Podemos então aprofundar a proposta trazida por Vovelle quando olhamos para o exvoto como um documento embebido da energia transformadora de um mundo amplo de representações e imagens profundas do indivíduo. Ao executar essas peças, o devoto traz seu banco de dados semióticos com elaborações diversas sobre fé, religiosidade, conexão com o divino, participação desse divino no cotidiano, as exigências para a ocorrência de milagres, trazendo a luz o universo de referências profundas que carrega. Ainda Vovelle (1997) nos provoca, questionando: Tamanha preocupação em preservar e ao mesmo tempo descobrir [...] não deriva somente do encanto muito real que possuem desses pequenos quadros, lucarnas para esse mundo que perdemos. [...] Não seriam estas, porém, um reflexo mais ou menos direto das questões que uma época propõe a si mesma? (VOVELLE, 1997, p. 113)

E, assumindo a provocação, procuramos olhar as peças votivas como um registro singular do universo no qual ele foi produzido, captando saberes e crenças, difundindo certezas e percepções de mundo que se cristalizaram e ainda fazem sentido para os indivíduos que, mesmo décadas (e até mesmo séculos) distantes da confecção dessas peças, ainda carregam sentidos e signos significantes para eles. Essa perpectiva de captura de sentido pode ser observada nos mais diversos tipos de objetos votivos que são apresentados em Trindade. Sejam eles imagens pequenas, como fotos, Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1239

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pinturas ou artefatos escultoricos, todos comportam um olhar sobre a importância dessa relação entre a divindade e o devoto e a importância desses objetos como mediadores dessa relação. Se quando observamos os artefatos escultóricos, podemos observar uma espécie de massificação das peças, ou ao menos traços que os conectam dentro de uma espécie de categoria, bem documentada e presente com recorrência nos diversos santuários que mantém um conjunto de ex-votos em exposição nas “salas dos milagres” normalmente anexas aos santuários. Mesmo imprimindo traços particulares e locais às peças, sua conformação física simplificam a narrativa relativa ao fato gerador ou a graça alcançada. Tal unidade formal vista nos ex-votos escultóricos não retira deles o valor de objeto significante para um olhar mais aprofundado sobre a relação entre devoto e divindade. Contudo eles aparecem como objetos massificados aos quais se pode atribuir o valor de coisa ou produto e que, atendendo uma demanda generalizada, pode lidar com signos também generalizantes, simplificando o tratamento dado aos símbolos neles presentes. Figura 3: Mosaico de fotos de ex-votos escultóricos encontrados em Fátima - Portugal (superior esquerda), Trindade - Goiás (superior direita) e Juazeiro do Norte - Ceará (inferior).

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1240 Fotos: G. Corcinio (2014/2015).

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Por outro lado, parte do acervo apresentado para o público na sala dos milagres do santuário de Trindade constitui-se de um outro corpus documental menos estudado, mas singular em potência simbólica que ele comporta: os ex-votos pintados As peças votivas pintadas que decoram a dita sala comportam em si a peculiar característica da narração personalizada. Enquanto os artefatos escultóricos apresentam o objeto alcançado pela graça (em especial aqueles que mostram partes do corpo, representando uma cura, mas também pequenas esculturas de casa, carros e motos, que demonstram as conquistas cotidianas dos devotos), as pinturas narram o processo, servem como mediadores mais delongados, pois é na narrativa que se vislumbra a graça, e cada pintura se distingue do conjunto todo, sendo singular na comunicação da graça. Mesmo existindo similitudes e padrões que podem ser utilizados como chaves interpretativas dessas peças, elas não repetem, ofertando assim um portal que nos possibilita o acesso a um universo permeado pelo imaginário.

Figura 4: Quadro relatando graça alcançanda. Trindade - Goiás.

Foto: G. Corcinio (2015)

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Esses quadros, variados no seu formato, nas técnicas e nas composições, são geralmente anônimos. Alguns assumem apenas a imagem como fio condutor de sua narrativa, ao passo que outros utilizam-se de legendas para externar aquilo que se busca representar, reforçando assim a publicidade dada ao Divino Pai Eterno como intercessor privilegiado.

Figura 5: Quadro relatando graça alcançada

Na legenda do quadro lê-se: "40 vidas foram salvas neste incidente. trecho israelândia-iporá / milagre operado por divino pai eterno no dia 08 de julho de 1985". foto: g. corcinio (2015)

E existem aqueles que procuram narrar a sucessão de acontecimentos que faz do Divino Pai Eterno o articulador que, tendo a ubiquidade como uma característica inerente à sua divindade, apresenta-se intercedendo pelo devoto mesmo que por meio de outros indivíduos. Tal variedade de imagens corrobora com a nossa percepção da necessidade de exteriorizar de uma forma singular a gratidão do devoto ao atendimento de suas demandas pela divindade. Analisar essas imagens necessita superar também aquilo que se apresenta patente na imagem, já que elas se mostram objetivas, em sua maioria, na construção da Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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narrativa. Sendo produzidas por indivíduos que, presume-se, não são artistas de oficio, nelas encontramos um justificado sabor naïf, como bem identifica Vovelle (1998). Figura 6: Quadro relatando livramento obtido por meio do Divino Pai Eterno.

Foto: G. Corcinio (2015)

Não podemos, desse modo, restringir nosso olhar apenas ao patente que está registrado na tela. Os quadros, tabuletas e outros suportes que comportam esse tipo de ex-voto possibilitam um olhar sobre o tempo e as dinâmicas sociais da época, a capacidade mobilizadora do divino enquanto mediador e solucionador de casos cotidianos, corriqueiros ou não.Essa tipologia de ex-votos aparece em Trindade, mas se faz presente também numa infinidade de santuários em Portugal, na Alemanha e alguns santuários brasileiros, como os mineiros e os baianos. Assim, estudá-los demanda uma compreensão daquilo que não é desenhado, aquilo que está nos desvãos das imagens ali gravadas em tintas fortes e técnicas simples.

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Ainda existe outro tipo de ex-voto, preponderante em volume atualmente nos diversos santuários, que são as fotografias. Uma espécie de ex-voto hibrido entre as peças pictóricas e as escultóricas, é um suporte que tem sido utilizado em profusão pelos devotos, lhe sendo reservado espaços bastante amplos nas salas de milagres. As fotografias comportam na sua composição enquanto peça destinada à externalização da fé do indivíduo aspectos da pintura – a singularidade – e das peças de cera e madeira – a simplificação da narrativa – demonstrando a graça alcançada de modo rápido, prático e efetivo.

Figura 7: Painel de fotos / ex-votos em Trindade - Goiás.

Foto: G. Corcinio (2015)

Esse é um tipo de ex-voto peculiar, podendo ser olhado através das mais diversas chaves interpretativas teóricas, mas que por questões práticas não nos ocuparemos dele. Citálos aqui serve para apontar sua existência e instigar pesquisas que se ocupem desse corpus documental que compreendemos ser a intersecção de várias temporalidades e significâncias, atendendo de formas novas as demandas dos devotos. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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3.

Uma porta interpretativa entreaberta: ex-votos e o imaginário Assumimos que existe a possibilidade de refletir sobre os ex-votos pictóricos como

sendo um corpus documental complexo que demanda do pesquisador um conjunto teórico variado. Tal proposição da existência de um modo especial de relacionar-se com o divino, pautado por um imaginário singular, permite complexificar a leitura desses objeto de estudo não apenas como erupções de um conjunto de manifestações religiosas ou artísticas, mas como imbricações de um universo de significantes que tem no imaginário uma fonte profícua, enfeixando passado e presente, profano e sagrado, erudito e popular em objetos plenos de sentido artístico e de fé. Segundo Wunenburger (2007), deve-se ampliar os elementos vinculados ao imaginário, comportando, entre outros, “[...] o conjunto das produções culturais (obras de arte, mitos coletivos etc.) para aí enfatizar uma tríplice lógica de 'estruturas figurativas', própria do Homo sapiens, que é também Homo symbolicus.”. Esses ex-votos configuram-se num conjunto importante de representações populares prenhes de representações do imaginário. E sendo lucarnas para esse mundo que perdemos,.podemos inferir que os ex-votos configuram-se como índices de uma noção de pertencimento e de identidade num cenário maior. Existe uma percepção de que estamos passando de um período secularizado, onde a relações são dessacralizadas, ato continuo da modernidade industrial e tecnológica, para um período de refluência do sagrado enquanto tradutor/mediador de um mundo que tem se tornado cada vez mais instável propenso a transformações. No olhar de Berger (2000), a ideia de que o mundo secularizou-se (ideia essa que ele mesmo defendia) não é ajustada ao que se vê na atualidade. Ele diz então: Argumento ser falsa a suposição de que vivemos em um mundo secularizado. O mundo de hoje, com algumas exceções que logo mencionarei, é tão ferozmente religioso quanto antes, e até mais em certos lugares. […] Algumas instituições religiosas perderam poder e influência em muitas sociedades, mas crenças e práticas religiosas antigas ou novas permaneceram na vida das pessoas, às vezes assumindo novas formas institucionais e às vezes levando a grandes explosões de fervor religioso (BERGER, 2000, p.10)

Essa reverberação aparece no papel exercido pela romaria, e por ex-votos que, associados a ela, aparecem nos centros de peregrinação como o santuário de Trindade, na Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1245

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percepção do sacrifício e dos valor dos objeto votivos como indices da composição e da articulação do imaginário com as crenças e a realidade desses indivíduos. Assim as praticas sociais denotam uma elaboração da compreensão de mundo paralela as dinâmicas cotidianas, conectando tempos e sentidos numa vasta teia interpretativa. Nesse cenário, um conceito sedutor para trabalhar com esse corpus documental é aquele apresentado por Warburg – e descrito por Didi-Huberman (2013) – denominado Sobrevivência. Conceito complexo por tratar daquilo que fica de outros tempos e que reaparece na atualidade, o sobrevivente, dentro do universo das imagens comunicantes que vislumbramos nos ex-votos, é apresentado por Warburg como o elemento que transpassa os tempos, não por ser o mais forte e significativo de sua época, mas justamente o contrário, por estar em uma condição de quase esquecimento. Essas imagens sobreviventes são elementos que, estando no limbo da memória do indivíduo, aparecem quase que por descuido, pelas frestas. Tornam-se vivos por ressurgência e por relação com outro dados memoriais. As imagens do imaginário como descritas por Bachelard (ano) são elementos fortes para entender esse universo renovado que floresce ao observar as peças expostas em Trindade. Na sua compreensão (...) a imagem não deve ser estudada em fragmentos. Ela é, precisamente, um tema de totalidade. Requer a convergência das impressões (...)(p. 12) e desse modo a peça votiva não é um fragmento de uma realidade anonima, mas um afloramento de um conjunto de signos e sentidos o qual, distante de atribuir ao imaginário um papel de reprodução do vivido, traz combinações infinitas de temas arquetípicos. A sobrevivência de um elemento apresenta, pelo entendimento de Warburg, o pathosformel do tempo em que essa sobrevivência é percebida, ou seja, de algo que não é mais vocalizado, mas ainda sim importante para a tessitura de uma relação entre humano e divino. Tal ideia conjuga no seu bojo um conjunto de sentidos que encontram no cenário da pesquisa uma tessitura importante, à medida que os ex-votos podem ser observados, enquanto objetos de memória, índices do imaginário e elaborações identitárias onde, estabelecendo uma relação entre contemporâneo e sobrevivência, testemunhas na sua existência enquanto item de fé é tributária dessa relação. A ideia de contemporâneo associável ao conceito de sobrevivência não está ligada ao tempo especificamente, mas sim com a semelhança e o alinhamento de ideias, textos ou práticas entre si, independente do tempo cronológico. É nesse sentido que a sobrevivência

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possibilita conectar as diversas representações dos ex-votos em seus diversos tempos representados nas pinturas expostas em Trindade. Se podemos então compreender a intersecção entre imaginário e estética que existe nesses objetos, é por meio da interpretação oferecida por Ricoeur, onde podemos ver uma Reinterpretação de sentidos, que permite a cada sujeito reconstruir sua própria existência em torno de dimensões simbólicas […] um relato simbólico transcende seu conteúdo literal, imediatamente acessível, em virtude de serem compostos por uma pluralidade repleta de significações. Aprender o sentido da imagem implica, por conseguinte, para além do sentido imediato, um desvelamento do sentido indireto e oculto do qual só uma parte superficial está presente na intuição primeira.(WUNERBERGER, 2007, p.22-23)

E esse exercício demanda ainda mais atenção pois tornar inteligível a imagem obriga apreendê-la indiretamente, a penetrá-la em sua profundidade, a interpretar seus diferentes níveis de sentido, o que exige uma orientação particular e um saber prévio, sob pena de não perceber seus sentidos latentes, por não os pressupor (op. cit.,p.23) Sendo este um artigo de aproximação, as interpretações possíveis sobre o acervo presente na sala dos milagres de Trindade ainda são indiciaticas. O levantamento da tipologia de ex-votos ali presente e dos estudos já executados sobre o assunto demonstra-nos que o caminho a percorrer é ainda grande e, como numa romaria para Trindade, sempre se deve seguir em frente.

4.

Bibliografia

BACHELARD, Gaston. A psicanálise do Fogo. São Paulo/SP: Martins Fontes, 2008. 170 p BERGER, P. L. A Dessecularização do Mundo: Uma Visão Global. In . Religião e Sociedade. Rio de Janeiro/RJ:, 2000. p. 9-24 CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A.. Dicionário de Símbolos: Mitos, sonhos,costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olimpio, 2001. 996 p DIDI-HUBERMAN, G.. A Imagem Sobrevivente: História da Arte e Tempo dos Fantasmas Segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. 506 p DUARTE, V. G.. O Carreiro, a Estrada e o Santo: Um Estudo Etnografico Sobre a Romaria do Divino Pai Eterno. 236 f. Dissertação de Mestrado em Gestão do Patrimônio Cultural - Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia. Universidade Católica de Goiás. 2004. IMA, E. e FEIJÓ, M.. Ex-votos de Trindade. Goiânia/GO: UFG, 1998. 79 p VOVELLE, M.. Os Ex-votos do Territorio Marselhês. In VOVELE, Michel. Imagens e Imaginário na História. São Paulo/SP:Ática, 1997. pp. 112-119 WUNENBURGER, J-J.. O imaginário. São Paulo/SP: Loyola, 2007. 103 p

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Grupo de trabalho Temas Transversais B Atelier de recherche Thèmes Transversaux B

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Imaginário, cinema e formação: a linguagem cinematográfica na ação educativa Imaginary, cinema and training: the film language in the educational action Imaginaire, cinéma et formation : Le langage cinématographique dans l’action éducative Ana Iara Silva de Deus 1 Roseléia Schneider 2 IESA- Santo Ângelo, Brasil

Resumo Este trabalho discorre sobre imaginário, cinema e formação docente com base em um projeto de iniciação científica realizado no Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo ÂngeloCNEC/IESA, desenvolvido com acadêmicas do 5º e 7º semestre do curso de Pedagogia. Assim, o projeto objetivou introduzir a linguagem cinematográfica na formação docente dos futuros professores com vistas a analisar de que forma a linguagem cinematográfica poderia tornar-se uma potência de formação e autoformação, bem como compreender as possíveis contribuições do cinema na formação docente, visando analisar as percepções, os sentidos e significados construídos sobre o cinema pelas acadêmicas participantes do projeto. Ou seja, a partir da relação do cinema com a educação na formação de professores tornou-se possível analisar as percepções, os sentidos, os imaginários e significados construídos sobre o cinema. Palavras-chave: imaginário; cinema; educação; formação de professores. Abstract This paper discusses imaginary cinema and teacher training based on a research project conducted in Cenecista Institute of Higher Education of Santo Angelo-CNEC / IESA, developed with the academic 5th and 7th semester of the Faculty of Education. Thus, the project aimed to introduce cinematic language in teacher training of future teachers in order to analyze how the language of film could become a power of training and self-training as well as understand the possible contributions of cinema in teacher training in order to analyze the perceptions, the meanings built on the film by the academic project participants. That is, from the film's relationship to education in teacher training has become possible to analyze the perceptions, the senses, the imagination and meanings built on the cinema. Keywords: imaginary; cinema; education; teacher training. Introdução: O imaginário não é a partir da imagem no espelho ou no olhar do outro. O próprio “espelho”, é sua possibilidade, e o outro como espelho são antes obras do imaginário que é criação. [...] O imaginário de que falo não é imagem de. É criação 1 2

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incessante e essencialmente indeterminada (social, histórica e psíquico) de figuras, formas, imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de alguma coisa. (Castoriadis,1982, p.12)

Falar de Imaginário, primeiramente requer que retomemos as ideias de Castoriadis, o qual denomina o imaginário como fonte incessante de criações indeterminadas, as quais estão diretamente interligadas com o simbólico. Por isso, sua afirmação de que o imaginário não é imagem de algo, mas uma utilização do simbólico para representar essa imagem, para ultrapassá-la da imaginação ao mundo real. No entanto, quando adentro no imaginário como construção de algo que ainda não existe, ou está por vir, não estou me referindo às fantasias e devaneios, mas pensando a partir da capacidade inventiva e criativa que é inerente a todos nós. Como salienta Castoriadis é "faculdade originária de pôr ou dar-se, sob a forma de representação, uma coisa e uma relação que não são (que não são dadas na percepção) ou nunca foram" (1982, p.154). Desse modo, o imaginário aqui retratado, é algo que propicia a reinvenção e a criação do mundo, porque somente através deste processo é que reinventamos o que costumamos chamar de real. Neste momento o leitor pode estar pensando: “O que tem a ver o imaginário de Castoriadis, com o cinema na formação de professores e na educação? Caríssimos, digo-lhes que tem tudo a ver, pois, a inter-relação do imaginário social com o cinema na educação atual consolida-se como uma abertura para a área de formação de professores, pois auxilia o processo de compreensão do território simbólico que permeia o sistema educacional. Sobre essa questão, Teves (1992) diz que: “conhecer uma realidade significa reconhecê-la como historicamente determinada, constituída por um sujeito que representa e simboliza essa realidade, sob a forma de percepção, intuição e sensações”. Castoriadis, por sua vez, salienta que: Uma vez criada, tanto as significações imaginárias sócias quanto as instituições se cristalizam ou se solidificam, e é isso que chamo de imaginário social instituído, o qual assegura a continuidade da sociedade, a reprodução e a repetição das mesmas formas que a partir daí regulam a vida dos homens e que permanecem o tempo necessário para que uma mudança histórica lenta ou uma nova criação maciça venha transformá-la ou substituíla por outra (2004, p.130).

Na formação de professores, as significações sociais imaginárias também são instituídas por uma sociedade que reproduz as formas de aprender e ensinar. No entanto, pela Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1250

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linguagem da arte, do cinema, do mito e da literatura é possível adentrar no universo simbólico, porque são formas simbólicas que se interligam entre o indivíduo e seu contexto social, assegurando o desenvolvimento da imaginação, que permite a possibilidade de sonhar e movimentar o pensamento com aquilo que ainda não existe. Desse modo, Castoriadis (1982), define o imaginário instituinte, como imaginação, sonhos, aspirações e caracteriza a capacidade humana de poder criar, inventar e instituir novas formas e instituições sociais. Por isso, correlacionaram-se as ideias do autor com o cinema, a partir do imaginário social instituinte, ou seja, para provocar o novo, a criação a ruptura com a realidade já instituída. Com a linguagem cinematográfica, é possível oportunizar o imaginário instituinte no espaço escolar e até questionar os valores dessa escola instituída. Com base nesse ponto de vista, o cinema é instituinte, pois oportuniza movimentos para repensar a própria sociedade instituída, apontando caminhos inventivos, criativos, poéticos e estéticos, se for visto, encarado e trabalhado como arte na escola. Assim, o cinema como imaginário instituinte propicia processos criativos e significações sociais. Para Fresquet: A crença no cinema e na sua possibilidade de intensificar as invenções de mundos, ou seja, da possibilidade que o cinema tem de tornar comum o que não nos pertence, o que está distante, as formas de vida e as formas de ocupar os espaços e habitar o tempo. A segunda crença é na escola, como espaço em que o risco dessas invenções de tempo e espaço é possível e desejável. Isto não significa pensar no belo, no conforto ou na harmonia. Significa que é possível inventar espaços e tempos que possam perturbar uma ordem dada, do que está instituído, dos lugares de poder (FRESQUET, 2013, p. 25).

Diante do exposto, é possível propiciar à educação um espaço de criação, invenção e significações, pois o cinema visto como arte na escola e pela ótica do imaginário social pode potencializar a percepção, a relação de sentidos e significados construídos sobre o cinema pelos envolvidos no processo. Como assegura Castoriadis, a “realidade natural” não é apenas aquilo que resiste e não se deixa manejar: ela é também aquilo que se presta à transformação, o que se deixa alterar “condicionalmente” mediante, ao mesmo tempo, seus interstícios livres e sua regularidade (1982, p. 400). Sendo assim, o cinema na formação docente contribui para a ressignificação do professor e suas práticas pedagógicas, porque possibilita pensar possíveis mudanças a partir da relação do imaginário com o cinema na formação docente. Como nos assegura Fresquet:

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Os possíveis vínculos entre o cinema e a educação se multiplicam a cada momento, a cada nova iniciativa ou projeto que os coloca em diálogo. Fundamentalmente, trata-se de um gesto de criação que promove novas relações entre as coisas, pessoas, lugares e épocas. De fato, o cinema nos oferece uma janela pela qual podemos nos assomar ao mundo para ver o que está lá fora, distante do espaço ou no tempo, para ver o que não conseguimos ver com nossos próprios olhos de modo direto. (FRESQUET, 2013, p. 19).

Dessa maneira, a tela do cinema ou a câmera fotográfica, configuram-se como nova janela que permeia outro lugar de conhecimento e outra forma de intercomunicação com o outro e consigo mesmo. Assim, a relação entre vida e arte cinematográfica é dada pela identificação e interpretação de experiências, preferências, sentimentos, tensões, processos de formação e conhecimentos relativos ao cinema que emergem no processo de significações imaginárias na formação de professores. Azevedo salienta: Faz-se importante levar em consideração o sentido das práticas instituídas, o lugar imaginário atribuído a si e ao outro e ao objeto do discurso, o sentido dos conhecimentos veiculados para o professor, bem como em que redes de sentidos se enredam esses conhecimentos. Aprender esses sentidos significa levar em conta a fala do professor, seu silencio, seus enunciados discursivos, nos quais estão presentes seus mitos, suas crenças, suas expectativas em relação ao que é ser professor, ao que é ensinar, suas posições de sujeito no discurso (AZEVEDO, 2006, p. 61).

Sob essa perspectiva, pode-se refletir que o cinema na formação de professores proporciona sistemas simbólicos de produção de sentidos às próprias práticas educativas, bem como estabelece outras formas de estar em aula, e descentraliza o papel do professor como figura central do processo de ensino e aprendizagem, pois todos se colocam no mesmo sentido de frente à tela.

1.1 Contextualização do Projeto: A Linguagem Cinematográfica na Formação Docente Com base nas colocações anteriores, passo a descrever o projeto de iniciação cientifica realizado no Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo-CNEC/IESA, o qual foi desenvolvido com acadêmicas do 5º e 7º semestre do curso de Pedagogia e teve como intuito introduzir o cinema na formação docente, como um meio para representar, contar histórias através de imagens, movimentos e sons. Desse modo, o projeto objetivou introduzir a linguagem cinematográfica na formação docente, dos futuros professores com vistas a analisar de que forma a linguagem

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cinematográfica poderia tornar-se uma potência de formação e auto formação, bem como compreender as possíveis contribuições do cinema na formação docente, visando analisar as percepções, os sentidos e significados construídos sobre o cinema pelas acadêmicas participantes do projeto. Para tanto, foram introduzidos os conhecimentos sobre a linguagem cinematográfica as acadêmicas, para que se apropriassem de novas ações educativas, através das projeções, discussões, enquadramentos, luzes, cores, movimentos de câmeras, criações de roteiros, produções e edições de filmes, por meio da arte como criação e transfiguração. Assim incluiuse o cinema na prática educativa das alunas como uma potência para reinvenção da realidade existente. Nesta perspectiva, o trabalho foi dividido em dois módulos, sendo que o módulo I: O cinema na formação docente, em um primeiro momento proporcionou aos participantes um espaço para assistirem filmes, refletirem e dialogarem sobre as produções visualizadas, na sala multimídia da instituição. Para esse processo foram selecionados alguns filmes para as alunas realizarem a apreciação estética e diálogos, os quais foram: Mr Holland- adorável professor; A cor do paraíso do diretor Majid Majidi; Uma vida iluminada do diretor Liev Schreiber; Análise e discussão da entrevista com Adriana Fresquet: 3ª edição claro curtas- Seminário Mesa temática 1- olhar e pensar: Educação audiovisual/ audiovisual na educação; Apreciação Estética do filme: vermelho como o céu do diretor: Cristiano Bortone. No módulo II: Linguagem cinematográfica na ação educativa, os participantes foram instigados a realizarem diversas filmagens e experienciarem os passos da criação cinematográfica, por meio das montagens dos filmes no programa Cinelera, e MovieMaker. Para esse modulo foi observado o Minuto Lumière-dos irmãos Lumière- A chegada de um trem na estação de 1895 e o documentário “Alteridade – Abecedário de Alain Bergala, bem como discussão do texto de Adriana Fresquet: Reflexões e experiências com professores e estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola e as oficinas práticas, onde foram evidenciados alguns elementos da linguagem cinematográfica: Luz, enquadramento, som, efeitos de vídeo e exercícios práticos com minuto Lumière, bem como elaboração de roteiros para as produções dos curtas-metragens e as gravações dos filmes pelas participantes do projeto.

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As acadêmicas nesse momento de criação, que lhes foi propiciado elaboraram vinte (20) curtas-metragens, os quais se enquadraram nos seguintes gêneros: Minutos Lumières, Contos Infantis, Comédia, Suspense e Ficção. Os encontros eram sempre semanais, e tinha a duração de duas horas de trabalho, no qual as acadêmicas aventuram-se no processo criativo, imaginativo e estético. Dentre essa gama de filmes criados pelas acadêmicas foram escolhidos quatro curtas-metragens, os quais foram analisados as significações estéticas, sociais e imaginárias das alunas ao projetarem os planos e roteiros nas produções cinematográficas.

1.2 Criações cinematográficas e os imaginários sociais interligados nesse processo A arte a linguagem, o cinema, o mito, a literatura e as histórias potencializam o aflorar do universo simbólico, pois são formas simbólicas que se interligam entre o indivíduo e seu contexto social. Essa capacidade imaginativa, criativa e simbólica foi vivenciada pelas acadêmicas durante o projeto de cinema desenvolvido na Instituição, porque as alunas foram totalmente livres para escolher seus planos e tomar a decisão das filmagens. Assim, realizamos o exercício minuto Lumiére, para o qual foi proposto um minuto de filmagem com a câmera parada. Esse exercício evidencia claramente o que é um plano, pois a cena acontece entre o ligar e o desligar a câmera fotográfica ou o celular. Iniciamos o modulo II com essa experiência, após assistirmos o curta dos irmãos Lumière: A chegada de um trem, datado de 1895. Essa primeira filmagem é considerada o marco inicial da história do cinema, onde os Irmãos Lumière inventam o cinematógrafo, um aparelho que permite registrar uma série de instantâneos fixos (fotogramas) que, quando projetados, criam uma ilusão de movimento. O motivo do exercício ser chamado de “Minuto Lumière” é uma referência a essas imagens: realizadas em um plano de um minuto retornando à maneira como eram feitos os primeiros filmes da história do cinema. Deste modo, surgiram os minutos Lumière das acadêmicas, onde três grupos de alunas intitularam os nomes para suas criações de: “ Meu pedacinho de chão”, no qual retrataram cenas do dia a dia no campo, deixando presente os animais, a vida calma e tranquila que esse cenário propícia. Podemos pensar no significado que a as raízes do seu contexto lhes remete, pois deixam claro essa preferência no nome: “Meu pedacinho de chão” e as cenas remetem a tranquilidade da sua terra, do lugar onde moram. Para Chevalier & Gheerbrandt:

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Simbolicamente, a terra opõe-se ao céu como o princípio passivo ao princípio ativo; o aspecto feminino ao aspecto masculino da manifestação; a obscuridade, a luz (2012, p.878). Assim, suas cenas deixam as claras segundo a definição dos autores acima citados, a dualidade que existe em cada um de nós, os pontos convergentes, o bom e o ruim. Deste modo, poderíamos identificar os dois lados da vida das acadêmicas, a vida calma e tranquila do campo, contrapondo-se a agitação da cidade, a vida corrida para conciliar trabalho e estudos. O que as remete ao seu “pedacinho de chão” o qual embora distante continua presente em suas memórias e imaginações. Talvez por isso, o desejo de imortalizá-lo pela captura na tela da máquina fotográfica. Digo isto porque a escolha de um plano não é aleatória, ou sem sentido e significado, pois ao apontar a câmera para um lado, para frente ou para trás. Essa escolha com certeza traz sempre fatores simbólicos, que os constituem. Outro minuto foi atribuído o seguinte nome: “Tudo junto misturado, no qual fica presente o contexto local, das alunas, pois começam as gravações na Praça da cidade, depois trazem outro plano retratando a infância e brincadeiras infantis, onde filmam crianças brincando em uma cama elástica. Contrapondo essa cena logo apresentam a vida adulta, também com brincadeiras, em uma mesa de ping pong, onde alternando os jogadores, homens e mulheres se divertem entre goles de bebidas. Finalizam os planos novamente com a cena da Praça da Matriz com a tomada da filmagem na ponte e nas águas do chafariz. Chevalier & Gheerbrandt argumentam: O domínio do imaginário não é o da anarquia e da desordem. As criações, mais espontâneas obedecem a certas leis interiores. E mesmo se essas leis nos levarem ao irracional, é razoável procurar compreendê-las (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 2012, XXXVI).

Deste modo, ao procurar compreender os símbolos projetados nas imagens trazidas pelas alunas em seus curtas-metragens, especificamente no “Tudo Junto e misturado”, no qual retratam as duas fases da vida, crianças e adultos, representados por homens e mulheres, bem como a praça em meio ao chafariz. Este último abre e encerra os planos das alunas com a água que jorra sem parar. Encontrei em Chevalier & Gheerbrandt a seguinte categorização: O símbolo da criança pode indicar uma vitória sobre a complexidade e ansiedade, e a conquista da paz interior e da autoconfiança. [...] Infância é símbolo de simplicidade natural, de espontaneidade. [...] o homem simboliza um nó de relações cósmicas. [...] As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1255

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centro de regenerescência. Esses três temas se encontram nas mais antigas tradições e formam as mais variadas combinações imaginárias (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 2012, p.302)

Novamente nas cenas escolhidas pelas acadêmicas no curta-metragem intitulado: ““Tudo Junto e misturado”, retratam, segundo os autores, o desejo de sobrepor-se a complexidade, talvez da própria existência, a qual clama pela conquista da paz interior. A imagem do homem ou mulher neste caso centraliza, este desejo de ligação com o cosmos e talvez com o “self“. A água que inicia a filmagem e a encerra, segundo os autores é fonte de vida, vida abundante. Ao realizar a interpretação podemos interligar a água como sendo o centro dessa ligação interior com o exterior, bem como com o cosmo, porque como salientam os autores é o centro de regenerescência. Portanto, elo de ligação e regeneração. Castoriadis afirma: A instituição e as significações imaginárias, inseridas nela e que ao mesmo tempo a animam, são criadoras de um mundo, o mundo desta sociedade dada, instaurada desde o início na articulação entre um mundo “natural” e “sobrenatural”, ou mais geralmente,” extra-social, e um “mundo humano” propriamente dito. Essa articulação pode ir desde a quase fusão imaginária até a vontade de separação mais afirmada; desde a colocação da sociedade a serviço da ordem cósmica ou de Deus até o delírio mais extremo de dominação e domínio da natureza (CASTORIADIS, 1992, p.122).

Portanto, ao analisar as interlocuções dos autores e as filmagens captadas pelas acadêmicas, saliento a relação da espacialidade, temporalidade e o inusitado retratado nas imagens escolhidas para os curtas-metragens, das quais emergiram objetos reais e imaginários, pois ao realizar a análise mais profunda, observei o imaginário vivo e imanente das alunas, as quais entraram em contato com a sétima arte e deixaram-se permear pelos dois mundos, “natural” e “sobrenatural”, mesmo sem terem conhecimento deles.

1.2 Reflexões Finais: Devo salientar após as análises realizadas, que, ao propor o cinema na ação docente, o professor deve levar em consideração os fatores psicológicos e simbólicos que estão por detrás de quem pega uma filmadora, ou câmera fotográfica para capturar suas cenas, bem como quando assiste a um filme. No entanto, essas primeiras experiências serão os primeiros passos para a atividade do cinema na educação, além de muitas outras que poderão ser proporcionadas, se for oferecido espaço e tempo para criação, projeção e experimentação.

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Esse espaço foi proporcionado com a realização do projeto: A linguagem cinematográfica na formação docente: cinema e educação na ação pedagógica, pois com a efetivação do mesmo foi possível vislumbrar novas aprendizagens para o campo da educação permeado pela imaginação. Dessa maneira, conclui-se que as ações do projeto proporcionaram momentos de reflexão, percepção, encontro com seu eu interior e aprendizagens, por meio dos filmes assistidos, das filmagens produzidas e reeditadas nas oficinas de cinema. Por isso, esse trabalho almeja ser uma provocação aos demais docentes, que trabalham com formação de professores e com o imaginário, para também se aventurarem neste mundo mágico e instigante do cinema na educação.

REFERÊNCIAS AZEVEDO, Nyrma Souza Nunes de. Imaginário e Educação: reflexões teóricas e ampliações. Campinas, SP: Ed Alínea, 2006. CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária na Sociedade. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. ______________. Figuras do Pensável: as encruzilhadas do labirinto, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. ______________. Sujeito e Verdade no mundo social-histórico, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos. Costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olímpio,2012. FRESQUET, Adriana. Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. JUNG, G. Carl. O home e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

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A construção da identidade étnico-racial: trajetórias de professoras negras The ethnic-racial building identity: the black teacher´s trajectory La construction de I’identité ethnico-raciale : trajectoires d’enseignantes noires

Andressa Lima TALMA Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF 1, Juiz de Fora, Brasil Waldeir Reis PEREIRA Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF 2, Juiz de fora, Brasil

Resumo Este trabalho analisa a trajetória de vida e escolar de professoras que possuem experiências em educação para a diversidade étnico-racial em duas escolas da rede municipal de ensino de uma cidade mineira, através das imagens presentes em suas memórias, marcadas por violências simbólicas de uma sociedade etnocêntrica. A pesquisa ocorreu por meio de observações do cotidiano escolar, anotações no diário de campo e por meio de entrevistas semi-estruturadas. O resultado ainda é parcial, mas acreditamos que a tentativa de interpretação das práticas pedagógicas das professoras e de suas narrativas, amparada por recursos teóricos da antropologia do imaginário, nos auxilia a compreender a construção de suas identidades étnico-raciais. Utilizamos das africanidades como categoria para a análise. Percebe-se que as histórias de vida dessas professoras negras interferem em seus fazeres pedagógicos. Palavras-chave: africanidades, etnocentrismo, identidade étnico-racial. Abstract This paper analyses the life and educational trajectories of teachers whom have experiences in education for the ethnic and racial diversity in two municipal schools from a town located in the Brazilian state of Minas Gerais, through the images present on their memories, marked by symbolical violence of an ethnocentric society. The research occurred by means of daily scholar observations, notes on the field journal and through semi-structured interviews. The results are still partial, but we believe the attempt to interpret the pedagogical practices of the teachers and of their narratives, supported by theoretical resources imported from the anthropology of the imaginary, helps us to understand the construction of their ethnic and racial identities. We made use of the africanities as a category to the analysis. It’s possible to notice that the life histories of these black teachers interfere in their pedagogical doing. Key-words: africanities, ethnocentrism, ethnic and racial identity. Introdução

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[email protected], mestranda e bolsista CAPES. [email protected], mestrando e bolsista CAPES.

