O Museu do Marajó e a Folia de São Sebastião: entre o esquecimento e a ressignificação

June 16, 2017 | Autor: Karla Oliveira | Categoria: Museologia
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O Museu do Marajó e a folia de São Sebastião: entre o esquecimento e a ressignificação Karla de Oliveira1 UNIRIO/ MAST Luiz C. Borges2 UNIRIO/ MAST

Resumo: Este trabalho trata da ação participativa do Museu do Marajó Pe. Giovanni Gallo na divulgação e preservação de elementos da cultura marajoara. Daremos especial destaque à folia de São Sebastião, um componente importante das festividades em louvor a esse Santo e que, por diversos motivos, deixara de despertar o interesse dos jovens. Mostrar-se-á como o Museu do Marajó conseguiu reverter esse quadro de indiferença sociocultural. Trata-se de um exemplo do papel de protagonista que o Museu exerce e que pode contribuir para a sustentabilidade tanto econômica, quanto social. As observações de campo para a elaboração desse trabalho tiveram início em 2004 e foram finalizadas em 2011. A metodologia de pesquisa baseou-se em bibliografia, pesquisa de campo como observador participante, entrevistas e registro audiovisual. Palavras-chave: Folia, Marajó, Museu. Abstract: This paper deals with the participatory activities of the Museum of Marajó Father Giovanni Gallo in order to disseminate and preserve some elements of Marajó island culture. We will give special emphasis to the revelry of St. Sebastian, an important component of the festivities in honor of that saint, which, due to several reasons, was not capable of arousing the interest of the youngsters. We will show how the Museum of Marajo managed to reverse that frame of socio-cultural indifference. This is an example of the role as a protagonist played by that Museum and that can contribute both to economic and socio-cultural sustainability. The field observations to prepare this paper begun in 2004 and ended in 2011.The research methodology was based on bibliography, field research as a participant observer, interviews and audio-visual registration. Key words: Revelry, Marajó, Museum.

1 Ilha do Marajó, encantos e folias A Ilha do Marajó3, localizada na foz do Rio Amazonas e possuindo uma superfície total de, aproximadamente, 49.606 Km2, integra o maior arquipélago flúviomarinho do mundo (o arquipélago do Marajó). Devido à sua localização, a Ilha recebe, também, a influência de outros rios de grande porte, como o Tocantins e o Pará, que

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Mestre em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutoranda pelo mesmo Programa. Atuou – na condição de pesquisadora – junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artísto Nacional (IPHAN) – nos inventários culturais da Ilha do Marajó e da Festividade de São Sebastião de Cachoeira do Arari, Ilha do Marajó. [email protected] 2 Doutor em Linguistica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Historiador da Ciência e pesquisador titular do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST). Docente do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)[email protected] 3 As antigas denominações do arquipélago estavam baseadas em vocabulário indígena: Marinatambalo, era o nome que lhe davam os índios e espanhóis – em um relato de Walter Raleigh (sec. XVI), encontra-se a denominação marinatambal-; Camamôro, segundo os holandeses, de acordo com Fares, 2003; Ilha do Marajó, Joanes, Ilha Grande de Joanes ou Joannes, ou ainda Juanes; Ilha dos Nheengahibas (cf. MARAJÓ, 1992; LA CONDAMINE, 2000; AGASSIZ e AGASSIZ, 2000; WALLACE, 2004; BAENA, 2004). No período colonial foi criado o título de Barão da Ilha Grande de Joanes, cujo primeiro agraciado foi Luís Gonçalo de Sousa de Macedo (1640-1727).

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deságuam na Baía do Marajó. Na Ilha, que se divide em duas microrregiões, distribuem-se 12 municípios (fig. 1). A leste, localiza-se a Microrregião dos Campos que compreende os municípios de Cachoeira do Arari, Chaves, Muaná, Ponta de Pedras, Salvaterra, Santa Cruz do Arari e Soure. No lado oeste da Ilha, localiza-se a Microrregião dos Furos, da qual fazem parte os municípios de Afuá, Anajás, Breves, Curralinho e São Sebastião da Boa Vista (IPHAN, 2006).

