O movimento da Nova Canção Chilena no debate sobre a “questão cultural” travado na revista La Quinta Rueda (1972-1973)

June 28, 2017 | Autor: Natália Schmiedecke | Categoria: Music and Politics, Cultural Politics, History of Chile, Left and Right Political Culture Model
Share Embed


Descrição do Produto

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

O movimento da Nova Canção Chilena no debate sobre a “questão cultural” travado na revista La Quinta Rueda (19721973)

Natália Ayo Schmiedecke*

Em 1970, o socialista Salvador Allende chegava à presidência do Chile representando a coalizão de partidos de esquerda denominada Unidade Popular (UP), liderada pelos partidos Comunista e Socialista.1 Seu programa de governo, intitulado Via chilena ao socialismo, previa a instauração do regime socialista no país por vias democráticas, respeitando a institucionalidade vigente e, assim, afastando-se da opção armada, identificada com a Revolução Cubana. Aprovado em 17 de dezembro de 1969, o documento apontava para a cultura como uma prioridade do “governo popular”, postulando que: O processo social que se abre com o triunfo do povo irá conformando uma nova cultura [...] As mudanças que se farão necessitam de um povo socialmente consciente e solidário, educado para exercer e defender seu poder político, apto científica e tecnicamente para desenvolver a economia de transição para o socialismo e aberto massivamente à criação e gozo das mais variadas manifestações da arte e do intelecto.2

Na sequência, referenciava os escritores e artistas comprometidos com a esquerda, explicitando a intenção de transformar a criação artística em um agente da pretendida revolução3: Se hoje a maioria dos intelectuais e artistas lutam contra as deformações culturais próprias da sociedade capitalista e tentam levar os frutos de sua criação aos trabalhadores e vincular-se ao seu destino histórico, na nova sociedade terão um lugar de vanguarda para continuar com sua ação. Porque a 1

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

cultura nova não se criará por decreto, ela surgirá da luta pela fraternidade contra o individualismo; pela valorização do trabalho humano contra seu desprezo; pelos valores nacionais contra a colonização cultural; pelo acesso das massas populares à arte, à literatura e os meios de comunicação contra sua comercialização.4

Embora não apresentasse um projeto detalhado para a realização desses objetivos, o programa indicava que “O Estado procurará a incorporação das massas à atividade intelectual e artística, tanto através de um sistema educacional radicalmente transformado, como através do estabelecimento de um sistema nacional de cultura popular”5. A reforma educacional se daria, sobretudo através da criação da Escola Nacional Unificada (ENU)6, ao passo que as manifestações da cultura popular seriam apoiadas por meio de uma extensa rede de Centros Locales de Cultura Popular (CCPs). No ano seguinte, foram definidas quarenta metas imediatas de governo, conhecidas como “As quarenta medidas”. A última delas previa a criação do Instituto Nacional del Arte y la Cultura (INAIC), além da proliferação de escolas de formação artística. Diante destes dados, é possível inferir que a cultura ocupava um lugar central no projeto da via chilena ao socialismo. Mas se passamos da teoria à prática, verificamos que foram poucas as medidas culturais de fato implementadas pelo governo da UP, tanto através do Departamento de Cultura de la Presidencia de la República quanto do Ministerio de Educación Pública. No campo educacional, o projeto da Escola Nacional Unificada gerou muita polêmica por conta de seus fundamentos marxistas e não conseguiu ser aprovado. No que se refere à produção artística, a criação do INAIC não se concretizou, o que implicou na falta de regulação e coordenação das diferentes inciativas particulares (individuais ou coletivas) que contaram

com

apoio

governamental.