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Este artigo foi se delineando através dos caminhos utilizados para a compreensão da trajetória de vida de duas educadoras da rede de ensino da cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais, que têm o histórico profissional caracterizado por experiências educativas em relação à educação para as relações étnico-raciais, marcadas por aproximações. Buscamos compreender as práticas diferenciadas dessas professoras quando comparadas com de outros profissionais, a partir dos relatos de vida e das imagens e representações que emergem de suas memórias. Nossa pesquisa se baseia em observações do cotidiano escolar, anotações no diário de campo e entrevistas semi-estruturadas, utilizando-se de diversas idas às escolas para documentação, gravação e acompanhamento de diversas aulas. Uma escrita impulsionada pelo incômodo, um incomodar que nos impulsiona e se relaciona com a trajetória de vida das duas educadoras quando questionadas sobre seus percursos diários que esbarram com as questões étnico-raciais, um incomodar que foi crescendo nos encontros do Grupo de Pesquisa Antropologia, Imaginário e Educação – ANIME e no processo de organização das impressões que advinham das falas e atitudes das educadoras. Suas histórias de vida revelam silêncios e violências simbólicas em que foram submetidas na infância e juventude e que deixaram marcas em seus percursos pessoais e profissionais. Surge uma angústia decorrente desses percursos e o sonho de ver uma sociedade mais justa e igualitária, que levaram-nas a se constituírem como as pessoas que são hoje, comprometidas, como professoras, com uma educação que não privilegie algumas representações culturais, exaltando o eurocentrismo e levando à insignificância as culturas não-ocidentais. Para adentramos nesse campo de discussão sobre os critérios de ensinar e aprender numa sociedade etnocêntrica, nos utilizaremos como referencial teórico a Antropologia do Imaginário de Gilbert Durand (2001, p. 68) que compreende que como o Ocidente desvaloriza o imaginário, pois, atribuiu à ciência que alicerçada em algo concreto, se constituiu numa lógica binária, como a única dona de uma verdade iconoclasta e que ao defrontar-se com concepções imaginárias, que considera como um campo movediço, ambíguo, ou melhor, um terceiro elemento em uma organização de verdadeiro ou falso; se esforça em separar, excluir a ciência da imaginação desvalorizando-a. A Antropologia do Imaginário vai desconstruir essa

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visão valorativa de apenas uma cultura e nos mostrará a necessidade de valorizar outras culturas, mitos e narrativas, como no nosso caso a cultura afrodiaspórica e africana. Temos a perspectiva de construção dos trajetos investigativos das histórias de vida das professoras aqui apresentados, baseados no subjetivo delas e em sua completude, no ser humano como um todo, em sua parte racional e sentimental, para ser pedagogicamente compreensível, pois não é possível separar as duas, pois é necessário pensar o ser humano também considerando as concepções imaginárias que o constitui, suas memórias e emoções; e não apenas pelo simples fato racional, concreto, quando as professoras relatam que nunca sofreram preconceito em suas trajetórias de vida. Encontramos nas investigações, indícios que as dificuldades de se compreender as diferenças na educação brasileira advêm do pensamento pedagógico se assentar em bases do imaginário ocidental que se alicerçam no principio do corte e da separação de identidade e não-identidade, o uno e o múltiplo, o bem e o mal, o verdadeiro e o falso (OLIVEIRA, 2009, p. 20), ou seja, uma lógica binária. A investigação amparada em bases da antropologia do imaginário auxilia no processo de compreensão das imagens que emergem das práticas pedagógicas e das narrativas que aparecem nas construções étnico-raciais de uma sociedade marcada pelo etnocentrismo. Buscando no cotidiano das educadoras o quanto a escola que se alicerça em bases do pensamento ocidental afetou-as no trato com as relações com as crianças negras. Faz-se necessário estudar não apenas as questões, como também, os mitos que estão patentes nas representações de vida que as professoras apresentam-nos, como principalmente os mitos latentes que não conseguem encontrar meios simbólicos de expressão e trabalham a sociedade, e consequentemente as vidas dessas professoras, a nível profundo.

Escrita impulsionada pelo incômodo Um texto que irá de encontro as palavras desencantadas nasce no conjunto de pensamentos afroperspectivistas adotados, como Noguera (2012, p. 69) classifica o ato de “denegrir” 3, o território epistêmico, que no nosso caso aqui analisado, é o espaço das relações étnico-raciais e sua conjugação com a pedagogia da pluriversalidade como forma de exercício intercultural que possa vencer um educar homogeneizante e universalista.

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Denegrir tendo o sentido de abandono das disputas e dos controles materiais e imateriais, visando uma cooperação uma arma dos fracos contra os fortes através de um diálogo (NOGUERA ALVES, 2012, p. 69). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1260

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Nas nossas vivências em busca dos conhecimentos relacionados às questões étnicoraciais e nas muitas leituras exploratórias marcadas por inquietudes ligadas a educação, uma fala nos chamou a atenção em relação ao olhar sobre as questões étnicas no universo escolar: “a água que corre areia adentro é o poder de regeneração da terra árida” (ibidem, p. 67), logo encaminhamos o trecho para a escola e seu cotidiano pensando que o espaço pode abrir suas portas para que a areia se encaminhe para o seu chão, onde possa ser trazer algo novo para a educação que se encontra envolvida por uma ideologia etnocêntrica que se desenvolveu no positivismo e em uma modernidade que caminha para a escuridão. O pensamento pedagógico brasileiro é dominado pelo etnocentrismo que tem origem na “heterofobia” 4, que privilegia um universo de representações que propõem como modelo cultural hegemônico,em detrimento e silenciamento de outras culturas consideradas diferentes (PAULA CARVALHO, 1997, p. 181), e também relega outras culturas e outros territórios epistêmicos, a subalternidade e a dominação (ibidem, p. 69); produzindo “efeitos mutilantes”, reducionistas e simplificadores no tratamento do real (redução/disjunção), na relação do sujeito/objeto, nos pares razão/sensibilidade” (NORONHA ALVES, 2008, p. 48). Um bom exemplo encontramos no conhecimento africano afrodiaspórico que no Brasil foram considerados pouco importantes. Tais cânones estabelecidos pela razão ocidental privilegiam representações culturais que reforçam uma dualidade entre razão e imaginação e, que ao mesmo tempo, enaltecem a razão e reforçam a postura de insignificância das culturas consideradas subalternas, consideradas distantes da concepção do racionalismo ocidental. A “racionalidade” ocidental não somente separou os diferentes saberes, mas também, segmentou o objeto de conhecimento, ao afastar natureza e cultura, e que somente a inclusão dos seres humanos no conceito de natureza pode nos possibilitar um caminho de compreensão da natureza e, portanto, da cultura ou da sociedade (LOPES; MÉLLO, 2010, p.725). Porém como Ruiz (2004, p.32) observa que mesmo dominados pelo paradigma da racionalidade, que busca separar razão e imaginário, temos que compreender que não há razão e ciência dissociadas da imaginação, e que ambos se correlacionam e criam a dimensão simbólica. O ambiente escolar vive uma crise dos sistemas explicativos que segundo Teixeira (1994, pp. 75-76) ocorre pela perda da capacidade de explicar a realidade, pois, busca 4

Heteorofobia que enxerga o outro “diferente” de imaginário diferenciado que foge do padrão estabelecido como um perigo. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1261

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interpretar o mundo como se fosse único e seguindo a ótica de uma razão privada de afetos e emoçõesque são relegados à insignificância, a certeza de que cada “cultura produz o seu mundo juntamente ao mundo de outras culturas” (OLIVEIRA, 2012, p.42). Um esvaziamento do modelo dominante, empirista, determinista, redutivo, possibilita o adentrar de um novo paradigma que pode ser classificado como pluralista, fenomenológico, metafísico e que pode nos levar a outra dimensão, como Noronha (2008, p. 48) afirma que “Estamos em tempo de passagens” e, portanto, o modelo antigo, ou melhor, o paradigma clássico não supre as demandas da sociedade. Surge no cenário um novo paradigma, que segundo Morim (apud Noronha Alves, 2008, pp. 49-50) é um sistema aberto e plural que tem “O princípio organizador do conhecimento, o problema crucial, o que demanda da humanidade. “não só aprender, não só re-aprender, não só desaprender”, mas, sobretudo, reorganizar nosso sistema mental para re-aprender o aprender”. O pensamento pedagógico brasileiro assentado em bases do imaginário ocidental, tem em suas entranhas a ciência moderna que se liga ao referencial de um cosmos dotado de um centro e de periferias. Ao estar dominada por um paradigma global e totalitário, a educação se baseia em uma razão fechada que separa o sujeito de seu ambiente, ocultando e excluindo a diversidade social e racial e impedindo que o afetual possa ocorrer no ambiente escolar. A escola seguindo tal perspectiva se abastece de um olhar homogeneizante, monorracial, que impede que os conhecimentos de outras culturas como as dos africanos, possam ser reconhecidos e, assim, ocorre um inviabilizar de um educar para a pluriversalidade. A educação brasileira formulou representações que desqualificaram os povos não ocidentais, situando-se como os diferentes, os exóticos, os que nãos se enquadram no padrão universal de humano. É necessário romper com esse pensamento universalista e valorizar a diversidade, a fim de romper com a percepção de superioridade / inferioridade para se construir uma educação para a diversidade étnico-racial (OLIVEIRA, 2015, p. 16).

A educação dominada pela perspectiva da pedagogia do etnocentrismo (PAULA CARVALHO, 1997, p. 181) nivela as diferenças, cria um processo de escolarização homogênea, em que todos os sujeitos devem estar uniformizados e aprendendo no mesmo tempo de uma mesma maneira, organizando uma lógica binária onde não se considera a diversidade de cada elemento, como seu tempo de aprender e a valorização da cultura que carrega na sua história de vida para o espaço escolar.

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O que se aprende nas escolas “por mais útil que seja, nem sempre é vivido, enquanto que o conhecimento herdado na tradição oral encarna-se em todo o ser” (BOARO, 2013, p. 9). No intuito de formar seres humanos racionais, a escola vai organizando seu caminho em bases universalizantes e, assim, o aprender se realiza separando o pensamento do sentimento buscando a pretensão de dominar a ciência e a tecnologia e ter sucesso no mundo do trabalho. Os sujeitos se tornam assim, “homens pela metade, com personalidades fragmentadas” que buscam incessantemente algo que os complete na sociedade (THOMAZ, 2009, p. 9). O caminho educativo apresentado privilegia “um universo de representações propondo-o como modelo e reduzindo a insignificância os demais universos e culturas “diferentes”” (PAULA CARVALHO, 1997, p. 181). Se nos debruçarmos nas experiências educativas, nas formas que os alunos utilizam para aprender e nas experiências de apreensão do conhecimento de outros territórios como o de países africanos, compreendemos como a racionalidade dominante não é a única forma de acesso aos conhecimentos. Eles ocorrem nas culturas africanas e afrodiaspóricas “com o corpo inteiro – o físico, a inteligência, os sentimentos, as emoções, a espiritualidade – que ensinamos e aprendemos que descobrimos o mundo” (SILVA, 2007, p. 501). Corpos negros, brancos, indígenas, mestiços, doentes, sadios, gordos, magros, com deficiências, produzem conhecimentos distintos, todos igualmente humanos e, por isso, ricos em significados. Produzem também conhecimentos científicos, quando decidem realizar pesquisas deste cunho, que têm em conta as circunstâncias e suas condições de ser e viver (ibidem, p. 501).

Para Oliveira (2015, p. 18) a educação africana diferencia-se da ocidental no “pensamento causal e no pensamento sincrônico”, diferente do pensamento ocidental que é racional, linear, anacrônico. Para ele pensar uma educação de perspectiva africana no Brasil, leva-nos a alcançar e compreender esse universo cultural dessa tradição (ibidem, 2015, p. 18).

O imaginário Compreendemos que no conjunto de pensamentos construídos no imaginário que desde criança antes de pensarmos racionalmente, imaginamos e nosso primeiro contato com o mundo se realiza assim pela imaginação. Por meio das imagens “vamos tecendo nossa identidade” (RUIZ, 2004, p. 30). Mesmo com a imaginação tendo muita importância, se encontra em uma posição secundária em relação à racionalidade que se apresenta como Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1263

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sinônimo da verdade. A desvalorização ocorre por o Ocidente ter suas bases explicativas assentadas em uma razão que se encontra como detentora de uma “verdade”. O “trajeto antropológico” para Gilbert Durand é sua pedra angular e pode ser explicado como, “a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimidações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 1997, p. 41), ou seja, o homem se forma através de influências e interações de fatores externos como o território geográfico em que nasceu e viveu e vive o meio social que está inserido e por fatores internos como a sua formação psicológica e biológica. Uma pedagogia do campo de estudos transdisciplinares, marcada por uma razão aberta em um conjunto de conhecimentos híbridos, complexos, heterogêneos e plural pode ser compreendido como um caminho aberto para um educar que abarque as diversas narrativascomo a afro-brasileira (OLIVEIRA, 2015, p. 20). Podemos enxergar um novo caminho que se constitui com exigências éticas, epistêmicas e pedagógicas que se desencadearam com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira (BRASIL, 2004) e que tem levado parte dos envolvidos com o processo educativo a refletir, conhecer, reconhecer os silêncios em relação à diversidade social brasileira.

Apresentando as educadoras Nossas pesquisas se encaminharam para o entendimento dos movimentos e das imagens que emergem nas histórias de vida de duas educadoras dentro e fora do espaço escolar. As duas professoras lecionam em escolas da rede municipal da cidade de Juiz de Fora, no estado de Minas Gerais. A base teórica escolhida para nossa interpretação, a Antropologia do Imaginário de Gilbert Durand, se deu pela possibilidade de se compreender e interpretar as imagens que saltam nos discursos das profissionais em educação quando inquiridas em relação às questões étnico-raciais de ordem pessoal (histórias de vida) da fase da infância, fase estudantil e os desafios da fase profissional, procurando compreender as narrativas produzidas nas falas e atitudes das professoras, de onde podemos reconstituir as memórias abertas de possibilidades, no percurso investigativo. Chamaremos de professora Teresa nossa primeira educadora investigada, uma mulher negra, nascida no interior mineiro na cidade de Santos Dumont, uma localidade próxima a

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Juiz de Fora. A escolha da professora se deu pela ligação que a mesma tem com a escola escolhida para a pesquisa e por suas falas em relação às questões étnico-raciais. No caso da instituição de ensino a aproximação ocorreu pelo fato da mesma se localizar em uma comunidade repleta de possibilidades investigativas em que se destacam diferentes aspectos sociais e étnico-raciais. A segunda professora investigada é chamada de Ana, uma gaúcha, que tem pais e família mineira, veio criança para Minas Gerais e atualmente mora na cidade de Santos Dumont. A escolha foi feita através da indicação pela direção e colegas como referência na escola pública em que atua por trabalhar os conteúdos étnico-raciais com suas turmasnas aulas de história no quinto ano do ensino fundamental, também é uma educadora negra e que afirma ser muito militante pela valorização da cultura negra.

Um pouco sobre a infância das professoras negras O processo investigativo com a professora Teresa se iniciou com pinçadas em suas histórias de vida, contando a partir de sua infância as relações familiares, tendo como aspecto relevante o destaque que o ambiente familiar era formado por pessoas brancas, em sua maioria, que a levaram, segundo sua percepção, a não se deparar com atitudes de racismo e preconceito nesse período. Mesmo tendo a consciência que era negra no meio de tios e primos brancos. Eis sua fala: - Sobre minha família, lembro-me que convivi com familiares que eram brancos e o único negro era meu pai, eu e meus irmãos. Que me lembre nunca tive problema de preconceito entre meus parentes. Não convivia com negros nem mesmo na escola. Pode ser que nem os enxergava. - Sempre estudei em uma escola que haviam poucas crianças negras e nunca percebi nem uma atitude que remetesse a atitudes racistas..

Na sua fala podemos notar a ideia de profundidade, de aconchego familiar, elementos presentes no regime noturno de imagens que remetem aos símbolos místicos e antifrásicos femininos de proteção que a impedem de reconhecer e enxergar as demandas sociais em relação a sua condição de um sujeito afrodescendente. A professora Ana, nos fala pouco sobre sua infância e diz não ter tido contato com muitos familiares na infância. Eram apenas ela, os irmãos e os pais, pois seu pai era mestre de obras e eles moravam no sul em acampamentos para os familiares dos trabalhadores nas obras e o restante da família estava em Minas. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1265

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- Eu sou gaúcha de Paraí, fronteira com o Uruguai. Vim do sul com 8 anos e mudei para a cidade Entre Rio de Minas, pois meu pai veio pra construção da Ferrovia do Aço. Meu pai é mestre de obras... Durante a ditadura ainda. - Olha teve lugar que morei 6 meses por causa do trabalho do meu pai. - Então a gente mudava muito. Se você ver meu currículo escolar você vai ver que são 6 meses numa escola e 6 meses em outra. Era uma vida de cigana. Eu fui morar em casa de alvenaria em Minas Gerais com 8 anos, em casa de tijolo, antes só morava em casa de madeira. - Sobre a minha família, são poucos, somos em 3 irmãos e meus pais. Não moramos perto de tios nenhum, minha família mais próxima é aqui em Juiz de Fora, sempre fomos muito sozinhos. Eu não tive essa oportunidade. Nós somos um núcleo muito fechadinho. Nossa família é muito pequena, então a gente fala que não pode brigar, porque se brigar... Somos só nós.

A professora fala com muito orgulho sobre a importância da profissão de seu pai na construção de grandes obras pelo Brasil. E destaca que sua família é pequena e que deve estar sempre unida, não podem brigar porque senão seria mais reduzida ainda. Podemos notar elementos do regime diurno quando Ana fala da importância da profissão de seu pai para o país na época da ditadura, que sempre mudava de cidade por causa das obras. Podemos em suas narrativas a repetição sobre a trajetória de seus antepassados negros que vieram do continente africano. Após nos contar essa história, num outro dia ela durante nossas observações, ela contou para duas turmas que ministra a disciplina História a mesma história. - Minha bisavó era de Guiné Bissau. Sua família era rica, porém a terra africana não era muito boa de plantar. Vieram para o Brasil com a esperança de se darem melhor. Todos falavam que a terra era boa de plantar aqui, que tudo que se plantava dava certo. Porém quando chegaram aqui foram separados e vendidos para serem feitos de escravos. A minha bisavó foi enviada para a Fazenda Cortes Real em Além Paraíba, Minas Gerais, foi marcada a ferro com o C de Cardoso. Seu nome era Cristina e nessa época a escravidão era legal. - Ela era privilegiada entre os outros escravos. Tinha a chave da Senzala. Há quem diga que tinha “algo” com o senhor da fazenda. - Se casou com um negro “retinto” (termo que se usava para o negro de pele bem escura, como se tivesse sido “tingido” duas vezes) assim como ela, teve filhos negros e outros mestiços de cabelo liso. Há quem diga que eram filhos do patrão. Patrão este que deu muitas terras a Cristina que ficou rica. Era inteligente e falava francês.

Ana disse ainda que sua avó, filha de Cristina se casou com um homem branco e “sujou” a família, diziam o restante da família. Dessa forma a família atualmente é mestiça.

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Diferente da família da professora Teresa em que só o pai era negro entre os irmãos e grande parte da família era branca, a família que a Professora Ana quer destacar se origina na África, ao chegar ao Brasil eles são separados e feitos escravos, segundo nossa professora narradora e anos depois a família negra não aprovou a atitude da avó da professora, que “sujou” a família casando-se com um homem branco, porém antes a bisavó parecia ter tido um relacionamento sexual com o senhor da fazenda (porém ninguém tinha certeza), pois mesmo casada ela teve filhos que pareciam não ser do marido “retinto” dela. A professora Ana nos conta a história de sua família africana utilizando símbolos do regime diurno de imagens. Ela tem orgulho de seus antepassados africanos, que segundo ela eram ricos no continente africano, tinham poder, porém foram enganados, roubados e separados ao chegarem no Brasil. Destaca o papel de sua bisavó, que mesmo tendo sido escravizada tinha a chave da senzala, representando a retomada do poder, era descreve a bisavó muito inteligente, que falava francês, e contou em outro momento, que durante a escravidão sua bisavó ganhou algumas terras e ficou rica novamente. Sua narrativa é heroica, pois apresenta rapidamente o sofrimento, quando seus antepassados passaram por uma fase ruim no período da escravidão, porém logo em seguida a sua bisavó,com suas características de mulher guerreira, não se deixou vencer e usou suas armas para recuperar seu prestígio e riqueza no Brasil. É destacada a figura guerreira e heróica de sua avó, que veio para o Brasil jovem, foi feita escrava, ganhou a confiança do fazendeiro que a havia comprado e se tornou guardiã da chave da senzala; ganhou muitas terras desse fazendeiro se tornando rica, assim como era na África. A professora nos relatou que faz questão de sempre contar a história de seus antepassados, pois é motivo de ter orgulho para ela, orgulho de suas origens e isso que a incentivava e continua a incentivá-la a trabalhar o continente africano e as africanidades em suas aulas. No caso de Teresa a aproximação com temas relacionados com as temáticas étnicoraciais foi se constituindo aos poucos com receios e descobertas da sua condição e das possibilidades que os alunos afrodescendentes podiam desenvolver.

Vida escolar e apoio familiar A Professora Teresa quando relata seus momentos de formação destaca, que quando era jovem, ela não tinha muitas expectativas de sair de sua cidade natal e fazer um curso

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superior, pois para as moças o curso normal já era considerado suficiente, porém foi incentivada por sua irmã mais velha que era empregada doméstica e que não queria o mesmo destino para a irmã. - Na família fui a primeira a estudar, fui aluna de escola pública onde fiz contabilidade e depois magistério, pois não tinha nenhuma perspectiva em ir para frente (estudar em curso de nível superior). Fui à primeira da família a sair da cidade de Santos Dumont e vencer a ideia de que o curso normal já seria a formação satisfatória. - Minha irmã que foi empregada doméstica que me incentivava, e sempre comentava que eu não teria o mesmo destino. Uma mulher forte que tem muita importância no meu caminhar e na minha formação. - Em Juiz de Fora logo fui aprovada na universidade federal no curso de Matemática. Acabei mudando um quadro comum na minha cidade e, principalmente no ceio da minha família, ou seja, a de valorizar a educação como caminho de melhoria de vida.

Na fala acima, podemos observar o incentivo da irmã da professora que tem uma atitude heróica presente no regime diurno de imagens. enquanto ela, que não tinha pretensões de chegar ao curso superior, pois para sua família não era algo valoroso, seguiu em frente graças ao incentivo de sua irmã, outra mulher guerreira, que utilizou de armas para que a irmã não tivesse o mesmo destino que o seu, que se formasse e tivesse uma profissão, para não ser uma empregada doméstica como ela. Já a Professora Ana nos relatou sobre sua fase escolar, que era a única negra em uma escola alemã do sul, que nunca sofreu preconceito e também que nunca estudou nada respeito dos conteúdos étnico-raciais, ela diz que nunca estudou nada relacionada à sua raça e mesmo passando por várias escolas, o trabalho com essas questões de africanidades se inicia em casa. - A minha primeira escola no Sul era de irmãs alemãs, no meu primeiro ano só tinha eu de negra na escola, era no Rio Grande do Sul. Se aconteceu alguma coisa relacionada a racismo eu não me lembro. Eu devo ter apagado ou bloqueei, pois eu não me lembro. Já entrei alfabetizada na escola. Eu comecei a ler com 5 anos. Tinha uma mulher de um operário que era professora e que alfabetizava as crianças no acampamento. - E não tinha nada de africanidades na escola, nada relacionado à África, não havia nada da minha raça, nenhuma coisa foi citada em especial com relação a me destacar. Mas eu não me sentia diferente em momento nenhum.

Interessante que as duas professoras, em momentos que eram a minoria, convivendo com pessoas brancas, no meio familiar como é o caso da educadora Teresa, e no meio escolar como era o caso da professora Ana, elas nunca se sentiram discriminadas ou tratadas de forma Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1268

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diferente. Em suas falas afirmam nunca terem sofrido nenhum preconceito. Ou podemos jogar como hipótese que haveria algo dificultando as duas de enxergarem o preconceito da sociedade perante a situação de ambas como crianças e posteriormente mulheres negras na sociedade brasileira, uma sociedade monorracial, extremamente eurocêntrica, preconceituosa em relação à cultura dos povos que não são ocidentais, que desvalorizam as culturas baseadas no subjetivo, abstrato, no imaginário, pois valorizam a razão e os pensamentos fundados na mesma. Podemos observar a prevalência de símbolos do regime diurno nas narrativas de ambas, que nos relatam histórias com familiares que se tornam personagens guerreiros, que fazem de tudo para as protegerem e que influenciam muito as vitórias em suas histórias de vida.

Militância e desafios docentes Quando a conversa e observações das atitudes diárias se encaminham para o oficio docente, se destaca na fala e nos fazeres da professora Teresa que o reconhecimento étnicoracial e as diferenças encontradas em sala de aula ainda estão em um processo de amadurecimento pessoal e profissional. Sua visão foi marcada pela ideia de homogeneização da escola. - Nunca me ative ou deparei com a preocupação com as diferenças, porque não me afetavam. Hoje percebo que posso pensar e reconhecer que por muito tempo via a sala de aula como um espaço da igualdade e da afetividade. - Tenho aos poucos me aproximado das demandas das mulheres, negros e pessoas que necessitam de condições especiais na educação. Fui descobrindo que minha condição de mulher e negra era muito complicada na sociedade brasileira. - Não me sentia uma pessoa negra, mesmo sendo no tom de pele não me reconhecia. Ninguém havia me alertado da minha condição.

Dentre as muitas conversas com a professora Teresa um acontecimento que ocorreu na escola sempre retornava sua fala, que seria a mudança do perfil dos alunos da instituição que aconteceu com a chegada de novos alunos de uma escola que havia fechado turmas de uma comunidade próxima da escola. Logo percebi a importância das mudanças tinham afetado sua vida, dentre as muitas anotações no diário de campo a entrada dos novos meninos e meninas levavam o temor de enfrentar algo novo, desafios que pudessem tirar todos de uma zona de conforto.

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- A escola tinha como alunos somente meninos e meninas do bairro. Era uma escola de brancos com poucos negros, pois a comunidade era de classe média. - Havia muito poucos negros, a escola era de brancos de uma classe média e era muito respeitada por toda a rede 5 quando a aferição dos índices de qualidade. E a comunidade abraçava mais a escola. Tínhamos pais e responsáveis sempre presentes. - Fui a primeira a ser afetada por ser na época diretora da escola. Tive assim, que conversar com todos os envolvidos (secretaria de educação, pais das duas escolas e com os funcionários da escola). Todo tempo a secretaria de educação afirmava que auxiliaria em todos os desafios, porém nunca se apresentou para nada. Ficamos sós 6 para resolver todos os problemas e vencer os obstáculos. - Teríamos que repensar a escola! Algo que assustava muito. Muitos pais também foram questionar a chegada dos novos alunos. - Eram crianças e jovens muito diferentes e em sua maioria mestiços e negros que tinham problemas sociais graves.

Os receios que a professora e outros membros do corpo escolar tiveram com a chegada dos novos alunos, que segundo eles fugiam ao modelo que por um tempo a escola seguia, podem ser compreendidos como uma aflição de todos ao se depararem com a necessidade de mudança na forma de ensinar, antes baseada em uma pedagogia curricular oficial, que afastam da escola os sonhos e se alicerçam na utopia da igualdade. Que impede a emergência de um “homem novo” que se baseia no imaginário racional educacional, um homem que possa recuperar uma dimensão simbólica e imaginante. No caso de Teresa as imagens que se apresentam em suas falas relacionadas com as mudanças que ocorreram na escola podem se ligar a sua história de vida que foi marcada pela ausência de questões étnico-raciais. Os novos alunos em sua maioria negros assustam a retiram de um modelo de vida. As mudanças que causavam estranheza e temores evidenciaram que a escola tinha em sua cultura patente um modelo instituído em um regime diurno com estrutura heróica, que tem a ordem estabelecida como um bem e caminho para o sucesso. Nos caminhos que nos levavam as conversas, logo pensamos que o texto se encaminharia para um lado fatalista e negativo sobre a presença das crianças afrodescendentes na escola. Porém, com novas conversas fomos percebendo que o olhar da professora era carregado de interesses pelo desenvolvimento de uma educação para as relações étnico-

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Rede Municipal de ensino da cidade de Juiz de Fora. No caso o termo sós demonstra que os funcionários da escola ficaram sem apoio oficial. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1270

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raciais. Voltando a fala sobre a escola ter “enegrecido”, questionamos a essa professora sobre o que mais a assustou com os novos alunos? O que assustou os membros do corpo escolar? - A maneira como foram chegando à escola, carregados com problemas que quase nunca tínhamos visto. Problemas que assustavam, porque não tínhamos sido preparados para a realidade que se apresentava. - Hoje enxergando e revendo as perspectivas na época, logo percebo que estávamos recebendo na verdade a chance de sermos novos professores. - Percebo que tivemos que mudar nossa forma de educar, isso é positivo. Estávamos em uma zona de conforto que foi rompida com a chegada dos novos alunos.

Já a Professora Ana, apesar de nos afirmar que nunca se sentiu discriminada por familiares ou nas escolas pelas quais passou, nos relata que sua mãe foi fundamental no sentido de apoiar seus estudos, pois na família já haviam muitas empregadas domésticas e a mãe não queria que a filha fosse mais uma e que ao mesmo tempo lhe falava sobre sua condição de mulher negra, como veremos na fala abaixo e a professora afirma que aí começa as suas africanidades e a sua militância. Perguntamos se a professora havia visto o conteúdo para valorização da Cultura Africana e Afro-brasileira em sua graduação e quando ela começou a perceber a importância de se trabalhar os conteúdos étnico-raciais na sala de escola. Ela disse não ter visto em sua formação e que suas africanidades começam em casa, antes de ir para aula, quando sua mãe diz: - Minha filha, você nunca vai ser considerada a primeira porque você é negra, mas a última também você não vai ser. Ela falava para mim que ser preto não era defeito, defeito era ser burro, não era nem ser ignorante não, ela dizia ser burro - Ela falava muito essa frase, essa frase não sai da minha cabeça. Nessa época tinha uns 8 a 10 anos. Foi nessa época que começou a contar história de família, da sua avó, ela começou a trabalhar isso na minha cabeça para eu ter orgulho. Valorização. - Ela dizia “eu sou analfabeta, mas você não vai ser”. E não me ensinou nada. Eu casei sem saber lavar uma panela, sem saber fazer uma comida. “Você não vai fazer nada que lembre serviço doméstico, para você não se acostumar e virar emprega doméstica. Você não vai ser empregada doméstica, não quero que você nem lave e nem passe”. - Minha mãe dizia que minha família já tinha 09 empregadas domésticas e que não queria mais uma. Aí começou a “minha africanidade”, não foi na escola.

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O trabalho da valorização se iniciou em casa, através do discurso da mãe, baseado em um imaginário coletivo de luta contra o emprego doméstico, muito comum aos familiares negros da família que não estudaram, de servir aos outros, fazer o trabalho pesado e semelhante ao das mulheres escravizadas no período escravocrata. Na conversa é percebida uma fala de resistência familiar, de luta contra um destino comum na família, ou seja, o emprego de empregada doméstica. Podemos mais uma vez ver elementos de combate, de defesa, pertencentes ao regime diurno de imagens. Também nessa fala, assim como na primeira, podemos notar a ideia de profundidade do regime noturno de imagens que remetem aos símbolos místicos e antifrásicos femininos de proteção, acolhimento, intimidade em que a mãe quer preparar a filha para a sociedade em relação a sua condição de mulher negra que se destaca profissionalmente e que mudará o ciclo de sua família, em que a maioria das mulheres são empregadas domésticas, e não tem o devido prestígio profissional. Nas narrativas das duas professoras, aparecem mulheres, mãe e irmã, familiares próximas de nossas professoras pesquisadas que ao mesmo tempo se mostram primordiais, alimentadoras e protetoras, símbolo da mãe, do regime noturno (DURAND, 2012) e também incentivam para que estudem e tenham uma profissão, mostram armas para que as professoras possam lutar e vencer os desafios que surgirão em suas vidas. Percebemos a militância da Professora Ana em algumas atitudes em sala de aula, relataremos duas situações como exemplo. A primeira quando a professora é questionada sobre trabalhar questões da Cultura Africana e Afro-brasileira com uma turma. - Vamos falar desse assunto até o final do ano?(aluno negro). - Vamos sim! (professora). - Nossa, professora, esse assunto enjoa! (aluno).

E também ao tratar de assuntos que envolvem questões de religiosidades. Certa aula, a professora deu iniciou com a história dos protetores das crianças na Turquia, que eram católicos e médicos, Cosme e Damião. E que quando houve a perseguição aos cristãos eles fugiram e nessa época, com a ajuda de Jesus, ajudavam as crianças e faziam até milagres, contou a história para exemplificar que hoje podemos escolher a nossa religião e que antes não se podia, por isso eles foram perseguidos. Após esse relato:

- Meu pai não deixa eu comer Cosme e Damião! (exclamou um aluno negro) Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1272

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-Não estou mandando você comer e nem te oferecendo bala. Estou contando uma história (professora).

Percebe-se sua militância em situações como essa em que ela quer impor seu posicionamento perante os alunos e não aproveita para argumentar e discutir questões com eles, ouvir suas dúvidas, seus questionamentos. Novamente ela apresenta elementos do regime diurno de imagens, baseado em sua razão, sua visão, a partir do momento que não houve o que o outro tem a dizer e dialoga. Atualmente a professora trabalha a temática na escola, porém sente o preconceito entre os demais profissionais por ignorarem a relevância do temaa deixarem solitária nessa jornada. Acha a atitude dos demais professores de não trabalhar a temática afro-brasileira, uma atitude muito preconceituosa. - Bom, o ano passado eu comecei a dar aula sobre esse tema. Muitas pessoas acham que é projeto, algo opcional de se trabalhar, mas é aula, conteúdo, faz parte do currículo. Isso não é projeto. - Fico até meio entristecida disso. Fico entristecida de ter um peso de um projeto de África nas costas só por eu ser negra. Fica muito pesado. As pessoas ficam esperando as crianças chegarem até o 5º ano para a Professora Ana, que é negra, trabalhar africanidades. Eu acho isso muito preconceituoso.

O que impede que as outras professoras negras e as brancas dessas escolas trabalhem com a valorização das relações étnico-raciais no cotidiano escolar e em todas as séries? Há uma lei instituída e que deve ser cumprida em todos os estabelecimentos escolares. Porém há valores instituintes por trás das culturas escolares, antigos, presentes no cotidiano e que desvalorizam as culturas diferentes da cultura Ocidental instituída e impedem que aconteça o trabalho de valorização de outras culturas, como a africana, por exemplo, baseada em valores diferenciados do Ocidente, em outros tipos de fundamentos, outras inteligências, uma cultura próxima à natureza, aconteça. A nossa cultura, ocidental e etnocêntrica, valoriza o racional, uma cultura única, a homogeneidade, uma lógica binária e quer o tempo todo separar racional e imaginário, sendo que ambos não se separam, o ser humano é constituído pelo imaginário e esse o influencia o tempo todo. Porém devido a esses valores etnocêntricos instituídos, há uma dificuldade de valorização de outras culturas, outras formas de pensar, de representar, de ver o mundo, aponto que as teorias brinquem por nossa sociedade, respeitando uma o espaço da outra e que seja permitido o convívio de todos os conhecimentos em harmonia.