Figura 1: Mapa da Ilha do Marajó. Autor: Paulo de Carvalho. Fonte: Iphan, 2007.

É interessante notar que, do ponto de vista cultural, essas duas Microrregiões distinguem-se, sendo possível falar-se, culturalmente, em dois marajós. A Microrregião dos Campos é a que congrega maior apelo turístico, sendo, portanto, a mais divulgada e que, em geral, aparece como representação imagística da Ilha do Marajó. A história do Marajó é caracterizada pelo contato, variando em intensidade, grau de fricção e duração, entre as populações nativas e os europeus (uma massa heterogênea formada por missionários, viajantes e exploradores). Desse contato resultaram contribuições culturais e novas formas de relações sociais que foram determinantes para o desenvolvimento local. A presença desses personagens encontrase inscrita nas diversas marcas, especialmente as culturais, que são encontradas na paisagem sócio-urbana da Ilha. Aliada à diversidade biológica, a riqueza cultural produzida pelo homem marajoara, dá ao lugar um tom especial que se intensifica a partir da aura de mistério e de misticismo que cerca a ilha. 2

A paisagem marajoara é recortada por um labirinto de rios, igarapés e furos nos quais vive uma grande variedade de espécies aquáticas (tais como peixes, jacarés, botos e sucuris), constituindo, juntamente com a mata, as crenças locais de origem mítica e religiosa, bem como devido à presença de histórias de natureza arqueológica, um cenário propício à manifestação, no imaginário local, de um grande elenco de personagens que pertencem ao que se denominou de histórias de encantarias4. Além das histórias de encantaria com sua plêiade de personagens, no Marajó também são encontrados outros elementos culturais característicos da Ilha, sejam de origem religiosa, sejam profanos; sejam aqueles ligados às atividades econômicas (pecuária, indústria naval), sejam aqueles legados pelo passado indígena marajoara. Assim, encontramos no Marajó manifestações culturais tais como danças, a cerâmica e o bordado (com motivos marajoaras); a literatura oral (particularmente, as narrativas cujo tema são os encantados); rituais curativos, como a pajelança e, não menos importante, as diversas festividades em homenagem aos santos da igreja católica. Este trabalho tem por objetivo tratar de uma dessas manifestações de cunho religioso e popular, a folia de São Sebastião; bem como de suas relações com a população local e, principalmente, com o Museu do Marajó e seu papel de agente de valorização, preservação e divulgação do homem e da cultura marajoaras. Com respeito à metodologia de pesquisa, esta baseou-se em consulta bibliográfica especializada, em pesquisa de campo, durante a qual foram feitas entrevistas acompanhadas de registro audiovisual. A pesquisa de campo foi realizada de forma descontínua de agosto de 2004 a dezembro de 2007 – durante realização de inventários culturais para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN – e, mais adiante, em 2011, quando tivemos a oportunidade de aprofundar nossa abordagem e de confirmar, ou não, as informações obtidas no período anterior.

2 Exaltação profana e religiosa na folia de São Sebastião As festividades em louvor a São Sebastião acontecem em 10, dos 12 municípios existentes na Ilha do Marajó. Barros et Al (2010) relatam que, na Microrregião dos Furos (localizada à leste da Ilha), a imagem do Santo percorre rios e 4

“O termo encantaria relaciona-se às poéticas de tradição orais e as personagens referem-se ao conjunto narrativo que inclui não só o mito, mas os textos originários dos lendários, anedóticos, fábulas, e outras formas de natureza prosaica e outras versificadas. As narrativas amazônicas muitas vezes, implicam nas histórias de vidas dos narradores, neste caso não se pode atribuir o caráter ficcional a elas, mas compreendê-las como uma construção em que os saberes simbólicos e imaginários misturam-se e sobrepõem-se” (FARES, 2007, p. 1). Cf. também Fares (2006).