Por

sua

vez,

os

principais

empreendimentos estatais efetivamente levados a cabo entre 1970 e 1973 foram: a realização de caravanas reunindo músicos e outros artistas que se apresentaram ao longo do país (com destaque para os Trens da Cultura, em 1971); a criação de alguns Centros de Cultura Popular em localidades urbanas e rurais; e a nacionalização, em 1971, de duas empresas: a multinacional RCA 2

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

Victor (que se transformou no selo discográfico IRT) e a Editorial Zig-Zag (convertida em Editora Nacional Quimantú). O quadro de instituições culturais estatais também era composto pela empresa cinematográfica Chile Films e pelo canal televisivo TV Nacional, ambos herdados de governos anteriores. No caso da Quimantú, a gestão estatal definiu um novo perfil editorial e a lógica econômica foi sendo reajustada por uma política cultural voltada à massificação da informação. Assim, criaram-se diferentes coleções de livros, além de novos periódicos, dirigidos a segmentos específicos da população, como a revista juvenil Onda, a revista feminina Paloma e a revista infantil Cabro Chico.7 Ampliando consideravelmente a produção e a distribuição de suas publicações, vendidas a preços baixos, a editora buscou atingir distintos setores sociais. Este projeto tinha como fundamento a intenção de fazer com que a “cultura” chegasse ao “povo”, conscientizando-o e educando-o para que pudesse exercer e defender o poder político recém-conquistado. Tomando como referência o quadro de iniciativas governamentais acima resumido, é possível afirmar que, embora não houvesse uma política cultural claramente definida por parte da UP8, prevaleceu a busca por democratizar a produção cultural, tornando mais acessíveis conteúdos que até então eram privilégio de determinados grupos sociais. A atuação do governo no campo cultural e seus pressupostos geraram intensos debates no meio intelectual chileno. O tema do lugar da cultura no processo revolucionário, que já vinha sendo discutido desde antes de 1970, ganhou força em 1971 (quando a maior parte das medidas culturais oficiais foi implementada) e em 1972 motivou a criação de uma nova publicação da Quimantú: a revista cultural La Quinta Rueda (LQR), que circulou mensalmente de outubro de 1972 a agosto de 1973, totalizando nove edições.9 Em poucos casos a afirmação da crítica literária Beatriz Sarlo segundo a qual as revistas constituem espaços de intervenção na conjuntura confirma-se de forma tão explícita quanto em LQR.10 A intenção de publicar uma revista para fazer política cultural aparece ressaltada desde sua primeira edição, evidenciando um propósito central: constituir um fórum de discussões sobre o cenário artístico e educacional chileno, apontando caminhos para a renovação do campo cultural e cobrando uma participação mais ativa do governo na 3

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

realização deste objetivo. Daí seu título irônico, que visava protestar contra a falta de compromisso estatal com o campo cultural, como se este fosse a “quinta roda do carro”, isto é, algo supérfluo. Dirigida pelo jornalista e crítico de cinema Hans Ehrmann, a equipe de editores inicial de LQR estava composta por Carlos Maldonado (crítico de teatro e encarregado nacional de cultura do Partido Comunista), Mario Salazar (sociólogo, cantor11, produtor musical e teatral, filiado ao Partido Socialista) e Antonio Skármeta (escritor e diretor teatral, membro do Movimiento de Acción Popular Unitaria - MAPU). Após cinco edições, Salazar foi substituído por Alfonso Calderón, escritor e crítico literário que já havia publicado alguns textos na revista. Observa-se que, assim como em outras áreas vinculadas ao governo, LQR assumiu a política de cotas, que previa a distribuição equitativa de vagas e cargos diretivos entre os principais partidos integrantes da UP.12 Desse modo, à exceção do diretor Hans Ehrmann, todos os realizadores da revista eram intelectuais filiados a partidos políticos. A composição da equipe editorial informa sobre os pressupostos e o conteúdo da publicação. Em primeiro lugar, trata-se de um grupo que apoiava o governo e estava ligado a ele, ou seja, que pretendia colaborar com a realização da via chilena ao socialismo, de modo que suas críticas às iniciativas oficiais tinham a intenção de ser construtivas. Em segundo lugar, a heterogeneidade da formação e atuação profissional dos editores é indicativa da variedade de temas abarcados pela revista, que incluía matérias sobre literatura, cinema, música, teatro, artes plásticas e educação, entre outros. Por fim, a filiação dos membros do conselho a diferentes partidos ajuda a explicar a diversidade de posicionamentos expressos em suas páginas. No que se refere ao aspecto formal da revista, chama atenção a falta de rigidez no modo de apresentação dos conteúdos, sendo que a quantidade de 24 páginas por edição (incluindo capa e contracapa) parece constituir o único padrão respeitado nos nove números. De resto, não há seções fixas (sendo rara a nomeação de alguma seção); a maior parte das edições não contém textos editoriais; cartas de leitores são publicadas apenas entre os números 2 e 6. É possível que essa falta de padrão se relacione a uma tentativa de experimentar formas antes de adotar um modelo definitivo. Por outro lado, 4