Considerações Finais Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1273

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Para a pedagogia se abastecer de um pluralismo epistemológico ela deve acatar em seu espaço a dimensão simbólica que compreende um conjunto de concepções diversas do homem realizando o encontro entre a razão e a imaginação. Sendo assim, deve ocorrer uma reelaboração simbólica dos novos discursos pedagógicos, ou melhor, como Noguera (2012, p. 62) comenta, “denegrir como possibilidade de encontrar sentidos relevantes para uma educação pluriversal”, o termo denegrir aqui é entendido como possibilidade de regenerar redes de relacionamentos com as diversidades, elevando a possibilidade de acolher o sol e viver o mundo dos sonhos (ibidem, p. 67). Em termos das relações étnico-raciais, denegrir é se aproximar de um exercício intercultural e no caso da educação é trazer a pluriversalidade para o universo escolar revitalizando as “perspectivas esquecidas, problematizando os cânones, refazendo e ampliando currículos, repensando os exames e as tramas para enquadramento” (ibidem, pp.69-71) permitindo o encontro da razão com o sensível. A história de vida dessas professoras, suas famílias e experiências que tiveram influência direta na construção de suas identidades como pessoas e professoras negras e consequentemente em suas práticas pedagógicas cotidianas em suas salas de aulas, se cruzam a partir do momento que resolver ensinar de forma diferente da forma tradicional, considerando os valores renegados pela educação Ocidental. A escola não ocupou um lugar muito positivo em suas trajetórias estudantis, marcando assim suas preocupações, como professoras, no trato das relações raciais na educação, apresentando-se mais como uma tarefa de militantes que simpatizam com a causa e que ao longo dos anos tem muitas informações que não deixam de fazer parte de sua formação continuada em busca do conhecimento cotidiano. Não coube a nós indicar quais devem ser as políticas a serem implementadas durante as aulas, mas compreender as experiências das professoras, reconhecendo que suas identidades estão intimamente relacionadas com as suas vivências enquanto pessoas e professoras negras. Percebe-se, que a contribuição da Antropologia do Imaginário de Gilbert Durand adaptada ao campo educacional, nos permite buscar a análise e compreensão das falas dessas professoras, compreendendo os mitos presentes em suas narrativas e que irão influenciar suas práticas pedagógicas em sala de aula. Durante as muitas conversas e observações do dia a dia da professora Teresa, percebese que quando questionada em relação às questões étnico-raciais ela ainda passa por um

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processo de construção que pode ser compreendido como uma reconstrução da sua identidade de mulher e educadora negra. Em relação à professora Ana, percebemos uma identidade negra bem constituída. É evidente a característica da oralidade na professora, que segundo ela herdou de sua mãe e que foi sendo repassada de geração a geração. Ela afirma que se utiliza dessa oralidade com seus filhos e em sala de aula. Essa característica foi fundamental para formação de sua identidade como mulher negra e professora, que contribuirá na formação das identidades dos seus alunos. A educação baseada no paradigma Ocidental, na homogeneidade, não atende as necessidades da educação. Estamos fracassando. É necessário dar aos alunos acesso aos conhecimentos. Isso é muito importante, e para tanto, novas perspectivas são válidas. É preciso abastecer as possibilidades de uma dialógica, de um território que tornou possível o conflito nos domínios das ideias (NORONHA ALVES, 2008, p. 48) e estar aberto à conciliação de razão imaginante e uma imaginação racionalizante que permita que os indivíduos satisfizessem os dois polos de sua constituição, ou seja, o da razão e o da imaginação (ARAÚJO, 2010, p. 681).

REFERÊNCIAS BARROS, Eduardo Portanova; MOTTA, Diego Airoso. O Encontro das Águas: Breves Notas Introdutórias sobre a Pós-Modernidade. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinares em Ciências Humanas, Florianópolis, v.13, n.102, pp. 4-26, jan./jun. 2012. BOARO, Júlio César. Esculpir o Passado: Arte, Educação e Ancestralidade entre os Fons, os Iorubás e os Tchokwes. 2013. 252 f. Tese de Doutorado – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em: Acesso em: 10 mai 2015. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ______. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. 2.ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001. NOGUERA, Renato. Denegrindo a Educação: um ensaio filosófico para uma pedagogia da pluriversalidade. In Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, nº 18, 2012. Disponível em acesso em: 02 jun 2015. NORONHA ALVES, Vânia de Fátima. Os festejos do Reinado de Nossa Senhora do Rosário em Belo Horizonte/MG: práticas simbólicas e educativas. 2008. 251 f. Tese de Doutorado – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1275

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em: Acesso em: 10 abr 2015. OLIVEIRA, David de. Filosofia da Ancestralidade como Filosofia Africana: Educação e Cultura Afro-Brasileira. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. N. 18, mai.-jun. 2012, pp.28-47. OLIVEIRA, Julvan Moreira de. Africanidades e Educação: ancestralidade, identidade e oralidade no pensamento de KabengeleMunanga. 12 de março de 2010. 298 f. Tese de Doutorado – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: acesso em: 11 maio de 2015. ______. Formação de professores para a diversidade étnico-racial. Olh@res, Guarulhos, v. 3, n. 1, pp. 07-31, mai, 2015. ______. Matrizes Imaginárias e Arquetipais do Negro como Mal no Pensamento Educacional do Ocidente. In 26ª Reunião Anual da ANPED - Novo Governo. Novas Políticas? Poços de Caldas. Rio de Janeiro: ANPED, 2003, vol. 01. pp. 289-290. Disponível em: Acesso em: 03 abr 2015. OLIVEIRA, Luiz Fernando de; CANDAU, Vera Maria Ferrão. Pedagogia Decolonial e Educação Antirracista e Intercultural no Brasil. In Educação em Revista. Belo Horizonte, v. 26, n. 01, pp. 15-40, abr. 2010. OLIVEIRA, Valeska Fortes de. Formação docente: aprendizagens e significações imaginárias no espaço grupal. In Formação Docente – Revista Brasileira de Pesquisa sobre Formação de Professores, vol. 2, n. 2. Belo Horizonte: Autêntica, jan./jun. 2010. Disponível em: . Acesso em: 21 maio de 2015. PAULA CARVALHO, José Carlos de. Etnocentrismo: inconsciente, imaginário e preconceito no universo das organizações educativas. In Interface: comunicação, saúde, educação, vol. 1, nº 1. Botucatu: Fundação UNI/UNESP, janeiro a março de 1997, pp. 181-185. Disponível em: Acesso em: 10 mai 2015. SILVA, Beatriz Gonçalves e. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil. Educação. Porto Alegre, ano XXX, n. 3 (63), pp. 489-506, set./dez. 2007. SOUSA, Andréa Lisboa de. Nas Tramas das Imagens: um olhar sobre o imaginário da personagem negra na literatura infantil e juvenil. 301 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.

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O imaginário sob a perspectiva ecológica da linguagem The imaginary in the ecological perspective of language L'imaginaire dans la perspective écologique du langue Genis Frederico SCHMALTZ NETO 1 Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

Resumo Este artigo discute o possível diálogo teórico-metodológico entre a antropologia do imaginário cunhada por Gilbert Durand e a Linguística Ecossistêmica, ecolinguística praticada no Brasil, de Hildo do Couto. Diferente da postura que parte da categoria ecolinguística ‘meio-ambiente mental’ para determinar a existência do imaginário estabelecida por Elza do Couto (2013), o que se defende é o movimento que parte das estruturas míticas para se compreender a necessidade do Homem de se pertencer a um ‘meio ambiente’ social para então perpassar o meio ambiente mental. Essa perspectiva culmina na existência de um “ecossistema mítico” ou meio ambiente mítico cuja aplicabilidade se dá na análise da comunidade religiosa sincrética intitulada Vale do Amanhecer, sediada em Brasília, conhecida por sua mitologia diversificada. Palavras-chave: ecolinguística; ecossistema mítico; Vale do Amanhecer Abstract This article discusses the possible theoretical-methodological dialogue between anthropology of the imaginary coined by Gilbert Durand and linguistics ecosystemics, Ecolinguistics practiced in Brazil, of Hildo do Couto. Unlike the posture established by Elza do Couto (2013) who chose the Ecolinguistics category 'mental environment' to determine the imaginary existence, I advocate the movement of the mythic structures to understand the need for man to belong to an 'environment' social and then pervade the mental environment. This perspective culminates in the "mythical ecosystem" or mythical environment whose applicability is given in the analysis of syncretic religious community called Valley of Dawn, based in Brasilia, known for its diverse mythology. Key words: ecolinguistics; mythical ecosystem; Dawn Valley 1. Sobre perspectiva, ecologia e imaginário Desde o lançamento de Ecolinguística e imaginário, em 2012, pela linguista Elza do Couto, o núcleo de estudos do eixo Goiânia-Brasília por ela coordenado – e que já fora responsabilidade de M. T. Strôngoli – se esforça para fecundar uma metodologia que una as duas teorias encabeçadas pelo título de sua publicação. O objetivo explícito é permear o 1

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núcleo duro de Saussure com uma análise elucidativa do Homem em suas diversas interações, apoiando-se, para isso, nos postulados da imagem. Trata-se de uma tentativa que reforça o “politeísmo de valores, um policulturalismo, um período do real plural”, já desvelado por M. Maffesoli (2002:13) e a que hoje nomeamos pós-modernidade. Ora, que haveria de mais pósmoderno do que deixar teorias que alçaram seu ápice pelas discussões ambientalistas se enlaçarem em estatísticas e relatórios quantitativos da produção de sentido do Homem? Quão pertinente não seria adicionar o prefixo –eco a quaisquer reflexões traçadas nos últimos estudos que carregam o título de humanidades? A necessidade de se refletir a respeito do território físico onde nos encontramos se torna emergente a partir do instante em que a mentalidade antropocêntrica começa a se desvairar e as narrativas do homo passam a retratar a catastrófica consequência da existência do sapiens em um cenário não estável (Deval; Sessions 2004:20). Não há referência, aqui, às atualizações dos mitos do eterno retorno ou do Éden, mas ao desarraigamento dos portões do palácio de Dionísio – cujas festas se tornaram restritas e chatas – para uma intensa e diversificada devoção em seu quintal a Pã. O território simbólico, ora esgotado pelos esvaziamentos ora afortunado pelos poetas das tecnologias do imaginário, começa a se encher de narrativas mais tendenciosas à essenciar-se aos arquétipos da Grande Mãe que às imposições do Pai. É a consolidação da hipótese Gaia, de Lovelock: somos partículas, não a matéria. É preferível se enfadar do túmulo-berço para sentir que nos integramos a uma estrutura fora de nosso controle que se assumir mentor ou dominante de um sistema conhecido à medida que se o rompe. É dessa forma que Pã, o deus dos bosques e florestas cujo nome quer dizer tudo (Bulfinch, 2006:167), personifica a nova era da natureza sob e sobre o homem, a integração sobreposta à dualidade e a escolha do redobramento em vez da espada empunhada pelo braço guerreiro que simplifica as superfícies. Muda-se da parte para o todo, da estrutura para o processo, da objetividade para a epistemis, da construção para rede (Capra 1991:12). Em síntese: o cientificismo da segunda década deste século está propenso à metodologia noturna sintética, mas a ele não se restringe. Esses (re)direcionamentos possibilitam a união eficaz de uma teoria ecológica à antropologia do sensível aos modos de uma pós-modernidade, já que o estudo conjunto “da natureza e do imaginário, do universo e do homem, seria a maneira mais direta para se

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introduzir um diálogo que permita uma melhor atuação frente aos diferentes desafios de nossa época” (Pitta, 2006:10). É o pensamento pós-científico: Pensador pré-científico é aquele que toca dois objetos e declara ‘isto é frio’ sobre um e ‘isto está pelando’ sobre o outro. Pensador científico é aquele que inventa o termômetro – na escala Farhrenheit, na Réaumur ou na Celsius – e começa a medir a temperatura das coisas. Um pensador pós-científico, ao contrário, é aquele que tem dezenas de diversos termômetros e os usa profusamente, mas, ao mesmo tempo indaga sobre a origem do ‘calor’ no Universo e liga essa questão intergaláctica a dúvida sistemática sobre a habilidade da consciência humana em geral de ser objetiva, devido ao reconhecimento heisenbergiano de que observações interferem na natureza da maioria dos objetos observados. (Makkai, 2015:23).

Essa necessidade de uma multivisão proveio dos estudos de Albert Einstein, precedentes de Hendrik Lorentz, também conhecidos como a teoria de Relatividade – junto aos avanços da mecânica quântica. Ambos consideram o “todo” maior que o conjunto das partes que o compõem, ou seja, ele não pode ser montado e desmontado seguindo um padrão de funcionamento, “mas compõe uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados”, fundamentada pela filosofia ou hipótese Bootstrap de Geoffrery Chew (Capra 1995: 41). Dessa forma, nem as raízes arquetipais do imaginário podem ser suficientes para a compreensão do Homem nem pequenas amostras da maneira como ele usa sua linguagem podem ser suficientemente representativas de como ele interage e se torna ser. Resta, a nós, a opção de caminhar em seus limiares. Para ecologia, muros não existem apesar do conceito central ser o de ecossistema. Aliás, mesmo a palavra “centro” corre perigo quando usada próxima aos domínios ecológicos. Apoiando-se em Clyne (1992), o centro de qualquer investigação é determinado por quem o delimita. Seguindo esse raciocínio, o ecossistema seria delimitado por aquele que escolhe chamar de ecossistema determinada inter-reação entre um Povo que habita em um Território e compartilha uma Língua (Couto 2007:90). Conhecida também por tríade ecolinguística ou ecossistema integral da língua, trata-se de uma conexão importante para se compreender a linguagem e a interação humana por uma perspectiva 2 ecológica ou, como afirma seu Pai no Brasil, ecossistêmica. Comunidades, biosferas, pessoas – a vida se torna ecossistema.

2 Claro, o vocábulo perspectiva já revela que há diversas ecolinguísticas: a gravitacional de Calvet, a evolucionária de Mufwene, a pragmo-ecológica ou a dialética de Bang e Døør. O termo utilizado por Hildo do Couto e os ecolinguistas do imaginário, no entanto, fora inspirado no ensaio de Hans Strohner publicado no ano de 1996, intitulado ökosystemische Linguistik, linguística ecossistêmica.

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Para observá-lo, de qualquer maneira, o faz-se pela interação, seja a do organismo com o Mundo ou do organismo com o Outro. O Homem comunica-se e significa seu entremeio usando a linguagem que lhe é de alcance, manipulando e se deixando atravessar por estruturas simbólicas, proxêmicas e mesmo sinestésicas, por experiências sensoriais. Para contemplar esses movimentos de prática e produção interacional, a tríade se irrompe e revela três facetas de observação da língua – não hierarquizadas, porém interconectadas, também chamadas de meio ambiente mental, meio ambiente social e meio ambiente natural. Às semelhanças de uma matryoska cujo tamanho não se reduz ou eleva, mas apenas ecoa em medidas quando aberta a trava de madeira, esses meio ambientes reforçam que uma visão ecológica não se trata apenas de olhar a totalidade, mas observar como ela está embutida em valores maiores, evidenciar como a ciência deve ser vista como uma tentativa limitada de se dizer o real (Capra, 1991:116). Portanto, ao tomar nota do aspecto social, dos processos cognitivos ou do sistema estrutural inerente a uma língua, tem-se consciência que a abordagem de qualquer um destes é restrita se considerada a rede de totalidades.

Povo

Língua

M. A. natural

Território

M. A. mental

M. A. social

Figuras 1 Representação da tríade ecolinguística e seus meio ambientes. A tradição de Couto faz uso do triângulo escaleno enquanto acredito ser pertinente optar pelo triângulo de Borromeu; se cada um dos constituintes for retirado, todos serão livres sem que se forme um par, porém todos se esfacelarão.

O que a ecologia linguística apresenta é uma mudança de perspectiva ou uma percepção mais apurada do que se chama língua e sua relação com a ciência. Ela não se trata de uma “coisa” (Couto, 2013) meramente mecanicizada pelos demônios do inconsciente e esta, tampouco, apresenta multimetodologias suficientes para compreender como o Homem estabelece laços sígnicos e míticos com o Outro e consigo mesmo. A língua materializa as estruturas antropológicas do imaginário e capturar os traços míticos que por ela atravessam deixam a impressão de compreendê-la plenamente. Somos tolos!

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2. A necessidade do ecossistema mítico Para se posicionar nos postulados da linguística ecossistêmica, Nenoki do Couto – que já fizera algo semelhante quando se dedicava à semiótica dentro do Instituto de Letras de sua universidade para inserção do imaginário – parte da premissa de que “o imaginário pode e deve ser incluído em um dos ecossistemas da língua” (2012:11, grifos meus). No entanto, não problematiza o fato de que um dos pilares durandianos se trata do trajeto antropológico do imaginário que, por si só, já inclui uma inter-relação com o biológico, o social e o inconsciente às semelhanças da tríade ecolinguística. Questões ainda surgem quando se considera abordar regimes de imagem considerando apenas o meio ambiente social, por exemplo, o que afasta o meio ambiente mental, a quem caberiam articulações sensoriais e memórias abstratas que se tornam ou podem se tornar concretas quando viabilizadas pelo social. Não se escaparia das mesmas farpas de Durand (2002:24) direcionadas a Sartre por este se ater às descrições do funcionamento da imaginação e sua valorização para logo “coisifica-la” – o que prevalece é a impressão de que a imagem passaria a ser bloco ecossistêmico e não essência ecossistêmica em si. A linguista, no entanto, defende que “tudo está na mente do indivíduo [...] é o cérebro que constitui o lócus dos processos mentais em que se inscreve o imaginário” (Nenoki do Couto 2013:90). Apesar disso, emblematiza: “o centro do imaginário é o ecossistema mental da língua, mas o social e o natural também desempenham um papel relevante em todo o processo. O natural fornece suporte físico, natural. O social sanciona o que é produzido pelo mental” (idem, 13). Suas afirmações nos colocam diante de um impasse: do que se trataria uma visão ecológica do imaginário se a postura durandiana por si só já transparece uma perspectiva ecológica? Durand (2002:30), citando seu mentor, enfatiza que “a imaginação é dinamismo organizador” e esse mesmo dinamismo “é fator de homogeneidade na representação”, estabelecendo uma coerência simbólica dialética, i.e, os elementos estruturais do imaginário apesar de não sequenciais portam a capacidade de se interligar na produção final do sentido pretendido ou gerado pelo sermus mythicus, aos modos de uma rede simbólica. Ainda, o antropólogo continua: “é na obra de arte, nos sistemas religiosos, no sistema filosófico, nas instituições sociais que a consciência simbólica atinge o seu nível mais elevado de funcionamento” (idem 1996:81).

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Dito isso, seria pertinente compreender que apreender o imaginário por meio do meio ambiente social dentro da visão ecossistêmica seria alcançar o ápice da sua representação materializada nos rituais e práticas interativas humanas ao passo em que, apesar de possibilitar a apreensão das metodologias necessárias à análise, não representa o contato casto com o imaginário. Aliás, mesmo se pensando no meio ambiente natural onde se encontra a língua, a palavra e seus etecéteras, o mantra “mito é a palavra antes de ser escrito, mas aquém da língua natural que o traduz” (ibidem, 83) sobressalta, deixando claro que da mesma forma que no ecossistema, o imaginário não pode ter seus pares isolados se houver intenção de se compreender o homo sapiens na inteireza da poeticidade bachelardiana. Durand, ao disponibilizar o trajeto antropológico, afirma que seu funcionamento “pluraliza e singulariza as ‘culturas’ sem esquecer a ‘natureza’ biológica do homem” (ibidem, 82). Interessante observar que, no entanto, seus blocos constituintes não costumam ser dissecados de maneira metodológica, mas já assumem o status de obviedade ou essência quando postos em análise. Se comparado, o psíquico equivaleria ao m.a. mental, enquanto o biológico ao m. a. natural (a língua); as intimações do meio-social seriam equivalentes ao m.a. social e o pulsional, por si só, representaria o imaginário na existência do ecossistema. Psíquico Biológico Pulsional Intimações do meio-social

Figuras 2. Representação do trajeto antropológico do imaginário. O uso circular representa o status de constante mudança e não-estagnação de cada um de seus constituintes.

O perigo nessa junção está em reler ambas as teorias como coincidentes equivalentes entre si, e não perceber que seus aparatos viabilizam uma compreensão do sermus e do mythicus na rede simbólica que interliga a materialização na linguagem e a costura arquetipal de mitos, traços míticos e schèmes nas organizações sociais. O uso dessa junção de maneira perspicaz nos faz entender, portanto, a necessidade de pensar em um ecossistema mítico, meio ambiente mítico ou em um trajeto antropológico do imaginário que se apreende junto ao recorte social, individual, mitodologicamente cultural, em suma, que leve em conta a interação humana que provoca os símbolos e deles se resultam. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1282

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Tal qual o ecossistema integral da língua é formado pelo povo, território e a língua em si, o ecossistema mítico não é formado por um povo que compartilha mitos em um território por meio de uma língua. Ao contrário, o meio ambiente mítico coexiste aos elementos ecossistêmicos. Trata-se de uma quarta haste da tríade, porém traspassada, e não sobreposta. Sua extensão polariza os demais elementos e reagrupa o comportamento das hastes. Assim como no funcionamento original da engrenagem ecolinguística, o m.a. mítico depende da língua para materialização em sua totalidade proxêmica e sinestésica. O discurso que surge pela morfossintaxe se alinha ao Povo. Urge, por sua vez, o território simbólico: um tipo de arena comportamental que pode se tornar em areia movediça ou em lago, adequandose ao coletivo conforme exista interação com o meio, o entorno e os demais dizeres que sustentarão o mito vivenciado como extensão do mito próprio. O território simbólico é, portanto, tridimensional, polidimensional, multidimensional. Ora entrega as angústias de uma porcentagem do povo, ora revela um traço mítico que se só se apreende diacronicamente. A maneira como as imagens se comportarão dependerá, seguindo o princípio ecolinguístico, da posição em que o observador se encontra. É pelo meio ambiente e através deles que as reflexões, análises e compreensões virão. Durand (2007:25) explica que para se viver o mundo das imagens é preciso, humildemente, encher-se delas. Na mesma linha, Couto (2013:291) exclama a necessidade de se abandonar a visão de

janelas para subir à cumeeira da casa científica. É dela que se avistará a imensidão e grandeza da floresta. É dela que se perceberá a existência de outras árvores, e não apenas aquela cujo galho incomoda ao bater espalhafatosamente no vidro enquanto se tenta enxergar a grandes distâncias. É dela, também, que se perceberá tudo relacionado a tudo e nada absolutamente isolado de nada. (idem, 2007:30).

3. Considerações finais ou o imaginário sob a perspectiva ecológica da linguagem A observância da tendência de uma “ecologização do mundo” que se aplica agora à linguística não é parte restrita do Imaginário tal qual a coerência simbólica inerente ao Homem não depende de um meio-ambiente físico ou mental. As imagens do Povo atravessam o trajeto antropológico do imaginário e o pulsional/psíquico está intrínseco à língua. No território coexistem os elementos que cooperam para as intimações do meio social, e o

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triângulo ecossistêmico de Couto, assim como o percurso circular de Durand, unem-se (Schmaltz, 2014:242). Tal qual a física quântica defende a existência dos vários universos, pensar no imaginário sob a perspectiva da ecologia linguística implica em romper com a tríade concebida por Couto para uma polirrepresentação: perceber que as estruturas antropológicas do imaginário coexistem, perpassam e emendam a relação já profícua entre os meio ambientes. Surge, por isso, o ecossistema mítico – que não se prende ao ecossistema integral da língua – mas dele precisa para se materializar nas análises e compreensões do homem como todo.

Figura 3. Representação do ecossistema mítico e/ou meio ambiente mítico. A junção entre o trajeto antropológico e a tríade ecolinguística provoca uma multivisão ou uma abordagem ecológica.

Poderíamos tomar a comunidade religiosa sincrética Vale do Amanhecer, situada em Brasília, a fim de verificar a usabilidade de seu funcionamento, por exemplo. A princípio, caberia ressaltar que sua População crê-se operante de um terreno físico-ideológico-espiritual onde astros, espíritos e homens partilham um dialogismo a modos cristãos, porém perpassados por traços egípcios, africanos e indígenas, embalados em uma metodologia espírita. De certa forma, o construto religioso em si já evidencia que seu Território, apesar de facilmente mapeado em kilômetros e divisas geográficas, dá indícios de uma delimitação simbólica movediça. Sua configuração, portanto, atravessa as estruturas arquitetônicas dos templos e se interliga ao continuum mítico. De acordo com os dizeres daqueles que compõem o Povo sincrético, autointitulados jaguares e ninfas, a linguagem se materializa na escolha das vestes, das molduras, dos cantos e das sandálias. Na sinestesia da interação com o espiritual, os traços míticos se desenham ora patentes ora latentes. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1284

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Por conseguinte, o meio ambiente social passa a expor o modo como o Povo do Amanhecer se interliga e se deixa atravessar nos rituais diários de alimentação e apoio metafísico. O meio ambiente mental, enquanto isso, executa a natural sistematização de impulsos e pulsões da memória para o sistema nervoso central (e vice-versa), obedecendo ao existir dos arquétipos e derramando suas possibilidades de interação por meio do meio ambiente natural – permeado pelas metáforas e símbolos que surgem pela organização geracional da língua. Bem se poderia afirmar, também, que em um possível meio ambiente espiritual, a necessidade de pertencer se traduza pelos mitos e orientações da jornada do ser, ao estilo campbeliano. A descrição e análise de todos esses ambientes em sua riqueza, diversidade e agrupamento de mitemas, ritos e rituais, configuraria a legitimidade de um ecossistema mítico – uma visão linguisticamente ecológica da mitodologia durandiana. Ou, antropologicamente, a imaginação revista pelas lentes ecológicas de Couto. Há muito para ser feito. Claro, “embora respeite – por força do pluralismo – os caminhos que outros pesquisadores da nossa disciplina trilharam, penso que me é permitido continuar insatisfeito”. Principalmente porque propor meu objetivo, ao propor essas reflexões, “não é o de ensinar um método que todos devem seguir... mas apenas fazer ver o modo como orientei o meu” (Durand 1996:120). Isso se chama perspectiva.

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Recortes poéticos da Amazônia Ribeirinha: narrativas de quintais em Paquetá Poetic focuses of the Riverside Amazon: backyard narratives in Paquetá Découpages poétiques de l'Amazonie riveraine : récits d’arrière-cour à Paquetá

Silvia SILVA 1 Cainã MELLO² IFPA, Belém, Brasil Resumo O texto discorre acerca da pesquisa realizada nos arredores da ilha de Paquetá - região do Baixo Tocantins, com objetivo de narrar e desvelar saberes culturais daquele lugar, no que tange à tradições ancestrais dos ribeirinhos, suas narrativas orais, e, sobretudo, a forma de comunicar sua cultura. O trajeto antropológico destas comunidades é pontuado pela incessante troca simbólica entre os bens culturais imateriais, que se refletem nas produções sociais daquela população e as interferências do meio. Neste texto apresentam-se três recortes poéticos: a paisagem de paradisíaco silêncio atemporal; as cenas da festa do carnaval dos mascarados e as narrativas mitopoéticas, nas quais o modo de pensar o espaço se revela como determinante da organização social e de saberes compartilhados. Palavras-chave: Amazônia Ribeirinha; Trajeto Antropológico; Narrativas Orais; Baixo Tocantins. Abstract This work presents a research accomplished in the surroundings of the Paquetá Island - region of Baixo Tocantins, with the intend of narrating and unveiling the cultural knowledges of the place, the ancestral traditions of the riverine, their oral narratives and the form they express their culture. The anthropologic route of these communities is marked by intense symbolic exchange between the immaterial culture goods, which are reflected on the social productions of that population, and the interferences of the environment. Three poetic focuses were studied: the landscape of a timeless paradisiac silence; the scenes of the masked ones’ carnival, and the mythopoetic narratives, in which the way of thinking the environment reveals itself as determinant for social organization and shared of wisdoms. Keywords: Riverine Amazonia; Anthropologic Route; Oral Narratives; Baixo Tocantins.

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Narrar uma história é desde sempre a capacidade de compactuar com outro uma experiência, seja ela recolhida de um acontecimento vivido ou de um acontecimento imaginado, ou mesmo sonhado. Narrar partilhando experiências de grupos é, no fim das contas, o papel do pesquisador que se utiliza de metodologias etnográficas. Imbuídos desta certeza é que o grupo de cinco pesquisadores, entre os quais uma professora e quatro estudantes do curso de Licenciatura em Letras do Instituto Federal do Pará - IFPA, bolsistas do Programa de Iniciação à Docência – PIBID, empreendeu seu caminho de descobertas e exploração das águas amazônicas, nos arredores da ilha de Paquetá, região das ilhas do Baixo Tocantins, com objetivo de narrar e desvelar saberes culturais daquele lugar, no que tange à tradições ancestrais dos ribeirinhos, suas narrativas orais, e, sobretudo, a forma de comunicar sua cultura. A região das ilhas do Baixo Tocantins compreende a diversidade de pequenos territórios insulares pertencentes em sua maioria ao município de Limoeiro do Ajuru/PA, banhado pelo rio Tocantins e lugar de povos ribeirinhos, assim chamados em função da relação direta entre o rio e aqueles que dele vivem, tanto por ser seu principal meio de transporte, quanto por ser sua principal fonte de sustento e palco de uma realidade pulsante em que a natureza e o imaginário simbólico se entrelaçam na construção dos saberes coletivos. As impressões causadas ao visitante pela riqueza desse território geográfico e seu imaginário é apresentada pela pesquisadora Sabrina Arrais como uma experiência estética: “As imagens que se criam ao deslizar pelos rios da região, na tentativa de adentrar os espaços remotos e inexplorados desse lugar, são imagens que reportam ao início de algo ainda desconhecido, mirífico, e de incertezas, mas de beleza singular” (ARRAIS, 2015, p. 29-30). Localizada acerca de 110 km da capital, o complexo de ilhas das proximidades de Limoeiro do Ajuru pertencem ao 4º distrito de Janua-Coeli, situam-se entre Limoeiro do Ajuru e Cametá, no leito do rio Tocantins. Possuem uma economia baseada na pesca, especialmente em malhadeiras e agricultura, com plantações de açaí, castanha-do-pará entre outros frutos e especiarias regionais. Paquetá é uma ilha extensa, não possui praia mesmo com a maré seca. Aqueles que se aventuram caminhar pela lama correm o risco de ser ferrados por arraias. Não há ruas, As casas distantes umas das outras têm suas frentes voltadas para o rio, o acesso entre elas é dado 1288 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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por pontes improvisadas no interior da ilha, as pontes são necessárias pois a medida que a maré enche o quintal das casas é alagado. A parte da ilha que possui terra firme é utilizada pela família para plantação de mudas de açaí para ser revendido. As casas são de palafita, possuem energia elétrica, mas não há saneamento e nem coleta seletiva de lixo. A ilha possui uma escola municipal como referência para outras ilhas próximas, lá também funciona o centro comunitário de Paquetá. O rio Tocantins é o segundo maior rio totalmente brasileiro, ele faz parte do complexo sistema de rios que compõe a Bacia amazônica. Nasce em Goiás e deságua no Atlântico, mas não se pode falar em sua morte, pois desde o momento em que sua nascente se forma até o derradeiro instante em que suas águas se misturam ao Atlântico há muita vitalidade no seu percurso. No trecho do baixo Tocantins ele corre entre as ilhas, transformando-se em “estradas líquidas” por onde transitam as populações da região, atuando como facilitador dos processos de sociabilidade local, “dele dependem a vida, a morte, a fertilidade e a carência, a formação e a destruição de terras, a inundação e a seca, a circulação humana e de bens culturais e de bens simbólicos, a política e a economia. O rio está em tudo”. (LOUREIRO, 2002, p.125) O rio como extensão da própria vida do homem é a vocação do Tocantins. Esse rio passeia entre as ilhas e cria uma rede local entre suas águas, não se trata de um Tocantins e sim de vários, para além da ilha outro rio que muda de nome, passando a se chamar ora de Jutuba, ora de Paruru, mas que se trata do mesmo Tocantins. Águas barrentas que correm incessantemente, levam em seu fluxo tudo o que cai nele, faz viajar, da folha seca à semente que por descuido o pássaro deixa cair. Ao rio na fluidez dialoga o cotidiano e o mágico. Entremeia o verde refletido em seu espelho d’água, refletem os raios solares que douram criando tons esmeraldas luzes indecifráveis incididas na obscuridade dos recantos de líquidos profundos, só os mururés que imergem e emergem podem sabê-lo descrever. É via sensível onde os paus fincados alertam seus navegantes sobre os bancos de areia. É lazer, pois nesses bancos de maré seca brincam os passarinhos e as crianças que improvisam jogos de peladas nos bancos que se formam. O litoral de Limoeiro poderia ter saído de uma tela: comunidades de pescadores, palafitas de mãos dadas com suas madeiras cansadas, seguem dando aos poucos espaços a 1289 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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prédios comerciais: peixarias, restaurantes, bares e o porto da cidade extremamente movimentado. O percurso de viagem da capital Belém até Limoeiro do Ajuru por via fluvial, dura entre cinco e seis horas e nele pode-se contemplar no entorno a paisagem de matas, pequenas casas distantes umas das outras, cidades costeiras, encontros de águas de rios, enseadas, a reentrância para o grande mar. Para chegar de Limoeiro à ilha de Paquetá o transporte é a lancha movida a motor que atinge uma grande velocidade como se levantasse voo nas águas, dai sua denominação local de voadeira. Na chegada à ilha de Paquetá os pesquisadores se depararam com um novo desafio: qual a conduta metodológica a seguir diante de tal diversidade cultural que ali se apresentava? Na intenção de dar voz aos povos ribeirinhos, a opção pelo diálogo entre o pesquisador e o sujeito da pesquisa como forma de mediar o processo foi a opção adotada pelo grupo. A pesquisadora Vanderlice Santos explica como se deu esse diálogo: “Neste construto os narradores são tomados como tecelões que tecem seus textos com os fios da voz” (SANTOS, 2015, p. 13). Ela esclarece que a técnica de entrevistas de livre narrativa centrada nas narrativas orais permite ao narrador expressar-se sem o estabelecimento prévio de tempo, deixando fluir a narrativa a medida que se propicia uma atmosfera de confiança. Durante a realização das entrevistas foi seguido o seguinte procedimento: as conversas iniciaram de modo informal, inclusive com o gravador desligado, pois o momento do primeiro contato é quando o laço de maior intimidade com aquele que confessa suas memórias – ora aquecidas pelo entusiasmo, ora esfriadas pelo tormento que assola as experiências – é estabelecido. Outros narradores são indicados pelos próprios sujeitos da região, que atestam a competência (em seu sentido memorial) ou desenvoltura (performance) dos nomes citados, reconhecendo neles guardiões dos saberes da região. Em seguida, uma vez estabelecida a confiança mútua entre as partes do diálogo, os pesquisadores solicitam com gentileza a autorização para o registro das histórias narradas. A experiência de narrar implica em um mergulho no imaginário das culturas daquele que narra e daquele que ouve, “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (BENJAMIN, 1994, p.201). Contar histórias para acender memórias, a memória que, como afirma Certeau (1996), não é um relicário onde se guardam lembranças esquecidas, 1290 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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mas maresia provocada pelos movimentos de embarcações cortando as águas do rio −“as voadeiras”, como são chamadas no Baixo Tocantins − a caminho de seus destinos. O trajeto antropológico desta cultura é pontuado pela incessante troca simbólica entre os bens culturais imateriais, que se refletem nas produções sociais daquela população, e as interferências do meio. O estranhamento assevera-se pela harmonia entre Homem e Natureza, manifestada na engenhosidade da arquitetura de palafitas com suas pontes e trapiches, na condição de um estilo de vida cujo relógio é acertado pela enchente e vazante da maré e nas narrativas que contam histórias nas quais o fantástico povoa o universo mitopoético como elemento recorrente e indissociável da vida cotidiana da região. Nesse sentido, o imaginário figura como organizador do mundo sensível a partir das experiências sensoriais e apresenta-se plurificado, contrastando à perspectiva racionalista do mundo, partilhamento que sugere a sobrevivência da “aura benjaminiana”, como aparição única nas reproduções artístico culturais assentados na ritualística, que como experiência do vivido não pode ser plenamente compreendida fora de seu contexto. Os saberes e as experiências da população do Baixo Tocantins fragmentam-se com o passar do tempo, sem, contudo, perder sua essência, pois “A consciência imaginante do homem diante dessa realidade vive em estado permanentemente operatório. A relação entre o homem e a natureza se faz de modo familiar e, ao mesmo tempo, perpassada de estranhamento” (LOUREIRO, 2000, p.91). A voz poética, entretanto, ecoa nas memórias, guardadas em quintais, espaços que, como na casa de Bachelard (2008), são metaforicamente delineados na memória social como depositórios de imagens compartilhadas. As narrativas que surgem dos quintais da memória vão e voltam no tempo, são como anexos ao fundo das casas, nos quais para chegar é preciso sair para o exterior. Nos quintais de Paquetá a narrativa mais intrigante para o grupo de pesquisadores foi a imagem do Meuã. A palavra possui uma amplitude semântica, não há uma definição precisa do que de fato é o Meuã, alguns a descrevem como um encantamento provocado involuntariamente pelo homem, outros como um infortúnio decorrente da obsessão. Vanderlice assim o interpreta: “O meuã é um elemento comum a todos os encantados, mas este não é possível de se perceber, até que seja provocado, ou seja, o meuã de um encantado 1291 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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pode nunca ser revelado. É uma metamorfose, não de forma, e sim comportamental” (SANTOS, 2015, p. 39). A compreensão sobre a manifestação do Meuã difere-se das encatarias, não é ente nem ambiente, atua no real como força cósmica, de um lado o mundo sensível e suas transfigurações da realidade por meio do imaginário, do outro um etéreo que se move entre o sensível e o simbólico. Permanece em um estado de liminaridade até que seja acionado, seja na experiência, seja na vivência. Assim, esse estado distinto que não descreve a personificação da encantaria, em sua manifestação é descrita pelos moradores de Paquetá como um Meuã. Outras imagens simbólicas e formas poéticas foram identificadas no decorrer da pesquisa em Paquetá. O grupo de pesquisadores organizou os elementos das narrativas orais colhidas em recortes poéticos. Esse modo de referenciar o imaginário da ilha não se constitui em uma espécie de quebra cabeça para o entendimento do todo, mas em aproximação de um determinado fenômeno a partir das impressões do pesquisador. Como resultado destes recortes três monografias de conclusão de curso foram escritas pelos estudantes que participaram da pesquisa. Parte destes trabalhos contribuiu para as reflexões que ora se apresentam. Entre os recortes poéticos aqui apresentados estão: a paisagem de um paradisíaco silêncio atemporal, cujas formas estéticas cegam os olhos do contemplador habituado à verticalidade e ao colorido assimétrico dos edifícios da vida urbana; as cenas de rua, com ênfase na festa do carnaval das mascaradas, e as narrativas mitopoéticas, nas quais o modo de pensar o espaço se revela como determinante da organização social e dos saberes. Na região do Baixo Tocantins, a vida é regida pela temporalidade das águas, condutoras do homem ribeirinho, pois seu modo de ser e viver depende necessariamente de como o rio se comporta. Com toda sua imponência dinâmica e implacável, cabe ao homem ritmar sua vida de acordo com o rio: saber suas preamares e tepacuemas 2. Uma vez que o homem as ignora negligência a própria vida, da simples travessia do leito do rio ao horário de se armar as malhadeiras para pegar os peixes. Para além da temporalidade, ele é a via das tradições, pois lá os festejos são sempre realizados de casa em casa ao longo dos rios. Na 2

Nome dado à condição de maré Seca.