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igarapés, comumente transportada em 'montarias' (pequenas embarcações à remo), uma vez que São Sebastião é o protetor dos seringueiros, pescadores e agricultores. Na Microrregião dos Campos (a oeste da Ilha), onde se localiza o município de Cachoeira do Arari, no qual acontece a festividade de maior expressão de toda a Ilha, São Sebastião é tido como o protetor dos vaqueiros, dos fazendeiros e dos animais e Cachoeira do Arari é um município com muitas fazendas de criação de gado, o que talvez justifique possuir a homenagem mais intensa ao santo, com relatos que remontam há mais de cem anos, segundo IPHAN (2006) e Oliveira (2007). A cidade de Cachoeira do Arari, segundo dados da Companhia Paraense de Turismo – PARATUR (2003), possui uma área de 3.102km² (ocupando o 37º lugar, no Estado, em extensão territorial) e uma população de 20.460 habitantes, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2000). A área abrange grande parte da região dos campos naturais que, durante o inverno amazônico (época das chuvas, de dezembro a março), ficam quase que totalmente submersos, período no qual as embarcações se tornam a única alternativa de transporte para a população. Sua economia baseia-se na pecuária - principalmente na criação de bovinos e bubalinos, uma das maiores do Pará, sendo a produção destinada, quase que exclusivamente, para o mercado externo -, na pesca e, mais recentemente, na rizicultura. O comércio é fonte de renda para algumas famílias, mas os principais empregadores do município são a Prefeitura e o Estado. Em termos de infraestrutura urbana, a cidade possui energia elétrica, correios, telefonia fixa e móvel, abastecimento de água e coleta de lixo. O crescimento urbano desordenado faz com que surjam habitações em áreas vizinhas ao leito do Rio Arari. Essas comunidades são as que mais estão sujeitas a transtornos por ocasião das cheias desse rio. A Festividade de São Sebastião é uma das maiores e mais importante da Ilha do Marajó e reúne, de 10 a 20 de janeiro, pessoas de todos os cantos da Ilha, do estado do Pará, e de outros estados do Brasil. Em novembro de 2013, foi registrada como Patrimônio Cultural do Brasil. Segundo o parecer do Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN (DPI/IPHAN), a devoção a São Sebastião “é fundamental para a construção e afirmação da identidade cultural marajoara. Representa a diversidade e a singularidade da região, na forma como se estrutura e se desenvolve, com elementos próprios. Ao mesmo tempo, possui relevância nacional, na medida em que traz elementos essenciais para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira” (IPHAN, 2013). 4

Embora o dia do santo seja 20 de janeiro, a preparação da festa começa um ano antes, com reuniões periódicas de um grupo de organizadores (não religiosos); e de um grupo de religiosos. Possui alguns símbolos tradicionais como a imagem de São Sebastião com feições indígenas, a procissão dos mastros e a procissão dos vaqueiros. Entretanto, a tradição de folias, bem como as rezas de ladainhas em latim – executadas pelo grupo de foliões - podem ser consideradas como marcas culturais e ritualísticas desse festejo. De acordo com o relatório do Inventário Nacional de Referências Culturais da Ilha do Marajó – INRC Marajó (2006), foliões são os tocadores de ladainha que fazem parte da Comissão de São Sebastião que percorrem as fazendas cantando folias, rezando ladainhas e recolhendo donativos para o Santo. Em tempos passados, o itinerário seguido pelos foliões era fixo, ou seja, os festeiros visitavam anualmente sempre as mesmas fazendas. Entretanto, atualmente, o número de fazendas visitadas tem variado e diminuído e, portanto, o roteiro das visitações também tem sido flutuante. Essa mudança também ocorre em função do falecimento de antigos devotos, mudanças de algumas famílias para Belém, vendas de propriedades, além do fato de muitos devotos terem-se convertido a religiões protestantes. Na Ilha do Marajó, a palavra 'folia' remete às músicas tocadas pela comissão de foliões de São Sebastião, durante a festividade em honra desse santo. Esse repertório musical bem característico constitui um legado da tradição oral, que é transmitido pelos mestres-foliões aos iniciantes na folia (BARROS et Al, 2010). De acordo com as autoras, relatos orais informam que, por volta das décadas de 1960 e 1970, existiam encontros de diversas Comissões de Santos, realizados em meio aos campos e nas cercanias dos rios marajoaras. Os mais idosos comentam que Comissões de Santos, a vinda de outras regiões do Pará, tais como Abaetetuba e Curuçá (localizadas na região nordeste do estado), era usual e fazia parte do calendário das diversas festividades homenageando diversos santos. Quando tais comissões se encontravam, os foliões 'tiravam' folias, cruzavam suas bandeiras e trocavam instrumentos musicais. A partir das décadas de 1980 e 1990, de acordo com Barros (2008), as comissões e folias foram paulatinamente desaparecendo, restando apenas àquelas relacionadas à Festividade de São Sebastião. 5

