O motivo da \" busca do desaparecido \" no cinema latino-americano a partir de Un Tigre de Papel (2007), de Luis Ospina

May 30, 2017 | Autor: Lucia Monteiro | Categoria: Film Studies, Documentary Film, Cine Latinoamericano, Colombian cinema
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O motivo da "busca do desaparecido" no cinema latino-americano a partir de Un Tigre de Papel (2007), de Luis Ospina

Lúcia Ramos Monteiro

Na tese de doutorado que eu defendi no início deste ano, eu interrogava as possibilidades de representação de eventos catastróficos e, mais especificamente, da iminência da catástrofe. A análise do filme Un Tigre de Papel, de Luis Ospina (2007), que apresento aqui hoje, não faz parte do corpus de minha tese de doutorado. Trabalhei alguns filmes desse cineasta colombiano, e sobretudo Agarrando Pueblo, Os vampiros da miséria, de 1977, durante um curso que dei na Universidade Paris 3 entre 2010 e 2011 que se intitulava "Cinemas engajados da América Latina". Decidi falar sobre Un Tigre de Papel hoje porque acredito que o filme oferece uma visada original sobre muitas das questões que vêm sendo debatidas aqui, principalmente com relação ao papel do testemunho na reconstituição de memórias pessoais e de histórias nacionais depois do trauma — me refiro aqui principalmente a produções que abordam, de maneira mais ou menos subjetiva, a memória das ditaduras latino-americanas. Un tigre de papel acaba também por fazer eco a algumas das questões que trabalhei em minha tese, pois tratar de um personagem invisível e do evento talvez irrepresentável visualmente de seu desaparecimento, e por, através desse personagem, trazer à tona a memória um acontecimento histórico catastrófico na história colombiana que é, em 1948, o assassinato de Jorge Eliécer, homem político de esquerda que defendia a reforma agrária e disputaria a presidência do país.
Eu vou fazer então primeiro um preâmbulo relativo à categoria de filmes que vêm sendo chamados de "documentários de busca", para em seguida propor uma discussão sobre de que maneira o filme de Luis Ospina nela se integraria ou a problematizaria.

Preâmbulo
A expressão "documentário de busca" começa a ser usada há cerca de dez anos, momento em que Jean-Claude Bernardet procurava uma expressão para definir o dispositivo dos filmes Um passaporte húngaro, de Sandra Kogut (2003), e 33, de Kiko Goifman (2004). Como o próprio Bernardet diz, a expressão "documentários de busca" foi empregada "na falta de outra melhor", pois seria, de acordo com as palavras do autor, de "uma expressão bastante imprecisa e vaga".
Jean-Claude Bernardet falava portanto de Um passaporte húngaro e 33 como filmes baseados em projetos pessoais, sem roteiro pré-concebido e abertos ao imprevisível e que compreendem, em sua fatura, a documentação do processo. Embora no tempo da montagem a busca já tenha sido concluída, os dois filmes mantêm o tom processual, de modo que a narrativa se constrói junto com o filme.
Apesar da imprecisão apontada pelo próprio autor, a expressão cunhada por Jean-Claude Bernardet revelou-se profícua. Tem sido vista em trabalhos publicados não só no Brasil, mas também em países como Argentina e Colômbia, tratando não apenas dos filmes originalmente abordados por Bernardet, mas de títulos como o argentino Los Rubios (Albertina Carri, 2003), e os brasileiros Diário de uma busca (Flavia Castro, 2010) e Os Dias com ele (Maria Clara Escobar, 2013), entre muitos outros, um conjunto que também é abordado, por exemplo por Fernando Selyprandi e outros pesquisadores que participam desse colóquio, na chave geracional.
Em constante formação e transformação, essa categoria dos "documentários de busca" vai exibindo fronteiras movediças e cambiantes. Pouco a pouco, em parte em função da proliferação de filmes que trabalham a memória das ditaduras latino-americanas a partir de um registro subjetivo, mas não apenas por esse motivo, a expressão "documentários de busca" vai ganhando novos contornos. Algumas das possibilidades de coerência apontadas por pesquisadores que se debruçam sobre esse conjunto se apoiam em características muitas vezes não previstas por Bernardet.

