O movimento da Música Antiga como expressão Pós-moderna

July 1, 2017 | Autor: Fabio Peres | Categoria: Cultural Studies, Early Music, Música Antiga, Pós Modernismo
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Expressões Culturais Contemporâneas O movimento da Música Antiga como expressão Pós-moderna Por: Fábio Vianna Peres São Paulo, abril de 2014

Este trabalho foi produzido dentro do curso de Pós-graduação em Gestão Cultural do Centro Universitário SENAC - Lapa Scipião, na disciplina "Expressões Culturais Contemporâneas” ministrada pela professora doutora Ana Laura Gamboggi Tadei. RESUMO: Este trabalho propõe uma visão do campo da execução histórica da música antiga como um fenômeno essencialmente pós-moderno. ABSTRACT: This paper proposes a view of the historically informed performance of early musica as a post-modernist phenomenon.

Expressões Culturais Contemporâneas O movimento da Música Antiga como expressão Pós-moderna

Por: Fábio Vianna Peres São Paulo, abril de 2014

Este trabalho parte de uma premissa a princípio curiosa. Um movimento musical, que compreende a idéia de executar música originalmente composta há pelo menos duzentos anos representa na verdade uma forma de expressão cultural contemporânea, assim como outros movimentos artísticos de vanguarda. Essa premissa, que contém em si um aparente anacronismo - algo inovador que busca suas fontes e meios no passado - revela o quanto o tecido do espaço-tempo tem se esgarçado nos dias atuais. Se o modernismo escolheu como armas para combater o canonismo romântico, a ruptura, a irreverência, e uma certa dose de racionalismo, os nossos tempos pós-modernos parecem ter a liberdade de até mesmo escolher o passado como motor de inovação para questionar práticas cristalizadas no chamado meio da música erudita. Executar “música antiga” é algo corriqueiro na atualidade, afinal a maior parte da música executada nas salas de concertos pelo mundo a fora foi composta no século XIX e primeira metade do século XX. Mesmo a execução de obras anteriores a este período não são novidade desde fins do século XIX. O que vai caracterizar um Movimento de “Música Antiga” é a idéia de que a música de cada período tem seu repertório próprio de recursos e que, portanto, há que se buscar uma forma específica para aborda-la. O objetivo deste trabalho é identificar o movimento da performance historicamente informada da Música Antiga - entendendo-se por música antiga a música ocidental produzida desde a idade média até meados do século XVIII - como uma expressão cultural essencialmente pós-moderna.

Música “atual" versus música “antiga" Até fins do século XVIII praticamente só se executava música escrita recentemente, havendo pouco interesse no repertório composto anteriormente. A música desempenhava um importante papel na liturgia da igreja, nas cortes palacianas e na crescente vida burguesa urbana, que buscava emular o estilo de vida da nobreza promovendo concertos e frequentando teatros de ópera. Como isso, havia sempre uma demanda por novas peças. Uma consequência disso é que não havia uma grande separação entre as atividades de compositor e do músico executante. A composição era vista como mais uma ferramenta do músico, em sua necessidade de sempre ter obras novas a serem apresentadas a um público ávido por novidades. “Antes do surgimento do Romantismo, improvisação e composição eram atividades normais para qualquer músico. Em um tempo em que novas peças estavam em constante demanda, ser um compositor não era nada especial, apenas parte do processo de produzir música. A notação barroca é como uma estenografia, algo que poderia ser chamado de escrita “superficial”. Compositores barrocos raramente incluíam marcas para indicar fraseado, por exemplo, ou dinâmicas, desenho de notas, flexibilidade de tempo, e sutilezas do ritmo. Variações deste tipo estão implícitas no estilo e portanto, músicos as executavam como algo natural. (Haynes, 2007. p.4)1 Esse quadro começa a ser alterado gradativamente a partir do século XIX, com o advento do romantismo. A passagem do século XVIII para o XIX é marcada por grandes transformações como a revolução industrial e principalmente a Revolução Francesa, a ponto desta ser considerada como um marco do início da Idade Contemporânea. Na música este período será também de grandes transformações e estas transformações não serão nada graduais.