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dinâmica de produção e circulação dos bens simbólicos da cultura humana, é fundamental a noção de trajeto antropológico, compreendido por Gilbert Durand (2012) como: “incessante troca cultural que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (p.41). Tradicionalmente os ritos festivos das comunidades ribeirinhas do Baixo Tocantins das ilhas próximas a Paquetá acontecem em torno do rio. Eventos culturais como o Dia de Reis e o Carnaval reúnem os moradores das redondezas em uma das ilhas. Os participantes chegam em canoas, voadeiras ou barcos maiores. A festa representa o encontro comunitário em torno da digressão coletiva, ela extrapola o fazer cotidiano, proporcionando uma ruptura no tempo e na dança das horas, a medida que “se apodera de qualquer espaço onde possa destruir e instalar-se. A rua, os pátios, as praças, tudo serve para o encontro de pessoas fora das suas condições e do papel que desempenham em uma coletividade organizada” (DUVIGNAUD, 1983, p.68). A festa para os ribeirinhos das ilhas do Baixo Tocantins representa um encontro dos costumes tradicionais com as novas formas contemporâneas de lazer. Nesta ocasião, os sujeitos despem-se de suas obrigações e funções habituais e assumem novos papeis sociais, permitindo-se ao ecletismo de motivos e a reunião, num mesmo espaço, de imaginários antagônicos. Nesses festejos, os organizadores percorrem o rio, aportando de trapiche em trapiche, nas casas que convidaram os festeiros para se apresentarem. Os ritmos tradicionais da região: o Banguê e o Samba de Cacete são tocados nesta ocasião. Os instrumentos são comuns apesar dos ritmos serem diferentes, são produzidos com couro de veado e madeira de curumaru 3 e ipézeiro 4 O banguê tocado na ilha da Paquetá advem de antigas práticas religiosas de matriz africana oriundas dos quilombos de Cametá (Pará), juntamente com as influências insidiosas da cultura católico-cristã, resultando em um estilo musical com ambas características: os ritmos e os instrumentos estão mais próximos daqueles que se apresentam na cultura afroameríndia, enquanto os eventos tendem a uma tradição católico-cristã. Todavia, atualmente o banguê é tocado ocasionalmente em festas não religiosas. 3 4

Árvores da região Idem

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Nos dias de Reis o grupo musical “Os Bambas da Folia”, liderado por José Sousa Cordeiro, mais conhecido como Zeca, passa de casa em casa, pedindo licença e recolhendo o “rei”, uma oferta para a manutenção dos instrumentos e percussão, como também para bebidas alcoólicas consumidas pelos músicos durante a incursão. A ebriedade dos músicos acompanhados daqueles que arriscam algum passo do banguê criam um ambiente que regozija a cultura e o imaginário baixo tocantinense. O carnaval dos mascarados é organizado pelo grupo “Unidos do Jutuba” e seus tocadores de Samba de cacete nas manhãs de domingo, entre os meses de fevereiro e março. É um evento itinerante com saída na Arena de São Jorge na ilha de Bertoeja, em frente a ilha do Jutuba. E quando estão todos prontos, vem numa embarcação grande hasteando bandeiras coloridas e o estandarte do bloco. O espetáculo visual, dada a variedade de cores nos detalhes das roupas e de personagens que lembram a trilogia das barcas 5. E quando estão todos a postos na arena com seus pares, soa o apito que dá início as coreografias. Os dançarinos fazem a concentração no barracão ao lado da arena. As fantasias são inúmeras, cada um desempenha um “papel” no cortejo dançante. Há ainda personagens como o “macaco” que simplesmente não dança, apenas fica brincando com os espectadores e assustando as crianças pequenas emitindo sons guturais enquanto se aproxima com sua máscara horrenda. Quando a apresentação da arena termina, os músicos e os dançarinos seguem um roteiro de visitas. Durante o cortejo carnavalesco nas casas são tocadas quatro músicas que ainda sinalizam uma tradição que para Zeca está em vias de acabar diz que os moleques de lá não querem saber mais disso, que inclusive nenhum de seus quatro filhos tem interesse em continuar com o tradicional carnaval. Mas restam ainda aqueles que até por teimosia, considerando todas as dificuldades logísticas de se produzir esse bloco, ainda insistem em manter viva a tradição. Sai a barca da Arena São Jorge, entre o grito dos foliões dançantes e o ronco do motor da barca a entoada de despedida: É hora é hora é hora, é hora é hora é hora/ É hora vamu nós embora, é hora vamu nós embora / mulata dismacha a rede, ê mulata dismancha rede, fica triste mas não chora, arrumando a minha viola. Entre os rios e a barca que leva os foliões as matas escondem mistérios que envolvem a região, um elemento poético e sensível. 5

Obras de Gil Vincente

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O imaginário baixo tocantinense não pode ser confundido com objetos tão somente fantásticos, frutos de uma faculdade imaginativa ficcional que deve corresponder às produções culturais envoltas numa ampla carga de tradição e sentimento, essas narrativas permeiam o real e o sensível, acionados nas histórias pelo seu aspecto mitopoético. O imaginário se apresenta ali de modo difuso, informe, fluido e sem um objeto de referência preciso, manifestando-se em situações que, por serem inesperadas, parecem arbitrárias em sua constituição. Situações diárias interrompidas ou prosseguidas tendo repercussão na experiência propagada de geração em geração. Toda construção narrativa da região foi transformada com o passar do tempo, mas elas nunca desaparecem. Até que se capture o último boto encantado, até que os japiins deixem de fazer seus ninhos em frente as casas pressagiando a morte de alguém dali. As narrativas reconfiguram-se como elementos constitutivos do mito que permanece mais ou menos explícitos, em outras narrativas atualizadas, forma original, reelaboração da construção imaginária no narrado de acontecimentos entrecortados pela memória de uma voz poetificante do mundo. Como o imaginário é constituído de elementos míticos, podemos a partir de Gilbert Durand (2012, pág.62) entender por mito “um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa.” Tal definição reforça a ideia do mito enquanto estrutura dinâmica, que será modificada substancialmente na medida em que a linguagem seja ela escrita ou oral, der forma a ele, tornar-se-á lenda. A mitopoética, ou a poética do mito é a instância que possibilita uma clave compreensiva na partitura da linguagem no que tange a construção de sentidos. Antes o que se manifesta na memória de um para o outro é a linguagem, e está nela as condições necessárias as sublimações das tradições, dos costumes, dos espaços e etc. Seguidas nesse fluxo ininterrupto onde o silencio precipita as palavras que dão forma as poesias, um instante metafísico como descreve Bachelard: “Se simplesmente segue o tempo da vida, é menos do que a vida; somente pode ser mais do que a vida se imobilizar a vida, vivendo em seu lugar a dialética da alegria e dos pesares”. (BACHELARD, 1985. p. 183) 1295 Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015

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REFERÊNCIAS ARRAIS, Sabrina Augusta da Costa. O Poeta, o Rio, o (En)verso: ecos do cordel na ilha de Paquetá - Pará. 2015. 61p. Monografia de Conclusão de Curso. IFPA, Belém. BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2008 ______. O direito de sonhar. São Paulo: DIFEL, 1985. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de Fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1996. DURAND, Gilbert. As Estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2001. DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Trad. L. F. Raposo Fontenelle. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica uma poética do imaginário. In Obras Reunidas. São Paulo: Escrituras, 2000, V. 4. MELLO, Cainã de Paula. Imaginários e Poéticas de Matinta Perera. 2015. 59p. Monografia de Conclusão de Curso. IFPA, Belém. SANTOS, Vanderlici Silva dos. Sombras e Sussurros: o fantástico nas narrativas orais do Baixo Tocantins. 2015. 67p. Monografia de Conclusão de Curso. IFPA, Belém. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a voz: A “literatura” Medieval. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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A técnica de pesquisa da autoscopia: primeiras aproximações com a abordagem teóricomitodológica do imaginário 1 The research technique of austoscopy: first approximation with the theoreticalmythodology approach of the imaginary La technique de recherche de l’autoscopie: premiers rapprochements dans l’approche théorico-mythodologique de l’imaginaire Luciana Martins Teixeira LINDNER 2 UFPEL, Pelotas, Brasil

Resumo Esta pesquisa foi realizada com acadêmicos do curso de matemática e tem a intenção de aproximar a técnica da autoscopia com a abordagem teórico-mitodológica do Imaginário (DURAND, 2012). A autoscopia (FERRÉS,1996) permite uma reflexão e compreensão do sujeito, por si mesmo, sob uma perspectiva que advém do outro, como um conhecimento indireto (DURAND,1988) o objeto é reapresentado à consciência. Procurei a partir da hermenêutica instauradora à luz da mitocrítica (DURAND, 1996) analisar as falas em seus núcleos simbólicos que, em sua redundância reuniram-se em três mitemas: enfrentamento; auto(re)conhecimento e transmutamento. Estas reflexões reforçam a necessidade urgente de se remitologizar a educação, com o sentido buscar uma hermenêutica do vivido (ARAÚJO, 2014), mediadora entre a razão e imaginação pujante em uma escola que se arrisque para dar conta das transformações de nossa época. Palavras-chave: autoscopia; imaginário; educação. Abstract This research was realized with academics of mathematics course and it has the intention of approximating the autoscopy technique to the theoretical-mythodology approach of the Imaginary (DURAND, 2012). The autoscopy (FERRES, 1996) allows a reflection and understanding of the subject, by itself, from a perspective that comes from the other, as an indirect knowledge (DURAND, 1988) the object is reintroduced to consciousness. I will seek from the established hermeneutics according to the mythocriticism (DURAND, 1996) to analyze the data bringing some lines from the symbolic nuclei that, in their redundancy gathered in three mythemes: confrontation; auto(re)cognizance and transformation. From these reflections I realize the urgent necessity of remythologize education, with the sense of seeking a hermeneutics of the lived (ARAÚJO, 2014), a mediator between reason and powerful imagination in a school that risks to handle the transformations of our time. Key words: autoscopy; imaginary; education. 1

Esta pesquisa está publicada nos anais do ANPEDSUL 2014 com o título: Ritos de passagem: de acadêmico à docente o sentido da docência se constituindo, em co-autoria com a Prof. Dra. Lúcia Maria Vaz Peres. Esse artigo visa uma releitura dessa pesquisa à luz da mitodologia durandiana com um olhar de aproximação a esta proposta hermenêutica. 2 [email protected] Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1297

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Palavras iniciais A reflexão que faço neste recorte da pesquisa refere-se à aproximação da técnica da autoscopia com a abordagem teórico-mitodológica do Imaginário (DURAND, 2012), previamente farei uma contextualização do ambiente em que esta investigação aconteceu. Atuo no curso de matemática da UNIPAMPA- Campus Bagé, com a formação de professores, nas disciplinas de ensino e estágio de regência, sendo que as disciplinas de estágio estão no locus desta pesquisa e localizam-se nos últimos semestres do referido curso, como geralmente estão nos cursos de formação de professores. O tempo do estágio é um tempo em que as tessituras das relações com os acadêmicos se estreitam visto que, as orientações são individuais e com periodicidade semanal, sendo possível aproximar tanto questões de cunho metodológico para os fazeres docentes do estagiário, como também aproximar com o que tange aspectos afetivos, os quais sem esgotar, vou elencar alguns: reafirmar sua autoconfiança quanto ao seu desempenho como docente, buscar em suas histórias de vida razões que o levaram a docência e cultivar ou até mesmo construir uma autoestima que fortaleça suas razões pela profissão docente. Sob outro aspecto, o período de estágio favorece a reflexão em torno do que o acadêmico aprende na universidade e o que de fato ocorre na escola, dado que a dinamicidade deste período se caracteriza pelo trânsito intenso da universidade à escola, envolve relações do estagiário com o contexto escolar buscando compreender a realidade, se apropriar daquele ambiente, ou seja, aprender os fazeres docentes (TARDIF, 2002), neste momento se dá (...) “a aproximação da realidade” (PIMENTA, 2011, p.45). É a necessidade da construção do fazer docente do acadêmico, que se atribui sentido à atividade na escola para o estagiário, a partir de seus valores, suas crenças, de seu modo de situar-se no mundo, do significado que ser professor têm em sua vida (PIMENTA, 2011). Ainda, de acordo com a referida autora, “a identidade profissional se constrói, pois, a partir da significação social da profissão; (...) da reafirmação das práticas consagradas culturalmente e que permanecem significativas (...) do confronto entre as teorias e as práticas (...)” (p. 19). Todos estes aspectos entrelaçados vão dando colorido ao fazer docente deste novo profissional que vem se constituindo. Nessa reflexão, o acadêmico começa a vivenciar na escola o futuro ambiente de trabalho e a realidade do seu cotidiano. Ao entrelaçar teoria e prática, buscando construir sua forma de ser professor, ele se depara com dois ambientes distintos de coesão de forças que

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são: a do professor que o orienta na academia e a do professor da escola que, em alguns momentos, poderão até ser contraditórias, cabendo a ele, estagiário, em determinados momentos, escolher e quem sabe, abrir um caminho de diálogo e superação desta dicotomia. Corroboro com Peres, quando diz que os professores se constituem como expressão da realidade vivida no indivíduo e no coletivo o seu processo de formação. [...] os processos (auto) formadores também podem advir da realidade da imaginação simbólica e que seria praticamente impossível maximizar a formação do humano, dentro da relação escolar de ensino/aprendizagem, sem passar pelo reconhecimento dos símbolos e do imaginário (PERES, 2011, p.4).

Nesse sentido, estabelecer uma relação dos processos formadores e (auto)formadores no trabalho individual, no caso orientações dos estagiários e coletivo socializações com o grupo de colegas do estágio, também estiveram presentes nesta pesquisa, momentos que serão comentados com mais detalhamento no decorrer deste artigo. O acadêmico ao chegar no estágio, se encaminha para a etapa final de sua formação, começa a perceber-se numa nova etapa de vida. Esta investigação instigou a formação sobre este momento na vida do estagiário. Entendendo por meio da experiência (DURAND,1988) que a liberdade é criadora de um sentido, ela é poética de uma transcendência, mesmo no seio do assunto mais objetivo, como por exemplo, a vivência da sala de aula no estágio de regência.

Alguns aspectos teóricos O símbolo foi extinto do ocidente devido ao iconoclasmo religioso que o dominou, sendo capaz de transformar o símbolo em signo e consequentemente influenciou a cultura ocidental reforçando o paradigma cartesiano (DURAND, 1988). A Teoria do Imaginário (DURAND, 2012) se apresenta como uma cisão com o pensamento clássico ocidental, o imaginário é colocado numa posição integradora com a razão, o homem então começa a ser visto como produtor de símbolos. Esta teoria apresenta-se como um novo paradigma, que busca a regência de uma lógica complexa, integrando razão e imaginação como elementos constitutivos do homem. Gilbert Durand construiu uma obra plural, que trata da complementaridade dos opostos antagônicos, rompendo com as reduções.

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Não há um corte separando o sujeito do objeto, o imaginário da razão, o sagrado do profano... Não porque um dos termos de nossos dualismos ancestrais se reduziria ao outro, mas porque são ambos significantes de um mesmo significado – tertium datum – que os estrutura os dois (DURAND,1995,p.20).

Durand (1996) coloca o Imaginário num “entre saberes”, num espaço que acolhe várias disciplinas, buscando a reunificação destes. Para isso ele busca elementos da antropologia, sociologia, etnologia, psicanálise e psicologia geral. Ele se aproxima da antropologia, entendendo-a como a que melhor pode suportar esta tarefa, constituindo então, a sua Antropologia do Imaginário, ou seja, uma hermenêutica antropológica que procura entender o homem como produtor de imagens. Este teórico busca nas raízes inatas a representação sapiens do homem que oscila num vai e vem contínuo fazendo o movimento com as intimações variadas do meio cósmico e social e nesse movimento acontece o Trajeto Antropológico como a lei sistêmica que rege o homem. Postula a gênese recíproca do gesto pulsional ao ambiente ecológico e social, por meio deste movimento mencionado anteriormente, como sua trajetividade, ou seja, o trajeto junta o que constitui o humano a partir de sua herança biológica e social, de sua ancestralidade bio-psiquico-social. A Teoria do Imaginário tramita na concomitância entre os seguintes aspectos: gestos do corpo, ou seja, nossa motricidade primária; centros nervosos, o inconsciente e as representações simbólicas desta forma estrutura o imaginário tripartido em reflexos dominantes que são: a deglutição, o postural e o copulativo. Postula também que o imaginário é a tensão dinâmica entre duas forças bipartidas de coesão entre dois regimes de imagens, o diurno e o noturno, os quais são produzidos no trajeto antropológico e propõe a classificação isotópica das imagens, num dualismo antagonista e complementar. O diurno refere-se, por exemplo, à relação do bem contra o mal, a imaginação heroica, aliás, sua estrutura figurativa é a heroica, seu reflexo dominante é o postural, os esquemas verbais de distinção: separar /misturar, subir/cair, arquétipos substantivos luz/trevas,céu/inferno. O noturno com duas estruturas figurativas a mística, que possui um regime intimista, confusional, de união, profundo, calmo, quente como símbolo indo de encontro ao sintema o ventre, a taça, o leite, o mel, o vinho o destino não é combatido é assimilado e a

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sintética ou dramática com seu reflexo dominante copulativo com seus derivados rítmicos, seu esquema verbal de reunir, arquétipos substantivos o fogo, o germe, a árvore; como símbolo indo de encontro ao sintema a orgia, o messias, o sacrifício (DURAND,1988). A proposta teórica da tensão dinâmica entre duas forças de coesão refere-se que o dinamismo atuante é polarizado impedindo que se atribua a um ou a outro polo o papel hegemônico de fator dominante, garantindo uma relação de equilíbrio entre eles, entre os dois regimes. Quando um dos polos é inflacionado e se torna hegemônico, rompe-se a tensão polar e a relação de complementaridade e antagonismo entre eles. Os dados simbólico bipolares (ibid) são um vasto sistema de equilíbrio antagonista, no qual a imaginação simbólica aparece como sistema de forças de coesão antagonistas. As imagens simbólicas se equilibram, umas e outras, mais ou menos sutilmente, conforme a coesão das sociedades e também conforme o grau de integração dos indivíduos nos grupos. Os símbolos constelam (ibid) porque são desenvolvidos de um mesmo tema arquetipal, são variações de um arquétipo, isto significa que ao perceber as redundâncias obsessivas que irão emergir por meio dos diferentes instrumentos de produção de dados, tanto nas entrevistas individuais como nas autoscopias e nas reflexões em grupo sobre as cenas escolhidas no vídeo, a pregnância simbólica que irá emergir, ou seja, a imagem sujeita ao evento, a imagem ao ser narrada, videoscopada e refletida ela torna-se-á uma imagem simbólica, uma imagem que confere um sentido. Com a intenção de captar o valor simbólico que emergirão dos sujeitos desta pesquisa, as suas formas de ser e estar no mundo, como vindouros professores, nas suas formas de se perceberem como professores, que estão à maternidade, com possibilidade de refletirem sobre suas imagens na docência projetadas na tela, com este intento comecei a caminhada.

O começo da jornada Esta investigação fez uso dos instrumentais da etnografia, como: a observação e o uso do vídeo para narrar-se. O trabalho em grupo deu-se numa periodicidade semanal, com os atores envolvidos, visto que aconteceu dentro da disciplina de estágio de regência do curso de matemática. Entendo a necessidade de fazer uma descrição dessa ritualização, e para tanto, a etnografia forneceu os elementos. Entendo que os movimentos que fazemos no caminhar, tanto na profissão como na vida pessoal são marcados por continuidades e descontinuidades e decorrem de construções

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que são sempre temporárias. Sendo assim os trajetos vividos surgem contextualizados, tanto cultural como historicamente imbricados a uma subjetividade presente naquele espaço temporal. A ideia deve-se ao fato de acreditar que o processo de formação de um educador pode lançar mão de dispositivos que nos remetem a trajetos anteriores à educação formal, as experiências que se originam dos trajetos vividos são “fundantes” das relações e vivências futuras (PERES, 2011). Neste sentido, abri um espaço na disciplina de estágio, antes dos acadêmicos começarem a regência e com isso antes de começarem as autoscopias, em que solicitei que os estagiários buscassem em suas histórias de vida o que os levou a optarem pela docência. O passado rememorado é designado como valor de imagem. A imaginação matiza desde a origem os quadros que gostará de ver, para o manancial memorial importa elencar e trazer à tona para além dos fatos, os valores (BACHELARD,1988). Neste momento eles começaram a olhar-se como também valorizar ou reconhecer sua escolha profissional. Alguns relataram que nunca haviam pensado sobre isso, uma acadêmica trouxe um fato em que ela protagonizava o ensino em sua infância, outra mencionou uma professora que a marcou. O exercício de voltar para si, conduz a olhar para o que fez a diferença em suas vidas a ponto de tomar decisões que reconfiguraram a trajetória de seus fazeres, para Josso(2002) a transformação das narrativas de vida centradas na formação “é uma mudança de ponto de vista sobre si através de uma reapropriação de si mesmo enquanto actor, autor e leitor da sua própria vida” (p.117) (sic). Para esta autora, a transformação acontece na relação consigo mesmo e com a forma de refletir sobre si e sobre seus empenhamentos. Este exercício foi crucial porque alguns estagiários começaram a movimentar suas reflexões acerca da docência de seus si-mesmos, o que alavancou o mergulho reflexivo que fizeram nas autoscopias, o terreno foi preparado para lançarem-se nas autoscopias porque o exercício de voltar para si, ao ser instigado, cria a possibilidade de um devir, de um olhar para dentro e encontrar suas razões, encontrar seus si-mesmos. Recordando o caráter qualitativo deste estudo, apresento uma análise e discussão dos dados, fundamentalmente, descritivo. As questões que me movimentaram são as seguintes: Como o fazer docente na formação inicial de professores de Matemática, apresenta-se aos estagiários deste curso? Será que os estagiários, impulsionados por suas imagens

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(autoscopias) refletidas na narrativa procurarão assumir mais conscientemente o seu fazer docente? Nesta pesquisa, a autoscopia foi tratada como uma técnica, uma ferramenta de pesquisa e de formação que se vale da videoscopia de ações de um estagiário de matemática, numa dada situação de regência em sala de aula. Vale destacar em que o estagiário foi o protagonista da cena, este aspecto foi previamente combinado, sua ação docente na sala de aula é o que foi evidenciado no vídeo. O vídeo na sala de aula foi feito por uma variedade de pessoas, tanto pela professora regente, como por uma colega ou parente que se disponibilizou a ir à escola filmar. Combinamos dois momentos distintos de filmagem na sala de aula, com critérios aleatórios, podendo ser: uma aula com atividades em grupo e outra com atividades individuais; uma aula expositiva e outra com jogos ou outro critério que achassem interessante não encerrando nestas sugestões as possibilidades de criação dos seus vídeos. Durante todo o empírico foram videoscopadas um total de doze aulas, no estágio de regência no ensino fundamental, primeiro semestre de 2013. Eram seis acadêmicos, cada acadêmico com duas aulas, como também doze aulas no estágio de regência no ensino médio, segundo semestre do mesmo ano, novamente cada acadêmico com duas aulas. Os vídeos editados pelos acadêmicos(as) tinham uma duração de no máximo 15min para a apresentação no coletivo, o critério de escolha das cenas para edição ficou por conta de cada estagiário, solicitei que justificassem as escolhas, no momento da apresentação dos vídeos, com a intenção de trazerem sua reflexão sobre a escolha das cenas para a edição do vídeo. As apresentações destes vídeos foram gravadas em áudio e estas falas foram o escopo das narrativas para análise. Quero enfatizar que ao final do estágio de regência no ensino fundamental, o meu entendimento era de que o uso dos vídeos em sala de aula – autoscopias – estava encerrado, no entanto, no semestre seguinte no estágio de regência no ensino médio, os acadêmicos propuseram a técnica da autoscopia novamente, justificando terem aprendido muito sobre suas narrativas a partir das imagens e reflexões geradas, dessa forma aumentei a produção de dados para mais um semestre, acontecendo a produção dos dados durante todo o ano de 2013 como mencionei no parágrafo anterior. A palavra “autoscopia” tem sua origem no grego skoppós e no latim scopu, que quer dizer objetivo, finalidade. A ideia de autoscopia diz respeito a uma ação de objetivar-se, na

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qual o eu se analisa refletindo sobre a própria imagem sobre diversos pontos de vista sobre o outro que há dentro de cada um e narra-se através da imagem que o interpela, imagem dele mesmo. E esse outro que há em mim, refere-se àquilo que nós fizemos e vamos fazendo deles(outros), justamente isso e não outra coisa é o que nós somos: a alteridade daquilo que os outros fizeram e estão fazendo de nós e nós deles. A utilização do vídeo permite recuperar a consciência de si mesmo, a identidade perdida, o encontro com o próprio corpo e por intermédio dele com a personalidade como um todo. Um encontro que é indispensável para a tarefa da própria transformação (FERRÉS, 1996, p.54).

Vale ressaltar que usei uma aproximação com a orientação epistemológica durandiana, a mitodologia que emerge de uma abordagem científica que considera o elemento espiritual e coletivo na concretude da realidade imediata (MELLO, 1994), ou seja, aquilo que transcende a coisa imediata. Este teórico sistematizou uma classificação dinâmica e estrutural das imagens (DURAND, 2012), quadro isotópico das imagens que usei nesta pesquisa, propôs uma teoria que leva em conta as configurações constelares de imagens simbólicas, a partir de arquétipos (símbolos universais, sempre coletivos e não pessoais) e uma metodologia apoiada em um “método crítico do mito”, um modelo hermenêutico, a mitodologia. A abordagem mitodológica envolve duas formas de análise: a mitanálise e a mitocrítica, eu me valerei da hermenêutica da mitocrítica (DURAND,1996) para este estudo visto que a mitanálise busca apreender os grandes mitos que orientam os momentos históricos, os tipos de grupos e de relações sociais. A mitanálise é mais abrangente, estende sua análise ao contexto cultural. Este autor faz referência (ibid) ao historiador das religiões Mircea Eliade no que diz respeito a esse teórico pressentir, já a bastante tempo, um estreito parentesco da narrativa literária, englobando a as linguagens musical, cênica, pictórica, etc. com o sermo mythicus, o mito. O processo do sermo mytthicus, a repetição e a redundância, visto que “o mito repete e repete-se para impregnar, isto é, persuadir” (ibid, p.247). É a redundância (Lévi-Strauss) que assinala um mito, a possibilidade da arrumar os seus elementos (mitemas) em pacotes (enxames, constelações, etc) sincrônicos (isto é, possuidores de ressonâncias, semelhanças, de homologias, de semelhanças semânticas) ritmando obsessivamente o fio diacrônico do discurso (ibid, p.247). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1304

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A mitocrítica visa à imagem literária (ibid) veiculada através da literatura escrita ou oral de forma indireta. O discurso literário está muito próximo do discurso do mito pelo fio diacrônico na narrativa no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias e o mito se apresenta em redundâncias obsessivas. A mitocrítica tem como objetivo: [...] à semelhança de um radar ou de um submarino, proceder à compreensão e à interpretação do sentido que as filigramas míticas assumem e representam no interior do dado texto [...] O seu fim, é portanto, o de saber quais os mitos ou o mito inspirador que sugere o desenvolvimento de dada narrativa (ARAÚJO & SILVA, 1995, p.125).

A linguagem mítica é a linguagem privilegiada do Imaginário. Nesta perspectiva importará aproximar o que a Teoria do Imaginário reconhece por mito e também sua hermenêutica. O mito é entendido por Durand (2012) como um sistema dinâmico de símbolos e arquétipos que sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa. Este teórico (DURAND,1996) faz um paralelo entre a linguagem mítica e a poética, mostrando que o mito tem um caráter existencial “é a situação do indivíduo e do seu grupo no mundo que o mito tende a reforçar, ou seja, legitimar”(p.44). O mito além de revelar-se como um modo de conhecimento seu aspecto pregnante mais forte seria a sua forma de conservação que é o que distingue o conhecimento mítico do conhecimento científico. Na integração semântica dos dados, o mito vai se utilizar da metalinguagem dos símbolos. “Através de aproximações sucessivas, o mito tende a criar uma espécie de persuasão iluminante, uma espécie de intuição que nunca é satisfeita pela expressão literária”(ibid). Esta expressão é desfeita e refeita sem cessar a fim de que a imagem surja em redundâncias sincrônicas cada vez mais adequadas. O mito vive da progressão semântica da convicção e da iluminação (ibid). Araújo e Silva (1995) trazem o mito ou o símbolo como [...] a condição, primeira ou última, necessária para que a manifestação arquetipal se tornasse visível, isto é, o símbolo mítico seria a expressão das constelações arquetipais. Em suma: o mito é o Verbo transfigurado em carne ou, então, o mito é a substancialização (forma) da acção verbal (estrutura arquetipal) (p.119).

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Ainda, antes de começarmos a análise fica nítida a necessidade de compor conceitualmente, ainda que de forma incipiente, outro componente além do mito e da mitocrítica, que são os mitemas. Os mitemas são o coração do mito, como uma espessa unidade constitutiva (ibid) eles não são o conjunto da narrativa, mas sim o núcleo pregnante, ou seja, o elemento forte da narrativa, uma espécie de “átomo fundamentador do discurso mítico”. Eles permitem uma análise sincrônica, eles tendem a se intensificar à medida que se repetem. “Um mitema pode ser um motivo, um tema, um objeto, um cenário mítico, um emblema, uma situação dramática, etc” (MELLO, 1994, p.46). No caso desta investigação os mitemas foram identificados nas narrativas dos estagiários a partir dos discursos dos mesmos na socialização com o grupo de seus vídeos editados, as escolhas das cenas, da música, das imagens. Este material foi transcrito e nestas narrativas que eu analisei como míticas, emergiram os mitemas. A seguir começamos a hermenêutica à luz da mitocrítica destes discursos manifestos trazendo algumas falas a partir dos símbolos constelados em, o que chamei de núcleos simbólicos, em sua redundância reuniram-se em três mitemas neste estudo, são eles: 1º mitema:

enfrentamento

(percepção

do

rito

iniciático

na

docência);



mitema:

auto(re)conhecimento (percepção sobre a própria atitude em sala de aula) e 3º mitema: transmutamento (autoformação a partir das narrativas e da autoscopia). As falas dos acadêmicos estão sob o codinome de cores. 1º mitema: Enfrentamento – Presença do rito iniciático da docência

Fala de Verde: Meu posicionamento em relação ao estágio era de medo, de não conseguir vencer as atividades e de não ser um bom professor. Fala de Rosa: Quando comecei o estágio estava com bastante medo, de não conseguir dominar tudo. No primeiro dia eu estava muito nervosa, mas eles eram muito tranquilos e comprometidos em estudar. Quando os acadêmicos chegam ao estágio, esse momento é interpretado por mim como oriundos de uma variação arquetipal, “os símbolos constelam porque são desenvolvidos de um mesmo tema arquetipal”(DURAND, 2012, p.43) neste caso, como um rito iniciático, no qual ele, acadêmico, faz o seu rito de passagem. Além de um momento inicial, é também individual, um momento de superação interior, muitas vezes um momento de angústia, de Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1306

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medo, de purificação “medo, de não conseguir vencer as atividades”. É uma circunstância na qual o iniciado se lança no desafio, seja de uma caverna, um labirinto, como na tradição (ELIADE, 2008) como também em uma sala de aula. Segundo Araújo (2012) o tipo de iniciação que compreendem os ritos de passagem, transmutam e afetam ontológica e psicologicamente não somente o iniciado como também o seu meio social e familiar próximo. A partir da classificação isotópica das imagens, o mitema do ritual iniciático apresenta-se relacionado à estrutura heroica do regime diurno, pelos shèmes da ascenção, da superação; esse Regime tem a ver com os rituais da purificação; com a dominante postural e a tecnologia das armas, com a sociologia do soberano, do guerreiro “medo, de não conseguir dominar tudo”, ainda assim sem dominar tudo enfrentar aquele momento; dos arquétipos substantivos temos arma heroica (DURAND,1998).

