O mundo no escudo de Aquiles: uma leitura do Canto XVIII da \"Ilíada\" de Homero

August 6, 2017 | Autor: L. Ouro Oliveira | Categoria: Mitologia, Homero
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EDITORES

AGRADECIMENTOS

Daniel Cardoso de Oliveira Immanuel Lima Maria Priscilla Coelho Pedro Muni/ R f V I S Ã O D[ O l t l d l N A I S

Daniel Cardoso de Oliveira Maria Priscilla Coelho RLVISÀO TLVNICA Bernardo Carvalho Oliveira, Bernardo Sansevero, Daniel Nascimento, Gisele Secco, Gustavo Silvano Batista e Raquel Sapunaru PROJETO GRÁIK o

Cecília Jucá de Hollanda / Livros & IJvros Construção Ltda. sobre projeto original de Filipe Boechat Nota dos Editores: os textos aqui publicados são de completa responsabilidade de seus autores.

Semana dos Alunos de Pós-Gradnacão em Filosofia daPUC-Rio(14. : Rio de Janeiro : 2013) AnaLógos : unais / Semana dos Alunos de Pós-Graduacâo em Filosofia da PUC-Rio. - Rio de Janeiro : PUC-Rio, 2014. 310 p . ; 21 cm

Inclui bibliografia

ISSN: 1678-3468 1. Filosofia- Congressos. I. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. CDD: 100

Esta revista é e sempre será um trabalho conjunto, um exercício de aprendizagem não só para os autores dos artigos publicados como para os (assim esperamos) muitos leitores. \Analogos também faz parte da nossa formação profissional em filosofia. E assim como não teríamos uma boa formação sem a ajuda de muitos, não teríamos a oportunidade de publicar estes anais sem a preciosa colaboração de diversas pessoas. Por isso, sentimo-nos no dever de expressar nossa gratidão. À Coordenação Central de Pós-Graduação e Pesquisa da PUC-Rio e seu coordenador, Pró f. Paulo César Duque-Estrada; Ao Departamento de Filosofia da PUC-Rio e sua diretora, Profa. Déborah Danowski; À Secretaria do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e seus responsáveis, Edna Sampaio, Dinah Lúcia e Daniel Cardoso Teixeira; À PUC-Rio e a todos aqueles que tornaram possível a perpetuação da •liiii/úgni, agora em seu décimo-quarto volume; Aos revisores técnicos, Bernardo Carvalho Oliveira, Bernardo Sansevero, Daniel Nascimento, Gisele Secco, Gustavo Silvano Batista e Raquel Sapiinaru. Todos doutores em filosofia formados pela PUC-Rio que, mesmo sem i domo financeiro, generosamente trabalharam na revisão dos textos aqui puMaados, contribuindo para a divulgação das pesquisas dos nossos colegas da pós-graduação; À nossa competente diagramadora, Cecília Jucá de Hollanda, pelo exceloile trabalho em mais esta edição dos nossos anais da SAF; li não poderíamos deixar de prestar nosso reconhecimento também às Hgc-ncias de fomento CAPES, CNPq e FAPERJ pelo apoio dado às pesquisas ,i.|ui reunidas. Rio de Janeiro, abril de 2014 Os editores

SUMARIO APRESENTAÇÃO

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FILOSOFIA ANTIGA

O MUNDO NO ESCUDO DE AQUILES: UMA LEITURA DO CANTO X V I I I DA ILÍADA DE HOMERO

13

LETII/CI.-I OURO Oui'LiK.1

EUDAIMONIA: A BUSCA PELO BEM SUPREMO

23

CARLOS EDUARDO DA SILI:I ROUIA

FILOSOFIA MODERNA NOTAS SOBRE AS MÁXIMAS DA MORAL PROVISÓRIA DE DESCARTES

35

JULIANA ABUZ-ÍGLO ELIAS A/is/y.v.s1

OBSERVAÇÕES SOBRE ALEGRIA E TRISTEZA NA ÉTICA DE SPINOZA

43

ICIOK ALI t.v DE MELO

ESPI1NOSA E A NEUROCIÊ1NCIA AFETIVA DE ANTÔNIO DAMÁSIO

54

MÕMCA FERREIRA CORRÊA

IIOIÍBES, I . E I B N I Z E A TESE DE QUE A LINGUAGEM É CONSTITUTIVA DO PENSAMENTO //.//. I.V RlKEIRO DF. C. ÍSTRO NETO

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O MUNDO NO ESCUDO DE AQUILES: UMA LEITURA DO CANTO XVIII DA 1LÍADA DE HOMERO