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“Before the rise of Romanticism, improvisation an composition were normal activities for any musician. In a time when new pieces were in constant demand, being a composer was nothing special, just part of the process of producing music. Baroque notation is like shorthand, a quality known in the trade as “thin" writing. Baroque composers rarely included marks to indicate phrasing gestures, for instance, or dynamics, note-shaping, flexibility of tempo, and subtlety of rhythm. Variable of that kind are implied in the playing style, however, so performers supplied them as a matter of course. Thin writing was not thin because “thick" writing hadn’t been invented yet; it was deliberate. (Haynes, 2007. p.4)

“A revolução musical não parece ter sido gradual. Foi uma verdadeira quebra na história. As grandes mudanças no design e nas técnicas de do todo tipo de instrumento musical no início do romantismo, por exemplo, não foi uma lenta evolução; foi uma ruptura com o passado que se deu no espio de menos de duas gerações.” (Haynes, 2007. p.5)2 É nesse quadro de grandes mudanças que veremos também uma grande mudança no status ocupado pelo músico na sociedade e, especialmente, na figura do compositor. A música, e os músicos, que antes eram vistos como “artesãos”, ganha status de Arte, autônoma, o compositor é alçado à condição de herói e passa a ser visto como um gênio. Muitas das instituições musicais fundadas no século dezenove revelam esta mudança. Em suas fachadas podemos ver as efígies dos grandes compositores, com seus nomes gravados, como em um panteão. Começa-se a construir um cânone das obras clássicas a partir do romantismo. Este cânone terá por base as sinfonias de Beethoven, as quais irão se acrescentado às obras de outros compositores, em sua maioria do século XIX. “O cânone clássico é o repertório que todos conhecem do século XIX, inegavelmente belo e ao qual a maioria dos músicos dos dias atuais ainda dedicam seus talentos. Neste contexto, a obra de um compositor passa a ser vista como uma escritura”. (Haynes, 2007. p.5)3 No Romantismo a figura do compositor e seu status de “artista” em detrimento do de “artesão”, fazem com que sua obra seja, cada vez mais, vista como uma realização do espírito humano. Sendo assim, alguns compositores firmam-se como heróis e suas obras, como modelos a serem reverenciados. Desta forma, parte das música de alguns compositores passou a permanecer no repertório, ao lado das novas obras que iam aparecendo.

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“The musical revolution does not seem to have been gradual. It was truly a break in history. The major change in the designs and techniques of every kind of musical instrument at the beginning of the Romantic period, for instance, was no slow evolution; it was a rupture with the past that took place in less than two generations. (Haynes, 2007. p. 5) 3

“The classical canon is the repertoire we all know from the nineteenth century, undeniably beautiful music to which most musicians of the present day still dedicate their talents. In such a context, a composer’s works came to be seen almost as scripture.” (Haynes, 2007. p.5)

Essa nova forma de tratar a música fez com que o repertório das “obras primas” fosse crescendo continuamente, dividindo o espaço nas salas de concerto com as novas obras, até que, no século XX, a quantidade de música antiga superasse de forma esmagadora a de música nova. Alguns compositores anteriores à “revolução romântica” - anteriores a 1800 - foram posteriormente igualmente alçados à condição de “heróis" e "gênios", como predecessores dos compositores do século XIX. Haydn (1732-1809) que mesmo chegando reconhecido como um dos grandes de seu tempo, levou uma vida típica de “artesão”, escrevendo música incessantemente para a corte dos Esterházy; e Mozart (1756-1791), que foi talvez o primeiro compositor a tentar se emancipar da condição serviçal dentro das cortes ou na igreja. Este repertório de "obras primas” que passou a dominar a programação das salas de concerto e o gosto do público foi produzido principalmente no século XIX, agregando as obras de alguns mestres do final do século XVIII e outros do início do século XX, em especial os que continuaram seguindo a tradição romântica e não aderiram às correntes de ruptura modernista. A música anterior a 1750 ocupava um outro nicho, sendo muito pouco executada. Essa música é a que hoje definimos como “Música Antiga”. Música Antiga Podemos identificar três momentos, ou atitudes, que definem a forma de se abordar o repertório da chamada música antiga. Colecionismo ou cronocentrismo. A primeira atitude diante do repertório antigo pode ser definida como um colecionista ou cronocêntrica. Podemos identificar este tipo de abordagem a partir do século XIX em diante. A atitude colecionista vê o repertório antigo como uma curiosidade do passado, algo exótico, não sem uma certa dose de uma idealização romântica. A