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

pode-se reconhecer uma identidade visual em LQR, proporcionada pela arte gráfica, em que se destaca a abundância de imagens. Por seu aspecto visual e pelos temas que aborda, a revista parece se direcionar ao público jovem e intelectual, mas os temas destacados na capa – como o cantor de bolero Ramón Aguilera, a folclorista Violeta Parra, o pintor Pablo Picasso, uma cena cinematográfica de sexo e o famoso personagem televisivo Barnabás Collins – podem ter contribuído despertar o interesse de outros grupos, ampliando seu alcance. Os objetivos que motivaram a criação de LQR são abordados na segunda edição, no texto intitulado “Planteamientos”, que funciona como uma espécie de editorial. Ressaltando que ela nasceu em meio a uma intensa confrontação de classes, o texto afirma sua opção pelo “povo”.13 A seguir, informa que um de seus princípios fundamentais seria “nascer com o nosso”, de modo a não subordinar-se à “dependência cultural”: “Devemos refletir em primeiro termo a realidade chilena, logo a latino-americana e somente depois as grandes metrópoles”. Por fim, os editores afirmam que a intenção da revista não era expressar o posicionamento de um grupo, mas constituir um espaço de debate aberto a todos que tivessem algo para aportar ao diagnóstico e ao desenvolvimento da realidade cultural nacional.14 A análise da revista permite constatar que as principais problemáticas ali abordadas eram: a necessidade de criação de organismos culturais eficientes; as perguntas pelo lugar dos escritores e artistas no processo revolucionário e pelo tipo de cultura a ser incentivado pelo governo; e a divulgação de projetos culturais que vinham sendo realizados por indivíduos, grupos e instituições, com ou sem apoio estatal. Observa-se que todos os intelectuais que expressaram opiniões nos textos publicados em LQR compartilhavam da ideia de que os “trabalhadores da cultura” deveriam contribuir com o processo de mudanças desencadeado pela UP, respondendo ao desafio da criação de uma “nova cultura”. Mas isso não significava um consenso em relação às formas a serem empregadas para atingir tal objetivo. Também são visíveis diferenças de ênfase no que se refere ao protagonismo dos intelectuais no processo cultural, o que se relaciona com