LETHICIA OURO OLIVEIRA Doutoranda em Filosofia pela PUC-Rio

Resumo: No Canto XVI11 da llíada, Homero versifica a confecção das .is armas de Aquiles pelo deus demiurgo Hefestos. No escudo do herói, o llcus i'.rego esculpe todo o mundo. O intuito de nosso texto é introduzir uma i piccnsào do sentido de tal produção artcsanal.

< 'ausa de riso dos outros deuses por seu andar coxo, o deus olímpico i ' "" i.iliirgia, Hefestos, desempenha no poema épico llíada de Homero pal" l iimil.imental para o desfecho da trama na guerra entre gregos e troianos. l K i " ^ . i l i i l i t a r á a volta à guerra do maior dentre os heróis gregos, Aquiles, i'i 'l.i inorle de seu mais querido companheiro, Pátroclo. Como sabe' • n l i i i na batalha vestido das armas de Aquiles, sendo assim a causa • • • i i ' de muitos troianos; mas não do ínclito Heitor, que ao derrotá-lo 1 1 «• das armas do maior herói grego. Por isso, Aquiles se verá sem n i M I . i .1 execução da sua vingança. A deusa marinha Tétis, mãe do i \ . i . i pedir ao deus demiurgo, Hefestos, que confeccione novas i * " i < n l i I h o . Assim, Aquiles poderá cumprir seu destino tornando-se | M n r . . i \ r l pela vitória dos gregos numa das mais famosas guerras uK-nlal

H' i« i" lni|.i nina couraça luzente, um elmo belo e bem lavrado com l u i i l i i n i . i i l o . além disso, cnèmides moldadas de estanho e o escudo •i

m u n i u N o eanto X V I I I Aalluidti d e Homero, especificamente

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nos versos 468 a 608, temos que o deus Hefestos confecciona todo o mundo no escudo de Aquiles 1 . Os versos chamam atenção pela repentina remissão a todo o universo num contexto que parece inusitado, da feitura de um escudo. Encontramos com freqüência na Ilíada a descrição minuciosa de diversos objetos artisticamente confeccionados. A descrição vai desde luxuosos palácios até adornos femininos. Mas o fato de Hefestos esculpir o próprio mundo no escudo de Aquiles certamente surpreende. Exclusivamente nesses versos, Homero trata da totalidade do universo de forma explícita. Se é possível afirmar que o pensamento da poesia grega sobre o kósmos encontra em Hesíodo seu representante maior enquanto autor da Tcogonia, onde expõe a cosmogonia da mitologia grega, podemos ver nesses versos de Homero ao menos uma antecipação do tema, dado que esse poeta é mais antigo 2 . Nosso intuito nesse texto será introduzir uma compreensão do sentido desses versos tendo em vista o todo do poema, assim como algumas leituras clássicas da tradição comentarista. Segundo um primeiro ponto de vista, numa leitura mais banal do poema, parece que Hefestos constrói uma representação do universo no escudo de Aquiles. Homero traçaria uma imagem do mesmo num âmbito microcósmico. A confecção do escudo de Aquiles é um episódio que compõe a saga do herói ao superar o Ressentimento ou a Cólera (inênix) que lhe domina desde a desavença com o chefe grego Agamêmnon pela posse de Briseide, narrada no canto I da Ilía/Ja. Dentro de um contexto mítico, o poema trata da estória de um herói, Aquiles, que se aproxima de seu destino a cada acontecimento narrado. No primeiro capítulo do livro A arte e o rirenle de Jackie Pigeaud, o autor levanta uma proposta interpretativa um tanto incomum para essa questão, que se afasta da primeira leitura apresentada. Ao se perguntar se tais versos "Fez primeiro um escudo grande e robusto / todo lavrado, e pôs-lhe à volta um rebordo brilhante / triplo e refulgente, e daí fez um talabarte de prata. / Cinco eram as camadas do próprio escudo; e nele / cinzelou muitas imagens com perícia excepcional. / Nele forjou a terra, o céu e o mar; / o sol incansável e a lua cheia; / e todas as constelações, grinaldas do céu: / as Plêiades, as Hiades c a Força de Oríon; / e a Ursa, a que chamam Carro, cujo curso revolve sempre no mesmo sítio, fitando Orfon. / Dos astros só a Ursa não mergulha nas correntes do Oceano." HOMERO Ilíada (a) XVIII. v. 478-489. Segundo os estudiosos, Homero teria vivido no séc. VIII a.C., enquanto Hesíodo, no final do séc. VIII a. C. ou começo do séc. VII a.C. Cf., por exemplo, NUNES. "A questão homérica". In: HOMERO. Ilíada (c), p. 32 e LAFER, M. "Introdução". In: HESÍODO. Os Trabalhos e os l>ias, p. 13.