A Comissão é constituída por violeiros, tamborineiro e bandeireiro que executam um repertório de músicas que reverenciam o Santo. Desde 2001, a Comissão de Foliões tem ampliado sua área de atuação e faz peregrinações na capital, Belém, durante o mês de maio. Essa ampliação da área de atuação faz com que os tocadores passem praticamente o ano todo longe de suas famílias, o que tem levado muitos a desistirem do ofício. A comissão da organização da festa tem buscado alternativas com a finalidade de atrair os jovens para assegurar a manutenção deste ofício tradicional e que constitui um bem de grande importância para a manutenção do estilo tradicional da Festividade de São Sebastião. Em consequência dessas peregrinações que acontecem fora da Ilha do Marajó, tem aumentado, a cada ano, o número de pedidos solicitando a presença da bandeira do Santo e dos foliões em outras localidades. Visando atender o maior número de devotos, a comissão organizadora passou a selecionar novos espaços públicos para realizar as ladainhas5. Tradicionalmente, essas eram realizadas em casas dos devotos que, em sua maioria, eram oriundos da cidade de Cachoeira do Arari. Barros et Al (2010) indicam que o repertório de ladainhas é uma herança do processo de cristianização da Amazônia, iniciado por volta do século XVII. As ladainhas eram muito aconteciam usualmente nas missões religiosas, pois faziam parte da liturgia católica. Eram rezadas em latim até a década de 1960, quando o Concílio Vaticano II instituiu a liturgia em língua vernácula. No Marajó, durante a primeira metade do século XX, as ladainhas eram ensinadas e praticadas nas Escolas Normais6. As peregrinações do grupo de foliões na Ilha do Marajó têm início no mês de junho, quando o grupo - composto por um número que varia de quatro a seis integrantes - percorre casas, fazendas e retiros da região rezando ladainhas (em latim) e cantando folias. Essa fase da festividade é denominada de esmolação, e tem por objetivo arrecadar recursos e donativos para a festa e para as obras da paróquia de

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Segundo a definição encontrada em Houaiss e Vilar (2001), trata-se de uma prece litúrgica estruturada na forma de curtas invocações a Deus, a Jesus Cristo, à Virgem ou aos santos, recitada pelo celebrante, que se alterna com as respostas da congregação (fiéis e/ou religiosos). De acordo com Barros (2008, p. 55): “a peregrinação consiste, também, na reza das ladainhas, que são sempre precedidas pela folia de início da ladainha e finalizadas pela folia do término da ladainha. Apesar da ladainha, por si mesma, constituir um repertório próprio, encontra-se inserida no contexto ritual das folias, como um dos diversos momentos que caracterizam a peregrinação e a esmolação. Ao final de tudo, é cantada a folia da despedida”. 6 O Curso Normal foi criado em 1835 e objetivava formar professores para atuarem no magistério de ensino primário; era oferecido em cursos públicos de nível secundário (atual Ensino Médio). O movimento de criação de Escolas Normais esteve marcado por diversos movimentos de afirmação e de reformulações. Chegou aos anos 1940/50 do século XX, como instituição pública fundamental no papel de formadora dos quadros docentes para o ensino primário em todo o país.

