O mundo em que vivemos

July 25, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Ontologia, Cosmología
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O MUNDO EM QUE VIVEMOS por Waldísio Araújo

Me diz por que que o céu é azul Explica a grande fúria do mundo (Renato Russo)

Apesar da diversidade e confusão de opiniões sobre o mundo (e sobre nós mesmos dentro dele), podemos ao menos tentar reunir numa visão ampla os resultados de nossos mais confiáveis saberes atuais, incluindo o senso comum. O que poderíamos tomar como razoável a partir do que atualmente sabemos ou cremos saber? Esse artigo é uma tentativa de sugerir uma resposta provisória mas formulada do modo mais simples e, portanto, necessariamente generalizador. Todos sabemos que há muitas opiniões divergentes sobre a natureza do nosso mundo, e para cada interpretação que dele se dá existe no mínimo uma outra que diz dela justamente o contrário. Isso torna tudo (mais) confuso e deixa em aberto o grande problema de sabermos se as coisas são por si mesmas complicadas ou se somos nós que complicamos o as coisas. Mas seria muito diferente se todos tivéssemos exatamente a mesma interpretação sobre tudo? Nesse caso, veríamos nós TODOS como caótico o universo ou como um conjunto magnificamente ordenado? Como se vê, uma pressuposta unanimidade das interpretações não dá conta por si só do caráter confuso das coisas. Van Gogh: Noite Estrelada (De Sterrennacht), de 1889. Nos quadros do pintor todo o universo cósmico e humano é intensidade, nada é imóvel. Van Gogh pintava as coisas em sua essencial e inextinguível agitação. Fonte: Wikipedia.

Deixemos, portanto, a complexidade do mundo tal como ela se nos apresenta e observemos que por trás da extrema diversidade das mentes, ideias e ideais há um certo padrão: apesar de muitas pessoas considerarem ser mera aparência o turbilhão irredutível de posições que constatamos em volta e dentro de nós, elas costumam concordar em que a abundância de crenças e opiniões é de fato, ao menos em sua superfície, um turbilhão. Mas em que este consiste? Apesar de não compartilharmos essencialmente de sua visão de mundo (sobretudo no que diz respeito a questões éticas), assumimos como razoável a tese do filósofo Schopenhauer sobre um certo impulso que todas as coisas possuiriam e que as levaria a mover-se sempre em direção a algo, ainda que como um todo esse algo não seja uma finalidade determinada. Em suma, tudo no universo, incluindo o homem e seus pensamentos, tende a algo, procura algo, dirige-se cegamente e em fúria a algo, movido por um impulso cuja origem, natureza e fins jamais são conhecidos sequer por aqueles que agem, sentem, pensam ou querem. Como diz o próprio filósofo, citado por Einstein, “o homem pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”. Com efeito, lançamos a pedra para cima e a vemos tender novamente para a terra, e esta, em seu movimento, é atraída para o sol enquanto dele busca escapar, do mesmo modo que este se relaciona