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar a atuação nesses filmes, algo que Jean-Claude Bernardet chamava de "jogo" — termo que Marcela ontem usava a propósito do filme de Bettina Perut e Iván Osnovikoff — e que estaria na base do que Bill Nichols chama de "documentário performativo". Ou seja, cria-se um dispositivo que parte da experiência pessoal e subjetiva do realizador, que se torna, assim, um dos protagonista de seu filme, apareça ele ou não dentro do quadro. Esse jogo, essa performatividade se coloca em cena de maneira notável em Los Rubios, de Albertina Carri, que já foi comentado em outras mesas. Não se trata apenas, para Albertina Carri, de protagonizar uma investigação sobre as atividades e o paradeiro de seus pais, mas de expor os mecanismos dessa busca e problematizá-la, resistindo com fineza e humor à tentação narcísica e à lamentação.

A segunda característica dos "documentários de busca" que me parece fundamental destacar é o mistério, presente em alguns casos através da adoção de códigos do cinema de suspense e do filme noir. Kiko Goifman, por exemplo, inclui em sua montagem entrevistas que ele realiza com detetives, cujos ensinamentos o cineasta parodia, comenta e transforma. É, também, a narrativa de suspense que preside a construção do filme de Flavia Castro, Diários de uma busca, de que também muito se falou por aqui.

Por último, mas não menos importante, é preciso ressaltar o entrelaçamento que os documentários de busca produzem entre a individualidade dos personagens-realizadores e a abrangência coletiva das histórias que constroem, o mais pessoalmente subjetivo e o mais agudamente político, dando voz a "silêncios históricos e pessoais", para retomar a bela expressão usada por Maria Clara Escobar no diálogo com seu pai em Os Dias com ele, inteligentemente retomada por Natalia Barrenha na mostra que ela organizou este ano.

Introdução
É nesse contexto que quero tratar, hoje, do filme Un tigre de papel, realizado pelo cineasta colombiano Luis Ospina em 2007. Minha intenção é investigar, por um lado, em que medida se trata de um documentário de busca, ou, pelo menos, em que medida estão nele presentes essas três características — a performatividade ou jogo, o suspense e o entrelaçamento entre o individual e o coletivo. Por outro lado, e isso apontará para desdobramentos futuros, pretendo questionar em que medida o filme de Luis Ospina problematiza e elucida de maneira crítica alguns aspectos presentes nesse conjunto de filmes.

Luis Ospina é um dos membros do chamado "Grupo de Cali", coletivo de artistas e intelectuais que despontaram no cenário colombiano nos anos 1960 e 1970, de que também faziam parte Carlos Mayolo e Andrés Caicedo. Luis Ospina estudou cinema na Califórnia e, ainda na década de 1960, realiza seu primeiro curta-metragem, Vía Cerrada (1964), em 16mm, sobre um jovem de Cali que toma um trem e se encontra com a própria morte. Em 1971, ele realiza Autorretrato dormido (1971), em Super 8, em que se filma dormindo por dez horas, inspirado em uma obra parecida de Andy Warhol. Oiga vea (1972) é um documentário em 16mm sobre os "excluídos" dos jogos panamericanos realizados em Cali naquele ano, sobre aqueles que vivem do lado de fora dos estádios; Cali de pelicula (1973), em 35mm, traz um retrato visual de sua cidade inspirado em A propos de Nice de Jean Vigo (1929).


(figs. 1 e 2) Fotogramas de dois filmes de Luis Ospina: Autorretrato dormido [1971], em Super 8, e de Oiga vea [1972].


Seu filme mais radical e mais importante desse período inicial é Agarrando Pueblo. Los vampiros de la miseria, realizado entre 1977 e 1978, um dos frutos de sua longa parceria com Carlos Mayolo. Rodado em 16mm, em cores e preto e branco, Agarrando Pueblo é um falso documentário, ficção disfarçada de making-of da filmagem de um documentário, para a televisão alemã, sobre a miséria nas ruas de Cali: prostituição, mendicância, crianças de rua, analfabetismo. Foi a forma, encontrada por Ospina e Mayolo, de criticar, cinematograficamente, toda uma produção dos novos cinemas latino-americanos, que conquistavam prêmios internacionais explorando clichês da miséria do continente.


(fig. 3) Imagem de Agarrando Pueblo. Los vampiros de la miseria (1978), que Ospina realiza em parceria com Carlos Mayolo.