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Cachoeira do Arari7. A esmolação não acontece só no município de Cachoeira, mas também em Ponta de Pedras, Santa Cruz do Arari, Muaná, Chaves e Anajás, embora não cheguem às sedes desses municípios, mas somente a localidades próximas à fronteira de Cachoeira do Arari (ver figura 1). As folias “constituem um reflexo das relações do santo com as pessoas que o recebem” [...]. Elas são tocadas utilizando-se violão, viola, triângulo e tambor e são cantadas a duas vozes” (BARROS, 2008, p. 54). Ainda segundo a autora, o violão é o instrumento chave, é ele que caracteriza a folia mas não precisa, necessariamente, ser tocado pelo mestre-sala (folião que coordenada a peregrinação, folião 'principal'). A viola é responsável pela base harmônica e rítmica da folia e que, junto com o tambor e o triângulo, produz o ritmo valsado típico da folia. Em relação à estrutura musical e à sua relevância na religiosidade popular, devemos levar e conta que as práticas musicais (reza cantada, ladainha, coro etc.) são elementos importantes nos rituais religiosos e mesmo no processo de catequização. No que concerne às formas de religião popular, as formas musicais e as festividades também atuam como elemento de resistência popular diante das imposições canônicas da igreja católica. Como exemplo de resistência, temos a reação da população frente à proibição da execução de folias, no período de 1966 a 1988). Existem diversas folias de acordo com a situação: a Folia da Chegada que é tocada quando a comissão (trazendo a imagem de São Sebastião) chega ao local onde será rezada a ladainha. Folia de Agradecimento de mesa (almoço e jantar), após as refeições que comumente são servidas aos foliões, principalmente quando estes se encontram em fazendas ou retiros. Nestes casos é comum que animais (como porcos, bois, patos...) sejam especialmente abatidos para a ocasião. Os devotos fazem questão de servir alimentos de qualidade, e com fartura, pois servir aos foliões significa, metaforicamente, servir ao próprio São Sebastião, uma vez que “os foliões são vistos como mediadores entre o santo e os devotos” (BARROS et Al., 2010, p. 54). Também pode ser solicitado, aos foliões, que seja cantada a Folia da Porteira do Curral, com o objetivo de abençoar e proteger o gado. Às 18h é cantada a Folia da Ave-Maria.

3 A cultura da folia marajoara e a prática educativa do museu 7

Durante a primeira metade do século XX, na cidade de Cachoeira do Arari, aconteciam diversas festas em louvor aos santos de devoção dos moradores da cidade, como a festa de Santa Terezinha do Menino Jesus, Santa Maria, além de outras de maior expressividade, como o Círio de Nossa Senhora da Conceição e o de São Sebastião.

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A transmissão do conhecimento, tanto das folias quanto das ladainhas, é feita de acordo com a tradição oral da comunidade. Durante alguns anos, constatou-se que somente os foliões mais idosos, se mantinham no ofício. Os jovens da cidade, apesar de conhecerem as folias, não demonstravam interesse em seguir o ofício de folião. Dentre as hipóteses que formulamos, a partir de nossas observações, para explicar essa recusa dos jovens, encontra-se o fato de alguns desses jovens sentirem-se envergonhados em participar das folias; outros consideravam que tais atividades eram adequadas somente aos idosos. Apesar das declarações dos jovens em que afirmavam não querer seguir a tradição, foi possível observar que muitos deles, de maneira discreta, sabiam acompanhar as folias e ladainhas. É interessante destacar, a respeito dessa conduta contraditória, que observamos nesse discurso dos jovens uma atitude de denegação ou de contra-identificação, visto que alguns deles, quando surpreendidos a acompanhar a folia, e questionados a respeito disso, imediatamente adotavam uma postura defensiva, replicando desconhecer o que quer que se relacionasse à folia. Essas observações foram feitas durante todo o período de levantamentos para o Inventário Nacional de Referências Culturais da ilha do Marajó - INRC Marajó (2004 - 2006), quanto para o INRC de São Sebastião (2007), e em trabalho de campo em 2011. Havia a necessidade, manifestada pela comunidade, de que algo pudesse ser feito no sentido de minimizar, ou mesmo eliminar, o risco de desaparecimento das folias e, consequentemente, dos foliões. Devemos notar que essa preocupação da comunidade pode ser entendida como a indicação de que a mesma encontrava-se motivada e envolvida com a apropriação e salvaguarda de sua herança histórica e cultural. Em respostas a esse apelo da comunidade, o Museu do Marajó Padre Giovanni Gallo passou a realizar oficinas de folias, com o objetivo de manter a tradição e propiciar o repasse do conhecimento dos mais velhos aos jovens interessados na renovação e manutenção das folias. O Museu do Marajó Padre Giovanni Gallo (MdM) foi fundado, em 1972, na cidade de Santa Cruz do Arari - Ilha do Marajó -, com a proposta de promover o desenvolvimento da comunidade através de sua cultura8. O acervo do MdM começou

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Desde sua fundação o MdM é gerido por uma Associação. Até seu falecimento, Giovanni Gallo era presidente da mesma. Após sua morte, a gestão do MdM continuou sendo feita pela mesma Associação. A escolha dos membros da Associação é feita por eleição que ocorre a cada dois anos.