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da Ilíada tratam do inundo, de um escudo, ou de um escudo que representa o inundo 3 ; Pigeaud primeiro opta pela terceira alternativa e levanta a hipótese de l -évi-Strauss, de que toda obra de arte exibe uma realidade de forma reduzida4. ( ) mesmo aconteceria no caso do escudo. Enquanto ele representa o mundo, 0 exibe em menor proporção. Tal leitura será rejeitada pelo autor no que diz respeito ao escudo de Aquiles especificamente. Segundo Pigeaud, informações históricas podem abalar essa primeira hipótese: na época de Homero, provavelmente séc. VIU a.C., os homens concebiam o universo como um círculo mileado pelo Oceano5; além disso, os escudos gregos arcaicos tinham a forma circular. No caso do escudo de Aquiles, essa forma foi estabelecida pela repre,i-iiiação do Oceano. Por essas razões, segundo o comentador, o escudo não representaria o mundo, não o exibiria de forma reduzida, mas seria idêntico a ele. 1 )ado que possui a mesma forma do mundo, é rodeado pelo Oceano e expõe a viila humana em suas alegrias e tristezas; quando Hefestos retrata cidades em l w/, e em guerra, Pigeaud conclui que nesses versos do canto XVIII da Ilíada I loinero trata do próprio mundo. Se nos lembrarmos do texto da l liada, podemos observar que a última p.iiie esculpida por Hefestos, o Oceano, aparece no verso 607 do Canto XVIII; niive versos depois, na abertura do Canto XIX, surge a Aurora do Oceano leMiiulo luz aos deuses e aos homens. A representação pictórica do Oceano no < li udo de Aquiles aparece ao lado do próprio Oceano como apresentado no l " > < ma, berço da Aurora. Tal proximidade parece acentuar ainda mais a interpii-iação de Pigeaud de que Hefestos confecciona o mundo. Lendo o poema, i' mus ;i impressão de que a Aurora nasce do próprio escudo de Aquiles, como .ilmente não houvesse diferença entre escudo e mundo. Mas tal interpretação causa estranheza. Faz-se necessário aqui pergunI.M MT;I que faz sentido afirmar que Hefestos cria o próprio mundo e não uma I 1 |>i rscntação dele? Seria essa leitura coerente ou despropositada? Será que ela • u .k-nta dentro da trama da ílíadal Todos sabemos em torno de quê gira a saga dessa epopéia: a Cólera de \ i | i n l u s . A causa desta é atribuída a Apoio já que é seu sacerdote, Crisis, quem K i l.imara pela filha, Criseide, tomada como escrava na tenda de Agamêmnon. ' i m i n i nliás, pensa Jaeger Cf. JAEGER. Paidéia: a formação do homem grego, p. 77. l ÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem, p. 39-41 .1 IIADhlWALDT, W. Von Homers Welt und Werken, p. 364, cipiul. PIGEAUD, J. ()/>. p 24.

