O MOVIMENTO PRÓ TRANSPORTE NO BARREIRO E CIDADE INDUSTRIAL COMO LEITURA DA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO URBANO DE BELO HORIZONTE

August 23, 2017 | Autor: Fernanda Braga | Categoria: Estudos urbanos, Geografía Humana, Geografia Cultural, Geografia Social, Geografía Urbana
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O MOVIMENTO PRÓ TRANSPORTE NO BARREIRO E CIDADE INDUSTRIAL COMO LEITURA DA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO URBANO DE BELO HORIZONTE Fernanda de Souza Braga (PUC/MG).*

As intervenções urbanas realizadas, na maioria das vezes, pelo planejamento do estado ou por particulares, assim como suas conseqüências, nos permitem indagar qual é a ordem predominante, ou quais os tipos de representação dos lugares são feitas nos diversos espaços das cidades. É possível pensar que a ordem planejada e pretendida chega através das representações que são feitas do lugar, por uma “ordem distante” e acaba por desprezar as outras ordens pré-existentes no lugar, em uma “ordem próxima”, comumente consideradas desordem. Para tanto, são criadas ideologias e práticas que “tiram” o espaço do lugar, retirando, por fim, a possibilidade de realização da cidadania e suprimindo muitas das práticas próprias ao lugar. Por conseguinte, no estudo dos movimentos sociais urbanos, é preciso um esforço para compreendermos as articulações existentes entre essas duas ordens, a próxima e a distante – conceitos estabelecidos por Henri Lefebvre ao longo de sua obra1. A ordem próxima guarda, segundo este autor, o movimento das relações interpessoais da vida cotidiana (as decisões e as representações internas aos lugares), em oposição às decisões tomadas externamente ao lugar, o que constitui uma ordem distante, identificada com uma certa pretensão hegemônica – do Estado e do capital. Estas articulações se dão através do movimento de constituição da sociedade ao longo da história – principalmente com o desenvolvimento do capitalismo e das relações de



Aluna do Mestrado no Programa de Pós Graduação em Geografia - Tratamento da Informação Espacial / Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/Minas. 1

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Ed. Documentos, 1969. Ver também: LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

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trabalho e sua reprodução –, que geram novas espacialidades que se refletem localmente na vida dos indivíduos. Do ponto de vista da confrontação entre estas duas ordens – a próxima e a distante –, no que se refere ao Barreiro e à Cidade Industrial, áreas objetos deste

estudo,

podemos

considerar

como

um

momento

de

ruptura

extremamente significativa, a implantação da siderúrgica Mannesmann, no Barreiro, no início da década de 19502. Apesar de compreendermos que essa ruptura foi, neste período, uma das mais significativas, como processo de intervenção, rupturas começaram muito antes da instalação da grande indústria, a partir do momento em que colonos da então “Colônia Vargem Grande”, começaram a introduzir elementos da modernidade no cotidiano. O trabalho agrícola que garantiu a existência de muitas famílias durante duas ou três gerações, a partir do final da década de 1940, não era mais realizado pelo dono da terra, pois essa passou a ser arrendada, vendida, alugada ou repartida com meeiros além de se apresentar um outro entrave ao desenvolvimento da agricultura, pois os terrenos foram sendo parte loteados, parte dedicados à agricultura, ou seja, perdeu-se a continuidade territorial que fazia com que a produção agrícola tivesse fôlego para abastecer a capital, não sendo esse, no entanto, o único fator determinante para explicar tal situação. No mercado de terras, os terrenos tendem a ser valorizados, importando minimamente a sua fertilidade, esta dinâmica é reforçada pelo aumento da verticalização das construções, que tomava fôlego naquele período. A possibilidade da implantação de indústrias na área da Cidade Industrial – ainda na década de 1940 –, embora não concretizada imediatamente, acarretou de pronto a retenção de terrenos no entorno, o que pode ter estimulado o parcelamento e a ocupação de áreas adjacentes, como os bairros de Contagem e o próprio Barreiro.

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Barreiro é a denominação atribuída, atualmente, a uma das regionais da cidade de Belo Horizonte e envolve o bairro que empresta o nome à regional além dos seus desdobramentos, que guardam particularidades dos movimentos de expansão periférica (conjuntos habitacionais, vilas e favelas etc) e Cidade Industrial é o nome do bairro destinado, no plano inicial da capital mineira, a arigar as indústrias da cidade.