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a ser formado a partir da doação de fragmentos de cerâmica e peças arqueológicas9 que eram encontradas pelos moradores do lugar, evidenciando desde o início das atividades do Museu a intensa participação da comunidade. Em 1983, o MdM foi transferido para Cachoeira do Arari, vizinho daquele município. Com o apoio dos moradores, Pe. Gallo ampliou o acervo do Museu, sobre o qual também desenvolveu pesquisas arqueológicas e etnográficas. Giovanni Gallo (nascido em Turim, 1927 e falecido em Belém, 2003) era oriundo de uma família que enfrentava muitas dificuldades econômicas para se sustentar. Ingressou, em 1943, na Companhia de Jesus e, desde cedo, mostrou interesse pelas manifestações culturais dos lugares nos quais desenvolvia seu trabalho pastoral. Iniciou seu apostolado na Sardenha, passando, depois, pela Suíça (1962). Chegou ao Brasil em 1970, estabelecendo-se, primeiro, na cidade de Salvador, Bahia, de onde saiu para conhecer o Brasil. Em seu percurso missionário, chegou ao Marajó como fotorrepórter. Entretanto, antes de se fixar no Marajó, foi transferido para São Luís, capital do Maranhão, onde desenvolveu seu trabalho pastoral em bairros carentes, e organizou mutirões para a reforma e construção de capelas e centros comunitários, além de ter ministrado diversos cursos para os moradores. Após ter permanecido em São Luís por dois anos, foi, finalmente, designado para o Marajó. Quando Giovanni Gallo chegou para trabalhar na Ilha do Marajó (1972), assumiu a paróquia do município de Santa Cruz do Arari. Nessa comunidade carente, incentivou a produção de artesanato, que era produzido com os recursos e materiais disponíveis no local; organizou cursos de arte culinária, confecção de flores, corte e costura, bordado e produção de sacolas. Construiu um posto médico, um centro comunitário, um laboratório onde ensinou as mulheres a embalsamar as piranhas10 que, em geral, eram descartadas pelos pescadores. Cerca de 12 mil piranhas embalsamadas foram enviadas para o exterior, contribuindo com uma nova fonte de renda para a comunidade. Também ajudou a construir 350 metros de pontes - com esteios em madeira de lei -, um trapiche comunitário, um cemitério ao abrigo das

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O acervo arqueológico é composto por artefatos cerâmicos produzidos entre os séculos V e XIII, e contém mais de 100 artefatos, além de centenas de fragmentos de cerâmica marajoara, recebidos como doações da comunidade, de acordo com Schaan (2007). 10 As piranhas são um grupo de peixes carnívoros de água doce, e se distribuem largamente pela América do Sul. Pertencem a cinco gêneros da subfamília Serrasalminae com diversas espécies, e são largamente utilizadas na gastronomia regional.

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enchentes (chamado localmente de período das águas grandes) e uma pista de 800 metros para o pouso de aviões. Um dia, recebeu a visita de um amigo que trazia um embrulho no qual havia uma série de fragmentos de cerâmica arqueológica. Foi a partir daí que nasceu a ideia de criar um museu “que recuperasse a cultura da nossa terra, a fim de preservá-la e divulgá-la. Ao mesmo tempo estaria projetado para o desenvolvimento da comunidade, numa forma bastante original e bem atual, ser polo de desenvolvimento através da cultura” (GALLO, 1996, p.180)11. O MdM ainda estava sendo gestado mas trazia em si uma das marcas que até hoje o caracterizam: a participação da comunidade não apenas em suas atividades, mas na sua construção, bem como na formação de suas coleções. Gallo desejava tornar as pessoas de Santa Cruz do Arari qualificadas, não só tecnicamente, para que fossem capazes de observar, analisar e alterar suas realidades, a partir da valorização das experiências do passado. Ele sabia que o caminho seria a escola, mas como fazer isso em um município que só oferecia ensino até a quarta série do ensino fundamental? Para ele, a resposta estava no museu. Não qualquer museu, mas “um museu que tivesse como objetivo de pesquisa não as coisas isoladas e sim as coisas no seu contexto cultural, em última análise o homem marajoara. Museu quer dizer pesquisa e neste caso seria pesquisa voltada à ação, para criar atividades produtivas: o Museu deveria ser polo de desenvolvimento através da cultura. Um museu incentiva a escola, oferece matéria-prima para várias formas de artesanato, provoca uma evolução do ambiente” (GALLO, 1996, p. 192).