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À recusa do grande chefe grego em restituir Criseide, responde Apoio com uma peste que dizima inúmeros guerreiros e rebanho gregos. Para pôr fim à desgraça e atender ao desejo do deus frecheiro, Agamêmnon concede entregar a filha do sacerdote; mas toma em lugar dela a bela Briseide, espólio de Aquiles. Vendo em seu chefe injustiça 6 e arrogância (livpemplía)1, o maior dentre os heróis gregos não encontra mais sentido em lutar 8 . Ele se retira da guerra, abrindo caminho para o troiano epitetado como o de elmo ondulante, Heitor. A maior parte da Ilíaila descreve os acontecimentos da guerra enquanto Aquiles está ausente. Sua retirada do combate é tida como a causa da crescente desvantagem grega frente ao exército troiano. A desvantagem beira derrota quando os troianos atravessam o fosso e o muro construídos como baluarte dos gregos. Um navio é incendiado e o amável Pátroclo9 não poderia a tudo somente assistir, como o fazia seu companheiro Aquiles. Usando as armas do Peleide, mas se esquecendo da promessa que lhe fez de somente defender as naus gregas, Pátroclo entra na guerra, avança até os muros de Tróia e acaba sendo morto por Heitor. Este lhe despoja das armas, corno já dissemos. São essas que daí em diante o herói troiano vestirá10 c com as quais será morto por Aquiles. Ao saber da morte de Pátroclo, Aquiles decide voltar à guerra. Comunica sua decisão em assembléia, quando Agamêmnon reconhece seu erro e afirma ter sido tomado por Desvario ou Cegueira (ate) ao tomar-Ihc Briseide". Aqui, o nó da trama começa a ser desfeito. Mas a impressão deixada no leitor é de que a Cólera de Aquiles ainda não se desfaz; parece voltar-se agora contra Heitor, a quem perseguirá de modo selvagem1*. r

' Cf. //'«/f»;. Canto I. v. 165-168, em que Aquiles acusa Agamêmnon de mal distribuir os prêmios de guerra. I Cf. Ibkk-m, Canto I. v. 205. Aquiles o caracteriza como arrogante ao conversar com a deusa Atena. Cf. também a importância dada ao qualificativo por Kitto em KITTO, H. D F. Os Gregos, p. 82. 8 Cf. HOMERO. Ilíada. Canto IX. v. 314-322, quando Aquiles recusa o pedido de Odisseu de que volte ao combate Para ele não há sentido em lutar, pois o mesmo receberia o ocioso e o esforçado. ' Assim o caracteriza Briseide depois da morte do herói. Cf. Ibidein, Canto XIX v. 300: inci/ik/ion. Ressalta também essa característica Lourenco em LOURENCO, F. "Introdução". In: HOMERO. Ilíada. (a), p. 18. 1(1 Cf. Ibitlcni, por exemplo, Canto XVI. v. 799, 800. II Cf. lbidí-m, Canto XIX. v. 88. 12 Cf. IhUlfiu, Canto XXII, em especial a comparação que o próprio Aquiles faz de si mesmo com um Ie3o ou um lobo nos versos 262 e 263.