atitude “colecionista" busca com as obras do passado exemplificar a evolução e o progresso continuo que levaram as obras primas do cânone clássico. Maravilha-se com as realizações do passado mas tem uma atitude interpretativa de realizar a música dentro dos parâmetros atuais, sem que haja qualquer atitude crítica em relação a este procedimento. Músicos tradicionais - ou seja, que receberam seu treinamento dentro do sistema criado a partir do século XIX e que seguem a cartilha do cânone clássico - tendem a achar que a forma de tocar tem sido a mesma desde sempre, sendo transmitida de mestre para mestre ao longo de gerações. É comum achar grandes solistas ou regentes que são capazes de traçar sua “genealogia musical” até este ou aquele virtuose do século dezenove. É natural para estes músicos pensar que seu jeito de tocar é o que se aplica a todo o repertório existente. Haynes chama esta atitude interpretativa de cronocentrista: “Esta é uma posição cronocêntrica, assumindo que o seu tempo ou período representa o ponto de referência; o equivalente no tempo ao conceito espacial do etnocentrismo.” (Haynes, 2007. p.26)4 Um exemplo que ilustra a atitude colecionista romântica é o “descobrimento” e execução da Paixão Segundo S. Mateus, de J.S. Bach, por Mendelssohn em 1829. O Movimento da Música Antiga e a idéia de autenticidade. A partir do século XX começam a surgir iniciativas de se compreender melhor a música anterior a 1800. Trabalhos pioneiros como o de Arnold Dolmetsch que publica em 1915 "The Interpretation of the Music of the 17th & 18th Centuries”5. Dolmetsch foi um dos primeiros a abordar em termos acadêmicos a questão da interpretação autêntica e histórica da música. O livro aborda de forma detalhada a questão "incluindo capítulos sobre expressão, tempo, alterações de ritmo, 4

“This is a chronocentric position, assuming that one’s own time or period represents the reference point; the equivalent in time of the spatial concept o ethnocentrism.” (Haynes, 2007. p.26) 5

Dolmetsch, Arnold. The Interpretation of the Music of the 17th & 18th Centuries. Dover Publications, 2005.

ornamentação, baixo cifrado, posição e digitação, e instrumentos do período.” 6 (Fabian, 2003. p.55) A primeira metade do século XX vê surgir uma série de nomes que irão se dedicar a redescobrir instrumentos que haviam se transformado em peças de museu, na maioria das vezes preservados mais por seu valor decorativo. Podemos citar Wanda Landowska (1879-1959), responsável pela redescoberta do cravo e seu repertório; Dolmetsch, responsável por recolocar em cena instrumentos como o alaúde e as flautas-doce, entre outros; Alfred Deller (1912-1979) que reintroduziu o registro de contratenor (voz masculina que canta como um contralto) na música renascentista e barroca. É ainda na década de 1930 que surge a primeira escola dedicada exclusivamente ao ensino e pesquisa da Música Antiga dentro dos moldes da interpretação histórica e autêntica, com a fundação da Schola Cantorum Basiliensis, em 1933. Segundo Ina Lohr, uma das fundadoras da Schola, “o objetivo da Schola em Basel era encontrar… repostas - primeiro internamente, depois publicamente - para os problemas da música do passado para então por os resultados a serviço da prática musical dos nossos dias.” 7(Lohr, 1952, p.27 in Fabian, 2003, p. 57) Este é um momento de grande descobertas sobre o repertório anterior ao romantismo. A execução da música busca apoiar-se no máximo de informações possíveis, reconstruindo instrumentos, aprofundando-se nas fontes. Há nesse momento um idéia de que seria possível uma reconstrução autêntica da música, fazendo que com que soasse exatamente como no tempo em que foi escrita. A medida que as pesquisas se aprofundam e as repostas são encontradas, a idéia de autenticidade começa a parecer frágil diante da evidência de que se pode reconstruir o passado, mas não revive-lo.