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A metropolização foi exercendo uma pressão horizontal, que se refletiu na urbanização de bairros que, na maioria das vezes, tinham caráter rural. Segundo Paul Singer, as grandes indústrias tendem a migrar para as periferias, conjugando assim interesses no uso do espaço, na ordem do uso produtivo e habitacional. A instalação de indústrias nas periferias vai direcionar os investimentos públicos, uma vez que a demanda por serviços foi gerada, o que acaba beneficiando a própria indústria3. A carência de equipamentos de consumo coletivo passa a se manifestar mais agudamente com o crescimento industrial, o que exige uma maior atuação do Estado. O tecido urbano tende a se expandir graças, entre outros fatores, à especulação imobiliária e ao aumento do fluxo de migrantes chegados à cidade mas, sobretudo, graças às atividades de apoio à indústria e às atividades induzidas pela própria urbanização. A multiplicação de bairros e vilas ficou praticamente entregue à iniciativa privada, visto que esta, realizou a mais desenfreada especulação imobiliária. Ressaltamos porém, que o Estado, não esteve alheio à constituição das periferias. Antes pelo contrário, exerceu um papel importante através da criação dos planos de habitação popular, como o Banco Nacional da Habitação – BNH – e o Sistema Nacional de Habitação – SNH –, por exemplo, que financiavam, com recursos públicos, os promotores imobiliários e acabavam por beneficiar as classes médias que iriam se situar em áreas mais centrais da cidade. No que se refere à infra-estrutura urbana, o Estado veio atender às demandas criadas pelos loteadores e especuladores, que se valiam da estratégia de lotear terrenos nas periferias mais longínquas da metrópole, retendo terrenos entre um centro e o loteamento. O poder público então, ao atender à demanda por infra-estrutura no loteamento mais distante, acabava por valorizar àquele que estava situado entre tais localizações. Concomitantemente ao crescimento dos parcelamentos do solo na periferia urbana cresce também a circulação por ônibus. Segundo Ermínia 3

Na siderúrgica Mannesmann, por exemplo, existiu o projeto de construção de casas para os operários. Este projeto, que acabou não se concretizando, muito se deve talvez às pressões exercidas pela grande indústria sobre o Estado em prol de investimentos em infra-estrutura urbana. Ver: SINGER, Paul. “O uso do solo urbano na economia capitalista (1978)”. In: MARICATO, Ermínia (Org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. 2ª ed. São Paulo: Alfa – Omega, 1982.

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Maricato: “os ônibus, enquanto transporte público, viabilizaram a expansão periférica de baixa densidade propiciada pelos loteamentos populares”4. O crescimento urbano exige a expansão, também concentrada, da estrutura urbana, seja quanto aos bens e serviços de consumo individual, oferecidos sob a forma fracionada pelo mercado, seja quanto a bens e serviços coletivos de consumo: educação, moradia, transporte, saúde etc. A metrópole é então, sob esse aspecto, a concentração de mão-de-obra disponível nas diversas qualificações que a produção necessita e, a um só tempo, o conjunto dos meios de produção pré-constituídos que as indústrias requerem (infra-estrutura e bens de consumo coletivo). O conceito de consumo coletivo refere-se aos bens e serviços indivisíveis – necessários à sobrevivência do trabalhador e à reprodução das relações sociais – que não são inteiramente agregadas ao salário e correspondem à maioria dos serviços urbanos colocados sob a responsabilidade do Estado. Este, por sua vez, quando não fornece adequadamente os meios coletivos de consumo, degrada ainda mais as condições de vida dos estratos mais baixos da classe trabalhadora.

Os movimentos sociais e o cotidiano como resistência à imposição da ordem distante

No processo de metropolização é possível observar que a conformação do tecido urbano se complexifica à medida que a industrialização atravessa e redefine a existência das cidades. A metrópole guarda os fragmentos do que ela envolve: a cidade e os bairros. Neste sentido, é possível entrever a diferenciação entre a cidade e a metrópole, sobretudo, no que toca à metamorfose da cidade em seu movimento de reprodução social.