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Contudo, para dar início ao movimento inverso da guerra, para que cesse a vantagem dos troianos e os gregos possam aproximar-se da vitória, Aquiles precisa de armas. A confecção divina dessas armas, a confecção do mundo no > -.i udo de Aquiles, representará o início da conquista grega do Oriente13; será .1 introdução da construção do mundo grego e, diríamos, de toda a cultura ociili-nlal. Além disso, ela pode também ser vista como a peripécia para o que se i hamou de "a viagem emocional de Aquiles". A expressão é de Martin West em A face oriental do Hélicon: elementos asiáticos ocidentais na poesia e nos mitos gregos. A seu ver, essa defini«,.111 seria mais apropriada para o poema do que "A cólera de Aquiles", como ,i|>u'senta Homero no primeiro verso da llíaJa14, porque, segundo West, não possuía o vocabulário para dizer a primeira formulação. A interpretação de Wesi fundamenta-se em sua compreensão do caráter universal, humanista, do l">rma, ao girar em torno da lida com a morte de amigos e da morte própria, l li i-ncontrará paralelos dessa estória na literatura antiga do oriente, especifi< .imi-iite, da Mesopotâmia, Anatólia e Síria, assim como nos textos bíblicos, e 'l.u.i especial atenção ao épico sobre Gilgamesh'5. Afinal, como afirmará Frei l f i iro l ourenço na Introdução de sua tradução da Ilíada, inspirado na leitura ili- Wesi, o poema mostra-nos Aquiles perante uma tragédia interior, isto é, uma mocional, como a que vivemos todos nós, homens. l'ssa leitura da lliaJa pressupõe um olhar diferente do tradicional que "ino tema principal do poema a excelência, a areté heróica 16 . Segundo l I M I I C I I Ç O , se a Ilittda girasse em torno da excelência guerreira, seu principal iiafem seria o herói que mais se destaca na luta: Diomedes. Ele é carac11 Io por Lourenco como provável paradigma máximo da areté heróica 17 ; l i i ' .iif mesmo dois deuses olímpicos18! Mas não c ele o personagem principal. i, o poema gira em torno daquele que pouco luta, que se retira da guerra, l I I ro, II. 1). F. (>i>. < / / . , p. 24, que apresenta provas da validade histórica da guerra de Tróia i< min i nino testemunhas Tucídides e escavações de Schliemann em Micenas e Tróia, e p. 37, ' i n i|ur Minere que a civilização grega surge da família de Agamêmnon, cujo domínio de Tróia li uim ;i expansão da cultura micênica, ancestral dahelênica. A l '. l M Ilu- cast lace of the Hélicon: west Asiatic elements in Greek poetry and myth, |. MIM inmhúm I.OURENÇO, F. Op. dl. p. 14. u l MM o/>. cii. "Cap. 7: The Iliad", i» liiiihcional em, por exemplo, BOWRA, C. M. The Greek Kxperience. "The heroic i iiiiimik nu especial, p. 32, 33 e 36. • i < miíFNÇO, F />. dl., p. 15. l'/ III iMI l IliaiUi Canto V. v. 330-340 e Canto V. v. 855-857.

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retornando somente quando a trama já está no final. Isso indica que a llíada não tem como tema principal a aretc heróica. Se Homero tem Aquiles como seu principal personagem, tematiza sobre um conflito psicológico, para usar as palavras de Loiirenço. Como já foi dito, a llíada trata da causa e das conseqüências da mènis de Aquiles e da ate de Agamêmnon. Ela desenvolve esse conflito de disposições psíquicas até a sua superação. A tensão se reflete internamente no exército grego que não vê como alcançar a vitória sem seu maior herói; ela só será dissolvida quando morre Pátroclo e retorna Aquiles à guerra19. Assim queria Zeus, atendendo ao pedido de Tétis. A mãe de Aquiles havia suplicado para que Zeus não permitisse a vitória dos gregos sem a volta do seu filho, restituindo-lhe assim a honra perdida, ao ser destituído de Briseide20. Mas se a llíada tratasse de um conflito psicológico particular, de um conflito entre dois personagens, poderia ela, lida hoje no séc. XXI, manter inalterada "a sua capacidade esmagadora de comover e perturbar"21? Jaeger lembra bem que além de ter como tema os conflitos resultantes das índoles humanas, a llíada também trata da intervenção dos deuses22. À questão ética do poema vincula-se o aspecto ontológico. Na mitologia grega, os deuses são os responsáveis pelo mundo ser como é em todas as suas formas de vida e morte. Eles são senhores da natureza, do mar, bosques, rios, e também da vida dos homens, como fica claro na llíada. Lembremo-nos, por exemplo, da luta de Aquiles com o rio Escamandro no canto XXI, assim como da intervenção de Atena na guerra, disfarçada de Deífobo, que leva Heitor a imprudentemente enfrentar Aquiles de frente23, o que acarretará em sua morte. Ratificando a temática ontológica do poema, Kitto afirma que na llíada: "Revela-se-nos algo da estrutura de todo o universo num só acontecimento"24. Sobre o mesmo tema podemos citar também Schadewaldt: "Homero não procura o efeito; (...) ele deixa ver e (re)conhecer (erkenneii). E o que ele deixa ver e (re)conhecer,