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including chapters on Expression, Tempo, Alteration of Rhythm, Ornamentation, Thorough Bass, Position & Fingering, and Instruments of the Period. (Fabian, 2003. p.55) 7

‘The aim of the Schola at Basel was to find ... answers – first internally, then publicly – to the problems of old music and then to put the results at the service of today’s musical practice.’ (Lohr, 1952, p. 27 in Fabian, 2003. p. 57)

“Não pensamos muito a respeito, mas de fato, estas velhas peças não foram escritas para nós, Ninguém lá atrás sabia como nós seríamos, que tipos de instrumentos tocaríamos, ou o que esperaríamos da música. De fato, Eles nem imaginavam que estaríamos tocando suas peças. Então, um pouco de adaptação é necessária para que sua música nos sirva.” (Haynes, 2007. p. 9)8 HIP - Historically Informed Performance A ideia da performance historicamente orientada é que a autenticidade é algo inatingível. Por mais elementos que se reunam na pesquisa para uma execução da música antiga, seu resultado será sempre contemporâneo. A prática do “HIP" incorpora também outras fontes de informação além das tradicionais - fontes escritas, instrumentos remanescentes, iconografia - buscando preencher lacunas através de práticas conservadas em algumas culturas tradicionais e tradição oral. Outro ponto importante é que a Performance Historicamente Orientada rejeita a idéia de que a história da música seja uma linha de progresso constante e que as realizações dos compositores mais recentes necessariamente superam as de seus antecessores. “Uma das mensagens básica do HIP é a rejeição da idéia de progresso que ainda mantém muitos de nós - inconscientemente - escravizados. A história da música, HIP diz, não é uma estória de desenvolvimento gradual; ou, como Collingwood disse: “Bach não estava tentando escrever como Beethoven e fracassando, Atenas não foi uma tentativa relativamente fracassada de construir Roma”. A história da arte pode ser vista como uma espécie de Darvinismo apenas se lembrarmos de uma condição essencial: evolução depende do princípio de adaptação ao ambiente. Os objetivos de um concerto de Vivaldi são bastante diferentes dos de um de Mozart, Beethoven ou Paganini; e compara-los é válido apenas no contexto de seus diferentes objetivos. Mais importante ainda, a teoria da evolução cai por terra quando associada a um juízo de valores. Uma afirmação comum entre músicos é que a arte evolui em uma continua linha em direção à perfeição do presente. Isso implicaria em que o mundo da arte de hoje fosse o melhor dos mundos 8

“We don’t think about much, but in fact those old pieces were not written for us. Nobody back then knew what we would be like, what kinds of instruments we would be playing, or what we would expect from our music. In fact, they didn’t even know we would be playing their pieces. So, a little adaptation is called for to fit their music to us.” (Haynes, 2007. p. 9)

possíveis - uma conclusão que a maioria teria dificuldade em concordar.” (Haynes, 2007. p. 7)9 Características do Pós-modernismo No capítulo 3 “Pós-modernismo” de seu “A Condição Pós-Moderna” (Loyola, 1994)10, David Harvey faz um levantamento extensivo de como vários teóricos definiram o pós-modernismo. A Pós-modernidade pode ser caracterizada por uma fragmentação da noção de tempo. Ao invés de realidades imutáveis, ou em lenta mudança, temos um mundo em contínua fragmentação. “Começo com o que parece ser o fato mais espantoso sobre o pósmodernismo: sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico que formavam uma metade do conceito baudelairiano de modernidade. Mas o pós-modernismo responde a isso de uma maneira bem particular; ele não tenta transcendê-lo, opor-se a ele e sequer definir os elementos "eternos e imutáveis" que poderiam estar contidos nele. O pós-modernismo nada, e até se espoja, nas fragmentárias e caóticas correntes da mudança, como se isso fosse tudo o que existisse”. (p. 5) Uma decorrência da fragmentação é a negação da existência de qualquer metanarrativa, metateoria, ou metalinguagem que fosse capaz de reunir essa realidade em fragmentação. 9