ainda mais remotamente com o centro da Via-Láctea. Podemos cientificamente explicar isso, calcular a intensidade, direção e sentido das potências aí envolvidas, resumir a relação entre tais coisas com o termo “força gravitacional”, mas permanece inacessível o impulso por trás de todos esses movimentos. Num nível microscópico, moléculas se formam e se orientam umas para as outras para formarem códigos genéticos e corpos, mas elas próprias são constituídas de átomos que procuram agrupar-se uns aos outros e deles distanciar-se, e o mesmo vale para os quarks e glúons que os formam e que se devem, por sua vez, ao que parece, às flutuações do “caos quântico” – que aparenta admitir todas as possibilidades exceto as da imobilidade e da passividade. O próprio universo que contém essas forças expande-se e talvez seja apenas um dos infinitos “todos” nascidos das mencionadas flutuações, que não sabemos nem provavelmente viremos a saber por que motivo ocorrem. Lançamos a pedra para cima e ela em breve retornará para baixo, alheios ambos ao fervilhar dos outros homens e pedras que compartilham um planeta onde as plantas buscam o sol e o disputam entre si ao mesmo tempo em que suas raízes se dirigem para as profundezas escuras; e animais lutam por retirar a essas plantas o que elas conseguem arduamente produzir, a fim de poderem eles também respirar, ou melhor, abarcar largas quantidades de gases que lhes deem energia para permanecerem um pouco mais de tempo em sua busca sem razão. E esses animais disputam territórios e fêmeas, aumentando, como as plantas, sua esfera de ação no espaço e no tempo, através da guerra e da procriação, do amor e do ódio. Tudo isso para perpetuar ao máximo aquele código genético que, como vimos, enraíza-se em flutuações quânticas em que nada de finalidade racional encontramos. No final, o turbilhão das coisas acabará por inviabilizar a eternização do próprio código genético, exceto pela sua transformação cada vez mais radical até não senão resquícios quase irreconhecíveis da espécie “pura” original. Lançamos a pedra para cima e na maioria das vezes não temos nenhum motivo para isso e sequer sabemos de onde veio o íntimo desejo de lançá-la, imersos que estamos num ato tão sem sentido como os que parecem causar nossas mais individuais ambições, medos e angústias – que chegaram a nós não se sabe como e servirão não se sabe para quê, se é que servirão. E disputamos palmo a palmo o corpo, o comportamento ou a mente de minerais, plantas, bactérias, animais e outros homens, através da construção de máquinas de domínio, exploração ou persuasão que orientamos (em nosso nome) por lógicas cujas estruturas de pensamento e linguagem subjugam a nós próprios e nos arrastam provavelmente para lugar algum, se não para a nossa autodestruição. O que vemos por todo lado, então, é que nada nos aparece como imóvel, imutável ou passivo. O grande mistério das coisas parece ser então o íntimo impulso que cada uma delas possui e que as leva a interagir com as outras em relações sempre provisórias de atração ou repulsa, conflito ou aliança, anexação ou excreção. Nesse caso, que é amizade e o amor senão uma inimizade provisoriamente suspensa? Atualizamos aqui, mais uma vez, a ideia heraclítica da guerra como pai de todas as coisas e deixamos para trás o Eclesiastes, que ignorava o que para nós parece cada vez mais óbvio: que o próprio sol não se repete jamais. Esse impulso transbordante, inexaurível e, portanto, belicoso que move misteriosamente todas as coisas a partir de dentro delas mesmas é algo cujo caráter terrível e fulminante nosso mais profundo ser parece pressentir e evitar a todo custo – visto que as religiões mais populares o exilam para a transcendência, as ciências mais empíricas o adiam para o “momentaneamente” não explicado e as

filosofias mais difundidas o ignoram como não-inteligível. Afinal, essas três formas de conhecimento satisfazem-se com as meras consequências, com o modo como aparece aquele impulso inerente a todas as coisas; em outras palavras, preocupam-se com as relações das coisas entre si, não com aquilo que elas possuem no mais profundo de si mesmas e as constitui como seres insaciáveis e em eterno devir. Talvez essa recusa do conhecimento humano a encarar o problema seja o núcleo surpreendente deste mesmo problema. Afinal, inerente à humanidade há um impulso a procurar a verdade, ainda que desta se desvie por medo de encontrar o saber mais cruel: o de que o mundo, mesmo que o possamos interpretar como permanente, seguro e estável (ou seja, como cosmos), é permanente guerra, loucura, dor, tédio, escravidão, angústia, frustração, fugacidade, insignificância, sofrimento, morte.. numa palavra, caos. Perguntar qual a finalidade disso tudo faz tão pouco sentido quanto indagar se haveria um desígnio único por trás dos bilhões de websites da internet. Ainda que todos nós víssemos o mundo tal como nós tentamos mostrar aqui, restaria ao menos duas interpretações incompatíveis entre si: a de Schopenhauer, que via o mundo em si como um gigantesco impulso insaciável que deveríamos extinguir dentro de nós, orientando-nos para o nada; e a de Nietzsche, que retrucava que isso seria ainda um impulso (uma vontade do nada) e que melhor seria potencializarmos o impulso dentro de nós e em nossa civilização, tal como o fizeram os gregos antes que o cristianismo e a ciência moderna viessem a desviar para o ideal a longo prazo niilista da verdade objetiva a todo custo. A escolha por alguma dessas duas visões ou mesmo por algum criativo diálogo entre ambas é sempre possível e talvez saudável. De todo modo, a civilização grega e a etapa renascentista da nossa própria civilização ocidental já nos parecem ter mostrado suficientemente que é desde sempre possível perscrutarmos corajosamente os mais obscuros e terríveis conhecimentos acerca de nós e do universo e os utilizarmos como matéria para nossas mais belas criações. Waldísio Araújo [email protected]

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