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MARICATO, Ermínia. “Conhecer para resolver a cidade ilegal”. In: CASTRIOTA, Leonardo Barci. (org.) Urbanização Brasileira – Redescobertas. Belo Horizonte: C/Arte, 2003. p.81.

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Nas periferias, os estratos mais pobres, sofrem a carência de todo tipo de equipamentos sociais e urbanos. Surgem conflitos e reivindicações que poderão dar origem a movimentos sociais que buscam o reconhecimento do direito aos bens excluídos do valor de troca da força de trabalho, a adequação de suas condições de vida às novas necessidades e uma maior qualidade dos equipamentos. Os movimentos sociais vão aparecer, neste contexto, com um caráter renovado, pois a população vai dispensar mediações em relação às suas reivindicações. De uma forma geral, as lutas populares ou movimentos reivindicatórios se desenvolvem contra todos os tipos de escassez inerentes ao processo de metropolização, mas têm uma raiz política relacionada aos significados construídos em torno do local de trabalho e moradia. Alimentação, vestuário, saúde, educação, habitação, transporte, segurança etc, constituem condições materiais para este processo de reprodução. Essas demandas geram um conteúdo essencialmente político, pois estabelecem a vinculação das demandas na esfera do consumo com as demandas na esfera da reprodução. As raízes do que é chamado de “crise urbana”, são colocadas em questão pelos movimentos sociais. Esses movimentos, conduzidos através de formas associativas e ligados ao local de moradia, constituem um fenômeno relativamente recente no Brasil. No decorrer dos anos 1970 e início dos anos 1980, as lutas populares pelo acesso a serviços urbanos desenvolveram-se quantitativa e qualitativamente nas maiores cidades brasileiras. Sua visibilidade social podia ser notada por meio da cobertura que recebiam dos meios de comunicação de massa5, bem como pelo interesse que despertaram nos órgãos oficiais encarregados de políticas públicas – haja vista a criação dos

5

Neste sentido, o Jornal dos Bairros, que começa a circular a partir de 1976, retrata recorrentemente as condições precárias de sobrevivência da população da Cidade Industrial e do Barreiro, no que se refere aos bens de reprodução da força de trabalho. O transporte é colocado como um dos principais problemas da região industrial. Ressaltamos, no entanto, que a cobertura pela imprensa, não necessariamente se deu (ou se dá) de forma coerente com os acontecimentos reais. Como aparece, por exemplo, na fala de Dona Berta Diniz, entrevistada para esta pesquisa em 28/07/2003: Depois de uma passeata, “que a polícia ‘sentou o pau’ na gente, saiu na imprensa que a realização da manifestação, só foi possível graças a ajuda da PM ”.

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planejamentos

“participativos”,

com

a

formulação

do



Plano

de

Desenvolvimento Econômico e Social. Podemos observar que, através do processo de metropolização (e também da proletarização da população), as ordens próxima e distante, acabam por se imbricar embora, quase sempre, nesse movimento prevaleça a atuação da ordem distante na produção e reprodução do espaço. A experiência de criação e desenvolvimento dos movimentos sociais, insere-se na vivência destes processos. A urbanização aglutina a luta de sujeitos sociais fragmentados, “sem lugar” e “sem voz” que, num plano de necessidades redimensionadas pela industrialização, têm que resolver problemas de sobrevivência, relacionados à existência concreta e cotidiana. Os bairros foram, para os diversos movimentos sociais urbanos, o lugar da construção de novos significados para além daqueles que os supõem como lugares de rotina e onde se encerram somente a repetição das relações comuns à vida cotidiana.

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Como observa Vera da Silva Telles, os bairros ensejam e mesmo reiteram, sobretudo a partir de 1970 e 1980, as possibilidades para o encontro de