5

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

as distintas concepções expressas acerca do tipo de cultura a ser cultivado com vistas à nova sociedade. Isso porque a reivindicação da cultura popular foi alvo de diferentes interpretações, dadas as imprecisões envolvidas no termo: tratar-se-ia da cultura feita pelo povo, baseada nele ou direcionada a ele? Em outras palavras: o “povo” deveria ser criador, inspirador ou consumidor privilegiado da produção cultural? Essas questões levavam a outras: os setores populares seriam os únicos capazes de criar uma cultura renovada? O trabalho dos intelectuais deveria se limitar a colaborar, no aspecto técnico, com os artistas populares? Eles necessitavam proletarizar-se, conforme o modelo cubano? Apenas as temáticas e formas “populares” seriam interessantes para o processo? Ou deveria haver espaço para que os artistas continuassem a criar livremente, assumindo uma postura crítica e conduzindo a transformação cultural? E quanto ao governo? Seria válido democratizar o acesso à cultura existente ou apenas as obras que expressassem a cultura proletária deveriam ser promovidas? Não é de surpreender, portanto, que tenham convivido na revista textos que abordavam o cenário cultural nacional a partir de enfoques diversos, destacando-se: a “ida” dos intelectuais ao povo (desenvolvendo projetos com artistas amadores); as temáticas e formas “populares” que estavam sendo cultivadas por escritores, músicos, artistas plásticos, cineastas e grupos teatrais profissionais; as políticas culturais e obras artísticas voltadas a massificar a cultura “tradicional” (como a editora Quimantú); a presença crescente do “povo” em espaços culturais (como o Teatro Municipal); a produção cultural oriunda do próprio “povo” (grupos amadores de teatro, poetas populares etc.); e o processo criativo de artistas não necessariamente engajados (como o escritor José Donoso). Tendo apresentado um rápido balanço das principais questões em pauta na publicação, passo agora a examinar o lugar ocupado pela música em suas páginas. Em termos numéricos, considerando-se as nove edições, observa-se que 21,5 matérias, 4 propagandas (discos lançados pelo selo IRT), 2 capas e ¼ contracapa são dedicadas à música, totalizando aproximadamente 10,4% do conteúdo total da revista, sendo que 8 páginas e uma capa correspondem à 6

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

quarta edição, que homenageia a folclorista, compositora e intérprete Violeta Parra. Esse material abarca entrevistas com músicos e artigos sobre música, dos quais alguns foram escritos por integrantes do movimento da Nova Canção Chilena (NCCh)15. É o caso de Payo Grondona, que publicou dois textos na revista, sendo um sobre suas turnês pela Argentina (com Marta Contreras e Osvaldo Rodríguez), Uruguai (apresentação com Daniel Viglietti) e Cuba (participação no Encuentro de Música Latinoamericana, com Víctor Jara e Isabel Parra)16, em 1972; e outro sobre música cubana, na edição especial de LQR dedicada à comemoração do aniversário do ataque ao quartel Moncada.17 Por sua vez, Osvaldo Rodríguez escreveu sobre as influências musicais recebidas ao decorrer de sua vida e sobre a Peña de Valparaíso18, que ajudou a fundar.19 A mesma edição publicou um texto do conjunto Inti-Illimani sobre os rumos da NCCh.20Posteriormente, o músico Sergio Ortega escreveu a respeito de sua trajetória artística e sobre a cantata popular La Fragua, que compôs em homenagem ao aniversário do Partido Comunista, em 1972.21 EVíctor Jara publicou um texto na última edição da revista sobre sua viagem ao Peru, convidado pelo Instituto Nacional de Cultura. No que se refere aos artigos que tematizaram músicos da NCCh sem contar com autoria dos mesmos, os assuntos abordados foram o livro Buenas noches los pastores, de Patricio Manns22; a participação de Víctor Jara em um trabalho voluntário23; além dos discos:Isabel Parra e parte do G.E.S. do ICAIC, gravado por Isabel Parra junto ao grupo cubano24, Canto para una semilla, de Isabel Parra, Carmen Bunster e Inti-Illimani, e Tu sueño es mi sueño, tu grito es mi canto, do duo Amerindios.25 Outros textos que se referem ao movimento são a entrevista com Ángel Parra e Raquel Barros publicada na quinta edição de LQR26; um artigo em que o editor Antonio Skármeta discorre sobre a falta de políticas culturais que apoiassem a NCCh27; uma menção elogiosa ao movimento no artigo de René Schneider sobre a TV Nacional28; e a inclusão, em uma pequena antologia de textos e imagens dedicados ao processo chileno publicada na segunda edição da revista, das letras das canções “Canción Amerindios”, de Julio Numhauser;