Podemos observar comparativamente que, no que tange à função social do museu, o pensamento e a prática museológica de Gallo não se distanciava dos princípios e das recomendações que constam da Declaração de Santiago (1972), que definiu as bases do museu integral, visando proporcionar à comunidade uma visão de conjunto de seu meio material e cultural. Punham-se também de acordo com a Declaração de Caracas, realizada na Venezuela em 1992, segundo a qual os museus não podem ser entendidos, somente, como espaços e informação e de conhecimento, mas como meios de comunicação que, através dos objetos, transmitem significados e produzem discursos. A Declaração recomenda que sejam realizadas pesquisas sobre as 11

Não foram encontrados, até o presente momento e nos documentos disponíveis, indícios que comprovem alguma vinculação direta do projeto museológico do Museu do Marajó à Declaração de Santiago. O que efetivamente existe é esta declaração de Gallo que parte, não da museologia, mas de sua prática como missionário jesuíta, certamente influenciada pelo aggiornamento da Igreja promovido pelo Concílio Vaticano II, sob o papado de João XXIII.

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comunidades nas quais está inserido o museu, em busca de elementos que facilitem a compreensão de seu processo sociocultural, “envolvendo-a nos processos e atividades museológicos, desde a investigação e coleta de elementos significativos existentes em seu contexto até sua preservação e exposição” (CARACAS, 1992). Essas recomendações, referentes à comunicação museal e ao patrimônio, podem ser observadas no trabalho desenvolvido por Gallo no MdM. Ele acreditava que era necessário impulsionar a cultura, para que o desenvolvimento fosse integral, efetivo. Estava convicto de que o projeto do Museu alinhava-se ao trabalho jesuítico, considerando que os padres da Companhia de Jesus “sempre usaram a cultura como recurso fundamental do seu apostolado” (GALLO, 1996, p. 255)12. O MdM baseia-se na ideia de que é necessário apresentar (ou resgatar e expor) o homem que existe por trás de cada objeto. O modelo de comunicação proposto por ele fundamenta-se no princípio de que tudo que está exposto deve propiciar uma ampla interação com o visitante. Sendo assim, o usual “Favor Não Tocar” (que encontramos em muitos museus) não tinha lugar no MdM, pois constituiria uma barreira que dificultaria a recepção da mensagem que a exposição deve transmitir. Outro ponto importante, inclusive para entender o protagonismo do MdM e o fato de podermos dizer que se trata de um museu em primeira pessoa, refere-se a saber a quem se destina o Museu. Do MdM podemos afirmar que “não foi feito para ser apenas uma atração turística. Ele foi feito para essa população daqui do interior […]. O Museu é delas, foi feito por elas...” (FRADE, 2002, p. 150). Por motivos políticos, Gallo precisou sair da cidade de Santa Cruz, transferindo-se para Cachoeira do Arari, para onde levou consigo o acervo do Museu a fim de resguardá-lo de prováveis retaliações. Quando já estava instalado em Cachoeira, foi levado, em 1993, a desligar-se da Companhia de Jesus, após 50 anos de sacerdócio. A partir desse momento, o Museu passou a ser o único objetivo de sua vida. Neste movimento, o padre deu lugar ao museólogo13. Na mudança de Santa Cruz para Cachoeira, muitos objetos estragaram ou foram extraviados. Foi um período de muito trabalho, pois o prédio no qual pretendia montar o Museu pertencia à massa falida de uma empresa de beneficiamento de óleos 12

Não afirmamos que Gallo estava a par dessas declarações, pois não dispomos, até momento, de qualquer fundamentação documental que o confirme. O que afirmamos é que a prática museológica de Gallo estava, mesmo que intuitiva e coincidentemente, em consonância com o disposto nas mesmas. 13 Giovanni Gallo era museólogo e possuía o registro n. 20 no COREM – Conselho Regional de Museologia – 6ª Região. Gallo também desempenhou a função de Secretário de Cultura do município de Cachoeira entre os anos de 1989-1992.