2º mitema: Auto(re)conhecimento – Percepção sobre a própria atitude em sala de aula

Fala de Rosa: Constatei na autoscopia que em alguns momentos eu ficava me movimentando de maneira repetitiva, por exemplo, girando o giz na mão. Não gostei de ter tido esta atitude me parece uma atitude de insegurança. Fala de Vermelha: O vídeo me identificou muito e me deu mais certeza de que é isso que eu quero. Comparando este vídeo com o primeiro vejo muita diferença em relação a conteúdo e domínio. A autoscopia determina uma tomada de consciência, quase visceral, do que é uma comunicação autêntica no seio de um grupo (…) A tomada de consciência de si, através da autoscopia, é a melhor das motivações para o “saber” dos formandos. No processo de formação é uma etapa fundamental que suscita a reflexão sobre si, em situação, no sentido de melhorar o seu desempenho. (SILVA, 1998, p. 40)

Um aspecto a ser considerado é que a autoscopia proporciona ao estagiário uma análise introspectiva, de consciencialização de papéis “vejo muita diferença em relação a conteúdo e domínio”e comportamentos “girando o giz na mão.” Vai lhe possibilitar o confronto com a própria imagem, propondo-lhe ver-se como os outros o veem, evidenciando um elevado potencial (auto)formativo e potencializador de níveis de reflexão de índole mais crítica e emancipatória.

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O mitema do Auto(re)conhecimento apresenta-se relacionado à estrutura mística do regime noturno, relaciona-se aos schèmes da descida, da intimidade, olhar para si. “Não gostei de ter tido esta atitude me parece uma atitude de insegurança.”O estagiário ao ver-se no vídeo, percebe-se com a atitude que não o agrada e busca em seu íntimo o amadurecimento em relação aquela atitude. “Comparando este vídeo com o primeiro vejo muita diferença em relação a conteúdo e domínio; com a dominante digestiva, dos arquétipos epítetos profundo, escondido (DURAND,1998), os arquétipos são “o ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais”(DURAND,2012,p.61) o profundo e o escondido que o acadêmico não percebia e ao olhar no vídeo consegue desnudar-se, enxergar-se. 3º mitema: Transmutamento – Autoformação a partir das autoscopias Fala de Azul: As autoscopias possibilitaram uma visão mais crítica de cada um. (...) com essa proposta foi possível fazer uma análise crítica- comportamento, atitudes, vícios. O que constatei no vídeo foi que eu não era tão ríspida quanto imaginava, tinha medo de ser muito rigorosa e analisando hoje, deveria ter sido mais firme. Fala de Verde: Ao observar-me percebi que usei palavras “fortes” ressaltando o que ele não entendeu – O que tu não entendeu Fulano? No momento não percebi a maneira como tinha falado, entretanto minha intenção não era ofendê-lo nem inibi-lo.Um aspecto que me marcou fortemente e irei mudar em relação a esse ponto foi o fato de responder repentinamente, ou seja, sem pensar na forma como vou abordar o aluno que por consequência pode vir a constranger o estudante. Fala de Roxa: Achei o vídeo maravilhoso para observar e avaliar meu comportamento com os alunos e à frente da sala de aula. Percebi que nas primeiras aulas eu ficava bastante no mesmo lugar e mexia muito com as mãos, após estas observações comecei a me policiar e circular mais na aula. A compreensão da imagem projetada na tela como possibilidade de interlocução que relaciona o aspecto exterior objetivo com a visão interna subjetiva, articulando a transformação que resultam dessa interação [...] “o fato de responder repentinamente, ou seja, sem pensar na forma como vou abordar o aluno que por consequência pode vir a constranger o estudante”. Significa construir uma alteridade consigo mesmo, uma relação de superação, de compreendimento, de transformação sobre suas possibilidades de crescimento no ato educativo, na sala de aula. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1308

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Segundo Ferrés, [...]a câmara de vídeo confere uma nova feição à realidade cotidiana. Pela mágica da câmara o ordinário se transforma em extraordinário, o que fornece novas informações a respeito de uma realidade que comumente não aparece plena de sentido (FERRÉS, 1996, p. 47).

Fazendo uma relação com o rito iniciático, ao chegar ao outro lado, ao finalizar esse tempo, este começa a perceber-se, a reconhecer-se a olhar-se de outra forma, como alguém que venceu, alguém que de certa forma adentrou para uma outra etapa de vida, que enfrentou o desafio e superou-se, transformou-se, transmutou-se. Agora ele iniciado (acadêmico) é alguém mais forte, é alguém apoderado de suas habilidades, no nosso caso é alguém que se percebe como professor. Como o outro mundo [...] é o lugar da redenção, da transmutação, do renascimento, da ciência e da sabedoria, tal significa que o iniciado, quando de lá volta, é realmente outro, quer do ponto de vista existencial e ontológico, quer do ponto de vista psicológico (ARAÚJO, 2009, p.122).

Este mitema relaciona-se a estrutura dramática, também do Regime Noturno e une o 1º e o 2º Mitema, amalgamando e interelacionando os mitemas, como também as duas estruturas anteriores, Refere-se aos schèmes rítmicos e de ligação ou (re)ligação; esquemas verbais de amadurecer, progredir. “O que constatei no vídeo foi que eu não era tão ríspida quanto imaginava”. Agrupa os símbolos naturais do retorno com o sentido de retornar para transformar-se (DURAND,1998), retornar após um enfrentamento e também superar este desafio, no caso o início da docência. Essas três possibilidades de ação, esses vetores, ancoram-se na tripartição das três estruturas antropológicas, como já falei nos mitemas acima, uma relacionada ao regime diurno que leva-nos a atitudes heroicas, e às vezes demasiadamente fortes, como o rito de iniciação, a segunda relacionada ao regime noturno ajuda a amenizar os enfrentamentos da vida o autoreconhecimento, a meu entender é possível encontrar uma mútua equivalência entre os dois vetores, configurando-se aqui uma estrutura dramática que denominei como o mitema do transmutamento, de harmonização de contrários, relacionados as questões mais pertinentes de nosso ser, no caso deste estudo, refere-se às questões relacionadas ao que os estagiários vivem em seu início de jornada, seus enfrentamentos e superações. Nesta estrutura o imaginário procura harmonizar num todo coerente as contradições e diferenças mais flagrantes. A imaginação sintética, com suas faces contrastadas, já não se Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1309

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trata de um certo repouso na própria adaptabilidade, mas sim de uma energia móvel na qual a adaptação e assimilação estão em harmonioso concerto (DURAND, 2012, p.346) como mencionei na fala de uma acadêmica, a qual aproximei ao mitema do transmutamento:“Um aspecto que me marcou fortemente e irei mudar em relação a esse ponto”. Esta é a energia móvel de mudança de atitude da imaginação sintética, que assimila para se adaptar novamente e assim num eterno movimento continuo, entre a assimilação e a acomodação que a jornada docente nos chama.

Algumas considerações Esta investigação buscou aproximar a técnica da autoscopia com a abordagem teóricomitodológica do Imaginário, me utilizei das falas destes estagiários e, no meu entender emergiram os mitemas que discuti nos parágrafos acima, porém, na releitura das narrativas dos estagiários para construção deste artigo, deparei-me com uma fala que ecoou profundamente em mim e não pude deixar de trazer nestas considerações finais. Até este momento não tinha estabelecido a relação, de forma emblemática, que estabeleci com a fala desta estagiária e o ambiente escolar, assim transcrevo. Fala de Vermelha: [...] o meu estágio foi, dessa vez, uma experiência muito positiva em relação professor-aluno, a relação minha com eles foi muito positiva pra mim. No dia da despedida, chorei, fiquei muito contente e vi como valia a pena de verdade, como a aluna que me agradeceu por ela atingir uma meta que nunca tinha anteriormente conseguido – quase gabaritei a prova professora, eu nunca tinha conseguido isso, muito obrigada – e o carinho deles me agradecendo pela dedicação com eles, tudo foi lindo. A fala desta acadêmica me remete a uma questão que se faz hegemônica nas escolas que é a predominância da estrutura heroica em que a estagiária se encontra que apesar de “ter chorado muito, fica contente” e percebe que “vale a pena” a docência. Esta acadêmica sai do abismo e chega ao cume que se materializa internamente com a sua identificação com a profissão docente, ato heroico que a faz triunfar, como uma guerreira que conseguiu chegar do outro lado. O que me causou certo estranhamento e por isso me impactou profundamente é o fato deste polo heroico vir enraizado, enjoiozado desde a academia no mito diretor que rege o trabalho docente nesta acadêmica, quiçá este enraizamento venha desde os bancos escolares desta acadêmica. Isto significa, ainda que numa amostragem pequena, um pequeno sinal de Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1310

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mantença do polo heroico no mito diretor dos acadêmicos que estão formando-se professores, que estão a recém saindo da academia, em seu início de jornada. Precisamos encontrar uma razão sintética de ser que busque dialetizar o polo heroico com o polo místico da existência na docência, pois esse inflacionamento do polo heroico torna hegemônica a relação de complementaridade e antagonismo necessária para o dinamismo organizador na prática simbólica na educação (TEIXEIRA, 2003). Urge que caminhemos com o sentido da polarização com a estrutura mística visto que as escolas estão impregnadas do regime diurno, de atos heroicos e de profissionais que se percebem, muitas vezes, como titãs, sem experimentar o outro polo que remete a um olhar para dentro, ao aprofundamento de suas ações, da descida, de devanear para encontrar razões fundantes de se fazer o que se faz. Compete a nós profissionais da educação buscar a tensão dinâmica entre esses polos para a relação de complementaridade e antagonismo acontecerem de forma equilibrada no ambiente escolar. Neste sentido cabe a nós que estudamos a Teoria do Imaginário remitologizar esta escola tão heroica, revestir a educação de uma hermenêutica do vivido (ARAÚJO, 2014) como mediadora entre razão e imaginação. Uma educação que valoriza o papel dos símbolos e dos mitos, sensivelmente construída a partir da história do educando.

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Sistema IDA: uma metodologia de criação artística em diálogo com as ciências do imaginário IDA system: an artistic creation methodology in dialogue with science of imaginary Système IDA : une méthodologie de la création artistique dans le dialogue avec les sciences de l’imaginaire

Aline Fatima da Silva Costa MAGNO 1 Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Resumo Este trabalho visa apresentar aos demais pesquisadores presentes neste congresso a esfera teórico-metodológica da pesquisa estética realizada pela Neopardas Cia. D’Artê, cujas expressões materiais vêm, desde 2012, circulando nos espaços das artes (centros culturais, galerias de artes, museus, etc.) de São Paulo por meio de performances, vídeos, espetáculos de dança, obras plásticas e musicais. A Cia. traz em suas práticas criativas e de pesquisa concepções acerca da imagem, do imaginário e seus processos que dialogam com as encontradas em autores como Joseph Campbell e Carl Gustav Jung e especialmente na obra de Gilbert Durand. Palavras-chave: imaginário; arte; produção cultural, sistema IDA. Abstract This paper presents the other researchers present at this congress the theoretical and methodological sphere of aesthetic research conducted by Neopardas Cia. D'art materials whose expressions have, since 2012, circulating in the arts spaces (cultural centers, art galleries, museums, etc. .) of São Paulo through performances, videos, dance performances, visual and musical works. Cia. Incorporated to their creative practices conceptions of the image, the imaginary and its processes, found in the works of Gilbert Durand, Joseph Campbell and Carl Gustav Jung. Key words: imaginary; art; cultural production; IDA system.

Introdução e breve discurso Buscamos neste trabalho, sistematizar e compartilhar de maneira interdisciplinar – apresentando a produção artística como método de pesquisa possível – o diálogo, em

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constante construção, entre a teoria de Gilbert Durand acerca do imaginário e a pesquisa teórica e criação artística da Neopardas Cia. D’Artê, companhia residente na Cidade de São Paulo. Fundada em 2011, a Cia. vem desenvolvendo uma pesquisa estético-teórica cujo ponto de partida é o imaginário, o objetivo primeiro de um olhar atento e curioso. Assim, em meio a pesquisas e experimentos, elaboramos e desenvolvemos um modelo e uma metodologia de investigação do imaginário, que receberam respectivamente os seguintes nomes: Modelo do Imaginário e Sistema Ida.

A elaboração desse conteúdo

acontece a partir da relação construída pela Cia. entre uma teorização intuitiva, não acadêmica – porém sistemática e a obra de Gilbert Durand, especialmente o livro As Estruturas Antropológicas do Imaginário, estudado na academia. A Neopardas Cia. D’Artê é formada atualmente por Aline Magnos e Thiago Magnos. Nossa pesquisa estética a partir da investigação do imaginário tem início bem antes de 2011. Thiago é músico, ator, produtor musical e diretor da Cia., tem uma formação autodidata e desde os anos noventa vem refletindo sobre fenômenos da mente, inclusive sobre a função das imagens e o funcionamento do imaginário. Aline iniciou seus estudos nesse campo em 2010 ao produzir um TCC na Faculdade de Letras (USP) cujo título anunciava o tema Atualizações do Sagrado Feminino em Ensaio sobre a Cegueira; através do qual travou primeiro contato com autores como Mircea Eliade, Joseph Campbell, Carl Gustav Jung e Gilbert Durand. Em 2013, depois de muito estudo e pesquisa, foram escritos e publicados no blog da Cia. o Modelo do Imaginário e o Conceito Ida 2. Neste mesmo ano, Aline passa a frequentar o GEMsI (Grupo de Estudos de Mitos e Imaginário) na Faculdade de Educação da USP. Nesse grupo ocorre o contato mais aprofundado com a obra de Durand, especialmente, como dito a cima, com a leitura dAs Estruturas Antropológicas do Imaginário. Nessa contato, surge um conteúdo motivador do exercício de diálogos, aproximações e distanciamentos entre o Sistema IDA, o Modelo do Imaginário e a teoria de Durand acerca da imagem e do funcionamento do imaginário. É importante frisar que o presente texto não se pretende acadêmico, ele é, a princípio, um breve relato dos experimentos de cunho científico realizados no campo das artes pela Neopardas. Apresenta de forma sucinta como se deram os diálogos entre a produção teóricometodológica da Cia. e os fundamentos de Durand, bem como uma proposta de leitura e

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Nome do documento oficial no qual consta o Sistema Ida. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1314

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prática de sua obra. Chamamos também a atenção para a não conclusão desta pesquisa, ela está em andamento e tem um caráter aberto, dialógico.

Modelo do imaginário e sistema IDA Primeiramente é necessário chamar atenção para a palavra “modelo”, cujo significado que utilizamos aqui é aquele que o considera como um esquema teórico em matéria cientifica representativo de um comportamento de um fenômeno ou conjunto de fenômenos. O Modelo do Imaginário é uma obra estética e científica cuja realização se dá no campo da fenomenologia, ou seja, pelo estudo dos fenômenos em si mesmos, independentemente dos condicionamentos exteriores a eles, pelo estudo da consciência e dos objetos da consciência. Trata-se de uma obra estética porque é uma idealização, uma ideia envolta em aura poética e, antes de tudo, um modelo imaginado, fruto da criatividade. No momento do livro já citado em que declara já ter feito a “morfologia classificadora das estruturas do imaginário”, referindo-se aos Regimes Diurno e Noturno da Imagem, Durand apresenta a necessidade de uma “fisiologia da função do imaginário” (p.378), de uma filosofia do imaginário, e lembra o nome sugerido por Novallis para tal estudo: fantástica transcendental. O autor lembra ainda que a fenomenologia considera a imagem como “uma consciência e, portanto, como qualquer consciência é, antes de mais nada, transcendente.” (p. 22). O Modelo do Imaginário pode ser compreendido a partir de tal perspectiva. Fantástico porque “existente somente na imaginação” 3 e transcendental por se apresentar em um plano que está além do mundo sensível 4. Um “mundo” que, embora dificilmente provável em termos materiais, segundo Durand, tem um papel fundamental em nossa humanidade, pois: “(...) a alvorada de toda criação do espírito humano, teórica ou prática, é governada pela função fantástica.” (DURAND, 2002, p.397) e complementa ainda perguntando: (...) a função fantástica desempenha um papel direto na ação: não há ‘obras da imaginação’ e toda criação humana, mesmo a mais utilitária, não é sempre aureolada de alguma fantasia? (ibid., p. 397)

O Modelo do Imaginário é um estudo cuja metodologia se aproxima da descrição fenomenológica na medida em que, como esta última, considera os fenômenos neles mesmos,

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Dicionário Academia brasileira de Letras. (ibidem). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1315

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de forma independente da chamada “realidade material”. É uma afirmação do importante papel do imaginário enquanto elemento constituinte do ser humano e como possível objeto/objetivo da ciência, pois como nos alerta Durand: “O mito e o imaginário (...) manifestam-se como elementos constitutivos – e instaurativos, como julgamos ter mostrado – do comportamento específico do homo sapiens.” (p.429). O texto do Modelo do Imaginário não será transcrito aqui, será feita uma apresentação explicativa de seus elementos essenciais. O texto original está disponível no blog da Cia 5. De início o Modelo do Imaginário anuncia uma idealização da existência dividindo-a em Realidade e Imaginário. A Realidade é tudo o que existe entre matéria e vácuo, menos as ondas do Imaginário. O Imaginário é definido como “o aglomerado das criações da imaginação e demais memórias”; é formado por duas “partes”, o Imaginário Pessoal, lugar em que se encontram as imagens do indivíduo, e Imaginário Intermitente, lugar onde estão reunidas todas as imagens de todos os indivíduos. O primeiro é representado aqui imageticamente por uma bolha líquida localizada em alguma região do cérebro humano. Essa bolha traz em seu perímetro todos os sentidos (olfato, visão, etc.) reunidos; nós chamamos essa região de Perímetro da Percepção. Ela é o limite, a fronteira entre o Imaginário Pessoal e o Imaginário Intermitente. O Imaginário Intermitente é composto por tudo o que está fora desta bolha líquida. Esse “tudo” são as ondas do Imaginário, no Imaginário Intermitente estão reunidas todas as imagens já produzidas pelos humanos. Partimos do pressuposto de que as ondas, perturbações oscilantes de alguma grandeza física no espaço e periódicas no tempo 6, fazem parte da constituição de tudo o que existe, afirmamos que as imagens são compostas por conjuntos de ondas que captamos pelos sentidos. Quando esses conjuntos de ondas, que, naturalmente, estão ondulando e ecoando infinitamente, passam pelo nosso Perímetro da Percepção, todos os sentidos reunidos agem ao mesmo tempo gerando a imagem: modo de a consciência “ler o mundo”. A consciência é neste Modelo chamada de Foco de Atenção e está sempre orientado na direção de ondas amplas. A Amplitude e a Frequência são as características físicas da onda que usamos como referencia nesse Modelo: ondas com altas amplitudes estão sempre mais próximas do Foco de Atenção (consciência). As ondas menos amplas, estando distantes do Foco de Atenção, vão se tornando cada vez mais fracas, elas formam as imagens que vamos 5 6

Neopardascideartes.blogspot.com https://pt.wikipedia.org/wiki/Onda Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1316

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esquecendo com o passar do tempo. Porém, quando ocorre um encontro entre este tipo e algum outro conjunto de ondas de mesma frequência, as amplitudes se somam e essas ondas, que antes estavam baixas, esquecidas, se reaproximam do Foco de Atenção, da consciência. A esse fenômeno chamamos de “amplificação de ondas do imaginário” e ele explica o processo de lembrança. As ondas vindas da Realidade se movimentam em direção ao Imaginário Pessoal atravessam o Perímetro da Percepção e são traduzidas em imagem, continuam ecoando até chegarem em um epicentro, quando retornam na direção inversa até atravessar novamente o P.P; nesses trajetos, ao atravessar um limite de meio (líquido para o gasoso, por exemplo) as ondas vão perdendo força, amplitude; nesse movimento de ir e vir infinito da onda ela vai enfraquecendo, porém sua força nunca chega a zero. O lugar das ondas muito próximas de zero, ou seja, de baixíssimas amplitudes, chamamos de “Baixo Mar do Imaginário”. A poética para, nós nesses processos, se apresenta em situações como esta, quando ondas baixíssimas são resgatadas e amplificadas, em outras palavras, afirmamos que memórias ancestrais, imagens primordiais resurgem ou são resgatadas de tempos em tempos. O Sistema Ida é uma forma de resgatar imagens arquetípicas do Imaginário, no sentido de arquétipo que Jung nos traz, o qual seria, simplificadamente, uma imagem primordial, exemplar. O Modelo do Imaginário é uma obra descritiva desse espaço transcendental. Pois devido ao “caráter pluridimensional, portanto, ‘espacial’, do mundo simbólico” (p. 32), compreendemos o imaginário como um lugar. E, segundo o mesmo autor, não poderia ser diferente, afinal “só há intuição de imagens no seio do espaço, lugar de nossa imaginação”. Na medida em que é um espaço, ele pode ser “explorado”. Aqui chegamos ao Sistema Ida, que é um método de “exploração” desse espaço transcendental, com o objetivo de mapear o que for possível em uma vida. Na prática funciona da seguinte forma: a Ida é a incursão da consciência no Imaginário. A pessoa praticante partirá de uma Origem, alguma situação marcante como o estrondo ou tomar um gole de algum líquido repentinamente. A Origem marca o início da incursão, esta que é acompanhada pela Referência, algo repetitivo que a praticante “possa captar pelos sentidos, como uma batida sonora, por exemplo.” (Conceito Ida). Durante a incursão, além da Referência, elemento que “cria o caminho que se estende da Origem ao Término”, há o Registro, uma forma de marcar as impressões da incursão de forma

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instantânea, podendo ser a gravação com uma câmera de vídeo, ou com um gravador, a escrita, o desenho e a pintura, a dança e o movimento espontâneo. Ao final da incursão, no Término, quando a Referência chega ao fim, nos debruçamos sobre o registro para catalogar as imagens presentes ali, chamamos esse catálogo de “mapa”. É a partir desse mapa, dentre outras metodologias criativas utilizadas pela Cia., que são criadas e executadas as obras artísticas da mesma. Em outras palavras, esses mapas do imaginário, construídos por meio do uso do Sistema Ida, tornam-se a matéria prima das obras artísticas da Neopardas Cia. D’Artê, ou seja, a produção se dá a partir de um conjunto de imagens identificadas por uma pessoa em um processo meditativo de observação do próprio conteúdo imaginário. O imaginário foi certa vez definido belamente por Durand como sendo um “museu”. A Ida é um promener entre os infinitos corredores desse museu que é a um só tempo ancestral, contemporâneo e de vanguarda. À medida que fazemos Idas, vamos pouco a pouco conhecendo nosso território/conteúdo interior. Identificamos personagens, sentimentos, estéticas, diversos elementos enfim que passam a formar um acervo consciente de imagens para as quais há diversas finalidades. A Neoparda faz uso dessas imagens “coletadas” nas Idas como ponto de partida para produções artísticas nas mais diversas linguagens como artes visuais (fotografias, vídeo-dança, performances, pinturas, músicas, vestuário e esculturas). No que concerne à produção artística, Joseph Campbell também contribui para a construção da base teórica que norteia nossas práticas, nos referimos especialmente à sua obra As Máscaras de Deus - Mitologia Criativa, na qual apresenta algumas concepções sobre arte e sobre o artista que corroboram com nossa proposta estética, quando diz, a respeito dos “artistas realmente criativos do ocidente”: Tendo permitido que suas imaginações fossem despertadas pela força dos símbolos, eles seguiram os ecos de sua expressão interior – cada um abrindo um caminho próprio para o espaço do silêncio, onde os símbolos deixam de existir. E retornando então ao mundo e à sua comunidade, depois de aprenderem em suas próprias profundezas a gramática da linguagem simbólica, eles estão aptos a dar uma nova vida ao passado obsoleto, bem como aos mitos e sonhos do seu presente (...) (CAMPBELL, 2010, p. 94).

Em suma, o Modelo do Imaginário explica esse lugar e seu funcionamento; o Sistema Ida é a metodologia que desenvolvemos para investigar esse lugar e seu conteúdo: as imagens. Os artistas da Neopardas Cia. D’Artê usam essas imagens apreendidas “em suas próprias profundezas” como matéria prima para suas criações. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1318

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No filme IDA, por exemplo, temos a exemplificação da Ida quando uma personagem recebe um comando misterioso, o “dance escondida” que ao ser executado a leva para uma viagem introspectiva na qual ela encontra diversas personagens de seu imaginário com as quais forma um “grupo treinado para quebrar tabus”. A heroína passa por provações como lutas e desafios numa saga rumo ao auto conhecimento e à superação de si mesma. O vídeo dança Cenas de Ridarco & Sátiros foi elaborado a partir das imagens coletadas nas idas de dois bailarinos da Cia.. Seres ancestrais como o centauro e o satyro surgiram como personagens e toda a narrativa constante nessas idas foi transportada para a linguagem coreográfica e audiovisual. O espetáculo Ultraéden, realizado em 2014 também foi totalmente construído a partir das imagens que os artistas coletaram de seus próprios imaginários por meio do Sistema Ida. Acreditamos que vimos contribuindo, dessa forma, com a produção de novas metodologias de criação artística o que tem como conseqüência imediata o desenvolvimento da arte brasileira. Assim, entendemos também que a criação artística (intuitiva e reflexiva) desenvolvida pela Neopardas Cia. D’Artê, vem fomentar a difusão das teorias que envolvem o imaginário dando vazão ao seu enlace com outras linguagens, que não somente a científicoacadêmica.

A “não conclusão” e as reflexões sobre o tema Observar

os

processos

imaginários,

fenomenológica

e

antropologicamente,

proporcionou ao grupo um aparato teórico capaz de dialogar diretamente com essa produção estética original, que se realiza consciente e sistematicamente. A densidade da abordagem durandiana sobre o imaginário nos forneceu ferramentas científicas suficientemente poéticas para as finalidades artísticas as quais almejamos. A imagem, diz o autor em dado momento do livro “é veículo não semiológico de alegria criadora”. Assim reafirmamos que nossa pesquisa tem sido contínua, o que inclui o estudo detido dos textos durandianos. Não há outra conclusão senão a de que a imagem é terreno fértil para as artes, todos sabem. O que a Neopardas Cia. D’Artê traz como contribuição original é exatamente um formato original de apreensão do Imaginário e um sistema próprio de observar, analisar e catalogar as imagens que existem ali, num movimento ondulatório eterno e, pela lógica de Durand, regido pelos Regimes Diurno e Noturno da Imagem.

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Acreditamos que as ciências do imaginário têm ainda muito por fazer, embora seja uma área do conhecimento que vê seu desenvolvimento a partir da primeira metade do século XX. Os grupos de estudos espalhados pelo mundo e o CRI2I (e toda herança científica deixada por Durand e seus antecessores, como Gaston Bachelard) tem um papel crucial no processo de difusão, preservação e produção de conhecimento dentro das ciências do imaginário. A Neopardas traz o anseio de contribuir de alguma forma para esses estudos, pois cremos fortemente no potencial criativo da investigação do imaginário, estudo esse que pode ajudar-nos muito nesse momento pelo qual passamos, um momento de transição de paradigma cujos valores éticos e estéticos podem ser descobertos, vivenciados e transformados a partir da investigação poética e sistemática desse terreno ainda pouco conhecido do espírito humano.

REFERÊNCIAS BECHARA, Evanildo C.(org.). Dicionário Escolar da Academia Brasileira de Letras. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 2011. CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: Mitologia Criativa. São Paulo: Palas Athena, 2010. DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. – 3ª Ed. – São Paulo : Martins Fontes, 2002. JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. 2.ed. especial. - Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008. MAGNO, Thiago da Silva. Modelo do Imaginário. São Paulo: Neopardas Cia. D’Artê : 2013. Disponível em neopardasciadeartes.blogspot.com ______. Conceito Ida. São Paulo: Neopardas Cia. D’Artê : 2013. Disponível em neopardasciadeartes.blogspot.com FILMOGRAFIA IDA. Direção de Pawel Pawlikowski. Polônia: DCP, 2013. 28 min. Cor. CENAS de Ridarco & Sátiros. Direção de Sandro Caje. Brasil, 2015. 10’15 min. Cor. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-A3-aspT-I0

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Renovação da Casa de Reza (opy’i) em aldeias GuaraniMbya: imaginário e xamanismo Renovation of the House of Prayers (opy) in Guarani Mbya villages: imaginary and shamanism Aménagement de la Maison de Priere (opy'i) dans les villages Mbya Guarani : imaginaire et chamanisme Marília G.G. GODOY 1 Alzira L.A. CAMPOS 2 RESUMO Os programas culturais promovidos pela Secretaria Estadual de Cultura (SP), mediante o Edital ProAC nº 28/2014, possibilitaram a realização de iniciativas culturais de líderes religiosos Guarani Mbya com relação à construção e renovação da Casa de Reza (opy’i) em seus meios comunitários. A atuação xamânica de três lideranças retrata-se na contextualização dos valores simbólicos ligados às concepções míticas e suas expressões como prática social. O compromisso com as realizações rituais e o empenho na construção e renovação das opy’i têm as suas origens comprometidas com o imaginário mítico, configurando um mundo de experiências subjetivas anteriores às ações. As opy’i retratam-se como um locus do imaginário coletivo Guarani Mbya e mobilizam, de forma prática e renovadora, as vivências míticas também expressivas dos rituais e cerimoniais tradicionais. Palavras-chave: xamanismo; Guarani Mbya; imaginário; Casa de Reza; programa cultural. ABSTRACT The cultural programs promoted by the State's Secretary of Culture (SP), according to the ProAC nº 28/2014, made possible the realization of cultural initiatives of Guarani Mbya religious leaders, regarding the construction and renovation of the House Of Prayers (opy'i), in its communal environments. The shamanic practices of the leaderships is portrayed in the contextualization of the symbolic values linked to the mythical conceptions and its expressions as social practices. The commitment to the ritual practices and the effort put in the construction and renovation of the opy'i have its origins committed to the mythical imaginary, configuring a world of subjective experiences, followed by the actions. The opy'i are portrayed as a locus of the Guarani Mbya collective imaginary and mobilize, in a practical and innovating way, the mythical experiences, also expressed in the rituals and traditional ceremonies. Key-words: Shamanism; Guarani Mbya; Imaginary; House of Prayers; cultural program. Introdução 1

Mestrado em Antropologia Social (USP-SP), doutorado em Psicologia Social (PUC-SP). Docente do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA - SP). Membro do Grupo de Pesquisa Arte Cultura e Imaginário e do CERU (USP-SP) e-mail: [email protected].. 2 Mestre e Doutora em História Social (USP-SP). Livre-docente em Metodologia da História (UNESP-SP). Docente Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro (UNISA-SP) e-mail: [email protected]. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1321

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A experiência etnográfica aqui relatada tem como foco iniciativas de chefes religiosos Guarani Mbya, considerados xamãs no universo simbólico e étnico ao qual pertencem. Entende-se um trabalho com o objetivo de realizar projetos por eles reivindicados e os quais têm como foco a construção, reconstrução e renovação da Casa de Reza, entre eles designada opy ou opy’i no seu diminutivo. Os projetos mobilizaram um público ligado de forma comunitária, às vezes mediante laços de parentescos, com o líder proponente, em suas respectivas aldeias. Essa demanda inseriu-se nas propostas oferecidas pelo Edital ProAC (no28/2014) da SEC (SP). Três projetos encaminhados para o processo seletivo, considerados como um meio de defesa da continuidade e preservação da cultura indígena, foram escolhidos, constando entre as dez vagas preenchidas. Definiu-se um prêmio de R$20.000,00 para a realização de cada um deles. A descrição seguinte possibilita uma inicial visibilidade dos temas e considerações sobre os conteúdos dos projetos: * Projeto 1: Fortalecimento e revitalização das tradições religiosas Guarani Mbya (Aldeia Boa Vista – Ubatuba – SP). Compreende a iniciativa do líder religioso Maurício Santos em reformar a Casa de Reza da Aldeia Boa Vista (Ubatuba). Trata-se de uma reforma que foi realizada por uma equipe de líderes também comprometidos com o desempenho cultural religioso. A aldeia Boa Vista possui uma comunidade de 48 famílias (aproximadamente 250 membros) e situa-se no litoral norte de São Paulo, próxima à divisa com o Rio de Janeiro. * Projeto 2: Ara Pyau Porã (Feliz Ano Novo): tempo e renovação entre os Guarani Mbya da Aldeia do R. Silveira. * Projeto 3: Resgate da Palmeira Guarikanga e Construção da cobertura da Casa e Reza (opy). Os projetos dois e três compreendem iniciativas de líderes religiosos residentes em áreas particularizadas onde residem suas famílias extensas. Ambos têm por objetivo projetar o ambiente religioso de forma original e propõem distinções representativas das concepções religiosas. Estão situados na Aldeia do R. Silveira que possui uma média de 500 habitantes. Essa aldeia compreende um povoamento que adquiriu uma dimensão histórica central nos últimos 50 anos, entre as várias aldeias mbya do litoral de São Paulo. O foco principal dessa tendência e o seu magnetismo expressivo é decorrente do grande desempenho religioso principalmente com relação à realização dos rituais e curas terapêuticas. Essas competências

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construíram-se sob a liderança de um dos mais famosos xamãs da região yvyapyre: Jijoko. Há três anos o ambiente religioso vem sendo desafiado com o falecimento desse líder. Conhecendo a vocação religiosa que impregna a vida cultural dos Guarani Mbya, cujos ensinamentos são regidos pela palavra-alma — “a palavra é tudo, e tudo para eles é a palavra” (Melià, 1989, p. 306), procura-se enfocar a presença do mito nas iniciativas descritas, levando-se em conta a situação étnica das ocupações e o universo cultural. As representações míticas surgem comprometidas com a vida cerimonial e religiosa na Casa de Reza. Pode-se refletir sobre a presença do tema do imaginário na forma em que ele irrompe como imaginário mítico “entendido quer como o impulso para a criação ou expressão de imagens míticas, quer como o corpo tradicional e sempre renovado dessas imagens” (Borges, Paulo, A. E., 2003, p.45- 46). Mediante histórias orais descritas pelos participantes e proponentes do projeto, origina-se um campo de narrativas que remetem para uma vivência anterior a sua objetivação como mito. Visualiza-se “uma experiência plena de integração no mundo que compromete todas as potências do homem” (ib: p.49), permitindo que se compreenda como os Guarani pensam e interpretam o mundo, conferindo-lhe significado e lhe acrescentando emoção. É mais um capítulo da História das Mentalidades, de tendência etnográfica, que estuda o modo como as pessoas comuns entendem o mundo, como organizam a realidade em suas mentes e a expressam em seu cotidiano, criando a sua cosmologia (Darton, Robert, 1986, pp. XIII-XIV).

1. Representatividade demográfica e étnica das aldeias indígenas no Estado de São Paulo. No Brasil os Guarani Mbya estão presentes no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Tocantins e Pará. No estado de São Paulo constata-se a presença de 19 aldeias (sendo três mistas com a etnia Nhandeva) com uma população de 3.177 índios (conforme FUNAI & ISA, fevereiro de 2013). 3 A diversidade étnica das aldeias paulistas abrangem as etnias Terena, Nandeva (TupiGuarani, Xiripá), Guarani Mbya, Kaingang, Fulni-ô, Atikum. No total eles compreendem 5.774 (conforme FUNAI & ISA, fevereiro de 2013).