Trinta anos depois de Agarrando Pueblo, Ospina realiza Un Tigre de papel, que seria também um falso documentário. A diferença é que agora o cineasta troca o formato do making of de um documentário de observação pelo formato do documentário de entrevistas, acompanhado por um extenso material de arquivo. O testemunho e a imagem de arquivo são recursos usados no cinema como estratégias de legitimidade, por oferecerem provas pela palavra e provas pela imagem. Não vou ter tempo de abordar aqui mais detalhadamente essas duas noções tão problemáticas, o testemunho e o arquivo, fazendo apenas indicações para os trabalhos de Jacques Derrida e de Paul Ricoeur. Derrida recomenda que, na abordagem do arquivo, se pense em sua arqueologia e, nesse ponto, lembro o que Walter Benjamin fala sobre o arqueólogo como alguém que precisa dar conta não só do material subterrâneo encontrado, mas principalmente deve fazer o inventário de todas as camadas que foi preciso atravessar para chegar até ele, problematizando, principalmente, o seu ponto de partida.

O objetivo do filme de Ospina é, através dessa reunião de depoimentos e de imagens de arquivo de naturezas diversas, dar visibilidade e corpo à figura de figura de Pedro Manrique Figueroa, artista precursor da colagem na Colômbia. A busca que guia o filme é portanto a busca da história exata desse personagem e, sobretudo, de seu paradeiro.

Entrelaçamento: o histórico e o pessoal
Já no primeiro minuto do filme, Ospina enlaça propositalmente a história individual de Manrique a acontecimentos da história mundial.
A abertura dá conta de acontecimentos que marcaram 1934, ano de nascimento de Manrique: o assassinato do rei Alexandre I da Iugoslávia, em Marselha; o primeiro congresso de escritores da União Soviética, em que Stalin declara que os escritores "devem conhecer a vida para representá-la verdadeiramente e não academicamente", colocando os postulados do realismo-socialista; na China, o exército comunista liderado por Mao Zedong e Zhou Enlai inicia a Grande Marcha em direção ao norte, fugindo da perseguição do Kuomintang.
Em seguida, os primeiros depoimentos falam da presença de Manrique no dia do assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, em abril de 1948, origem dos protestos conhecidos como El Bogotazo, considerado por sua vez a origem da guerra civil colombiana, que avançaria pelas décadas seguintes. Daí em diante, a narrativa se organiza de maneira cronológica, abordando as diversas fases de sua vida, divisão inspirada nos livros de história da arte e nas fases da produção de pintores como Picasso e Goya. Fala-se de seu trabalho colando e descolando anúncios em bondes — origem das colagens artísticas que ele faria no futuro —; de seu período revolucionário, em que teria passado pela China e pela União Soviética; da época em que era visto o Parque da Independência (chamado de Parque da Dependência em função da frequentação de drogaditos); e, finalmente, do desfecho de sua carreira artística. Como é praxe em documentários que tratam de um personagem ausente (dos musicais aos políticos), a montagem inclui depoimentos de ex-mulheres, da provável filha, de amigos e conhecidos. Há certo consenso com relação ao desaparecimento de Manrique, provavelmente em 1981, como sua última realização artística. Mas muitas informações divergem e as lacunas acabam por ser mais significativas do que os excessos.

O filme sobre Pedro Manrique Figueroa lembra um filme anterior de Luis Ospina: Andrés Caicedo: unos pocos buenos amigos (1986), primeiro longa-metragem que o cineasta rodou em vídeo, em u-matic, documentário dedicado ao escritor Andrés Caicedo, amigo de Ospina e também integrante do Grupo de Cali. Caicedo dirigiu o cineclube da Ciudad Solar e foi também autor do filme inacabado Angelita y Miguel Ángel (1971), cujas imagens Ospina recupera e integra em sua montagem, acompanhando-os da fala de seus atores e colaboradores, quinze anos mais velhos. Quando esse documentário-retrato é lançado, em 1986, fazia quase dez anos que Caicedo se suicidara, aos 25 anos de idade.
O filme sobre Caicedo se inicia com a figura de uma entrevistadora de rua, com microfone à mão, que pergunta aos passantes se eles sabem quem foi Andrés Caicedo. Muitos não o conhecem. Um diz que foi um "nadaísta"; outro, que foi um "guerrilheiro".
Andrés Caicedo, unos pocos buenos amigos marca a adoção, por Luis Ospina, do vídeo, instrumento libertador que lhe permite trabalhar com equipes menores, orçamentos reduzidos e um manuseio mais direto dos materiais. A passagem ao vídeo marca a adoção, por Ospina, da técnica da colagem. O realizador passa assim a associar, em suas montagens, arquivos fílmicos de diferentes épocas, compostos de cinejornais e de ficções, de material gravado por ele próprio, por seus amigos e por cinegrafistas desconhecidos, além de fotografias, recortes de jornal, músicas, desenhos, reproduções de obras de arte, etc.