personagens diversos, portadores de experiências vividas em tempos e espaços diferenciados que se cruzavam e interagiam nos locais de moradia: militantes sindicais contemporâneos das grandes mobilizações do período pré64 e que faziam a crítica do sindicalismo populista; operários católicos, vinculados à Ação Católica Operária (ACO) e à Juventude Operária Católica (JOC) que enfatizavam o trabalho de base e a organização de grupos operários em seus locais de trabalho e moradia; padres, freiras, agentes pastorais inspirados na Teologia da Libertação, articulando e organizando as comunidades eclesiais de base; operários que participaram da greve de 1968, que faziam oposição ao sindicalismo oficial defendendo a organização de comissões de fábrica como alternativa de uma prática operária independente do Estado; militantes com uma origem vinculada às organizações clandestinas de esquerda, que discutiam as razões de sua derrota nos anos que se seguiram a 1968, fazendo a crítica de suas práticas e orientações políticas; trabalhadores que passaram pelas experiências reivindicatórias dos bairros e pelas comunidades de base da Igreja, antes de se integrarem nos meio da militância fabril e sindical; moradores articulando movimentos

em seus

bairros e enfrentando um Estado muito pouco sensível às reivindicações 6

populares .

Estes elementos, conjugados com os fatores enunciados anteriormente como condições sociais gerais, configuram o contexto para o desenvolvimento dos movimentos sociais urbanos, que tiveram nos bairros um ponto de convergência de práticas e discursos, constituindo-se como lugares “propícios” para que tais movimentos se tornassem significativos.

6

TELLES, Vera da Silva. “Anos 70: experiências, práticas e espaços políticos”. In: KOWARICK, Lúcio (Org.). As lutas sociais e a cidade – São Paulo: passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 252-253.

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Os movimentos sociais urbanos, ocorridos nos anos 1970 e 80, significaram – com a erupção de um “novo sujeito coletivo” e a abertura de novos canais de participação social –, um rompimento com a visão que se tinha em relação à população carente e, principalmente, à população periférica7. Aquele era um tempo em que alguns estratos dessa população passaram a questionar, além do regime ditatorial, a eficácia das referências instituídas anteriormente pelas ações políticas comuns às instituições, tais como, a Igreja Católica, os partidos e os sindicatos. Como bem argumenta Eder Sader, novas matrizes discursivas, “que visam o cotidiano popular e o reelaboram da ótica de uma luta contra as condições dadas”8, são formuladas pelas “instituições em crise”: a Igreja Católica, através da Teologia da Libertação, os Partidos de esquerda, através da matriz marxista e os Sindicatos através de sua atualização quanto aos conflitos, através do chamado “novo sindicalismo”. Estas matrizes se colocaram, naquele momento, como referenciais de ação. Os movimentos sociais se constituíram, por sua vez e de um modo geral, recorrendo a tais matrizes para repensar o cotidiano das classes populares. Estas matrizes, para Eder Sader, foram sendo “adaptadas a cada situação e mescladas também entre si na produção das falas, personagens e horizontes que se mostraram no final dos anos 1970”9. A vivência nessa conjuntura peculiar significava uma experiência nova do cotidiano – dadas as condições apontadas anteriormente e que caracterizavam esse período, como o regime militar e a aceleração da industrialização na esteira do salto desenvolvimentista, seguida da crise da década de 1980 – o que requeria o reconhecimento da necessidade de criação daqueles novos referenciais.

7

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.143. 8 SADER, op cit. p.143-144. 9 SADER, Op. cit..p.145.

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Quando sofre restrições, a partir dos locais institucionalizados, a política tende a encontrar-se com a vida cotidiana, o que gera o encontro de três fatores fundamentais: “um novo sujeito (coletivo), lugares políticos novos (a experiência do cotidiano) numa prática nova (a criação de direitos, a partir da consciência de interesses e vontades próprias)”10. Com efeito, a prática política sendo restringida, por estes fatores, vai atingir o bairro como local estratégico para sua realização. A história de constituição do movimento pelo transporte, no Barreiro e na Cidade Industrial, é a da união entre vários bairros e seus vários personagens, neste contexto. Esse movimento teve profunda relação com a formação do proletariado – enquanto sujeito ativo/participante de um cotidiano que foi criado pelo processo de metropolização11.

Estado, planejamento e controle

A reação do Estado frente às reivindicações, aparece através de uma “sensibilidade” transitória às demandas populares – decorrente da importância assumida pelo voto para a legitimação de lideranças – fez com que algumas das carências de bens de consumo coletivos inerentes ao crescimento da metrópole fossem atendidas, talvez como forma de barganha12. Em 1979, o governo mineiro formulou o 3º Plano de Desenvolvimento Econômico e Social – PDES –, que propunha a participação comunitária no planejamento para que fossem atingidas as metas pretendidas.