7

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

“Canción de amor al proceso”, de Payo Grondona; e “La canción de Luciano”, de Patricio Manns.29 Por fim, é importante mencionar as matérias relacionadas ao campo musical que não enfocam a NCCh, como um comentário sobre o Tercer Festival de Música Contemporánea, realizado no Teatro Oriente da Pontificia Universidad Católica de Chile (PUC)30; a entrevista com o ídolo Ramón Aguilera na sétima edição da revista, que traz na capa a imagem do cantor de boleros31; e as opiniões dos músicos Fernando García e Fernando Rosas, que apresentam visões distintas sobre a temporada de música de câmara da PUC32. De forma geral, observamos que a maior parte do conteúdo da revista dedicado à música se refere à NCCh, indicando que este era o tipo de música mais valorizado pelos editores. Por outro lado, com base na leitura inicial deste material, foi possível concluir que, ainda que fosse um tema frequentemente presente, os assuntos abordados nas matérias dedicadas ao movimento poucas vezes tocaram de forma explícita na “questão cultural”, destacando-se, neste sentido, o já mencionado artigo do editor Antonio Skármeta intitulado “¿Qué cantar?”. Referindo-se implicitamente à Nova Canção Chilena, o autor define a “canção chilena atual” como aquela que se compõe com fins que ultrapassam o êxito comercial, o mero entretenimento e o sentimentalismo. A seu ver, este tipo de canção estaria “fervendo”, mas à margem dos meios de comunicação de massa (rádio e TV), desenvolvendo-se em discos, peñas e recitais. Visando contornar tal situação, defende a promoção de políticas culturais para colaborar no desenvolvimento da NCCh, garantindo a difusão do repertório de músicos como Isabel Parra, Víctor Jara e Inti-Illimani, além de oferecer-lhes novos campos de atuação, a exemplo do que estaria ocorrendo em Cuba com o ICAIC. Por fim, Skármeta aponta para a cultura (e a canção) como um âmbito importante da luta contra o imperialismo, desde que estivesse voltada a expressar “o rosto próprio” do Chile. A publicação deste artigo no primeiro número da revista parecia indicar que a música ocuparia um lugar central nos debates sobre a “nova cultura”, mas isso não se verifica nas edições seguintes, ainda que seja possível estabelecer algumas relações entre as matérias dedicadas à NCCh e os temas 8

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

centrais abordados em LQR. Em primeiro lugar, há que se levar em conta a homenagem ao aniversário de morte de Violeta Parra feita na quarta edição, composta pela imagem da capa e por duas matérias dedicadas à artista. A primeira é uma transcrição de depoimentos de pessoas que a conheceram pessoalmente, tendo como questão de fundo como sua personalidade artística foi sendo construída. O texto se encerra com um depoimento de sua irmã Hilda Parra, que comenta a luta de Violeta para difundir o folclore e conseguir que ele fosse respeitado. A seguir, a revista reproduz o conto “El entierro de Violeta”, escrito por Miguel Cabezas logo após sua morte. Além destas duas matérias, que totalizam seis páginas, a quarta edição de LQR inclui os artigos escritos por Osvaldo Rodríguez e Inti-Illimani, que se referem a Violeta Parra como precursora do movimento da NCCh, especialmente no que se refere à articulação entre tradições populares (folclore), tematização de questões sociais e criação artística. No artigo do IntiIllimani, que tem como mote a crítica à canção de tipo panfletário que estava sendo cultivada por alguns integrantes da NCCh, como o Quilapayún, podemos perceber o propósito de “relembrar” ao movimento qual o caminho a ser seguido sem desvirtuar-se dos “ensinamentos” de Violeta. A polêmica em torno da validade da canção panfletária tem continuidade na edição seguinte da revista, na matéria “NUEVA CANCIÓN personaje sin carnet”, em que o jornalista Fernando Barraza entrevista o músico Ángel Parra e a folclorista Raquel Barros perguntando-lhes sobre quais seriam, em sua opinião, as principais características do movimento e sua importância. Também lhes pede para comentar a ideia de que ele estaria vivenciando uma crise desde a vitória da UP, uma vez que os músicos não teriam mais “por que” protestar. Para Raquel Barros, a NCCh se destacaria pelo conteúdo social das canções e pela inspiração latino-americanista. A seu ver, usar a canção para entregar uma mensagem social seria legítimo, mas só na medida em que não se resumisse ao panfleto político. Daí sua crítica ao movimento por cair frequentemente em um dos seguintes extremos: o músico que se afasta da realidade do povo, não transcendendo os círculos universitários e intelectuais; e o músico que cai na vulgaridade visando conquistar a massa. Por sua vez, Ángel Parra tenta reconstituir o histórico do movimento a partir de Violeta 9