3

A população geral Guarani é estimada em cerca de 98 mil, sendo que no Brasil somam perto de 51.000 (em 2008) conforme FUNASA/FUNAI (disponíveis em www.pib.sócioambiental.org/pt/c/quadro - geral acessado em 23 de fevereiro de 2012). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1323

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Nota-se que a presença étnica dos Mbya abrange quase 80% da população indígena do Estado. Torna-se também evidente a concentração dos núcleos de povoamento desse povo na área litorânea do Estado de São Paulo.

Imagem 1

É preciso esclarecer que esta concentração dos Mbya tem suas raízes na temática da sua mobilidade em direção ao leste, ao litoral. Essa definição ocorre em registros historiográficos expressivos como “guarani modernos” (Melià, 1989; Godoy, 2003). Tal denominação é procedente pela situação espacial e cultural que manteve os subgrupos guaranis de forma isolada, como moradores do mato designados de forma genérica Kaingua (Melià, 1987, p. 37). O seu isolamento permaneceu até a segunda metade do séc. XVIII, quando viviam separados do domínio colonial (ib: p.24). Uma estratégia de reguaranização foi mencionada por Cadogan (1959), Melià (1989, 1981), indicando populações indígenas que, após terem obtido conhecimentos dos jesuítas, retornaram às suas tradições e práticas nativas. Há um certo consenso entre os autores acima citados em reconhecer os antigos Kaingua como sendo os Mbya. Consta que eles seriam os mais avessos aos ensinamentos dos jesuítas (Melià ib:36, Godoy, ib). Não vamos esquecer que as pendências com um passado Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1324

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missioneiro surgem com frequência na bibliografia especializada no assunto (Shapiro, 1987; Melià, 1981; Schaden, 1974; Laraia, 1986). Os temas de estudo concernentes aos Guarani Mbya, estabelecidos nas aldeias do litoral norte do estado de São Paulo, retratam o radicalismo cultural mencionado. Os autores registram a migração e mobilidade social dos Guarani Mbya como provenientes do sul do Brasil, da Argentina e do Paraguai. As levas migratórias ocorridas nos fins do século XIX e século XX estão ligadas a fatores históricos decorrentes das influências da sociedade envolvente. Entretanto, o motivo primordial decorre da concepção mítica desse povo, ligada à Serra do Mar, ao litoral e à região marítima, como o locus sagrado da Terra sem Males (Yvy Mara E’ỹ) ou Terra Sagrada (Yvyju), também representada pelo termo yvyapy (extremidade da terra), significando término, extremo, limite. Nesses locais, um sentido de efervescência invade os habitantes e eles se consideram eles fortalecidos e em contacto direto com as divindades. Estas se alojam nos seus “altares” designados amba, situados no complexo geográfico descrito (ver detalhes em Ladeira, 1992). Pertencem também a esse ideário mítico a flora, a fauna, a hidrografia, das quais surgem objetos diversos da originalidade em questão (pedras, cascalhos, etc.). O modo de vida designado nhandereko, torna-se viável pela construção das aldeias, designadas tekoa (literalmente significa “local dos costumes”) no ambiente mba’eypy. Esse termo tem o sentido de ser originário e significa também mito (Dooley, 1982:280). Os estudos realizados a respeito aconselham que se devem evitar interpretações de caráter essencialista sobre o tema da mobilidade e a busca da Terra Sem Males, priorizandose, desde os anos 80 do século passado, as condições históricas ligadas à sociedade englobante. As aldeias Boa Vista do Sertão do Promirim (Ubatuba) e Ribeirão Silveira (São Sebastião) foram demarcadas nos anos de 1980, configurando uma situação espacial definida que significou um ganho diante do sentido competitivo que invade vários alojamentos. O padrão de dispersão próprio dos Mbya marca a organização social no interior das aldeias. O padrão adotado é o de ter, em cada localidade, uma família extensa liderada politicamente por uma figura masculina que a representa e a dirige. Esse aspecto é importante porque assinala que cada liderança procurará viver em um local distinto, com sua família extensa (Garlet & Assis, 2004, p.49).

2. Sobre a Casa de Reza (opy): universo simbólico, práticas míticas

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O enfoque central da cultura Mbya consiste em entender a sua cosmologia, o caráter espiritual que rege a concepção da pessoa humana e sua orientação para um aperfeiçoamento pessoal e cultural. De forma evidente, trata-se de uma realidade comprometida com uma moldura heroica peculiar, afirmando-se também que todo Guarani é um profeta e um poeta. (Melià 1989, p. 313). Do ponto de vista cosmológico, a obra de Nimuendaju (1914, 1987) foi responsável pela inauguração de um mito fundador do conhecimento sobre concepções cataclismológicas desse povo (Villar & Combès, 2013). O foco destacado está fundamentado na existência da Terra Sem Males (Yvy Mara E’ ỹ). Esse foco norteia o destino daqueles que seguiram os valores responsáveis pela sobrevivência, de modo efetivo e exemplar e também indica um desejo contínuo de procura e aproximações diversas. Dessa forma, como um movimento de “relações” com o divino, definem-se as vivências religiosas. Elas ganham sentido pela palavra profética e pelas formas de canto e dança. Os três elementos constitutivos da religião Guarani, conforme foram registrados inicialmente por Nimuendaju (ib), destacam-se a importância da palavra em toda a vivência religiosa, o mito da criação e da destruição do mundo, como fundamento das crenças, e a dança-oração, que é o grande sacramento ritual pelo qual se expressam com especial intensidade (Nimuendajú, ib; Melià, ib: 304). O sentido espiritual da pessoa humana é considerado pela presença do termo nhê’e que significa: 1. fala, 2. som, 3. alma. (Dooley, 1982, p.28). A condição humana inicia-se pela formação sagrada e original quando a alma-palavra (ayvuouñe’e) está identificada pelo nome-alma (ery) o qual guia os seres humanos através da sua revelação. Ocorre por ocasião do batismo e exige um empenho de convencimento e devoção dos xamãs, dos xeramoĩcomo são designados, significando “nosso avô”. Quando se pensa no termo ery, leva-se em conta toda a vida do ser humano como um elo com as divindades que exprimem o nome (ver Godoy, ib, Ladeira, ib). Observa-se com frequência o dom que surge dessa condição subjetiva e que exige objetividade, através do xamanismo. “Aexaukaxeramoĩpe” (vou me demonstrar, deixar olhar-me ao xamã), ouve-se com frequência na relação saúde-doença, que se impõe na eficácia ery (nome) como uma força vital controlada no meio coletivo. Pertence a essa contextualização uma frequente consideração da exigência do equilíbrio aqui/acolá “erymo’ã a”, aquilo que se mantém em pé, o fluir do dizer (Cadogan, 1959,p . 40-42).

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Pode-se ter uma visão dessas afirmações no texto seguinte. Essa palavra exemplar se manifesta, segundo vários autores, no mito, considerado a experiência mais direta, autêntica, imediata e originária da realidade (Eliade, 1972; Heidegger, 1960; Ricouer, 1975, 1978). Entre os Guarani, o mito aparece em rezas, hinos e relatos, aprendidos de líderes religiosos que no passado podem ter participado mística e excepcionalmente da palavra, de um ato de contemplação (hechakára). Contudo, esse ato de contemplação jamais pode suplantar a excelência da palavra entre os Guarani. Parafraseando Heidegger, pode-se dizer que a contemplação enquanto palavra mostrada, presenciada, substantiva – (Zeige) é um estar a caminho ( Unterwegs) para a linguagem (Sprache). Depois de contemplar o grande Falar (Sagen original), anterior à fala dos mortais, o imperativo é dizer (sagen), pois no dizer original é que surgem todos os outros dizeres e em todos eles há sempre um ato passivo, um “deixar-se mostrar” que precede o dizer e o mostrar humanos (Heidegger, 1960). É certo que só falar humano não seria possível extrair estas verdades. Elas procedem do fundamento da linguagem humana: substância da divindade, porção da sabedoria criadora (Cadogan, 1959, p. 19). Palavra: a justa medida para os mortais e os imortais (H. Clastres, 1978, p.88-9). Ayvu: substância simultânea do divino e do humano. E por poderem apenas viver conforme sua própria substância, os seres humanos não tem outra alternativa do que conforma-se incessantemente à relação original que os sujeita à divindade (P. CLASTRES, 1990, p. 27),...(CHAMORRO, 1998, p. 51).

Essas considerações ressaltam como o fortalecimento da pessoa e sua realização implicam a forma como a vida tem continuidade e como é preciso dispor do esforço e reversibilidade do tekoaxy, significando o modo de ser imperfeito próprio da atualidade e representativo da situação de envolvimento com os juruá (termo utilizado para designar os brancos). Ao lado das caminhadas (oguataa), que foram estudadas como práticas renovadoras da sobrevivência, destaca-se a busca contínua da Terra Sem Males, notando-se o empenho que os mitos exigem como práticas sociais. Litaiff (2004, p.16-17) considera o sentido prático dos mitos como forma de orientação e justificação das práticas sociais, “mito e práxis” (ib). O pensamento e as práticas guarani sugerem a perspectiva holística, que prescreve que, para ter acesso à Terra Sem Males, é necessário estar vivo e pertencer a uma comunidade “guarani”. Há, ademais, um sentido próprio de uma relação ecológica com o meio ambiente (ib). A Casa de Reza, ao fazer circular mitos da comunidade e ensinar o Guarani a viver conforme o nhandereko, define-se como um centro de uma comunicação terrena/extra terrena. Os rituais (canto e dança, xamanismo) que aí são realizados implicam performances e especializações, com destaques para as lideranças “consagradas”. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1327

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Originam-se nos discursos diários frases expressivas ligadas ao termo jaa (vamos!), que se complementam com os termos jaajajeroky (vamos dançar), jaajaporaei(vamos cantar),jaajapytaopy’ire (vamos “ficar” na Casa de Reza), e outros como monhendu (fazer ouvir), nhembo’e (aprender), poraei (cantar), mbojerovia(fazer crer). Os verbos indicam o sentido centrípeto da opy na definição do cotidiano. Assim, a educação decorre dessas iniciativas, ligadas ao viver ao lado das divindades pelos rituais sagrados. Estes, por sua vez, compreendem os rituais de batismo e de consagração da erva mate, com a ordenação do ciclo ritual. Entretanto, são nos encontros cotidianos que ocorrem os rituais rotineiros, que dão um sentido pleno de continuidade. O caráter sagrado e intrínseco da opy surge em todas as comunidades e às vezes concretiza-se como espaço relativamente informal nas próprias moradias. Tem como foco o amba, traduzido como altar, que expressa o locus interior dianteiro, situado na direção leste (nhanderenondere), como a direção das moradias celestes. É nessa área que incide, de forma expressiva, o ambiente sagrado, representativo de uma dramatização conectada com o sobrenatural. Nas palavras dos devotos, os jurua (os brancos) não conseguem entender o que se passa no amba, “eles não enxergam”. Essa situação relembra a afirmação de que:“toda a vida mental do guarani converge para o Além... Seu ideal de cultura é a vivência mística da divindade, que não depende das qualidades éticas do indivíduo, mas da disposição espiritual de ouvir a voz da revelação. Essa atitude e esse ideal são os que determinam a personalidade” (Schaden, 1954, p. 248-9). Com frequência ouve-se que as opy’i (Casa de Reza) podem-se transformar em veículos de transporte para a Terra Sagrada, com o empenho dos grandes xamãs. Madrugada a fora, o clima interior ligado ao som (endu), à fumaça (ataxĩ) ao uso do cachimbo (petỹgua), do fumo (petỹ) permite a origem de um estado contextualizado como mbaraete(forte) ou nemomburu(esforçar-se). Utopia e realidade desenvolvem-se nessa contextualização, encontrando-se a orientação diária da movimentação da terra frente à divindade solar (Kuaray, sol), presentes na obra de um conhecido antropólogo, intitulada Os Filhos do Sol... (Littaif, ib). Na sociocosmologia guarani a abordagem dos princípios de organização social e de dimensão ritualizada originam-se na opy’icomo um centro da aldeia ou dos grupos patrilocais, que se constituem nas comunidades de parentelas. A construção das casas de rezas dos projetos mencionados são reconhecidas como

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iniciativas de uma profecia e do desejo de encaminhar a liderança a se expressar por meio do xamanismo. O termo xamanismo manifesta-se pelas definições: opytava’e (aqueles que fumam) e moãtaxĩva’e(aqueles que curam). Compreende-se que O cosmos guarani se apresenta mais como uma plataforma circular, cujas referências principais são os pontos cardeais este e oeste. Os deuses se situam em função desses pontos cardeais, neles se revelam preferentemente, e a partir deles atuam. A orientação leste-oeste não é apenas uma referência solar; outros fenômenos meteorológicos como trovões, relâmpagos, chuva, vento, têm sua origem num lugar desse espaço. O trovão, personificado, geralmente em Tupã, procede do ocidente, e vai em direção ao oriente, manifestado no fulgor do relâmpago (MELIÀ, ib: p.327).

3. O edital ProAC da Secretaria Estadual de Cultura (SP) A Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, comprometida com uma política pública de inclusão cultural, implementou medidas de ampliação do acesso aos bens culturais, à descentralização das atividades, ao fomento da produção cultural e à valorização do patrimônio cultural paulista. Dessas medidas, destaca-se o Programa de Ação Cultural – ProAC, criado por meio da Lei Estadual 12.268/06, incumbido de desenvolver ações para promover projetos de preservação das manifestações culturais, criandonovos espaços de defesa do patrimônio histórico e aumentando as formas de circulação de bens culturais no Estado de São Paulo. A modalidade “Editais”promove, financeiramente, projetos artísticos, selecionados por meio de editais específicos, que visam a contemplar expressões culturais, tais como teatro, dança, música, literatura, circo, artes cênicas para crianças, festivais de arte, audiovisual, museus, diversidade e artes visuais. Incluem-se editais específicos para a continuidade cultural de comunidades tradicionais (afro-descendentes, caiçaras, caipiras, indígenas), que são lançados anualmente.Os editais funcionam como concursos, nos quais os projetos inscritos são avaliados por uma comissão composta por especialistas do segmento escolhido. A verba é oriunda de recursos próprios da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. No período de 2007 até 2014 (oito anos), foram contemplados 82 projetos do ProAC Indígena, com uma verba de R$ 1.826.000,00 4. A partir dos títulos de alguns projetos selecionados, pode-se esclarecer como se originam os temas representativos da cultura indígena.

4

Esses dados, resultam de registros publicados nos editais da secretaria estadual de cultura (SP), de 2007

até 2014. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1329

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- Penacho Indígena Pankararé (Etnia Pankararé, residente na área urbana de SP). Prêmio R$18.000,00. - Loja de Artesanato Indígena Fulni-ô (Etnia Fulnio, residente na área urbana de SP). Prêmio R$18.000,00. - Petygua – Cachimbo Guarani – Prêmio R$18.000,00 (Etnia Mbya). - Mbaraetenhandereko. Fortalecer a cultura guarani R$18.000,00 (Etnia Mbya). - KyringueNhembovy’a – os guardiões guarani (CD). Prêmio R$18.000,00 (Etnia Mbya). - NhandeKuerynhembo’ea: Nossas Aprendizagens, Educação Tradicional Guarani Prêmio R$40.000,00 (Etnia Mbya). Esses títulos sugerem a dimensão educacional tradicional dos projetos, além do sentido de interculturalidade, características que permitem supor que venham a se tornar um produto cultural expressivo de linguagem e de letramento moderno (ver Canclini, 2008). 4. Esclarecimentos sobre os projetos. Projeto 1 – Fortalecimento e revitalização das tradições religiosas Guarani Mbya (Aldeia Boa Vista – Ubatuba – SP). Construiu-se o projeto a partir das palavras do proponente líder religioso e político da Aldeia de Ubatuba Altino dos Santos (Wera), que retratou o sentido central da opy em sua história na aldeia, desde os anos 90 do século XX. Esse passado destacou a emersão de muitos rezadores e rezadoras, enfatizando que as cerimônias de batismo puderam fazer a aldeia “crescer”. Nesse caso (diferente dos outros), trata-se de um centro da aldeia e com uma grande representação nos cerimoniais, que mobilizam populações mais distantes. Dado o estado precário da opy, havia um esvaziamento do público local (chuvas e ventos invadiam o interior). “Do jeito que está não pode mais ficar” (palavras do líder).

Fotos propostas no projeto selecionado. (Projeto 1). Foto 1

Foto 2

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Foto 3

Foto 4

Fotos da Casa de Reza em reforma Foto 5

Foto 6

Foto 7

Foto 8

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Foto 9 - Foto da Casa de Reza Reconstruída

Projeto 2 –Ara Pyau Porã (Feliz Ano Novo): tempo e renovação entre os Guarani Mbya da Aldeia R. Silveira O projeto foi construído com a vontade e a disposição de Liveiz de Lima, um líder religioso jovem (xeromoĩipyau), que está tentando assumir a antiga liderança religiosa de Jijoko, um dos mais renomados chefes religiosos da região yvyapyre (o litoral). O empenho é de renovação do local, principalmente pela cobertura feita com capim navalha. Trata-se de uma matéria prima encontrada no interior da mata, a qual desperta grande interesse no contexto místico. Ela tem sido um meio de atrair exclusividade em um local onde a efervescência religiosa tem uma demanda complicadíssima. Fotos propostas no projeto selecionado:

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Foto 10 - Casa de Reza de Liveis de Lima Foto 11 - Telhado da Casa de Reza o qual (proponente)

será substituído

Foto 12- Casa de Reza Amba (Altar)

Esse projeto deverá ser encerrado com a festa Ara Pyau (Feliz Ano Novo). Será realizado em agosto, contando com uma grande festa, da qual participarão outras aldeias e pessoas civilizadas conhecidas e amigas dos indígenas. Projeto 3 – Resgate da Palmeira Guarikanga e Construção da cobertura da Casa de Reza (opy) – Aldeia do R. Silveira. “Preciso reflorestar a guarikanga da mata”. “Quero fazer um projeto para que meus filhos aprendam esse plantio, temos que expandir essa planta na mata. A Casa de Reza precisa ser refeita. Quero fazer com cobertura de guarikanga” (fala do líder proponente). Assim, o projeto realizado por Sérgio Macena (KaraiTataendy), que é um líder religioso de uma parentela, ganha projeção, formando um núcleo importante no interior da Terra Indígena. A guarikanga é uma palmeira nativa da Mata Atlântica, utilizada para a cobertura de casas, que se ouve estar em extinção. Esse projeto prevê uma festa de inauguração, programada para agosto-setembro, com muita devoção e animação. Será também, como no caso anterior, a festa Ka’a’i (consagração

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da erva-mate). Fotos propostas no projeto selecionado:

Foto 13- Construção da nova Casa de Reza

Foto 14 - Reflorestamento da Guarikanga

Foto 15 - Casa de Reza a ser reconstruída

Foto 16 - Moradia

Foto 17 –Preparação da Cobertura

Foto 18 - Guarikanga

Foto 19 – Preparação do Telhado

Foto 20 – Estrada R. Silveira

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Foto 21 – Estrada R. Silveira

CONSIDERAÇÕES FINAIS Pode-se entender a práxis-mito e os projetos culturais comprometidos em situações educativas tradicionais Guarani Mbya como realizações destinadas ao fortalecimento da identidade cultural, nas quais os sentidos religiosos expressam um imaginário mítico, que monopoliza o mundo real. O caráter imagético e dramático que conduz à formação do psiquismo humano indica-se coletivamente como uma representação guarani mbya do imaginário mitológico. Esta análise salienta o comprometimento dos projetos efetuados com a dimensão xamânica no protagonismo dos chefes religiosos e os entende como uma fonte de valores e de dados sobre o pensamento e a ação dos xamãs. A explicação adotada comporta princípios explicativos que se reportam a uma instância anterior, ou o “mundo da experiência mítica”. O grau de saber que miticamente se exprime, é o de uma realidade que não põe problemas para resolver, nem enigmas para decifrar (Eudoro de Sousa apud Borges, Paulo A. E., ib. p.53). O imaginário mítico procede da constituição ou manifestação imaginária do ser e de sua imaginação íntima (Borges, Paulo A. E., ib. p.62).

REFERÊNCIAS

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O Quilombo do Paredão pela atmosfera do imaginário The Quilombo of Paredão by the atmosphere of the imaginary Le Quilombo de Paredão par l'atmosphère de l'imaginaire

Cláudio Baptista CARLE 1 UFPel, Pelotas, Brasil

Resumo Este trabalho apresenta um estudo das características fundamentais de instalação do Quilombo do Paredão no Rio Grande do Sul, Brasil, através das ideias sobre a atmosfera do Imaginário de Gilbert Durand. O Paredão é um quilombo arqueológico com população viva ocupando a área e está em processo de demarcação territorial. O estudo tenta demonstrar porque estes escravizados escolheram este lugar para se esconder. Encontrei no campo do imaginário, no seu trajeto antropológico, a resposta. Palavras-chave: quilombo; imaginário durandiano; africanidade. Abstract Study of fundamental characteristics of installation of the Quilombo of Paredão, in Rio Grande do Sul, Brazil, through ideas about the atmosphere of the imaginary Gilbert Durand. The Paredão is an archaeological quilombo live with population occupying the area and is in the territorial demarcation process. The study tries to demonstrate why these enslaved chose this place to hide. We found in the imaginary field in its anthropological path, the answer. Key words: quilombo; imaginary durandiano; africanity.

Introdução O mundo religioso assegura um bom dia, uma boa colheita, uma vida segura, uma morte gloriosa, uma vida eterna e assim por diante. É importante destacar o conhecimento que obtive através da leitura de estudiosos da manifestação religiosa do africano no Brasil – Roger Bastide (2001), Pierre Verger (2000; 2002) –, pela vivência na Capoeira Angola e nas casas de Batuque e Umbanda em Porto Alegre, Cruz Alta e Pelotas. A religião para Gilbert Durand (1997), assim como para Lévi-Strauss (1989), é um universo do pensamento humano que sistematiza parte do sistema mítico das sociedades. Quando observa-se os quilombos não deve-se, portanto, observá-los através da ótica ocidental, pois não são grupos constituídos a 1

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partir desta visão de mundo. Ao dizer isso, indico que também não mergulharemos ao universo arquetipal, citado por Lévi-Strauss e referendado por Durand, onde “segundo Jung, significações precisas estariam ligadas a certos temas mitológicos que ele denomina arquétipos” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.241). Cabe ressaltar que muitas vezes, e eu já escutei isso de uma antropóloga saindo de um quilombo, muitos pesquisadores não aceitam tal trajeto antropológico das comunidades (DURAND, 1997). Tratarei das bases míticas de constituição destes espaços, bases estas que criam a atmosfera do Imaginário (DURAND, 1997) do Quilombo do Paredão, que são a potência na criação destes universos humanos, fruto de sua determinação como quilombo pela sociedade envolvente. Os autores Bastide (2001) e Verger (2000; 2002), mencionados acima, comungam suas ideias ou pensamentos, pois as palavras expressam estes pensamentos, como os praticantes das magias africanas. O que está manifesto no espaço público é para conhecimento público, é o que tem valor amplo a ser mostrado, embora todo o “negro” se sinta africano nos princípios individuais não expressos a público (BASTIDE, 2001). As formas de ser e de pensar daquele que se identifica como africano, não são manifestas abertamente, pois o ser e a aparência deste, como a proposta filosófica de Heidegger (1966), estão separados de maneira evidente. O conceito de Quilombo, ideia chave deste texto, mais antigo que encontrei (datado de 02 de dezembro de 1740) considerava "toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles" (MOURA, 1987, p.16). É uma construção não africana, mas ainda vigora no universo comum da academia. Reconheci os padrões de organização física deste espaço vinculados à africanidade – a ideia de ser africano fora da África na articulação com as possibilidades locais de manter seu Trajeto Antropológico (DURAND, 1997). Cabe dizer que utilizo o termo africano por uma total impossibilidade, ainda, de reconhecer a qual contexto imagético específico este grupo humano ali estabelecido até o presente se faz representar, pois não sei a que contexto mítico original ele pertence, mas é evidente que está ligado a um plano não ocidental de ação, nem mesmo no presente. Este quilombo do Paredão está constituído por afrodescendentes, como tantos outros que já trabalhei. Identifiquei as formas de assentamento dos grupos de remanescentes de africanos distinguindo-os pelos padrões de organização física e mítica que os possibilitaram implementar. O trabalho que venho realizando destaca o Vale do Rio dos

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Sinos e a embocadura do Delta das ilhas formadoras do estuário do Guaíba. Diretamente o abrigo do Monjolo no Município de Santo Antônio da Patrulha, a antiga ilha do Quilombo no Delta do Jacuí, município de Porto Alegre, e na localidade de Paredão na divisa dos municípios de Gravataí e Taquara – este último, tema principal deste texto. Realizei uma interlocução com o primeiro remanescente de quilombo oficializado no RS, que são as Comunidades de Casca em Mostardas, do Morro Alto, da Fazenda da Cachoeira, do Maçambique, do Areal (quilombo urbano) e muitos outros na região de Pelotas (área com 34 comunidades quilombolas). Assumi uma posição ideológica que revigora o status do saber mítico e da filosofia popular e tentei me destituir do discurso científico iconoclasta que se coloca como o único possuidor de verdade (LUZ, 1995). Alicerçado pela africanidade assumi posições, propus defesas de patrimônio e retomei um pouco do conhecimento já escrito sobre a história do período da escravidão no Rio Grande do Sul. Intensifiquei a africanidade com a retomada de ideias míticas aqui expressas em Yorubá, que é a língua que ainda permanece forte.

A relação direta em o ser na terra e o seu ente no céu Aprendi que o conhecimento mítico africano é utilizado a todo o momento, pois é o elo entre nós e os nossos espíritos, e somos humanos, portanto, possuidores de espíritos. Percebi que se isto é básico hoje para os afro-brasileiros modernos, o era com mais intensidade no passado. Os locais de refúgio simbolizavam não apenas uma fuga aos trabalhos e maus tratos, mas sim a possibilidade de reestruturação de seu modelo de vida. O pensar do africano no Brasil “aparece” no seu modo de viver, então, busco os escritos de Martim Heidegger (1966) no que este se refere ao concreto-etnológico da existência mítica e conjugo com os conhecimentos desenvolvidos por Pierre Verger (2002), quando este trata do africano no Brasil. É importante dizer que a língua é a “casa do ser”, onde o ser chega e “atua”. Assim sendo, tento expor através da língua e na interação entre iorubanos e bantus a sua fundamentação. Não só o ser tem que possuir entendimento, mas a sua existência física, e esta se dá no espaço, mesmo que este espaço seja imaginário, ou seja, fruto da mente humana. A delimitação do ser é o delimitar o que é o ser e as variações em relação a isto. Neste sentido, a forma é base para compreender, pois do termo forma é que advém o conceito de estrutura em Levi-Strauss (1989) e Durand (1997) e que constituiu as estruturas utilizadas pelos mesmos

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autores e que, neste caso, serve para entender a relação entre estes dois mundos dos africanos no Brasil. O pensamento do ser africano é uma relação direta com o seu ente fora dele, mas não desligado do mesmo, pois constitui a estrutura dele. Poderia-se dizer que o africano não está de forma alguma distante de seu estar no mundo com relação aos desígnios dos seus representantes nas forças da natureza, os “Orixás”, “òrìşà” (VERGER, 2002, p.17). Acima destes está “Olódùmarè” (VERGER, 2000, p.21), o deus supremo que não recebe nenhum culto, pois está acima da compreensão humana, ele criou os òrìşàs para governarem e supervisionarem o mundo, então o ser humano deve se dirigir a eles com preces e oferendas. O africano é o pensamento dos seus constituidores como entes na terra e assim o conhecimento sobre estes é vital. Assim remontando a ideia do Olódùmarè que mora no além, o Òrun, traduzido geralmente para “céu”, possibilita entender uma força maior que a dos òrìşàs e dos seres humanos. Para alguns, o Òrun pode estar representado debaixo da terra. Em Ifé há um lugar chamado de Òrun Òba Adó, onde haveriam dois poços sem fundo que seriam o caminho mais rápido para o além. Seria isto confirmado durante as oferendas aos òrìşàs, quando o sangue dos animais sacrificados é derramado no ojúbò, um buraco cavado na terra em frente ao local consagrado ao deus, e os olhares se voltam para o chão e não para o céu (VERGER, 2002, p. 22). O certo é que o Òrun é o além, o infinito, o longínquo, em oposição ao ayé, o período da vida, o mundo, o aqui, o concreto. Neste habitam os mortos, os Ará Òrun, que periodicamente voltam ao Ayé para se tornarem, novamente, seres vivos Ará Ayé. E o fazem o mais rápido possível ao que se diz Babatúndé ou Ìyátúndé, o “pai ou a mãe voltou”, isto está longe do céu paradisíaco dos cristãos e muçulmanos. Os próprios “òrìşà” não gostam de permanecer neste lugar e durante as cerimônias apressam-se em voltar a terra encarnando-se nos corpos em transe dos seus descendentes que lhes são consagrados. A base da estrutura do surgir no mundo é causa importante da confiança do permanecer nele, mesmo que em lugar não seu inicialmente, o não território, como poderia pensar após o seu translado para a América, mas o lugar qualquer do ser no mundo, pois ainda era possível ao africano reconhecer este lugar como o mundo. O mundo está em constante resolução para os africanos e estes pressupostos de Heidegger são importantes para entender os processos da africanidade. O constante da inconstância dos seres humanos está na inconstância da natureza e no ato contínuo de

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pretender ser. A existência de babalaôs, os “pais do segredo”, no Brasil possibilitou a continuidade da cosmovisão africana e sua ritualização. A multiplicidade étnica trazida e misturada no Brasil é vinda da Senegâmbia até Angola e de Moçambique da Ilha de São Lourenço (Madagascar) (VERGER, 2002). É importante ressaltar que não era apenas uma mão de obra que atravessava o Atlântico durante mais de 350 anos, mas também a sua “personalidade, a sua maneira de ser a de se comportar, as suas crenças” (VERGER, 2002, p. 23). O constitutivo banto veio ao Rio Grande do Sul já no início da ocupação portuguesa deste estado, pela ação do tropeiro que o transfere as perspectivas do ser tropeiro, mas que inevitavelmente possibilita uma fricção interétnica, onde muitos termos e formas de agir se incorporam à maneira do tocador de tropa. Os festejos eram considerados apenas lembranças nostálgicas de uma África perdida. É provável que eles não desconfiassem que em meio a estas ‘fuzarcas’, as preces aos vodun e inkissi se desenvolviam (na língua bantu, Inquice é a divindade dos cultos correspondente aos orixás Nagô). Vodun é uma designação genérica de cada uma das divindades do panteão jeje, equivalentes aos orixás iorubas – vodum: plural de vodus. No candomblé de rito jeje, o culto aos vodus ('divindades') está ligado a religiosidade africana. Esta raiz mítica, semelhante ao candomblé praticado no Brasil, é seguida especialmente pelos negros do Haiti e, em menor grau, também de outras ilhas das Índias Ocidentais. O voduísmo, vudu, vuduísmo, também é um provérbio do fon vodú que trata o 'espírito' humano e o jeje vodú que indica a 'deidade tutelar’ ou o ‘demônio' (DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS). É importante ressaltar que a versão sobre Demônio, que enfatiza este dicionário, está constituída através de concepções cristãs e preconceituosas sobre as manifestações religiosas africanas, tendo em vista a associação direta dos rituais africanos com os desígnios do mal, criadas a partir das pregações do Santo Ofício. A linguagem utilizada para os senhores era usada para louvar, pelo menos nas desculpas dos praticantes, aos “santos do paraíso”. Os senhores, ainda neste período, não sabiam das divindades dos africanos e pouco ou nada os africanos sabiam das divindades dos europeus – o certo é que o primeiro conhecimento maior veio provavelmente com a pesquisa do Santo Ofício da Inquisição. Aí estão as bases também para a constituição de uma pensamento único chamado de ciência positiva “que explora um regime isomorfo exclusivo, o objetivismo semiológico contemporâneo” e “fecha-se a priori a um humanismo pleno” (DURAND, 1997, p. 429). Os processos sincréticos são difíceis de precisar em sua origem, mas são notórios na

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religião atual dos afro-brasileiros. Há de se convir que os uádi (abismos) são constituídos na separação da “mãe-África” e o remontar de seu âmago na intersecção de diversos cultos dos múltiplos grupos culturais. O processo de limitação que se impunha na relação com os “òrìşà” estava na sua redefinição espaço temporal na América, tendo em vista que na África cada um estava diretamente ligado a uma cidade e, por vezes, a um reino. “O que vem a ser ainda não é e o que é já não necessita vir a ser” – nesta fala Heidegger (1966, p. 156) apresenta chaves para identificar as possibilidades que aquelas cidades teriam ao serem transladadas ao Brasil, não mais agora como cidades, nem como aldeias, mas como parcelas constitutivas destas, a primeira parcela é o próprio indivíduo, que não se sente no mundo, mas que entende que o òrìşà já não necessita vir a ser, ele é, e está presente nele. E reconhecido pelo praticante das diversas religiões africanas, o òrìşà “é”, pois não nasceu e nem precisa aparecer, é sozinho e em si mesmo sem necessitar em absoluto de aperfeiçoamento, pois já é a perfeição. É a força natural que sustenta a existência dos outros e dele, mesmo que num espaço que originalmente não deveria ser seu, mas que potencialmente se tornou, a senzala. O aprendiz dos segredos da religião e o iniciado sabem que este òrìşà não foi outrem antes, portanto, não será depois, pois, quando se faz presente e sempre se faz, é ele todo simultaneamente, sem meias formas nem subterfúgios típicos dos humanos, ele é único, reunindo a si mesmo em si mesmo a partir de si mesmo, é inegavelmente cheio de força e presença, com toda a capacidade do unificador. Os “òrìşà” viajavam para longe junto com as famílias e, ao inserir-se em uma região com o crescimento da família e do poder do olorixá, sacerdote do “òrìşà”, se a família é pouco numerosa a reverência era de cunho pessoal e se abrangente era expansiva a toda a família extensa. A ação deste olorixá não é substituída pelos membros da família que apenas o apoiam na realização das obrigações. Com o advento da separação entre os familiares no Brasil, as obrigações deveriam ser cumpridas individualmente até se localizar uma casa de “òrìşà” para fazê-lo em grupo, onde aparece a ideia de um tal “pai-de-santo” que o ajudará a cumprir corretamente suas obrigações – se este deve se tornar filho-de-santo, cabe a este “pai” ou “mãe” preparar o “assento”, e nos terreiros existem então múltiplos “òrìşà” pessoais, reunidos em torno do “òrìşà” do terreiro, simbolizando o reagrupamento dispersado pelo tráfico (VERGER, 2002, p. 33).