“One of the basic messages of HIP is the rejection of the idea of progress that still holds many of us unconsciously - in thrall. The history of music, HIP is saying, is not a story of gradual improvement; or, as Collingwood put it, “Bach was not trying to write like Beethoven and failing; Athens was not a relatively unsuccessful attempt to produce Rome”. The history of art can be seen as a kind of Darwinian evolution only if we remember one essencial condition: evolution depends on the principle of appropriate adaptation to environment. The goals of a Vivaldi concerto are quite different from those of Mozart, Beethoven, or Paganini; and to compare them is rewarding only in the context of their differing aims. Most important of all, the evolutionary theory breaks down when it is associated with value judgements. A common assumption among musicians is that art evolves in a continuous line to the perfection of the present. This implies that the world of art today must be the best of all possible worlds - a conclusion most people would find difficult to agree with.” (Haynes, 2007. p. 7) 10

Harvey, David. Capitulo 3 “Pós-modernismo, in A condição Pós-Moderna, Edições Loyola, 1994 Extrato do Livro obtido em: http://pt.slideshare.net/brunoagustini/harvey-david-passagem-damodernidade-ps-modernidadecaptulo-de-condio-psmoderna Obs. A numeração de páginas nas citações segue esta separata obtida no link mencionado.

Para começar, encontramos autores como Foucault e Lyotard atacando explicitamente qualquer noção de que possa haver uma metalinguagem, uma metanarrativa ou uma metateoria mediante as quais todas as coisas possam ser conectadas ou representadas. As verdades eternas e universais, se é que existem, não podem ser especificadas. Condenando as metanarrativas (amplos esquemas interpretativos como os produzidos por Marx ou Freud) como "totalizantes", eles insistem na pluralidade de formações de "poder-discurso" (Foucault) ou de "jogos de linguagem" (Lyotard). Lyotard, com efeito, define o pós-moderno simplesmente como "incredulidade diante das metanarrativas”. (p. 6) Harvey cita Lyotard para mostrar como o “ser linguístico” se desdobra em muitos. Um mesmo indivíduo experimenta diversos “personagens” e adequa sua maneira de comunicar-se de acordo com o contexto. Apesar de "o vínculo social ser lingüístico", argumenta, ele "não é tecido com um único fio", mas por um "número indeterminado" de "jogos de linguagem". Cada um de nós vive "na intersecção de muitos desses jogos de linguagem", e não estabeescriturane’essariamente "combinações lingüísticas estáveis, e as propriedades daquelas que estabelecemos não são necessariamente comunicáveis”. (…) A "atomização do social em redes flexíveis de jogos de linguagem" sugere que cada um pode recorrer a um conjunto bem distinto de códigos, a depender da situação em que se encontrar (em casa, no trabalho, na igreja, na rua ou no bar, num enterro etc.). (p.7-8) O desdobramento do indivíduo se reflete na cultura. Mesmo a idéia de originalidade ou ineditismo se desfazem. A criação artística se dá em vários níveis simultaneamente, sem que se possa estabelecer uma hierarquia clara. Uma obra fala de outra, que por sua vez, pegou algo emprestado de uma terceira, que era uma síntese de várias outras… A vida cultural é, pois, vista como uma série de textos em intersecção com outros textos, produzindo mais textos (incluindo o do crítico literário, que visa produzir outra obra literária em que os textos sob consideração entram em intersecção livre com outros textos que possam ter afetado o seu pensamento). Esse entrelaçamento intertextual tem vida própria; o que quer que escrevamos transmite sentidos que não estavam ou possivelmente não podiam estar na nossa intenção, e as nossas palavras não podem transmitir