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

Parra, destacando como marca seu compromisso político com as lutas populares. Também afirma discordar das opiniões segundo as quais a NCCh estaria em crise criativa, argumentando que o problema residiria nos meios de comunicação massivos, que não davam espaço ao movimento (ou seja, ao que o “povo” chileno queria ouvir33), limitando-se a reproduzir os hits norteamericanos. Seria interessante – mas inviável nos limites deste texto – analisar as diversas representações presentes nos artigos e entrevistas anteriormente mencionados. Porém, a fim de manter-me dentro da temática proposta, interessa destacar que LQR estabeleceu diálogos com a NCCh, publicando matérias sobre distintos temas relacionados ao movimento e, em algumas ocasiões, abrindo espaço para que determinados músicos falassem sobre sua trajetória ou opinassem sobre temas que estavam em voga no debate cultural, como o da arte panfletária. Mas se levarmos em consideração o espaço que estas matérias ocupam no volume total das nove edições da revista, confrontando o conteúdo dedicado à música com aquele dedicado à literatura, ao teatro ou ao cinema, podemos concluir que há relativamente pouco interesse por inserir os músicos no debate cultural, o que também é corroborado pela pequena quantidade de entrevistas e artigos próprios publicados. Tendo em vista tal quadro, cabe perguntar se os músicos da NCCh foram valorizados, no contexto da esquerda chilena, como agentes capazes de promover a transformação do campo cultural. Esta questão ganha especial interesse se levarmos em conta que o movimento até hoje é tomado – dentro e fora da academia, em nível nacional e internacional – como o principal referente cultural do governo da UP. Nas palavras do historiador César Albornoz: “Os músicos da Nova Canção se transformaram na cara visível, e facilmente reconhecível pelo público massivo, dos novos valores que se propunham”34. Mas como se deu esta identificação entre a NCCh e os valores vinculados com a via chilena ao socialismo? Os músicos encontraram espaço para opinar nas políticas culturais que estavam sendo gestadas? Ou se tratava

10

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

primordialmente de tentar apropriar-se de sua popularidade para angariar apoio político? A abordagem dessas questões a partir de fontes diversificadas – dentre as quais,a revista La Quinta Rueda – permitiria observar quais foram as relações de fato estabelecidas entre a NCCh e o governo UP, situando o movimento em um contexto político e cultural cuja complexidade impede qualquer associação simplista entre arte e política.