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A constituição dos quilombos Os vestígios localizados na área do Paredão não reportaram a existência de um quilombo do século XIX, mas a permanência de afro-brasileiros naquela região desde, no mínimo, o final do século XIX, mas que apresentam um dado importante de um jornal que remonta a localidade ao final do primeiro quartel do século XIX. Depois desta rápida análise, pode-se verificar que não foram estes os motivos que definitivamente marcaram estes locais como quilombos. A afirmativa de que estes locais possibilitaram acobertar escravos em fuga está relacionada diretamente a condição física de sua inserção no terreno. O sítio do Paredão apresenta hoje várias estradas que o cortam em várias direções, tendo em vista a ocupação total da área por chácaras de lazer. A estrutura viária original se compunha de uma estrada que seguia contornando a morraria principal que lhe deu nome, pelo lado oeste, até chegar ao topo do morro, tendo de fundos uma grande falésia que impede o prosseguimento do caminho, esta falésia está voltada para nordeste e dela é possível avistar o rio dos Sinos. A ideia básica e inicial do estudo dos sítios em questão está ligada diretamente a fricção interétnica, que é ocasionada por atração, onde a cultura africana não se exterminou, mas permitiu uma transformação cultural. Esta é importante para entender estes espaços como quilombos. O estudo em campo que visava entender Unidades Sociológicas facilitou determinar áreas de atividades e sem atividade dentro destes sítios. O mito africano é que fez com que estes locais se constituíssem e manteve acesa a memória em relação a seus ancestrais, seus rituais e vitalizaram os espaços para conceber uma dinâmica africana no Brasil. Buscando em Heidegger (1966) a relação do concreto-etnológico da existência mítica, afirmam-se as ideias simbólicas deste povo, ratificando a filosofia africana à qual buscou-se identificar através da religião. A busca da permanência deste africano de seu sentimento de ser no mundo e com isso o relacionamento a toda sua religiosidade, a qual explica até a sua condição em plena escravidão, possibilita o entender como o africano se relacionou com estes lugares. A primeira forma de ser, pensando já a partir de Heidegger (1966), está na língua que é “casa do ser”, e eu tive uma particular tentativa de rememorar a língua na definição das ideias que apresentei. A concretude do símbolo que o ser africano traz de seu mundo, além da

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língua, está para Heidegger (1966) expressa na arte, a arte que este trouxe e manteve o quanto pode nos seus quilombos. A arte que aparece nas formas de assentarem-se e nas maneiras de reagir dos habitantes atuais da comunidade do Paredão. As relações entre terra e além-mundo são reverenciadas pelos africanos e expressas na arte, diretamente no humano como ser, que é como o africano visa sentir-se no espaço do quilombo, simbolizado nas suas ações em relação aos locais que ocuparam. Os africanos veem nas manifestações religiosas, pela língua no trato com os orixás e pela organização simbólica do espaço, a sua fundamentação enquanto ser no mundo. A compreensão do espaço está no seu entendimento, tanto dele africano enquanto ser, como do seu algoz como outro ser, e os dois explicáveis miticamente. Este mítico delimita a forma de organizar-se em relação àquele e assim cria seus sistemas de entendimento sobre este outro. A aparência, em Heidegger (1966), torna-se uma definição importante para determinar o espaço para o africano. O espaço está determinado pela visão das formas que a estrutura mítica dá ao contexto natural. Os orixás são forças da natureza e por eles é que o africano vê o mundo, pois os vivencia a todo o momento. Esta relação com o espaço, que explicarei melhor adiante, é feito pela aparência que é a forma como estes e nós mesmos vemos o mundo. Os vestígios marcaram o espaço e o próprio local, que se tornou objeto deste estudo, e a natureza foi de certa forma manipulada pelos seus habitantes. A matemática envolveu o meu pensamento e o que poderia ser refugo demonstrou ser o ponto de partida para o entendimento do humano por traz dele. As práticas de deposição do refugo constituíram o espaço doméstico e, como tal, domesticado, amplos no Paredão. As várias maneiras de tratá-los marcaram os resultados deste trabalho que, em grande forma, estão aqui neste texto no que este pode atingir. A ação cultural, na maioria dos casos, na ideia do oráculo, Orumilá Baba Ifám, o Pai de Ifá, ou seja, aquele que realiza a revelação dos destinos. Reconstruiu no Itan, história ou mito, que indicaram e indicará o processo da consulta o que se aplica à situação concreta. Esta concretude, como relatei antes, foi atingida pela matemática. Onde os números formam uma parte pequena deste estudo, mas diria fundamental, pois com eles datamos e reconhecemos a inserção de um modelo ou outro de pensamento na fricção interétnica que se estuda. As quantidades e as relações com a estratigrafia foram medidas e reconhecidas, bem como se tentou delimitar os espaços de ações destes africanos nestes sítios.

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As análises dos indícios deixados por estes grupos são o grande veio deste estudo, que se afirma através de uma analogia generalista dos modos vivendis dos africanos, da sua interação com o ambiente e da sua manifesta vontade de inserção de seu modelo de mundo na América. Foucault (1994) escreve que a retórica dos “anciãos” deve ser o caminho a ser desenvolvido por nós que temos origem europeia, pelo menos que manifestamente nos vinculamos a ela e nos consideramos como tal invocando a nossa sensação de pertencimento (BARTH, 1998), mas assim também o são o africano e seu descendente, tanto hoje quanto no passado no Brasil. O estudo do mito que se realiza representado pelas sutilezas da cultura material deve, a partir da arqueologia, levar em consideração que a escolha do ambiente é faceta clara da cultura material, assim, o próprio assentamento em sua localização é cultura material com a qual deve-se abordar o interlocutor que é o registro deixado pela sociedade no passado. O estudo de assentamentos de africanos e descendentes devem ser vistos, também, pelo menos como proposta ideal, pelo próprio olho daquele que os constituiu (MERLEUA-PONTY, 2002, 166), e entremeados aos documentos da cultura material, possibilita o entendimento de uma “estrutura de repetição”, que é o ato de eterno retorno, do reviver do mito através da filosofia que aqui entre estes africanos, e como em quase todas as sociedades, a designa, a identifica, dá regra e estrutura à seus hábitos. A minha vivência com o mundo do batuque possibilitou o contato ao nível pessoal com um dos maiores alabês do batuque gaúcho, tocador de tambor que faz com que as divindades òrìsà se manifestem nos cultos – o Mestre Boréu (falecido Walter Calisto Ferreira – Alabê no batuque do Rio Grande do Sul), cujo filho de sangue Jaburu (José Alberto Mello Ferreira – professor de Capoeira Angola), me conscientizou do que pode ser dito daquilo que não deve. É importante ressaltar este dado, pois muitos aprendizados que se tem na religião e na ética africana não devem ser expressos pela fala e menos ainda pela escrita, pois estes têm um momento especial para ser apreendido e tem um momento especial para ser utilizado o conhecimento, mas não deve ser manifesto. O segredo disto mantém até hoje a própria religião africana em uma suspeita da sociedade envolvente, que a caracteriza então como sendo voltada para o mau. A constatação acima permitiu estudar África e a dinâmica das populações africanas no Brasil, entrelaçando o conhecimento étnico-religioso dos grupos africanos e descendentes. A possibilidade de identificar o seu habitus e habitat, quando em espaço brasileiro, mas com

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toda a carga da filosofia africana, é que se apresentou diante deste estudo. O mito, em oposição à ideologia do pequeno grupo que detém o poder, é produto coletivo e coletivamente apropriado (BORDIEU, 2001, p.10) por estes indivíduos e perpetuado nos quilombos. A tensão entre o Aiyê (mundo) e o Orun (além mundo), segundo Luz (1995) está na essência deste povo. O Aiyê permeado pela ideologia está indissociável do Orun, onde o mito está assegurado, mas deve ser revivido sempre. O mito é mais importante que a ideologia para o africano.

Considerações finais Ao analisar o Quilombo do Paredão sob a luz do pensamento filosófico-mítico africano que em Bantu (língua mais comum no sul do Brasil no período da escravidão) pode ser afirmado como o Ongira Camutuê sobre o Paredão, ou seja, o Caminho da Sabedoria sobre o Paredão, depara-se sempre com as relações já estabelecidas sobre os africanos no Brasil. Se há um quilombo dir-se-á que há uma Casa Grande e Senzala. O que verifiquei nos estudos de vários quilombos, tais como Casca em Mostardas, Ilha do Quilombo em Porto Alegre, Morro Alto em Osório, Monjolo em Santo Antônio da Patrulha, Maçambique, Favila e Paço dos Lourenços em Canguçu, Fazenda da Cachoeira em Piratini, Algodão em Pelotas e tantos outros, é que o quilombo do Paredão não foge a uma lógica que está relacionada hoje a religião e, portanto, ao pensamento filosófico-mítico dos africanos no Brasil. Os orixás marcam todo o agir e pensar destes indivíduos mesmo que submetidos fortemente a um panteão católico. Analisei alguns destes Orixás, tais como: o Exu (na África e no Candomblé) ou Bará (no Batuque) – O senhor dos caminhos; Orumilá – O senhor dos destinos e das consultas; Oxalá – Òrïsànlá ou Obàtâlá – “O Grande Orixá” ou “O Rei do Pano Branco”; Ogum ou Ògún – O senhor da Guerra; Xangô ou Şàngó – O senhor da Justiça; Iemanjá ou Yemọjá – A senhora do mar (ou das águas); Ode e Otim ou Oxossi – Òsóòsì – Senhor das matas. A iniciação religiosa que perdura até hoje, dos africanos e descendentes, foram mantidos velados até a libertação em 1888, serviam para fortemente aproximar-se da cosmovisão africana. Rituais, que repetiam o cotidiano de suas vidas na África de origem, seguiam sendo vivenciadas no Brasil com a inclusão de outros aspectos e bens, mas mantendo a maneira de agir, memória do ser africano.

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No Paredão verifiquei, assim como em outros sítios, a presença do Caminho, o Exu, que aparece claramente. A Ilha do Quilombo é composta pelo caminho e pela água (Yemanja ou Obá). Na área de casca – Mostardas – aparece a água salgada e doce em seus limites e sempre foi o Caminho (das tropas para produção da zona sul do estado) que o marcaram. No caso do Morro Alto aparece fortemente a água, o caminho e a pedra (na Fazenda Cachoeira a Casa de Pedra). E tem-se a presença marcante de diversos cemitérios que dão os limites de toda a área – as lideranças mais velhas são também as protetoras dos cemitérios e suas mantenedoras, alusão clara aos Voduns (Eguns e Egunguns). O cemitério do Quilombo do Algodão (Pelotas) e o cemitério do Rincão dos Maias no Quilombo da Favila (Canguçu) são demarcadores fortes para aquelas comunidades, como visto no caso do Paredão. No sítio do Monjolo ainda há matos, na representação a Ode e Otim ou Oxossi. O abrigo do Monjolo sob rocha é um demarcador importante da Pedra, elemento vital ao africano. “A organização dinâmica do mito corresponde muitas vezes à organização estática a que chamamos ‘constelação de imagens’” (DURAND, 1997, p. 63) O Paredão, ao ser visto de satélite, aflora a dita pedra dos assentamentos anteriores. O cemitério e as casas servem para a demarcação dos seus limites, apesar de terem perdido boa parte de suas terras e a luta pela terra ainda estar profundamente imbricada pela ideia de preservar os vizinhos, o que não é um privilégio só daquele assentamento. No Paredão, a Religião que é pensamento filosófico-mítico do povo africano se fez representar pelo Exu na sua proximidade ao antigo caminho das tropas. Para seu assentamento aparece fortemente a figura de Orumilá, o senhor das consultas e dos destinos, Mandú (1880) no passado escravista e Anita no presente quilombola. A força de Oxalá, “O Rei do Pano Branco”, está na nobreza com que tratam seus antepassados no cemitério, o qual é guardado por uma senhora de muita idade que compreende a força dos Eguns, antepassados, e egunguns, antepassados míticos que demarcam o lugar de viver destes grupos, firmando o assentamento. Neste está também marcada a presença de Ogum, o Senhor da Guerra, pois foi no conflito permanente, que este resistiu no lugar e ainda resiste. “O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se reúnem em palavras e os arquétipos em ideias” (DURAND, 1997, p. 62). Ode e Otim ou Oxossi – Òsóòsì, Senhor das Matas, aparece, mesmo no que ainda restou da antiga mata do lugar. Ela estava lá, matas do passado africano no quilombo refúgio é mítica. A força da tradição no Orun que conjuga a representação da passagem pelo Aiye,

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ainda que esteja representada pelos símbolos cristãos, está fortemente vincada no cemitério dos “pretos” do Paredão. O poder da permanência marca o território onde os mais velhos lembram sempre aos mais novos, a que se destinam e de onde vieram, como falou a senhora guardiã do cemitério, o cotidiano na África é o cotidiano aqui.

REFERÊNCIAS BARTH, Fredrick. Grupos Étnicos e suas Fronteiras. In.: POUTIGNAT, Philippe; STREIFFFENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade, 1ª reimpr. São Paulo: Ed. Unesp, 1998. p.185227. BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. DURAND, Gilbert. Estruturas antropológicas do imaginário: introdução a arqueologia (sic) geral. 12ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (O sic é por ser arquetipologia). DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS. Ed. Objetiva, Versão 1.0, Dez. de 2001. FOUCALT, Michel. Le Language De L’Espace. In: Dits et Écrits. (1954 – 1988). Páris: Gallimard, 1994. HEIDEGGER, Martin. Introdução a Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. LUZ, Marco Aurélio. Agadá, Dinâmica da Civilização Africano-Brasileira. Salvador: SECNEB/CED-UFB, 1995. MERLEAU-PONTY, Murice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naif, 2002. MOURA, Clóvis. Quilombos e Rebelião Negra. 7ª ed. Col. Tudo é História - Vol. 12. São Paulo: Brasiliense, 1987. VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. 6ª ed. Salvador: Corrupio, 2002. ______. Notas sobre o culto aos orixás e Voduns de todos os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: Ed. USP, 2000. ______. Notícias da Bahia – 1850. 2ª ed. Salvador; Corrupiu, 1999.

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O corpo e a corporeidade pelo viés da ecolinguística e da antropologia do imaginário The body and the corpority throught the point of ecolinguistics and the antropology of imaginary’s Le corps et la corporalité par le biais de l’écolinguistique et de l’anthropologie de l’imaginaire

Zilda DOURADO-PINHEIRO 1 Universidade Federal de Goiás, Goiás

Resumo: O presente artigo pretende tecer apontamentos iniciais para um estudo do corpo pelo viés da Ecolinguística, ciência que estuda as relações entre a língua e o meio ambiente (natural, mental e social) e da Antropologia do Imaginário, ciência que estuda o imaginário humano e os mitos. Essa proposta de estudo será esboçada a partir da confluência teórica das duas disciplinas já mencionadas, porque ambas estudam o ser humano de modo holístico tendo em vista a linguagem verbal e simbólica/mítica. Em vista disso, o artigo irá apresentar dois conceitos fundamentais: corpo e corporeidade. Palavras-chave: Corpo. Imaginário. Ecolinguística. Abstract: This paper intents to make initial apointments for a study about the human body through the point of the Ecolinguistics, the science which studies the relations about the language and the environment (natural, mental and social) and the Anthropology of Imaginary, the science which studies the human's imaginary and the myths. This proposal of research will be made from the theoretical confluence of the two themes mentioned before, because both of them study the human being in a holistic way, considering the verbal and symbolic/mythical language. The paper will introduce two important concepts: body and corporeity. Keywords: Body. Imaginary. Ecolinguistics. Introdução O presente trabalho apresenta os apontamentos iniciais para um estudo do corpo humano segundo duas teorias: a Ecolinguística e a Antropologia do Imaginário. A primeira teoria estuda as relações entre língua e meio ambiente (natural, mental e social) e a segunda teoria estuda o modo como o ser humano produz imagens simbólicas em seu psiquismo em uma perspectiva individual e social. Enquanto a Ecolinguística estuda as interações

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linguísticas no meio ambiente, a Antropologia estuda as interações simbólicas, ao nível do imaginário, entre o ser humano e o seu grupo social. Dessa maneira, a união dessas duas disciplinas permite um estudo da linguagem humana (verbal e simbólica) de modo holístico, pois integra o biológico, ao psíquico, ao social e ao simbólico, de maneira que possibilite um direcionamento para o estudo do corpo. Para tecer essa proposta de estudo, o artigo está dividido em três partes. A primeira apresenta a confluência entre a Ecolinguística e a Antropologia do Imaginário. A segunda expõe a Ecologia do corpo e de que modo esta disciplina contribui para uma teorização holística do corpo. E a terceira mostra uma primeira sistematização de um estudo ecolinguístico e mítico do corpo, por meio de dois conceitos, o de corpo e o de corporeidade.

Ecolinguística e Antropologia do Imaginário A Ecolinguistica é um novo paradigma nos estudos da linguagem, ela pratica a ecologia da língua (COUTO, 2007). A ecologia tem como objeto de estudo os seres vivos e as suas interações no meio ambiente, formando o ecossistema. A Ecolinguística se apropria desses conceitos de interação e de ecossistema para direcioná-los ao estudo da linguagem, de modo a definir a língua como interação e propor o estudo das inter-relações, que se dão nos níveis mental, natural e social dentro do Ecossistema Fundamental da Língua (doravante EFL). O nível mental diz respeito à faculdade da linguagem presente no cérebro (conforme postula o gerativismo); o nível natural é o território onde é possível vivenciar o uso da língua; o nível social são as relações sociais que orientam as interações entre os falantes de um território. Para a Ecolinguística, esses três níveis estão conectados entre si nas interações linguísticas dos falantes. Nesse sentido, eles estão presentes simultaneamente em aspectos como o território dos falantes, as suas posições sociais e os seus conhecimentos linguísticos. A língua é considerada como interação e se baseia na visão que a ecologia tem das interações estabelecidas dentro de um ecossistema. Para a Ecologia, a vida se fundamenta nas interações dos organismos vivos em seu habitat natural e só assim é possível garantir a sobrevivência do grupo enquanto espécie. A Ecolinguística entende do mesmo modo a língua, ela tem um ecossistema cuja sobrevivência depende das interações de seus falantes entre si, como um povo, ocupando um determinado território e por meio de seus conhecimentos e uso da língua.

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Couto (2009) afirma que a Ecolinguística estuda as interações verbais que se dão entre os organismos (pessoas) do Ecossistema Fundamental da Língua (EFL) por meio da Ecologia da Interação Comunicativa. As interações verbais de membro p¹ com um membro p² em um espaço bem específico do território são denominadas de Atos de interação comunicativa (AIC). Esse ato pressupõe um código, a própria língua, por isso ela é a interação linguística, objeto de estudo da Ecolinguística. Dentro do EFL, os atos de interação comunicativa fazem com que a língua seja viva e diversa no uso promovido pelos seus falantes. Portanto, a língua é basicamente interação. Por essas definições, a Ecolinguística também propõe um estudo holístico da linguagem, isto é, estudar as inter-relações nos níveis mental, natural e social do EFL como integradas, sem correr o risco de reificar a língua. Ecolinguisticamente, a língua é uma totalidade, e cabe ao ecolinguista descrevê-la em sua completude. Segundo Couto (2012), as interações no interior do EFL são de dois níveis: exoecológicos e o endoecológicos. Os primeiros dizem respeito à relação da língua com o mundo exterior a ela, as interações dentro da comunidade de fala, da comunidade de língua, do contato entre línguas. As endoecológicas dizem respeito ao sistema da língua, são as interrelações nos níveis sintáticos, morfológicos, fonológicos e lexicais. Esses dois tipos de interação são simultâneos dentro do EFL e por meio delas a Ecolinguística estuda as relações entre língua e mundo natural, como também as relações entre língua e mundo social, bem como as que se dão entre a língua e meio ambiente mental. Acerca do meio ambiente mental, a Ecolinguística teoriza que nele está o cérebro dos falantes, lugar de registro e desenvolvimento do conhecimento linguístico. Contudo, o cérebro também dinamiza as nossas percepções corporais, psíquicas do mundo natural e social. Por isso, Nenoki do Couto (2012) propõe que o meio ambiente mental comporta no cérebro o imaginário humano, de modo que a imagens simbólicas produzidas pelo biopsiquismo individual estão em interação com as imagens do meio social, elas são dinamizadas pela imaginação humana, segundo os estudos da Antropologia do Imaginário.

O Imaginário e o Ecossistema mental da língua A Antropologia do Imaginário é uma teoria epistemológica formulada por Gilbert Durand, em 1960, com o intuito de estudar as motivações simbólicas expressas em imagens – sejam elas verbais ou não –, a fim de investigar uma retórica profunda que, dando primazia ao

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espaço figurativo, por meio da descrição de suas atividades de conjunção e disjunção, confirme sua função essencial de eufemização dos males do mundo. Segundo essa perspectiva, as imagens são estudadas de acordo com o sentido e a interação que se estabelece entre o indivíduo (aquele que imagina) e o meio cósmico e social no qual ele está inserido. O imaginário, assim, compreende o conjunto das relações que as imagens estabelecem no psiquismo humano, sempre em relação com a corporeidade, as pulsões subjetivas e os meios social e natural. Uma vez que compõe todo o psiquismo humano, em sua subjetividade (sonhos, delírios e devaneios) e racionalidade (pensamento mediado pelo conhecimento linguístico e todas as suas possibilidades de construção de sentido), o imaginário é o entre lugar da racionalidade e da sensibilidade, do corpo e da mente, da alma e do espírito, do individual e do social. É essa característica fronteiriça que possibilita reconhecer a dinâmica e a polissemia estruturante do que foi denominado por Durand de trajeto antropológico. Este é “a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 2002, p.41). A imaginação, de acordo com a Antropologia do Imaginário, é a faculdade humana de perceber, assimilar e criar imagens. Sendo assim, a imaginação é o reduto capaz de fornecer as imagens para a construção do imaginário. Ela é a dinamização cognitiva das imagens, enquanto que o imaginário é o modo ou o exercício de organizá-las e representá-las no psiquismo humano. Por esse motivo, imaginar é atualizar as imagens do meio social no psiquismo individual e vice-versa. É a imaginação que nos permite pensar, refletir, sonhar. Por isso é uma faculdade humana. O imaginário é o que sustenta os nossos pensamentos, sonhos, representações verbais e não-verbais. A partir dos estudos de reflexologia de Betcherev, Gilbert Durand (2002) defende que o imaginário humano é organizado em uma estrutura sensório-motora básica e dividida em três gestos dominantes, típicos da espécie humana: a dominante da verticalidade, da deglutição e a copulativa. A dominante da verticalidade refere-se à posição ereta que coordena ou inibe todos os outros reflexos humanos. A dominante da deglutição é o ato de nutrir-se do ser humano, a sucção e mastigação do alimento. E a dominante copulativa é o reflexo sexual que incita o ser humano a sentir prazer e, ao mesmo tempo, a perpetuar a sua espécie.

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Segundo Durand (2002), cada dominante reflexa (verticalidade, deglutição e cópula) tem o imperativo de conclamar o sentido de certos símbolos para si de modo a organizá-los em uma segunda estrutura, a qual Durand denominou de regime. O regime é o lugar onde as imagens se agrupam em seu semantismo, ao comporem os esquemas (schémes), responsáveis por

aliarem

os

gestos

dominantes

da

espécie

humana

(postural,

digestiva

e

reprodutiva/cíclica) à representação simbólica na formação das estruturas do imaginário. Como afirma Pitta (2005, p. 22), a estrutura é uma norma de representação imaginária relativamente estável que, ao agrupar as imagens em seu isomorfismo, possibilita a sua classificação e a compreensão de sua significação imaginária. Desse modo, o isomorfismo desses elementos, ou seja, a coesão de significado que relaciona esses elementos entre si, constrói uma constelação de imagens denominadas de regimes do imaginário. Estes podem ser divididos em diurno e noturno. O regime diurno tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais de elevação e da purificação; o regime noturno subdivide-se nas dominantes digestivas e cíclicas, a primeira subsumindo as técnicas do continente e do habitat, os valores alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora, a segunda agrupando as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos naturais ou artificiais do retorno, os mitos e os ramas astrobiológicos. (DURAND, 2002, p. 58).

Posteriormente, houve uma reformulação da análise do regime noturno e um terceiro regime foi postulado, o crepuscular (STRÔNGOLI, 2009, p. 27). Nele, as outras estruturas do imaginário se aliam na construção de um tempo positivo e cíclico que reúne fases de morte e renascimento para a construção de uma filosofia de vida. Conforme afirma Durand (2002, p. 312), “o esquema rítmico do ciclo se integrava ao arquétipo do filho e aos rituais de recomeço temporal, da renovação e do domínio do tempo pela iniciação, pelo sacrifício e pela festa orgiástica”. E, no prolongamento desse isomorfismo, está o mito. Assim, o mito é um sistema dinâmico de símbolos e arquétipos que se compõe numa presença semântica recorrente no discurso (DURAND, 2002). É a linguagem que constrói o imaginário e funda o sentido do discurso. Os símbolos e os arquétipos revelam os mitemas, traços e sequências míticas (unidades mínimas do mito) que estão implícitas na construção do sentido e que, ao se repetirem, também apresentam as suas lições, como a função pedagógica de orientar o ser humano em relação aos mistérios de sua existência. O mito é materializado na linguagem, na educação e constitui as visões de mundo do ser humano. Por seu caráter Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1354

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pedagógico, possibilita a criação das narrativas lendárias, dos contos de fadas, das religiões e sistemas filosóficos e, assim, permite a construção da identidade individual e coletiva pela organização das imagens simbólicas no imaginário, conforme assinala Pitta (2005). Para defender o imaginário como parte do ecossistema mental da língua, Nenoki do Couto (2012) assinala que a imagem é uma impressão psíquica proveniente de uma atividade mental, fisiológica, sustentada pela corporeidade do sujeito. Elas são (re) produzidas pelo cérebro a partir das interações do sujeito em sua vida social em um território. Dessa maneira, o imaginário tem um lado individual, social e um natural, os processos mentais que o dinamizam, portanto, o colocam como o centro do ecossistema mental da língua. Diante dessas considerações, podemos desenvolver o conceito de corporeidade de modo a justificar o modo como ela sustenta o imaginário individual e social. Esse conceito também irá contribuir para relacionar os estudos do imaginário com os estudos ecolinguísticos da linguagem a partir da contribuição da ecologia do corpo.

A Ecologia do corpo: contribuições para o estudo da corporeidade

Na obra Ecologia do corpo, Celso Sanchez (2011) afirma que, para a Ecologia, o ser humano é repleto de dimensões relacionais, por isso ele é essencialmente relacional. A saber pelo fato de que a espécie Homo Sapiens sapiens só se definiu enquanto grupo social pelas interações com o seu meio ambiente natural. A estrutura de cada ser vivo está, constantemente, buscando acoplar-se com o meio em que vive, adaptar-se a ele e, para tal, modifica-se ao mesmo tempo em que modifica o próprio meio. (SANCHEZ, 2011, p.21).

Tais interações permitem compreender o corpo como elemento relacional em busca de acoplamento e adaptação desde a sua ontogênese por meio das interações do seu ambiente interno (células, órgãos) com o meio ambiente externo (natureza, sociedade). Desse modo, se consideradas as interações intracelulares, entre os órgãos, a Ecologia define o corpo humano como o seu primeiro ecossistema, e, a partir dele, como produtor de um modo de particular de interagir com o mundo. O corpo pode ser visto como um ecossistema que mantém seu equilíbrio dinâmico interno, homeostase, por meio de trocas dinâmicas de matéria e energia com o meio em que se relaciona. Na dimensão Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1355

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humana, estas trocas não são apenas materiais, mas são também simbólicas, linguísticas. (SANCHEZ, 2011, p.43).

Sanchez (2011) afirma que modo como o corpo humano interage com o seu meio ambiente é denominado pela Ecologia de corporeidade. Ela é a interação ecológica dos seres humanos em diferentes dimensões a saber: biológicas, fisiológicas, sociais, linguísticas e simbólicas. Segundo Sanchez (2011), a corporeidade é construída tanto biologicamente quanto socialmente. Os diferentes grupos sociais constroem nos seus membros uma corporeidade característica do seu meio cultural. Assim, tem-se uma sociodiversidade, diferentes corporeidades atuando em um território e permitindo ao corpo a manutenção da vida como espécie humana e membro de uma comunidade. Direcionando os conceitos de corpo e corporeidade para a Ecolinguística e Antropologia do imaginário, pode-se considerar o corpo como um ecossistema. A homeostase é a troca de matéria e energia com o meio e a corporeidade enquanto as trocas sociais, linguísticas e simbólicas. A corporeidade é elo entre o corpo individual e o corpo social, por isso há uma sociodiversidade, diferentes modos de corporeidade. Couto (2007) afirmou que o Ecossistema fundamental da língua integra o meio ambiente mental, social e natural. Essa integração pode ser interpretada pela corporeidade dos falantes na sua interação linguística, de modo que é a corporeidade do falante que sustenta a interação linguística nos meios ambientes social, mental e natural. Cada falante é um corpo em interação com um espaço, onde acontecem as interações linguísticas e simbólicas dos membros de uma comunidade. Essas interações compõem a corporeidade. Vale ressaltar a especificidade do meio ambiente mental, o do imaginário humano. As trocas simbólicas do corpo são dinamizadas pelo intercambio de imagens entre o meio social e o individual que Gilbert Durand denominou como o Trajeto Antropológico. Portanto, a corporeidade é composta pelas interações sociais, linguísticas e simbólicas de um corpo inserido em um ato de interação comunicativa e em um trajeto antropológico, segundo a ecologia da interação comunicativa e a antropologia do imaginário, respectivamente. Pode-se ilustrar essas considerações com um exemplo, a roda de capoeira angola. Nela existe a ciranda, ela é formada pelas pessoas sentadas no chão, em círculo, de frente a uma bateria de instrumentos (atabaque, pandeiro, três berimbaus, pandeiro, agogô e reco-reco) e dois jogadores posicionam-se no centro. O Mestre de capoeira angola toca o berimbau principal e dá início ao jogo. Enquanto os angoleiros jogam, todos entoam cantos de capoeira, Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1356

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eles são proferidos em conformidade com o tipo de jogo desenvolvido. Por exemplo, se há uma mulher e um homem jogando e ela apresenta uma vantagem sobre o seu oponente, há o costume de cantar a seguinte música: “Pimenta madura que dá semente/ já vi moça bonita matar muita gente!”. Isso até a dinâmica do jogo mudar, daí o Mestre entoa outro canto. A roda de capoeira angola pode ser considerada como um ato de interação linguística porque existem membros de uma comunidade interagindo por meio de uma língua. Esse ato está dependente do modo como os corpos desses falantes estão dispostos no espaço, como eles se movimentam e incitam diferentes cantos consagradores da musicalidade e comunicação nessa mesma roda. Isto é, a corporeidade pressupõe e sustenta a interação linguística. Um outro exemplo é a sala de aula. A aula como um ato de interação comunicativa está sustentada pela corporeidade do professor e do aluno. Os alunos sentados em filas em frente a um professor, este coloca-se em pé, numa postura altiva, diante de sua turma. Daí ele começa a ministrar o seu conhecimento como o maior detentor do mesmo naquela interação comunicativa. Quando um professor pretende inovar as suas aulas, a primeira coisa que ele faz é interferir no modo como os corpos relacionam-se com o espaço. O professor altera a sua corporeidade e a de seus alunos em sala de aula para modificar a dinâmica da sua interação linguística com a turma. Dessa maneira, faz-se necessário sistematizar um estudo do corpo e da corporeidade pelo viés da Ecolinguística e da Antropologia do Imaginário para situar essa abordagem em relação àquelas já consagradas pelas ciências sociais e pelos estudos da performance.

Por uma teoria ecolinguística-imaginária do corpo: conceitos básicos A proposta de uma teoria Ecolinguística-imaginária do corpo tem como principal objetivo construir uma análise holística do corpo. Isso pode ser alcançado pela confluência das teorias da Ecolinguística e da Antropologia do Imaginário, porque ambas estudam o ser humano em sua totalidade, numa perspectiva holística, aquela pela interação linguística e essa pela interação ao nível do imaginário humano. A ecologia do corpo também pode contribuir para o estudo holístico do corpo por considerar as diferentes interações que ele estabelece com o seu meio ambiente. Evidentemente, o objeto de estudo dessa teoria Ecolinguística- imaginária do corpo é o próprio corpo. Ele é o primeiro ecossistema do ser humano, a morada do ser, o primeiro

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ecossistema do indivíduo, de onde partem todas as interações referentes ao meio ambiente externo. Contudo, já existe a ecologia humana que estuda o corpo em sua biologia e fisiologia, o que exige a delimitação de qual elemento (ou quais elementos) do ecossistema corpo cabe ao estudo. Conforme Sanchez (2011), as dimensões relacionais do corpo também são sociais, simbólicas e linguísticas. Considerando a existência do diferentes filósofos (Foucault, Le Breton, Courtine, etc.) estudiosos da dimensão social do corpo, ao descreverem o modo como a cultura subjetiva e disciplina os corpos, a nossa ocupação será com as dimensões simbólicas e linguísticas. Desse modo, o corpo é o ecossistema do ser humano por excelência e cabe à teoria ecolingusítica-imaginaria estudá-lo em suas interações linguísticas e imaginárias. Delimitado o objeto, cabe à pergunta, onde estudá-lo? Onde situar o corpo para análise? O corpus de pesquisa será a corporeidade, como definida anteriormente, ela é a interação ecológica do corpo com o meio externo. Pela interação do corpo, há a interação linguística e há a interação simbólica, simultaneamente. A corporeidade, portanto, pode ser considerada como a dinâmica de uma linguagem integradora dos elementos linguísticos, extralinguísticos, proxêmicos (distância entre os corpos na comunicação), cinésicos (expressão corporal) e simbólicos. Estudar o corpo em sua corporeidade é analisar o modo como essa linguagem integradora está significada dentro do ecossistema ao qual o corpo busca acoplar e se adaptar. Dessa maneira, podemos indicar alguns procedimentos iniciais de análise. Para iniciar um estudo ecolinguístico e imaginário do corpo faz-se necessário situar esse corpo em acoplamento ou adaptação ao ecossistema fundamental da língua, integradora dos meios ambientes mental, social e natural, segundo a Ecologia da interação comunicativa. Em seguida, cabe delimitar qual será o ato de interação comunicativa (AIC) onde o corpo será estudado em sua corporeidade. Delimitado o AIC, primeiro caberá ao analista descrever a linguagem integradora dos elementos linguísticos, extralinguísticos, proxêmicos e cinésicos para compor a corporeidade do corpo em estudo. Depois de descrita a corporeidade na AIC, o analista irá interpretar quais imagens estão evidenciadas pela corporeidade do corpo em questão, analisar o seu semantismo e qual é o mito diretivo fundador dessa significação imaginária. Retomando o exemplo da roda de capoeira angola, ela foi delimitada como um ato de interação comunicativa. Na realização desse ato devem ser descritos os movimentos corporais

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e o modo como eles associam-se às interações linguísticas sustentadas pelos mesmos. No exemplo anterior foi citada a situação de uma mulher em vantagem sobre um homem, pode-se imaginar uma situação típica em que ela defere uma rasteira e derruba o seu oponente no chão. Tal movimento a consagra no meio da roda e logo o jogo é associado ao canto “Pimenta madura que dá semente/ já vi moça bonita matar muita gente”. Segundo Nenoki do Couto (2012), existem as interações endoecológicas referentes ao modo como as palavras inter-relacionam-se conforme a estrutura linguística da língua. Dessa maneira, o sintagma nominal “Pimenta madura” introduz uma oração subordina adjetiva pelo pronome relativo “que” e evidencia a supremacia do sujeito à sua ação, senão teríamos a ordem direta da oração “A pimenta madura dá semente”. A segunda oração está marcada em primeira pessoa e evidencia a ação “matar gente”, por meio de uma referência a algo externo ao “eu” que diz, o que pode ser comprovado pelo sintagma verbal “Já vi”. Por tudo isso, as palavras do canto estão organizadas na estrutura linguística do português em favor da valorização da mulher forte, feminina (adjetivos madura e bonita) que está jogando na roda. Feita a descrição podemos partir para a análise das imagens, segundo a Antropologia do Imaginário. Como foi dito anteriormente, o imaginário humano possui três regimes: diurno, noturno e crepuscular. No regime diurno agrupam-se as imagens de luta, de distinção e heroísmo. No regime noturno estão as imagens de introspecção, comunhão e eufemização. E o regime crepuscular comporta imagens diurnas e noturnas no desenvolvimento de uma filosofia de vida. No jogo da roda de capoeira angola mencionado anteriormente, a movimentação do homem com a mulher em confronto evidencia o regime diurno das imagens, caracterizado pelo heroísmo e pela distinção. A rasteira da mulher evidencia a quebra da verticalidade do homem, ele é derrubado em posição de desvantagem, isso evidencia a distinção homem e mulher, ambos heróis e oponentes. Essa distinção também é reforçada pelo canto. Segundo Durand (2002), as imagens são ambivalentes, elas podem ter significados distintos pelo modo como elas aparecem nos regimes diurno, noturno e crepuscular. O alimento pode ter uma significação de intimidade, descida e acolhimento, quando pertencente ao regime noturno das imagens (idem), contudo a Pimenta é um fruto picante, de difícil consumo e digestão, de modo que esse alimento possui o semantismo diurno da distinção e não da comunhão. Ainda assim, trata-se de uma pimenta madura que dá semente.