o que queremos dizer. É vão tentar dominar um texto, porque o perpétuo entretecer de textos e sentidos está fora do nosso controle; a linguagem opera através de nós. Reconhecendo isso, o impulso desconstrucionista é procurar, dentro de um texto por outro, dissolver um texto em outro ou embutir um texto em outro. (p. 10) Essa desconstrução da narrativa desloca o poder do autor para o público, proporcionando uma maior participação deste nos processos culturais, mas também tem suas consequências não tão positivas: A minimização da autoridade do produtor cultural cria a oportunidade de participação popular e de determinações democráticas de valores culturais, mas ao preço de uma certa incoerência ou, o que é mais problemático, de uma certa vulnerabilidade à manipulação do mercado de massa. De todo modo, o produtor cultural só cria matérias-primas (fragmentos e elementos), deixando aberta aos consumidores a recombinação desses elementos da maneira que eles quiserem. O efeito é quebrar (desconstruir) o poder do autor de impor significados ou de oferecer uma narrativa contínua. (p. 12) O pós-modernismo, com suas múltiplas narrativas, pode ser definido como um estado esquizofrênico: O pós-modernismo (…) parece depender, para ter validade, de um modo particular de experimentar, interpretar e ser no mundo - o que nos leva ao que é, talvez, a mais problemática faceta do pós-modernismo: seus pressupostos psicológicos quanto à personalidade, à motivação e ao comportamento. A preocupação com a fragmentação e instabilidade da linguagem e dos discursos leva diretamente, por exemplo, a certa concepção da personalidade. Encapsulada, essa concepção se concentra na esquizofrenia (não, deve-se enfatizar, em seu sentido clínico estrito), em vez da na alienação e na paranóia. (p. 13) A própria experiência do Tempo se fragmenta. a incapacidade de unificar passado, presente e futuro na frase assinala uma incapacidade semelhante de "unificar o passado, o presente e o futuro da nossa própria experiência biográfica ou vida psíquica". Isso de fato se enquadra na preocupação pós-moderna com o significante, e não com o significado. (p. 14)

O efeito desse colapso da cadeia significativa é reduzir a experiência a "uma série de presentes puros e não relacionados no tempo”. (p. 14) O presente parece conter em si o passado e o futuro. A redução da experiência a "uma série de presentes puros e não relacionados no tempo" implica também que a "experiência do presente se torna poderosa e arrasadoramente vívida e 'material': o mundo surge diante do esquizofrênico com uma intensidade aumentada, trazendo a carga misteriosa e opressiva do afeto, borbulhando de energia alucinatória" (Jameson, 1984, 120). (in Harvey, 1994, p. 15) Assim, a idéia de continuidade histórica e sua visão positivista são desconstruídos. O pós-modernismo se serve dos diversos período históricos para criar o seu presente, colando, justapondo. Essa ruptura da ordem temporal de coisas também origina um peculiar tratamento do passado. Rejeitando a idéia de progresso, o pós-modernismo abandona todo sentido de continuidade e memória histórica, enquanto desenvolve uma incrível capacidade de pilhar a história e absorver tudo o que nela classifica como aspecto do presente. (p.15) Surge uma preocupação com a instantaneidade e a produção cultural tende ao espetáculo. O colapso dos horizontes temporais e a preocupação com a instantaneidade surgiram em parte em decorrência da ênfase contemporânea no campo da produção cultural em eventos, espetáculos, happenings e imagens de mídia. Os produtores culturais aprenderam a explorar e usar novas tecnologias, a mídia e, em última análise, as possibilidades multimídia. (p. 19) O pós-modernismo busca reaproximar-se do público, que no modernismo foi-se afastando gradualmente. Busca uma linguagem mais próxima ao popular e é afeito ao uso das novas tecnologias. A aproximação entre a cultura popular e a produção cultural do período contemporâneo, embora dependa muito de novas tecnologias de

comunicação, parece carecer de todo impulso vanguardista ou revolucionário, levando muitos a acusar o pós-modernismo de uma simples e direta rendição à mercadificação, à comercialização e ao mercado (Foster, 1985). (p. 19)