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isso é a verdade"25. Sendo assim, a llíada não trata simplesmente da estória de ilois homens, mas segundo os comentadores acima citados expõe a verdade, o pióprio real, algo universal. Se o que foi dito acima está correto, Homero não estaria propondo que li,i uma saga de todos nós homens, de superação da Cólera e da Cegueira para i prir o que é melhor para a polis e realizar nossa tarefa e destino, como oi i K ré com Aquiles e Agamêmnon na Ilíudal Não será pela identificação do U-iloi com a saga emocional de Aquiles que o poema continua vivo e significalivu? Contudo, "Homero não é autor moderno que considera tudo simplesmenk1 no seu desenvolvimento interno, como experiência ou fenômeno de uma i iinsi-iência humana"26. Como foi dito, Homero trata de algo universal que asI illrapassa o humano. Portanto, tal transformação psicológica não poderia I|IAT respeito somente à mente humana, mas também a todo o universo. Mas i nino? Cólera e Cegueira não são disposições exclusivamente humanas? O pensamento poético de Homero parece não realizar separação, tão no pensamento racional classificatório, entre homem e natureza. Ao Mirin, o poeta épico aproxima-os, pois recorre com bastante freqüência .1 .iniiles ou comparações entre ações humanas e naturais. Os exemplos são ilm-isos. Dentre eles, citamos a freqüente comparação de Agamêmnon com um K , M I ' e a descrição da poeira que se eleva quando avança o exército grego • "Mm a névoa que se ajunta nos cumes dos montes28. O recorrente paralelo enI" •> homem e a natureza é um indicativo de que Homero não trata da condição l i i i i n . n i i i como isolada dela. Afinal, como afirmamos, ele expõe poeticamente o M i l rm|iiiinto universal - o que, aliás, propiciará segundo muitos o nascimento iln |ii-nsiimcnto filosófico na Grécia29. Ao falar do início da filosofia, lembramo-nos da famosa sentença de iiniiiulro: "Todas as coisas se dissipam onde tiveram a sua gênese, conforIM. ,i uiTcssidade; pois pagam umas às outras castigo (tísis) e expiação (díke)

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A tensão de Aquiles, por sua vez, só será desfeita quando pacificamente aceita restituir o corpo de Heitor a seu pai, rei de Tróia, Príamo. 20 Cf. lhiik'111, Canto I. v. 495-531. A desavença entre Aquiles e Agamêmnon não ocorre simplesmente por causa da posse de uma jovem, mas da honra de Aquiles, que deixa de lhe ser concedida ao ser destituído de seu espólio de guerra. Cf., por exemplo, KITTO, H. D. F. ()/>. dl., p. 92 e BOWRA, C, M. ()/>. dl., p. 35. 11 I . ( > H K I ' N ( , ' ( ) , F. (>/>. />. dl., p. 79. " ( / IIOMKKO l l í a d a Canto XXII. v. 243-246. ' ' K l ITO, C. M. t>/>. flt., p. 83.

ll>'/ihi .rA7>/ i'.v, Cí'lil ^riediisdi, ifi tíei' l/>. dl., p 361, nota 11 Tradução de Leonardo Diniz do Couto e LethiciaOuro ' Hi , n.i

• l K. W O/,.,•/'/.. p. 79. • l n >MI ; I« > lliiitla, por exemplo, Canto XI. v. 129 i / //,/,/, m, < ' n u l o I I I . v. 10-14. l \ l ( , 1 K, W ()/i. dl., p. 80, BORNIIEIM, G. "Introdução". In: Os filósofos pré-socráticos, \ N I I A J A M "Introdução". In: Pré-socráticos (Os Pensadores), p. 6.