10

Ibidem, p. 11. TELLES, Op. cit. 254. 12 Como marco aparecem as eleições para cargos parlamentares em 1974 e 1978, com significativa vitória do MDB, partido de oposição. 11

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A revitalização do debate em torno da participação comunitária se mostrou como uma tentativa de adequação do regime à nova realidade apresentada pela erupção dos movimentos populares. Como um dos resultados práticos do PDES, foi criado o PRODECOM – Programa

de

Desenvolvimento

das

Comunidades

–,

que

tem

como

pressuposto a falácia de que as comunidades estariam desmobilizadas. Isso se constituiu como uma estratégia que pretendia o controle direto do Estado sobre as comunidades e a supressão dos movimentos populares. Uma possível constatação desta afirmação é que, a partir de 1981, os programas públicos nas esferas estadual e municipal, passam a aprovar somente projetos encaminhados por associações legalmente constituídas, como forma de “incentivar” a organização comunitária. A criação da Metrobel – Companhia de Transportes Urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte – para a administração dos serviços de transporte, trânsito e sistema viário de Belo Horizonte e da Região Metropolitana, a partir de 1980, vem também na esteira do chamado planejamento participativo. Este órgão, concentrou as funções distribuídas pelos órgãos: SMT, DER/MG e Detran. “A Metrobel assumiu quase todos os serviços, à exceção da fiscalização e policiamento do trânsito e aplicação de multas”13. Ao lado da introdução da dimensão da participação comunitária no planejamento que, até então, tinha um cunho eminentemente tecnocrático, o modelo empresarialista de atendimento às demandas por serviços urbanos, começa a perder forças.

13

Omnibus: Uma história dos transportes coletivos em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1996. p. 275. As siglas se referem a Serviço Metropolitano de Transporte, Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais e Departamento de Trânsito, respectivamente.

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Apesar das iniciativas do Estado em exercer controle sobre os movimentos urbanos, a tendência de expansão e conquista da autonomia política por parte destes movimentos se tornou evidente. As associações de bairro passaram a se organizar em federações e procuraram conferir um caráter mais duradouro e estrutural às mobilizações em torno de reivindicações específicas. Como se mostrará mais tarde, esta alternativa não apresentará a eficácia pretendida para tal ação.

O Movimento pró-melhoramento do transporte no Barreiro e Cidade Industrial

A experiência do movimento social pelo transporte insere-se na vivência das condições precárias de vida da população. Em específico, no Barreiro, este movimento se iniciou em meados década de 1970, embora inicialmente se encontrasse disperso, em lutas isoladas, nos bairros, principalmente os atendidos pela Empresa Barreiro de Cima – que monopolizava o péssimo serviço

de

transportes

no

Barreiro.

Foi

constituído,

sobretudo,

por

trabalhadores e donas de casa que, em sua maioria, eram participantes de outros movimentos isolados. Suas principais reivindicações eram relacionadas à má qualidade dos ônibus, à superlotação, às filas, à demora, à ausência dos ônibus noturnos, às grandes distâncias que tinham que percorrer até os pontos de parada, ao corte de linhas, aos bairros sem atendimento, ao preço único, aos atritos entre motoristas, trocadores e usuários, à sujeira dos ônibus e, principalmente, aos horários inconstantes, que faziam com que muitos se atrasassem para a entrada no trabalho.