Música Antiga como fenômeno pós-moderno Podemos identificar nas práticas atuais da interpretação da Música Antiga, uma série de características pós-modernas. Nega as grandes metanarrativas e o progresso contínuo da história. Cada período deve ser visto e abordado em suas próprias bases. A idéia de que os compositores dos período seguinte “superaram" os do anterior é descartada. Defende a existência de várias linguagens simultaneamente (não há a forma “correta” de se abordar um determinado repertório). Assim cada repertório tem o seu "campo linguístico”, mas não existe uma única leitura possível. O músico mune-se do máximo de informação sobre a obra, mas cada interpretação seguirá seu caminho próprio. Tem como base a história mas defende a existência de várias histórias. A ideia de uma “performance historicamente orientada” não está atrelada a uma visão convencional (positivista) da história. Incorpora em seu discurso referências contemporâneas como forma de se legitimar (tradição oral, improviso jazzístico, etc.). A ruptura com a visão linear da história faz com que muitas vezes o intérprete incorpore elementos que seriam a princípio estranhos ao repertório original. Aqui, as ligações se dão em outros planos que não o histórico. A utilização de elementos trazidos da tradição oral busca encontrar a ligação original da música antiga com estas tradições, que teriam mudado muito pouco desde então. A associação a outros estilos contemporâneos a uma interpretação pode ter base em ligações como a de um baixo ostinatto que remete a um “walking bass" jazzístico.

Tendência mais atual fortemente ligada ao espetáculo (em oposição à imagem do músico erudito “tradicional”). A incorporação de outras linguagens a interpretação e com isso uma busca de aproximação com o público, remetem ao mesmo mecanismo citado como característico do pós-modernismo. Há aqui também a intenção de romper com a imagem do músico erudito tradicional, vestido de casaca. O surgimento de cada uma de suas fases mencionadas não encerra necessariamente a anterior. Podemos identificar facilmente as três abordagens ainda em prática hoje em dia. Por fim, de forma tipicamente pós-moderna, podemos identificar em plena atividade todos os três tipos de abordagem ao repertório da música antiga. Quando uma orquestra sinfônica de grande porte decide programar uma obra como o Messias, de Handel, ou a Paixão segundo S. Mateus, de Bach, ou até mesmo sinfonias de Haydn, executando estas obras seguindo estritamente o texto musical, num tipo abordagem que tem suas origens no século XIX, podemos identificar aí a prática colecionista. É ainda bastante comum se ouvir o discurso da “autenticidade" por parte de muitos músicos dedicados à pesquisa e interpretação da Música Antiga. Esse comportamento pode assumir características peculiares quando determinados conjuntos se apresentam caracterizados com figurinos de época, buscando aumentar esta sensação de autenticidade. No campo da performance historicamente orientada, as possibilidades são infinitas, englobando desde interpretações que se reconstroem minuciosamente as condições e práticas originais (sem a pretensão de serem “autênticas”) até o cross-over unindo vários estilos.


Referências Bibliográficas Harvey, David. Capitulo 3 “Pós-modernismo”, in A condição Pós-Moderna, Edições Loyola, 1994 - Extrato do Livro obtido em: http://pt.slideshare.net/brunoagustini/harvey-davidpassagem-da-modernidade-ps-modernidadecaptulo-de-condio-psmoderna

Fabian, Dorottya. Capítulo 2 "The early music movement: a style oriented history”, in Bach Performance Practice 1945-1975: A comprehensive Review of Sound Recordings and Literature. Ashgate, 2003. Obtido em https://www.academia.edu/6389275/ The_Early_Music_Movement_A_style-oriented_history_2003_

Haynes, Bruce. The End of Early Music: A Period Performer's History of Music for the Twenty-First Century, Oxford University Press, 2007

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