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A semente remete ao próprio ciclo da vida, representada pelo símbolo da árvore, um ciclo dinamizado por morte e renascimento. Assim, associada à mulher, figura universal da fertilidade, aquela que dá a vida aos seres humanos, as imagens desse canto convergem para o a imagem da mulher terrível, representada no ocidente pela figura da Lilith, a mulher detentora do mal e do poder de destruir a vida. Por fim, a motivação para o surgimento desse canto, a rasteira da mulher no homem, no plano do imaginário evidencia a queda feminizada, segundo as palavras do próprio Durand: Como sugere profundamente a tradição cristã, se foi pelo sexo feminino que o mal se introduziu no mundo, é que a mulher tem poder sobre o mal e pode esmagar a serpente. (DURAND, 2002, p.115)

Essas interpretações mínimas nos permitem concluir o modo como a mulher capoeirista pode evidenciar a imagem da mulher terrível em relação ao homem em um jogo de capoeira. Dessa maneira, os princípios de uma metodologia de estudo do corpo pela Ecolinguística e pela Antropologia do Imaginário partem da descrição da interação linguística e a análise das imagens em movimento evidenciadas pela corporeidade dos indivíduos em um ato de interação comunicativa.

Considerações finais Esses apontamentos iniciais permitem uma análise do corpo mais holística por considerá-lo em sua totalidade e em interação com outras totalidades em sua linguagem integral e em seu imaginário. Ao contrário de outras teorias que estudam o corpo ora como um produto social de disciplinamento e subjetivação para o capitalismo ora como uma poética performática, levando em consideração apenas a sua movimentação como arte. A validade dessas abordagens é inquestionável, ainda assim considerar o corpo como uma totalidade em interação com o meio permite compreendê-lo em sua vivência social, imaginária (mental) e natural. Dessa maneira, pode ser bastante profícuo o desenvolvimento de uma teoria ecolinguística-imaginária do corpo.

Referências bibliográficas COUTO, Hildo. Ecolinguística: estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus, 2007.

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DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Martins Fontes: São Paulo, 2002. NENOKI DO COUTO, Elza. Ecolinguística e Imaginário. Thesaurus, 2012. PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de Janeiro: Atlântica, 2005. REIS, Letícia. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 1997. SANCHEZ, Celso. Ecologia do corpo. Wak: Rio de Janeiro, 2011. STRÔNGOLI, Maria Thereza. O imaginário da menina e a construção de feminilidade. In: Letras de Hoje. Porto Alegre, v.44.n.4, p. 26-40, out/dez, 2009. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2012.

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Escrituras do corpo biográfico: um estudo a partir do imaginário e da memória Writings of the biographical body: a study based on imaginary and memory Écritures du corps biographique : une étude à partir de l’imaginaire et de la mémoire

Andrisa Kemel ZANELLA 1 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, São Luiz Gonzaga, RS, Brasil Lúcia Maria Vaz PERES Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil

Resumo Este trabalho refere-se a uma pesquisa desenvolvida ao longo de quatro anos no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas/RS/Brasil. A pesquisa teve por objetivo realizar um estudo sobre as memórias do trajeto formativo inscritas no corpo de acadêmicas do Curso de Pedagogia, enfocando o corpo biográfico e o imaginário. O corpo biográfico foi abordado como memória decorrente do trajeto formativo de quatro alunas do Curso de Pedagogia, da Universidade Federal de Pelotas, RS, Brasil. E, o imaginário como um reservatório antropológico que no decurso da formação pode fermentar as representações sobre si mesmo e, consequentemente, sobre os futuros alunos. Palavras-chave: imaginário; corpo biográfico; memória; formação de professores. Abstract This text refers to a research developed in four years in Post-Graduation Program in Education of the Federal University of Pelotas / RS / Brazil. The research aimed at describing a study of memories that were inscribed in Pedagogy students’ bodies during their education process, with enphasis at the biographical body and the imaginary. The biographical body was addressed as the memory resulting from the formative path of four pedagogy students at the Federal University of Pelotas, RS, Brazil. The imaginary will be understood as an anthropological reservoir that can ferment representations of the self and, consequently, of future students, during training teacher formation. Key words: imaginary; biographical body; memory; teacher education Este trabalho tem por objetivo apresentar os resultados de uma pesquisa de doutorado realizada ao longo de quatro anos no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Imaginário, Educação e Memória (GEPIEM), com orientação da Profª. Drª. Lúcia Maria Vaz Peres. O foco foi direcionado à interpretação do gesto como tradução do imaginário nas escrituras do 1

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Corpo Biográfico, a partir da realização de um estudo sobre as memórias do trajeto formativo inscritas no corpo das acadêmicas do Curso de Pedagogia da UFPel. O que desencadeou a pesquisa realizada foi o pressuposto de que a memória do corpo está nos reservatórios do trajeto formativo de cada pessoa. O que queremos dizer com isto é que o ser humano, no decurso de sua existência, vivencia uma infinidade de acontecimentos que poderão ficar registrados nos estratos mais profundos de si. A somatória de cada registro integra o que aqui denominamos reservatório do trajeto formativo do sujeito, que neste trabalho, é tematizado a partir da interpretação dos gestos das estudantes como uma tradução do imaginário na escritura 2 do Corpo Biográfico, evidenciando assim a memória inscrita no corpo. Este enfoque foi fundador para aprofundar tal pressuposto e investir na relação entre Imaginário e Corpo Biográfico. Pontualmente, desenvolvemos este estudo para legitimar o corpo como um saber relevante a ser abordado na formação de professores, pois dá visibilidade a uma linguagem não valorizada na Educação. Linguagem que é reveladora da história do sapiens, pois está relacionada à maneira como cada sujeito se constitui no decorrer de sua vida a partir das experiências vividas em conexão com as heranças bio-psico-sociais herdadas de seus ancestrais. A pesquisa foi desenvolvida em dois campos teóricos: o Imaginário e o Corpo Biográfico. O Imaginário inseriu-se como um campo teórico potencializador para abordar o ser humano e a teia simbólica que o constitui. E o Corpo Biográfico inseriu-se como o campo teórico que sustenta a premissa de que o ser humano guarda nele (corpo) uma memória. Esta memória está relacionada às experiências que foram marcantes na vida de cada pessoa e, por isso, ficam impressas em seu corpo, gerando mudanças por afetar o estado afetivo e emocional. Para efetivar o estudo proposto elaboramos um plano de trabalho focado no exercício de biografização corporal pela improvisação teatral. Esta proposta foi desenvolvida em seis encontros ao longo de um semestre, com quatro acadêmicas do Curso de Pedagogia da UFPel, privilegiando o gesto como linguagem à biografização de si, num movimento de evocação das memórias dos acontecimentos vividos e visibilização das inscrições corporais.

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Escritura, neste contexto, é entendida como os registros que ficam inscritos no corpo de cada estudante, no âmbito físico e psíquico, a partir das experiências vivenciadas no decurso de seu trajeto formativo de vida e que, de alguma maneira, refletem na sua interação com/no mundo.

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O Imaginário: denominador das criações humanas O ser humano, no decurso de sua existência, vivencia uma infinidade de acontecimentos que poderão ficar registrados na forma de memória nos estratos mais profundos de si. A somatória de cada memória integra o que aqui nomeamos os conteúdos imaginários do trajeto formativo do sujeito, que compõem seu reservatório imaginário. Reservatório que agrega um conjunto de crenças e valores pertencentes a uma pessoa (DURAND, 1996). Pensamos ser necessário acrescentar que o imaginário de cada sujeito está vinculado a um imaginário coletivo. Isto é, as imagens pessoais estão de alguma maneira conjugadas as imagens arquetipais. São estas imagens, somadas aos sentimentos, aos gestos, as lembranças, as experiências e as visões do real que proporcionam realizar o imaginado (MACHADO DA SILVA, 2006). Enfim, as tonalidades de tudo que foi vivido e que de alguma maneira repercutiu e repercute no ser humano cotidianamente. Diante disso, o reservatório imaginário pode ser caracterizado como a impressão (gráfica) do mundo no corpo, ao longo do processo formativo de cada pessoa. No entanto, para acessar essa dimensão do corpo e visibilizar o reservatório imaginário que impulsiona o ser humano a agir, é necessário um processo de retomada do que foi vivido de algum modo. Foi este processo de retomada e visibilização do que está inscrito no corpo, a partir de um trabalho focado na biografização corporal pela improvisação teatral, que nos alicerçamos para tematizar sobre o Imaginário e o Corpo Biográfico. O ser humano, nas interações com o meio, constrói um repertório de saberes e experiências definidores da maneira como ele vai se constituindo. Nesse processo, o imaginário tem um papel fundamental, sendo o grande denominador onde se encontram todas as criações do pensamento humano, ativando, assim, a partir de uma perspectiva simbólica, diferentes modos de compreensão do mundo. Deste modo, pode-se dizer que o imaginário contempla as aptidões inatas e as heranças ancestrais ao meio social e cultural em que o sujeito está inserido. Portanto, ele é o conector que estrutura o entendimento humano; que, para Durand (2001), passa a ser um conector obrigatório pelo qual se forma qualquer representação humana, que é tramada nas articulações simbólicas que advêm das intimações de toda a ordem do vivido, arraigado numa bio-história pessoal. Para Durand (1988, 1996, 2002), a representação é sempre uma re-(a)presentação do

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objeto ausente. Por isso, ao longo do texto é utilizado as duas formas de escrita: representação e re-(a)presentação. Esta conexão proporciona uma maneira singular do indivíduo interagir, intimando-o a um movimento de expansão e renovação embasado em processo de simbolização que o fazem efetivamente participar da totalidade do mundo. É na confluência dessas articulações que se dá a composição de imagens. Imagens que partem de um trajeto antropológico com suas trocas entre as pulsões sociais, culturais e psíquicas. A noção de trajeto antropológico (DURAND, 1988, 1996, 2001, 2002) engloba aspectos que vão desde o nível neurobiológico até o nível cultural. Isto quer dizer que a imagem, pregnante de conteúdo, vai ser produzida pelos imperativos do sujeito que estão associados à forma como ele assimilou e acomodou as experiências vividas (experiências afetivas e subjetivas) e os estímulos do universo que lhe rodeia. Cabe ressaltar que a articulação dos conceitos de assimilação, acomodação e adaptação, propostos por Piaget, com o campo teórico do Imaginário, foi empreendida por Durand. Nessa relação subsume-se um jogo que acontece via imaginário entre os gestos pulsionais, o meio social e material em que está inserido, bem como suas matrizes fundadoras. Tais matrizes são frutos da herança dos antecessores e das diferentes demandas que advêm do meio, compondo assim a base sobre como cada pessoa se constituiu e interage em seu contexto.

Corpo e memória: o corpo tem memória! A abordagem do corpo na pesquisa está associada à ideia de habitáculo (JOSSO, 2009a), que abarca a concepção de “suporte” onde ficam registradas as experiências humanas. Ao mesmo tempo, associa-se a ideia de protagonista das assimilações e acomodações de elementos conhecidos e não conhecidos, a partir de uma linguagem que não necessita prioritariamente da palavra, mas que fala a partir da rigidez e fluidez dos gestos. Gestos que trazem vestígios das experiências que foram significativas no decorrer do trajeto formativo e que deixaram registros no corpo do indivíduo. Tais registros integram a biografia do corpo e constituem a referência do modo como o ser humano se expressa no mundo. A somatória de tudo isto compõe o que estamos chamando de memória do corpo. Leloup (1998) considera o corpo como o lugar de nossa memória mais arcaica, onde nada é esquecido. Seja na primeira infância ou na vida adulta, cada acontecimento vivido deixa sua marca no corpo de maneira profunda. Grotowski (2010) também discute sobre a

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ideia de que o corpo é memória, tendo como premissa que o corpo-memória é determinante na maneira que o ser humano se relaciona com certas experiências ou ciclos de experiências no decorrer de sua vida. Essa memória constitui-se na relação do ser humano (corpo) com o meio em que está inserido, perpassada por diferentes dimensões (JOSSO, 2008b, 2009), que dilatam a relação do ser humano com/no mundo a partir da ideia de que para estar vivo em diferentes níveis é necessária uma vinculação e relação consigo mesmo e o cosmos. São essas interações que ficam na memória do corpo, registradas no reservatório de cada pessoa, podendo ser resgatadas em algum momento, através de uma escuta do que emerge de si. Em outras palavras, os acontecimentos vividos pelo ser humano no decorrer de sua vida e que de algum modo lhe tocaram instalam, segundo Bois (2008b), “um estado particular”, sendo armazenados em forma de memória em suas células e no seu universo cognitivo, afetivo e gestual. Essa memória é “constituída por uma mistura de hábitos, de crenças e de saberes oriundos de tempos imemoriais, transmitidos a cada um por meio de condições específicas à sua inscrição sócio-histórica” (LAPOINTE; RUGIRA, 2012, p. 53). As constatações do autor dizem respeito a uma memória corporizada, resultado dos modos como o sujeito, ao longo do seu trajeto formativo, foi tocado pelos acontecimentos que lhe sucederam. Tudo o que tocou, roçou, acariciou, os golpes que recebeu, as feridas que se formaram, os traumas, as emoções e os afetos sentidos, ligadas a situações positivas ou não, a maneira que assimilou as experiências vividas, mesmo reelaboradas pelo intelecto, esquecidas e/ou apagadas, por terem se instalado de forma indelével no corpo, ficaram armazenadas em suas camadas mais profundas, nos estratos mais subterrâneos do ser (SINGER, 2005). Diante disso, podemos pensar no corpo do ser humano como uma memória viva do trajeto que ele percorreu no decurso de sua vida, repercutindo na forma dele interagir no e com o mundo. Nesse sentido, a relação homem-mundo perpassa o corpo em dois sentidos: como repercussão de uma história herdada e de acontecimentos vividos, que produzem memórias que se inscrevem no corpo e podem afetar tanto o aspecto anatômico/fisiológico quanto o aspecto psíquico/emocional; e, como elemento motor à ação, pois busca nessas inscrições as bases que servem de referências para sua interação efetiva no mundo.

O Corpo Biográfico e suas convergências

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Diante do que já foi apresentado, podemos pensar o corpo como a inscrição viva e concreta do trajeto formativo de cada pessoa. Nesse sentido, é importante pensar que cada acadêmica, ao chegar ao Curso de Pedagogia, traz em seu corpo os registros de um vivido. Registros que compõem a dimensão biográfica do corpo e que são fundadores a nível físico, cognitivo, afetivo e psíquico do que elas se tornaram e vêm se tornando no decorrer de sua vida. Tudo isto integra o reservatório imaginário onde cada estudante busca suas referências para interagir no espaço em que está inserida. Por mais que o corpo esteja presente, como bem evidenciou Josso (2010), em tudo o que elas fazem ao longo de sua vida, nem todas têm consciência do seu Corpo Biográfico, pois para acessá-lo e visibilizá-lo é necessário assumir uma postura de pesquisador de si, lançando-se a uma “garimpagem” minuciosa de seu patrimônio vivencial. Cabe ressaltar que o conceito de Corpo Biográfico, inicialmente cunhado por Danis Bois (2008a, 2008b) e, posteriormente, estudado por Marie-Christine Josso (2008a, 2008b, 2009a, 2010) e outros pesquisadores, constitui-se na conjunção de três dimensões: a vivência, a memória e o imaginário, permeada por uma temporalidade, aqui nomeada como motores (a)temporais no trajeto antropológico. Ou seja, a partir de uma vivência específica – neste caso, o exercício de biografização corporal pela improvisação teatral – há a evocação de memórias dos acontecimentos vividos, e consequentemente, a possibilidade de visibilização do imaginário. Nesta conjunção a ideia de motores (a)temporais é entendida como o movimento que o sujeito empreende ao garimpar seu reservatório imaginário com vistas à presentificação das memórias que foram significativas no decurso de seu trajeto de vida. Este movimento recorre às experiências do passado, atualizando a situação vivida no presente, projetando-se também em direção ao futuro. Para uma melhor compreensão, vejamos o diagrama:

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A vivência, na teoria de Bois, pode ser compreendida como a dimensão fundamental para o desenvolvimento de um trabalho focado no Corpo Biográfico. No estudo de doutorado, ela caracterizou-se pelo exercício de biografização corporal, enfocando a linguagem gestual como primordial na narração de si. A partir do momento em que focamos na relação entre a vivência e o Corpo Biográfico ancorada na teoria em questão, fomos adentrando na dimensão fenomenológica (dimensão sensível). Nela, o corpo não é meramente objeto, mas protagonista de reservatórios e memórias. Desse modo, a vivência caracterizou-se pela postura de sujeito ator-espectador que cada estudante assumiu durante o momento de experienciação com o seu corpo, exigindo uma atenção voltada ao aqui-agora. Isto significou estar presente ao exercício corporal e a si mesmo o tempo todo. Neste processo, tentou-se apreender suas memórias. Elas são um registro do vivido que assegura ao ser humano, não apenas a consciência da sua existência, mas, acima de tudo, representa a possibilidade de regressar e (re)criar os momentos que foram fundantes em uma vida. Em outras palavras, a memória comporta um caráter eufemizante, constituindo um dos caminhos para driblar o tempo e o destino. Na pesquisa, significou a possibilidade de reencontro com um tempo vivido, experimentando uma relação experiencial com o corpo. Rompeu-se com a lógica temporal, buscando os acontecimentos significativos do passado,

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que marcaram cada uma. É fruto de uma criação que atribui uma espessura ao que foi vivido, a partir de uma esfera fantástica, desvinculando-se das ordens do tempo. Neste sentido, a memória possibilita organizar, a partir de um fragmento, o conjunto que compõe o todo, impregnada pelas significações do momento. Para Durand: A organização que faz com que uma parte se torne “dominante” em relação a um todo é bem a negação da capacidade de equivalência irreversível que é o tempo. A memória – como imagem – é essa magia vicariante pela qual um fragmento existencial pode resumir e simbolizar a totalidade do tempo reencontrado (...) que motiva todas as nossas representações e aproveita todas as férias da temporalidade para fazer crescer em nós, com a ajuda das imagens das pequenas experiências mortas, a própria figura da nossa esperança essencial (DURAND, 2002, p. 403).

A memória é essa magia vicariante, à medida que possibilita ao ser humano, a partir de um processo (a)temporal, reencontrar-se com o que foi significativo em sua vida, em forma de imagens que remetem às experiências vividas. Imagens que atribuem um novo sentido ao tempo presente, renovando a esperança diante das adversidades de um tempo que a todo o momento relembra a esse ser, a sua finitude. A memória, segundo Izquierdo (1989) 3, é resultado das coisas que no decorrer da vida a pessoa percebe ou sente. Relaciona-se diretamente ao armazenamento e evocação, também chamada de recordação ou lembranças, de informações adquiridas pelas experiências vividas. A aquisição destas memórias chama-se aprendizado. Para o autor: O aprendizado e a memória são propriedades básicas do sistema nervoso; não existe atividade nervosa que não inclua ou não seja afetada de alguma forma pelo aprendizado e pela memória. Aprendemos a caminhar, pensar, amar, imaginar, criar, fazer atos-motores ou ideativos simples e complexos, etc.; e nossa vida depende de que nos lembremos de tudo isso. (IZQUIERDO, 1989, p.90).

Nesse sentido, a memória assume um papel fundamental, pois o armazenamento de tudo que aprendemos no decorrer da vida, em forma de lembrança, é fator determinante à evolução do ser humano. Assim, a aquisição de outras aprendizagens dependerá da memória produzida anteriormente. Esta abordagem efetivou-se como o caminho escolhido para acessar o reservatório imaginário de cada estudante, evidenciando o trajeto antropológico que compõe a sua história bio-psíquica-social. É neste ponto que se evidencia a contribuição do Imaginário, pois permite 3

Médico, pesquisador da área de Neurociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1369

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acessar um conjunto de imagens, símbolos, crenças, valores, sentimentos, afetos, vestígios que constituem a história biográfica do indivíduo. Para Durand (2002), o imaginário, como já mencionado anteriormente, vai se produzir na conjuntura entre o pessoal e o meio cultural, o subjetivo e o objetivo, constituindo-se na trajetividade entre o gesto pulsional e o meio material e social. São nos entrelaçamentos entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as representações simbólicas que o imaginário ganha uma ancoragem corporal que se alicerça na ligação entre a motricidade primária, inconsciente e a representação. Para a Antropologia do Imaginário, a representação parte de um trajeto antropológico que resulta da constante troca, ao nível imaginário, entre os impulsos subjetivos e assimiladores do sujeito e as intimações objetivas que partem do meio cósmico e social. (DURAND, 2002). Neste trajeto, a representação é A afirmação na qual o símbolo deve participar de forma indissolúvel para emergir numa espécie de “vaivém” contínuo nas raízes inatas da representação do sapiens e, na outra “ponta”, nas várias interpelações do meio cósmico e social. Na formulação do imaginário, a lei do “trajeto antropológico”, típica de uma lei sistêmica, mostra muito bem a complementaridade existente entre o status das aptidões inatas do sapiens, a repartição dos arquétipos verbais nas estruturas “dominantes” e os complementos pedagógicos exigidos pela neotonia humana (DURAND, 2001, p. 90).

No cenário da pesquisa de doutoramento, o trajeto contempla as experiências que foram significativas na vida das estudantes no decorrer de sua história de vida. Isto é, que inscrições relativas a estes acontecimentos ficaram impressas no corpo, abarcando uma perspectiva relativa ao movimento que envolve o trajeto antropológico do anthropos 4, a partir da interpretação dos gestos que apareceram na proposta metodológica do estudo aqui apresentado. O imaginário expresso na motricidade do corpo revela a dimensão fundante na constituição do conceito do Corpo Biográfico, uma vez que direciona a pensar o corpo como um manancial racional e não-racional de impulsos para a ação. Por ser possuidor de sentidos, emoções, sentimentos, afetos, imagens, símbolos e valores decorrentes do trajeto antropológico de cada sujeito traz os vestígios da história individual e também da história da humanidade. Estes são os fomentos dos reservatórios imaginários humanos! 4

O movimento pode ser seguido no sentido da fisiologia em direção à sociedade ou ao contrário, sociedade em direção à fisiologia (DURAND, 1988). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1370

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Diante do que foi exposto e retomando a imagem do diagrama, a relação entre o Imaginário e o Corpo Biográfico, efetiva-se por uma ideia motora que agregou as outras dimensões que integram a constituição do conceito. Ou seja, sem uma vivência específica – o exercício de biografização corporal pela improvisação teatral – não haveria a evocação de memórias dos acontecimentos vividos e, consequentemente, não seria possível tentar visibilizar este imaginário e, por sua vez, problematizar o Corpo Biográfico.

O campo metodológico A partir de uma proposta focada na biografização corporal pela improvisação teatral através do exercício de imaginação simbólica cada estudante lançou-se a uma “garimpagem” do seu reservatório pessoal.

Isto é, propusemos ativar, via “conhecimento indireto”

(DURAND, 1996), as memórias inscritas no corpo no decurso do trajeto formativo: memórias decorrentes de acontecimentos presentes e sempre lembrados; acontecimentos adormecidos, escondidos, ou que nunca haviam sido pensados. Para Durand (1988, p. 11-12), esta via de acesso à consciência, proporciona re-(a)presentar o objeto ausente através de uma imagem no sentido amplo do termo. O exercício de evocação das memórias dos acontecimentos vividos mobilizou uma consciência imaginante que criou novas narrativas. Narrativas oriundas dos matizes das escrituras a que cada participante deu visibilidade no decorrer da pesquisa. Ou seja, ao remexer nos seus guardados interiores, elas acessaram uma esfera mais profunda, que para além dos fatos, trouxeram à tona as repercussões que estes causaram em si, atribuindo uma “tonalidade” 5 (BOIS, 2008a, 2008b) aos gestos como uma tradução do imaginário na escritura do Corpo Biográfico, efetivando, assim, a construção de uma narrativa corporal. Esse processo pode ser visto como resultado de uma atividade de imaginação simbólica que deu vazão para uma história atualizada e fundadora do que cada pessoa vem sendo e se tornando no percurso de sua vida. Nesse viés, o gesto representou a presentificação de ações que ficaram “radicadas no corpo” (PEREIRA, 2010). Na pesquisa, são abordados como a tradução do imaginário nas escrituras do Corpo Biográfico e conteúdo simbólico que revelou algo preexistente relativo à 5

Danis Bois utiliza o termo tonalidade para indicar as sensações experimentadas durante as situações de terapia manual ou introspecção sensorial. Aproprio-me do termo para indicar as sensações experimentadas no decorrer do trajeto formativo do sujeito e que de alguma maneira ficaram registradas em seu corpo, sendo fundantes na maneira de interagir no mundo, atribuindo diferentes intenções à ação. Ação expressa através dos gestos durante o processo de biografização corporal pela improvisação teatral. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1371

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experiência do mundo, à vida humana e ao processo de assimilação e acomodação do vivido. Assim, os gestos adquirem o papel de protagonistas do movimento de interação e simbolização do homem no mundo e a linguagem gestual apresenta-se como potente e detonadora de imagens das quais muitas vezes a palavra não consegue dar conta. Desta maneira, “o ‘corpo inteiro colabora na constituição da imagem’ e as ‘forças constituintes’ que coloca na raiz da organização das representações parecem-nos muito próximas das ‘dominantes reflexas’” (DURAND, 2002, p. 50). A interpretação do gesto contemplou os aspectos que envolvem o ser humano e a maneira que ele interage no mundo, como resultado de uma somatória de inscrições corporais decorrentes das experiências vividas no decurso de sua vida, a partir de um processo de interpretação dos diferentes níveis de sentido. Para dar visibilidade as memórias inscritas no corpo das acadêmicas do Curso de Pedagogia foi realizada uma análise qualitativa, que culminou na convergência dos achados da pesquisa em núcleos simbólicos para chegar aos "mitemas" (DURAND, 1996). A pesquisa registrada em vídeo por nós, e no Diário da Experiência 6 pelas acadêmicas, contemplou três etapas de análise. São elas: 1) análise descritiva e hermenêutica dos registros de vídeo realizado no decorrer dos encontros, com base na interpretação dos gestos, como intuito de agrupar em núcleos simbólicos as repetições significativas; 2) análise do Diário da Experiência das quatro estudantes em três etapas: classificatória, fenomenológica e hermenêutica, buscando as imagens simbólicas presentes na escrita; 3) convergência dos dados empíricos da pesquisa em núcleos simbólicos para chegar aos mitemas. Optamos neste trabalho em enfocar somente a 3ª etapa. Assim, entende-se por mitema o agrupamento de palavras que de algum modo exercem o papel mitêmico. O mitema que para Durand (1996, p. 256) “é o elemento significativo mais pequeno de um mito, caracterizado por sua redundância, a sua metábole”, é constituído por um “pacote de relações”, imbuído de significação impregnadas de filamentos condensados. Não se reduz a uma única palavra ou mesmo sintaxe, constituindo-se por um conjunto semântico, abarcando a palavra significada, o atributo e o verbo. Neste estudo o mitema representa o sentido latente que está subsumido na memória inscrita no corpo de cada estudante. Dos mitemas encontrados (A infância presente no Corpo6

O Diário da Experiência é caracterizado por ser um caderno em que as estudantes registravam suas impressões em relação ao vivido. Não havia um modelo a ser seguido, foram sugeridas algumas possibilidades como: relatar, através de palavras, desenhos, imagens ou texto narrativo. Cada uma tinha total liberdade de escrita. Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1372

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terno; O desejo do voo no Corpo-cativo; Um Ser de carne que pensa, outro que age no Corpofracionado; A busca pela liberdade desejada no Corpo-comedido) apresentaremos abaixo o mitema – Um ser de carne que pensa, outro que age no corpo fracionado, como uma pequena amostra do que foi encontrado. Uma amostra empírica: Um ser de carne que pensa, outro que age no corpo fracionado 7. Um ser de carne que pensa, outro que age no corpo fracionado agrega o sentido latente presente nos gestos da acadêmica C. e dá visibilidade à memória inscrita no corpo. Este mitema congrega a ideia de separação, de divisão, evidenciada nos gestos de M. como a desconexão entre a ação e o pensamento. Desconexão que aparece vinculada à aparição do tempo como um inimigo presente, que provoca uma aceleração interna e privilegia a atividade mental como soberana sobre o corpo. A dicotomia entre o pensar e o agir, alicerçado em um racionalismo operante, inserese no Regime Diurno das imagens ligado à estrutura esquizomorfa – por se tratar de um processo – e gravita em torno dos verbos de separação e segregação 8. O Regime Diurno da imagem corresponde, conforme ressalta Durand (2002, p. 180), a um “racionalismo espiritualista”, ancorando-se no dinamismo da antítese. O autor a partir da leitura de Minskowski, ao reconhecer os traços estruturais típicos do Regime Diurno, ressalta que o racional Compraz-se no abstrato, no imóvel, no sólido e rígido; o movente e o intuitivo escapam-lhe; pensa mais do que sente e apreende de maneira imediata; é frio, tal com os seus contornos nítidos, ocupam na sua visão de mundo um lugar privilegiado (DURAND, 2002, p. 185).

Nesse sentido, um ser de carne que pensa, outro que age no corpo fracionado, o mitema de M. refere-se à dinâmica identificada em seu corpo no exercício de biografização corporal, em que a razão, que é o ato de pensar – com a “cabeça” e não abrangendo um todo – caracteriza-se como o comando que determina e antecipa a ação, que por estar numa posição inferior não consegue corresponder integralmente. Esta separação é um indício forte de como as experiências vividas no decorrer do seu trajeto formativo foram sendo assimiladas a partir da antítese pensamento e ação. Assim, os gestos de M. caracterizaram-se pela ilustração de 7

Para nos referir às protagonistas da pesquisa, utilizamos somente letras que correspondem à inicial do seu nome, conforme sugestão das mesmas. 8 Como reflexos dominantes a perpassar este regime, a dominante postural, com os seus derivados manuais e adjuvante das sensações à distância (vista, audiofonação) (DURAND, 2002). Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1373

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um vivido, não havendo a correspondência do corpo à intenção pretendida. Diante disso, é possível perceber uma automatização do corpo que passou a estar vinculado a uma ordem descolada do sentir, ditando uma determinada maneira de interagir cotidianamente, evidenciando uma rigidez nos gestos. É necessário ressaltar, também, que este mitema é perpassado pelo elemento tempo 9 que aparece visivelmente nos gestos da estudante, a partir da ideia de formigamento que se constitui pelo esquema da agitação, do fervilhar (DURAND, 2002). Ou seja, um ritmo operante de aceleramento que perpassou os gestos de M., representando certa angústia relacionada a uma corrida contra o tempo – associado por ela à imagem “mundo do relógio”. Dessa maneira, a análise aqui realizada levou-nos ao reconhecimento do esquema da separação nos gestos de M., a partir da oposição pensamento (razão) e ação (corpo), associada à imagem simbólica do gládio, como uma verdade operante, que corta e decepa, mas também promove a conjunção. A partir deste movimento vivido por M. no decorrer da pesquisa, é que abordamos o mitema que congrega o sentido latente de suas inscrições corporais. Uma mulher que se constituiu a partir de uma ideia predominante, que enfatiza o pensar dissociado do agir, repercutindo em um corpo a serviço desse pensamento. Em função disso, o corpo foi deixado de lado, como um coadjuvante no trajeto de vida. Diante disso, pensamos que a memória inscrita no corpo de M. evidencia-se num racionalismo que veio sendo responsável por um modo operante de agir e que resultou em uma rigidez corporal, vista durante o exercício de biografização corporal. Exercício que, ao mesmo tempo em que visibilizou este corpo, trouxe à tona outra possibilidade, que o colocou como centro e protagonista da ação.

Considerações Os mitemas, ou seja, os pequenos temas simbólicos que emergiram do empírico são uma evidência simbólica de que o corpo é uma escritura viva das experiências que foram significativas na vida do ser humano. Tais experiências vão sendo registradas em sua

9

Segundo o dicionário de símbolos de Chevalier & Gheerbrant (2009, p. 876), “simboliza um limite na duração e a distinção mais sentida com o mundo do Além, que é o da eternidade. Por definição, o tempo humano é finito e o tempo divino infinito ou, melhor ainda, é a negação do tempo, o ilimitado”.

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anatomia, repercutindo na dimensão física, cognitiva, afetiva e psíquica, que o faz semelhante, mas nunca igual à outra pessoa. Neste trabalho o corpo foi tematizado como o “habitáculo” jossoniano que abriga a história do ser humano, ao mesmo tempo em que se constitui numa “caixa de ressonâncias” quereniano, em cujos gestos repercute a história singular e plural. Ao mesmo tempo em que revela o trajeto de formação das estudadas, também pode reverberar em outras pessoas com histórias e trajetos similares. O que queremos dizer com isto é que a memória corporizada, visibilizada ou não através dos gestos, pode ser resultado do modo como assimilamos os acontecimentos vividos em consonância à herança biológica e ancestral. Esta assimilação, invariavelmente, pode não estar associada a um processo consciente, mas direta ou indiretamente o que é significativo fica em nós, nas suas diferentes formas. Por exemplo: alegria, tristeza, medo, segurança, saúde, doença, dentre outras possíveis manifestações. Tudo isto constitui as escrituras do Corpo Biográfico, que foi problematizado através do mitema apresentado como representante do reservatório do imaginário de cada pesquisada. Assim, o corpo pode ser comparado a uma "escritura de argila" (CREMA, 1998) que revela o nosso texto mais concreto que está sempre sendo reescrito. À medida que as intimações vão se apresentando a cada pessoa, novas escrituras são somadas ao Corpo Biográfico, atribuindo outras tonalidades ao repertório gestual. Diante disso é possível dizer que através da leitura dos gestos é possível encontrar os indícios que fazem o sujeito (re)agir no contexto em que está inserido como porta de acesso às escrituras que compõem o reservatório imaginário de cada ser humano. Além disso, o gesto é, genuinamente, o Imaginário para Gilbert Durand (2002), por ser ele universal e atemporal. Nesse sentido, a visibilização da memória inscrita no corpo legitimou o corpo como um saber relevante, o qual se constitui num saber ser-fazer. Apresentando-se, assim, como uma possibilidade para contemplar outra abordagem na formação inicial de professores. Abordagem centrada no corpo como uma matéria sutil e sensível, tão importante quanto às matérias pragmáticas e utilitárias e que precisa ser “acordada” e valorizada, para então, repercutir nos projetos curriculares dos Cursos de Pedagogia.

REFERÊNCIAS BOIS, Danis. Da fasciaterapia à somato-psicopedagogia. Análise biográfica do processo de surgimento de novas disciplinas. In: BOIS, Danis; JOSSO, Marie-Christine; HUMPICH, Baixado em www.imaginalis.pro.br por rosana pavarino em 14 de novembro de 2015 1375

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