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Para a mobilização e envolvimento da população no movimento, foram usadas o que as lideranças chamavam de bandeiras de transição ou bandeiras gerais, que eram, segundo elas, as reivindicações comuns a todos os participantes: “as mais difíceis de se conseguir como, por exemplo, a estatização dos serviços, a concessão de subsídios aos transportes coletivos ou passe livre para os desempregados, são as que trazem a população para o movimento além de fazer o povo refletir sobre seus problemas”14. As bandeiras específicas eram as reivindicações de cada bairro. Esta mobilização, através das bandeiras, buscava uma identificação dos moradores com o movimento. Em um segundo momento, a aderência de alguns bairros da Cidade Industrial dará ainda mais visibilidade ao movimento. Ele passa a se chamar, então, Movimento pró-Melhoramento do Transporte da Região Industrial e Barreiro. Um acontecimento trágico – o assassinato de um trabalhador no ponto final do ônibus que servia o bairro Vale do Jatobá, por ter deixado uma mulher grávida com duas crianças passar à sua frente na fila – torna-o ainda mais notório, dada a sua ampla repercussão. Mais que isso, demonstrou certa habilidade e competência do movimento, que cobrou justiça não somente em relação ao assassino, como também responsabilizou a empresa de ônibus e as autoridades pelo acontecido. Segundo Eder Sader, a valorização da “sede de justiça” tem uma raiz contestatória ao que se refere à denúncia da situação social vigente15. O assassinato do trabalhador e seus reflexos demonstraram justamente isso. A partir daí, as mobilizações se intensificaram e o Movimento começou a buscar outras alternativas além dos abaixo-assinados (que quase nunca eram respondidos). Profissionais liberais simpatizantes com o movimento e militantes de partidos políticos passaram a formar grupos de estudo.

14

Citação extraída da fala de André Xavier – militante do Partido dos Trabalhadores e uma das lideranças do Movimento – entrevistado, para esta pesquisa, em 30 de julho de 2003. 15 Ver: SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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A consciência sobre seus direitos consistiu, então, em encarar as necessidades da vida privada como injustiças no lugar em que se vive o cotidiano. E justamente as expectativas criadas pelos participantes do Movimento estiveram na busca de uma valorização da sua dignidade, na luta contra o que se considerava com sendo injustiças das quais eram vítimas. Há, aí, a possibilidade de inserção dos movimentos sociais – de uma forma geral, como houve no Movimento pró-Melhoramento do Transporte do Barreiro e Cidade Industrial – como agentes ativos que se contrapõem à imposição de mandos e desmandos (de uma ordem distante) que afirma a produção do espaço através da razão do Estado e/ou do capital. O Movimento pró-Melhoramento dos Transportes se constituiu como um espaço público e autônomo de luta (sem a interferência do Estado), dando ao mesmo tempo substância e conteúdo reconhecível à população. Desse modo, o Movimento resignificou o cotidiano, o que se nota, em alguns momentos de afirmação dos sentidos implicados nessa postura combativa adotada diante de circunstâncias tão precárias. As festas para comemorar cada nova conquista reforçam a crença na coletividade e, por conseguinte, o sentido de identidade promovido pelo Movimento. O “povo”, na realidade os novos personagens que entraram em cena, encontrava, portanto, uma via possível de solução para os problemas então experimentados. O discurso se fortalecia através de uma prática política que se instaurava a partir do lugar de referências comuns que se irradiavam para contextos semelhantes. Assim, as principais “táticas” de mobilização eram o “boca a boca”, a panfletagem de casa em casa e dentro dos ônibus, os avisos no fim da missa e na porta das fábricas, nos salões das pastorais, os abaixoassinados e a realização de passeatas. As reivindicações eram encaminhadas pelas lideranças principalmente às Prefeituras de Belo Horizonte e de Contagem e à Superintendência Municipal de Transporte, mas também ao Detran, ao DER, graças às más condições das vias de tráfego.

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O Movimento conseguiu que muitas de suas reivindicações fossem atendidas por intermédio da mobilização popular. No entanto, sofreu um arrefecimento no ano de 1979, se estendendo até meados do ano 1980. Podemos relacionar este fato, ao que nos relataram os entrevistados a respeito da estratégia estatal de atendimento a algumas das “bandeiras específicas” do Movimento – de baixo orçamento –, o que fez com que alguns bairros, de alguma forma, se desmobilizassem16. Nos primeiros anos da década de 1980 as reivindicações voltaram a acontecer. Apesar de serem violentamente reprimidas, as passeatas no centro da cidade e as manifestações em frente à Metrobel passaram a acontecer mais freqüentemente. “Estes dois anos: 79 e 80, especialmente 1980, foram dois anos que lá na Cidade Industrial, em especial no Barreiro, aconteceram 10, 15, 20, 30 manifestações contra as condições do transporte coletivo.”17 Com o “barulho” feito pelo Movimento pró-Melhoramento do Transporte, a imagem que o senso comum passa a ter se diferencia substancialmente daquela de outrora. O poder público passa a encarar o movimento como uma ameaça18. Paulatinamente, o movimento foi ampliando a consciência de que apesar de terem pouco poder de barganha no nível econômico e político, estavam conquistando melhorias graças à participação popular e à politização do movimento. Este se dava, além do já relatado, através do contato e do confronto com as autoridades. Nas inúmeras idas à Prefeitura em busca de respostas, nos recorrentes “bolos” que recebiam das autoridades e políticos convidados para as assembléias, nas discussões em reunião, enfim, foram desmistificando a “superioridade” do Estado e abandonando a imagem de que este (enquanto ordem distante) era inatacável e inabalável.