ANÁLOGOS XIV

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pela injustiça (acJikía), conforme a determinação do tempo"30. Se díke engloba o sentido de regra ou maneira de ser, podendo assim se aplicar a todas as coisas, como o fez Anaximandro, já tísis, castigo, é conceito que diz respeito somente aos homens 31 . Anaximandro usa um elemento do mundo humano para falar de todas as coisas32. Há uma transposição do que concerne à esfera micro para a macrocósmica. Assim, não parece coerente a leitura de que seu esboço estaria em Homero? Ele não poderia falar da superação da Cólera e da Cegueira como o movimento próprio do real, de todo o kósmosl Não seria esse o sentido da confecção do universo por Hefestos, segundo conclui Pigeaud, dentro da trama da llíadal Ao menos, parece-nos, delimita-se uma hipótese interpretativa a ser discutida com maior embasamento em pesquisas futuras. Afinal, no próprio escudo, Hefestos não esculpe somente os astros do firmamento, mas, como dissemos, também duas belas cidades, uma em paz a celebrar casamentos e a outra rodeada por exércitos que executam até pastores enquanto se alegram ao som da flauta. No escudo, a representação do kósmos está misturada à representação do homem. Além disso, o homem herói, Aquiles, perseguirá Heitor como um astro brilhante que cumpre seu curso no céu. Não só o escudo de Aquiles exibe o mundo, mas os próprios feitos de Aquiles são descritos como feitos cósmicos ou astrais. Príamo "viu-o refulgente como um astro a atravessar a planície"33. Segundo essa leitura, construir o mundo quer dizer superar mènis e ate, seguir o seu curso e realizar sua tarefa e destino. Como os astros do firmamento cujo curso no céu está determinado, também nós, homens, devemos cumprir nosso destino superando toda Cólera e Cegueira que tendo origem nos deuses, nos assolam. Como nós, parecem cumprir seu caminho os astros do firmamento. Isso talvez diga Homero. '" Tradução de Cicrd Bornhcim. " C/. BAILLY, A. Lê granel Bailly: dictionnairegrec-français. 32 Poderíamos citar ainda outros filósofos que realizam o mesmo tipo de transposição vocabular que Anaximandro, como, por exemplo, o também pré-socrático Empédocles, que chamii as forças que regera o universo de Amor e Ódio. Cf. um desenvolvimento dessa questão, ressaltando o vocabulário político na cosmologia dos primeiros filósofos, especialmente em Anaximandro, era VERNANT, J. As origens do pensamento grego Caps. 7 e 8. 31 "O primeiro a vê-lo com os olhos foi Príamo, o ancião: / viu-o refulgente como um astro :i atravessar a planície, / como a estrela que aparece na época das ceifas, cujos raios / rebrilham entre os outros astros todos no negrume da noite, / estrela a que dão o nome de Cão de Oríon / 1 a estrela mais brilhante do céu, mas é portento maligno, / pois traz muita febre aos desgraçados mortais / Assim brilhava o bronze no peito dele enquanto corria." Cf. a mesma comparação também no CantoXXJI v. 317-321. HOMERO, Ilíada. (a). XXII v. 25-32

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Dito isto, finalizamos este texto com uma intrigante observação, que romplementa esta proposta interpretativa. Notemos que, para voltar à guerra, Aquiles precisa de alguma forma reconquistar o que perdeu: suas armas. Como •.iibemos, Heitor, após matar Pátroclo e se apossar das armas de Aquiles, veste|S, e é com elas que será morto pelo Peleide de armas novas e divinas. A ima' • ' • n i da luta entre os dois heróis da Iliada torna-se, por isso, curiosa: é como II \i|uiles estivesse lutando contra si mesmo, ou contra sua postura anterior, l imolar Heitor também significa derrotar sua própria cólera e as consequên• 1.1 •; que dela advieram.

REFERENCIAS

II \ l l . l V, A. Lê grand Bailly: dictionnairegrec-français. Paris: Hachette, 2000. In ' K N I I I Í I M , (i. A. "Introdução". In: Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix,

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iiMii.r.

2002.

Ih.id.i (a) Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005. ih.i.1,1 ( l i ) L «impreendia, isto é, como bem Supremo e fim último do homem. . iilnca o filósofo, muitos consideram o bem como o acumulo de rique. i i i i i D pra/er ou a dignidade da honra. Entretanto, para o filósofo, a euiiiiii'iii,i i- o l u n (telas), isto é o fim último o que faz dela o agulhou, ou seja, n l" MI. Para Aristóteles, o bem é algo realizável pelo homem e, como 111-1 1 Antisere', consiste em um "aperfeiçoar-se enquanto homem", n i .ii i v idade que cabe unicamente a ele, ou seja, a razão. Sendo a cu.1 atividade alcançada pela via da razão o homem deve observar t is , / / . / < / ; , das virtudes éticas que levam o sujeito a escolha do justo |in

\livinos e das virtudes dianoéticas, a prudência e a sabedoria Ho ,is virtudes da parte mais elevada da alma, ou seja, da razão. .u- trabalho se dará com aquilo que Aristóteles considerava a

a J. 11111,1/11,1, isto é, aquela atividade do intelecto que nos aproxima i

- . r ) , i , a i/icoriii, vida contemplativa. M ' . i Kl I) História da Filosofia, vol I, p. 218-219.

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