*

Doutoranda em História – UNESP-Franca, Bolsista da FAPESP. Contato: [email protected] Integravam a formação original da UP: Partido Comunista (PC), Partido Socialista (PS), Partido Radical (PR), o Movimiento de Acción Popular Unitaria (MAPU), o Partido Social Demócrata (PSD) e a Acción Popular Independiente (API). Em 1971, o Partido de Esquerda Radical (PIR) e o Movimento de Esquerda Cristã (IC) se incorporaram à coalizão, sendo que o primeiro desligou-se desta em 1972. 2 Programa basico de gobierno de la Unidad Popular: Candidatura Presidencial de Salvador Allende.Santiago: 1969, p. 27-28. Todas as traduções de textos em espanhol citados neste trabalho são de nossa autoria. 3 ALBORNOZ, César. La cultura en la Unidad Popular: Porque esta vez no se trata de cambiar un presidente. In: PINTO VALLEJOS, Julio (coord.). Cuando hicimos historia: La experiencia de la Unidad Popular.Santiago: LOM, 2005, p. 148. 4 Programa basico..., p. 28. 5 Ibid., p. 28. 6 Sobre o projeto da ENU, ver a bibliografia indicada em QUADRAT, Samantha Viz. A reforma educacional da Unidade Popular e o golpe no Chile (1973). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, jul. 2011, p. 1-15. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300674617_ARQUIVO_Areformaeducacio naldaUnidadePopulareogolpenoChile.pdf. Acesso: 28 ago. 2014. 7 ALBORNOZ, op. cit., p. 156. 8 Este argumento é frequentemente reiterado pela bibliografia dedicada ao tema. Para José Joaquín Brunner, “o Programa de Governo da Unidade Popular fora particularmente fraco neste campo” (Un espejo trizado. Ensayos sobre cultura y políticas culturales. Santiago: FLACSO, 1988, p. 411). Como consequência, a “A própria política cultural do Governo Popular – imposta mais pelos fatos que por uma vocação de mudança cultural fundada teoricamente [...] – apenas conseguiu insinuar-se”(p.420-421). No mesmo sentido, Bernardo Subercaseaux aponta para a “coexistência de enfoques estratégicos díspares [...]” (El Estado como agente cultural: proyecto político e industria editorial. In: BAÑO, Rodrigo (ed.). La Unidad Popular treinta años después. Santiago: LOM, 2003, p. 269). No governo de Allende, não haveria uma política cultural claramente definida, “O que há é o propósito de aprofundar algumas ideiasforça tradicionais” a partir de “lógicas distintas de estratégia política” (p. 270). Por sua vez, Carlos Catalán se refere à “adoção de políticas culturais diversas, e até contraditórias” (Estado y campo cultural en Chile. Material de Discusión – Programa FLACSO-Chile, n. 115, 1988, p. 13). 9 Os números correspondem aos seguintes períodos, respectivamente: outubro de 1972; novembro de 1972; dezembro de 1972; janeiro-fevereiro de 1973; abril de 1973; maio de 1973; junho de 1973; julho de 1973; agosto de 1973. 10 SARLO, Beatriz. Intelectuales y Revistas: Razones de una Práctica. America, Cahiers du CRICCAL. Paris, Sorbonne la Nouvelle, n. 9/10, 1992, p. 11. 11 Salazar era, ao lado de Julio Numhauser, integrante do duo musical Amerindios. 1