(fig. 4) Retrato de família reproduzido em Andrés Caicedo, unos pocos buenos amigos (1986)

Quando Ospina realiza o filme sobre Manrique, ele retoma a estrutura centrada em um personagem ausente. Se no longa de 1986 o mistério a ser desvendado eram as razões do suicídio de Caicedo, no filme de 2007 o mistério envolve o desaparecimento do protagonista. Ambos personagens são ao mesmo tempo heróis e anti-heróis, vitoriosos e fracassados em seus percursos. Para os entrevistados, seus contemporâneos, falar desses personagens é exercitar a nostalgia, rememorar a própria juventude, as lutas perdidas ou abandonadas, os ideais e as vitórias.


(fig. 5) Colagem de autoria de Pedro Manrique Figueroa exibida em Un tigre de papel (2007)

Mas, enquanto as fotografias de Caicedo aparecem reiteradas vezes no filme de 1986, no de 2007 Manrique é praticamente invisível: nas poucas fotos atribuídas a ele, seu rosto é dificilmente identificado, encoberto pela sombra ou recortado.

Suspense
Quando comecei a trabalhar sobre Un Tigre de papel, eu já sabia que Manrique era um personagem fictício, que Un tigre de papel é um "falso documentário". Em seu livro Le documentaire et ses faux-semblants, François Niney distingue os "falsos documentários" dos mockumentaries ou documenteurs, título de um filme de Agnès Varda, que talvez pudéssemos traduzir por documentira. Enquanto os "falsos documentários" esconderiam suas estratégias de ficção e, na linhagem das atualidades reconstituídas e do ilusionismo de Méliès, tentariam fazer-se passar por verdadeiros, os mockumentaries e documenteurs diriam verdades através de recursos ficcionais, sem, no entanto, esconder a mentira.
"Contrariamente à manobra fraudulosa, o documentira engana para melhor desenganar, do mesmo modo que a ilusão de ótica só é admirada e admirável quando é reconhecida como tal, ou seja, quando funciona como uma desilusão de ótica", escreve Niney. "O documentira se opõe ao falso documentário porque visa, mais ou menos explicitamente, a fazer o espectador duvidar de sua própria crença nas formas fílmicas que se passam por sérias, por provas da realidade e da verdade" (p. 158-159).
A crítica ao realismo cinematográfico apoiado no documentário já havia presidido a criação de Agarrando Pueblo, em 1977, filme que eu apresentei negligentemente como um "falso documentário", como se fosse possível resolver a questão com um par de termos. Mayolo e Ospina produziam cinematograficamente, como eu já disse, uma crítica ao cinema que fazia sucesso na Europa ao denunciar a miséria do continente latino-americano, o subdesenvolvimento tipo exportação — produções colombianas mais conhecidas, como Chircales, que veio antes, e A vendedora de rosas, que veio depois, integrariam o contracampo desse filme de 1977. Além disso, em Agarrando pueblo, Mayolo e Ospina já faziam, em certa medida, um tipo de autocrítica. Com Un Tigre de Papel, essa autocrítica adquire uma outra dimensão, já que o formato criticado é exatamente o mesmo usado por Ospina no filme sobre Caicedo.