16

Conforme entrevistas realizadas com o Sr. André e o Sr. Lourival. Citação extraída da fala de Lourival Araújo Andrade – agitador do movimento, posteriormente, componente da primeira diretoria da FAMOBH – entrevistado, para esta pesquisa, em 06 de julho 2003. 18 Fala de D. Berta Diniz entrevista para esta pesquisa em 27 de junho 2003. 17

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Apontamentos finais

O Movimento pró-Melhoramento do Transporte significou, antes de mais nada, a contestação da ordem hegemônica e a valorização do cotidiano. O repúdio às formas instituídas da prática política clientelista realizada no Barreiro durante muito tempo pelos políticos “tradicionais”, perdeu praticamente toda sua força a partir do reconhecimento do direito à dignidade, incutido na construção do Movimento. As formas auto-organizativas do movimento encerravam a desconfiança daquelas práticas. E além disso, o reconhecimento das necessidades geradas para o lugar por vontades (ou a falta delas) alheias às demandadas pela vivência cotidiana e, sobretudo, visavam a autonomia em relação

às

instituições. No final da década de 1980, os movimentos sociais perdem um pouco de visibilidade graças às formas atualizadas de reprodução do capital – com a mecanização da produção – e pela mudança no contexto mais amplo da economia brasileira. A indústria, com a maior evolução tecnológica, usou como artifício, principalmente contra as greves, a mecanização da produção, que em todos os sentidos era mais rentável. O desemprego passou a ser a

primeira

preocupação nas pautas de quaisquer reuniões de sindicatos e associações de bairros. Houve então um arrefecimento dos movimentos e uma conseqüente individualização dos interesses, já que naquele momento a prioridade era defender o trabalho enquanto forma de sobrevivência na metrópole. Os movimentos sociais figuraram como uma afirmação concreta das contradições geradas pelo processo de metropolização que se “refletem” no espaço.

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Os canais de participação abertos pela mediação dos movimentos reivindicatórios, entre os quais situamos, por exemplo, o Orçamento Participativo e os conselhos regionais são considerados, por parte daqueles que fizeram parte dos movimentos populares, como as maiores vitórias. O Movimento pró-Melhoramento dos Transportes Coletivos no Barreiro e Cidade Industrial embora enfraquecido a partir de 1984, pela conjuntura que se apresentava, ainda teve fôlego para a mobilização popular e resistiu ao discurso técnico e ao autoritarismo das decisões da Metrobel, que teve por mérito não se recusar ao debate público. O Movimento acabou por se institucionalizar tornando-se a “Associação pró-Melhoramento dos Transportes Coletivos”, o que talvez tenha contribuído para que perdesse o seu poder de mobilização popular. Podemos observar, várias intervenções no espaço dos bairros (rede de abastecimento de água, rede de afastamento de esgoto, energia elétrica, asfaltamento de ruas, entre outras) que foram motivadas pelo Movimento e que, sem ele, certamente demorariam muito mais tempo para serem atendidas. Vale ressaltar, ainda, que os registros do Movimento pró-Melhoramento dos Transportes Coletivos no Barreiro e Cidade Industrial, encontram-se dispersos entre os que participaram de sua construção e é certo que merecem outras análises. O único livro ao qual tivemos acesso e que trata do Movimento, mesmo que de passagem, é o Omnibus, publicado quando da comemoração do centenário de Belo Horizonte, pela fundação João Pinheiro. Neste sentido, o Jornal dos Bairros compõem um arquivo riquíssimo ainda a ser explorado pelos pesquisadores.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS:

http://www.jornaldobarreiro.com.br/. Acesso em: 15 mai. 2006. 20 jun. 2006.

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