11

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

12

BIANCHI, Soledad. La Quinta Rueda y PEC: Dos miradas a la cultura. In: SOSNOWSKI, Saúl. La cultura de un siglo: América Latina en sus revistas. Buenos Aires: Alianza, 1999, p. 474. 13 Em outubro de 1972, ocorreu a paralisação quase integral das atividades econômicas do Chile, conduzida pelas organizações patronais e pela classe média, com ativo apoio do governo norte-americano. Para contornar a crise, a UP empreendeu uma ampla mobilização de massas com vistas a manter o país em funcionamento, estimulando a participação da população em trabalhos voluntários. Mostrando seu apoio à causa, o segundo número de LQR traz estampadas em sua contracapa fotografias de artistas participando dos trabalhos voluntários. 14 Planteamientos. La Quinta Rueda, n. 2, nov. 1972, p. 8. 15 Reunindo músicos que pretendiam vincular seu ofício ao processo de mudanças experimentado pelo Chile na segunda metade do século XX, o movimento da Nova Canção Chilena – nomeado com o termo empregado pela primeira vez no festival homônimo realizado em Santiago em 1969 – ficou fortemente identificado com o projeto da via chilena ao socialismo desde a campanha eleitoral de 1970, quando muitos músicos declararam seu apoio a Allende, participando de comícios da UP e gravando canções dedicadas à causa. Cabe esclarecer, porém, que o engajamento político não foi exclusividade deste movimento musical nem abarcou todos os músicos identificados com ele. Conforme defendemos em trabalhos anteriores, é importante levar em conta a heterogeneidade da NCCh, reconhecendo que ainda que o diálogo com o folclore latino-americano e a política tenham constituído suas principais facetas, cada músico ou conjunto se relacionou de maneira particular com tais princípios. Conferir especialmente SCHMIEDECKE, Natália. As diferentes faces da Nova Canção Chilena: folclore e política nos discos Inti-Illimani e Canto al programa (1970). Anais do X Encontro Internacional da ANPHLAC. São Paulo, 2012, p. 1-15.Disponível em: ; e Idem.“Tomemos la historia en nuestras manos”: utopia revolucionária e música popular no Chile (1966-1973). Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estatal Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Franca, 2013.Disponível em: . Acesso: 27 ago. 2014. 16 GRONDONA, Payo. La viaje que te dije. La Quinta Rueda, n. 3, dez. 1972, p. 17-18. 17 GRONDONA, Payo. Trova a la trova. La Quinta Rueda, n. 8, jul. 1973, p. 6-7. 18 Existentes desde a década de 1950 no Chile sob o nome de chinganas, as peñas folclóricas eram pequenas casas de espetáculos nas quais se apresentavam poetas, cantores e bailarinos ligados ao repertório de raiz folclórica. Em geral, o ambiente era iluminado com velas e serviase comida e bebida durante as apresentações. Inaugurada em 1965, a Peña de la Escuela de Arquitetura de la Universidad de Chile de Valparaíso – mais conhecida como Peña de Valparaíso – foi dirigida por Osvaldo “Gitano” Rodríguez e Gonzalo “Payo” Grondona. 19 RODRÍGUEZ, Osvaldo. Lo que cantábamos en ese tiempo. La Quinta Rueda, n. 4, jan.-fev. 1973, p. 18-19. 20 INTI-ILLIMANI, ¿Terrorismo musical? La Quinta Rueda, n. 4, jan.-fev. 1973, p. 19. 21 ORTEGA, Sergio. Cómo se fragruó La Fragua. La Quinta Rueda, n. 6, maio 1973, p. 15. 22 SANTANDER, Carlos. Buenas noches los pastores. La Quinta Rueda, n. 4, jan.-fev. 1973, p. 11. 23 El arte de la descarga. La Quinta Rueda, n. 2, nov. 1972, contracapa. 24 SKÁRMETA, Antonio. Cantar contra el papa. La Quinta Rueda, n. 6, maio 1973, p. 18. 25 Idem. Tu sueño es mi sueño; Canto para una semilla. La Quinta Rueda, n. 7, jun. 1973, p. 10. 26 BARRAZA, Fernando. NUEVA CANCIÓN personaje sin carnet. La Quinta Rueda, n. 5, abr. 1973, p. 6. 27 SKÁRMETA, Antonio. ¿Qué cantar? La Quinta Rueda, n. 1, out. 1972, p. 10-11. 28 SCHNEIDER, René. No vea televisión: se acostumbrará. La Quinta Rueda, n. 2, nov. 1972, p. 10. 29 [Sem título]. La Quinta Rueda, n. 2, nov. 1972, p. 17. 30 La maratón musical, La Quinta Rueda, n. 1, out. 1972, p. 2. 31 SKÁRMETA, Antonio. Ramón Aguilera[:] el bolero del fin del mundo. La Quinta Rueda, n. 7, jun. 1973, p. 6-7. 32 BARRAZA, Fernando. Conciertos com bemoles. La Quinta Rueda, n. 8, jul. 1973, p. 19. 12

Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

33

“Enquanto isso continuar não se produzirá o encontro entre cantores e público. Os chilenos querem escutar a música de hoje, de combate, a que respalda este governo, a que chama ao trabalho voluntário, a música que verdadeiramente nos representa”. PARRA, Ángel apud BARRAZA, Fernando. NUEVA CANCIÓN personaje sin carnet. La Quinta Rueda, n. 5, abr. 1973, p. 6. 34 ALBORNOZ, op. cit., p. 151.

13

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.