Suspense
Na entrevista com Luis Ospina que constitui o bônus da edição brasileira, nos trabalhos de pesquisadores como Lina María Barrero, da Universidade Católica do Chile, Alvaro Villégas Velez, da Universidade Nacional da Colômbia em Medellin, ou ainda Felipe Gómez, da Carnegie Mellon University, de Pittsburg, e nos próprios textos de Luis Ospina, fica claro seu gosto pelo "cinema mentiré", em oposição ao "cinema vérité" que Jean Rouch e Edgar Morin criam com base no kino-pravda de Dziga Vertov. Não haveria portanto razão para suspeitar da existência real de Manrique, não haveria ambiguidade nesse sentido.
No entanto, revisando meus materiais para preparar essa apresentação, encontrei alguns artigos de jornal que mencionavam exposições das colagens de Pedro Manrique Figueroa, em diferentes galerias e instituições culturais, e duvidei. Estaria a mentira de Un tigre de papel em nos fazer duvidar da existência de um personagem real?
Para retomar os termos com que Arthur Omar gosta de se referir a seu Triste Trópico, Un tigre de papel não seria então um falso documentário, mas um falso filme de ficção.
O fato é que Luis Ospina arregimentou um grupo de colaboradores que mentiram com muita verdade. Os entrevistados foram convidados a pensar em pessoas que conheceram e que tiveram trajetórias parecidas com as de Manrique: todos conheceram alguém como o artista. As colagens, que junto com o material proveniente de cinejornais, dão legitimidade à montagem, foram feitas por Lucas Ospina, sobrinho do cineasta e primeiro 'inventor' do personagem, e foram feitas usando técnicas analógicas, ou seja: cola e tesoura. Para se ter uma ideia da precisão da mentira, Ospina me contou ter encomendado à artista Karen Lamassonne uma série de colagens, que no filme aparecem como as obras falsamente atribuídas a Manrique, de estilo portanto efetivamente distinto das do 'verdadeiro' Manrique.

Performatividade
Todas essas manobras revelam uma adesão total do cineasta e de sua equipe ao que Jean-Claude Bernardet chama de jogo. Embora Ospina não apareça no quadro, ele exerce um papel performativo, e não só porque sua voz é ouvida inquirindo os personagens.
Defendo, aqui, que a realização do filme faz existir a figura de Manrique e que Ospina, ao manusear o material de arquivo e ao entrevistar seus contemporâneos, acaba por produzir um autorretrato que, por um lado, é geracional e, por outro, tem dimensões pessoais. "Todo retrato é um autorretrato", costuma dizer o filósofo francês Jean-Luc Nancy. Não é demais mencionar que o próprio Ospina quem vem praticando a colagem desde os anos 1980, quando começou a usar o vídeo. Além disso, Ospina viveu e presenciou boa parte dos acontecimentos da vida de Manrique — ainda que seja um pouco mais novo do que ele.

As rusgas da memória e o desaparecido
É uma experiência em certa medida frustrante examinar, hoje, o filme que Ospina dedicou a Andrés Caicedo, que coloco neste trabalho como precursor de Un tigre de papel. Ainda que haja fotos do escritor, que trechos de seu filme sejam exibidos, que sejam lidas passagens de seus livros e cartas, o personagem permanece ausente do filme. Embora ofereça a possibilidade do reverso, o cinema não é capaz de animá-lo, de fazê-lo reviver, de concluir o filme que ele deixou inacabado, de explicar o motivo de seu suicídio ou de anulá-lo.
Nesse sentido, o desaparecimento — último gesto artístico de Manrique, depois de tentar doar-se a um museu nacional da Colômbia — é o avesso verdadeiro do aparecimento da imagem de Caicedo no filme de 1986. É pela ausência de Manrique que Ospina expõe de maneira absolutamente verdadeira as rusgas da memória, as limitações do testemunho e as pontes cortadas do passado. Fica evidente a porção idealizada da nostalgia.
Dessa maneira, Un tigre de papel talvez possa ser visto como um comentário paródico sobre os documentários de busca. O desaparecido ou o ausente sobre quem se fala é como uma tela em branco sobre a qual se projetam idealizações, desejos, frustrações. Sejam elas épicas ou trágicas, as narrativas protagonizadas pelo desaparecido serão sempre inconclusas e imprecisas.
Independente do sucesso ou fracasso que motivam a investigação dos documentários de busca, eles talvez nunca possam preencher de fato as lacunas que o passado deixou. Não poderão revelar o que ficou de fora da fotografia recortada, ou embaixo da colagem.
Com Un tigre de papel, Ospina homenageia uma série de desaparecidos colombianos e também um precursor alemão, o artista Kurt Schwitters, que nasceu em 1887. Para Schwitters, a colagem, na década de 1920, era uma metáfora da reconstrução depois da catástrofe. Em um texto dos anos 1930, ele descreve sua iniciação à arte da colagem, depois da Primeira Guerra Mundial: "É possível criar com o lixo e foi isso eu fiz, colando os dejetos uns aos outros. Tudo estava destruído e era preciso construir o novo a partir dos escombros".


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