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vegetais. Quase dois anos após a mudança, Gallo conseguiu comprar o prédio e regularizar a sua situação. Gallo relata que a comunidade de Cachoeira o recebeu friamente e ele entendia que não poderia ter sido diferente, visto que os cachoeirenses desconheciam a sua proposta museológica, agravado pelo fato de que “para os paraenses museu é sinônimo de jardim zoológico, por uma falsa ideia do Goeldi14: o Museu do Marajó não tinha bichos, então não era nada” (GALLO, 1996, p. 257). Outro motivo que, para ele, justificava a frieza da recepção dos moradores, era o fato do Museu não ter sido solicitado pela comunidade. Todavia, diante do interesse que os visitantes de fora da cidade demonstravam por aqueles artefatos que estavam expostos, os moradores foram, aos poucos, interessando-se pelo Museu sem, contudo, de acordo com o relato de Gallo, efetivamente valorizá-lo. Todavia, essa atitude indiferente frente ao MdM foi logo suplantada e, mais tarde, em um período de crise, a comunidade, liderada pelo pároco local, iniciou um movimento em defesa do Museu e realizou inúmeros eventos com a finalidade de salvá-lo15. Atualmente, o MdM localiza-se à beira do Rio Arari, no bairro do Choque. Está instalado em uma área de 20 mil m², sendo 10 mil m² para o prédio central e arboreto e outros 10 mil m² para estruturas de apoio como Fazendola Ecológica, prédio da secretaria e oficinas, além de uma área de expansão de, aproximadamente, 7 mil m². A exposição de longa duração, com mezanino, ocupa 1.000 m² (fig. 2).

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Museu Paraense Emílio Goeldi. Para maiores informações acesse www.museu-goeldi.br Pe. Gallo sempre teve dificuldades financeiras para manter o MdM. Em seus livros, artigos, e mesmo na exposição de longa duração, os pedidos de auxílio são constantes. Durante anos, Gallo manteve o MdM com recursos próprios e através de doações recebidas de sua rede de sociabilidade. Após seu falecimento, as dificuldades aumentaram, com carência de recursos necessários para manter as necessidades mais básicas da instituição. A gestão atual trava uma luta constante para manter o Museu aberto. 15

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Figura 2: Localização do Museu do Marajó. Autor: Paulo de Carvalho. Fonte: Oliveira, 2012.

Na entrada do Museu localiza-se um pequeno auditório, com cadeiras, um armário onde, presentemente, ficam expostas algumas peças em malha e bordado marajoara para serem vendidas, além de uma parede onde estão dispostos diversos painéis expositivos com alguns dos motivos das cerâmicas marajoaras. Gallo, em suas pesquisas arqueológicas, compilou e sistematizou os motivos ornamentais das cerâmicas arqueológicas que dispunha, tendo conseguido “[...] aproveitar até os mínimos fragmentos, partindo do princípio de que o desenho dos índios é sempre simétrico e periódico” (GALLO, 1996, p. 180), pois acreditava que esses motivos poderiam ser aproveitados em produções artesanais. Após vinte anos de pesquisas, conseguiu, em 1996, publicar o livro “Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara: modelos para o artesanato de hoje”16. Trata-se de um compêndio de 114 motivos gráficos apresentados em papel quadriculado (para facilitar o trabalho das bordadeiras, em ponto cruz) e em traços contínuos (para ser utilizado em trabalhos de serigrafia, entalhe em madeira e outras utilizações). Desse modo, Gallo elaborou um banco de dados dos mais completos sobre os grafismos marajoaras. Na área externa do Museu17, encontra-se o arboreto com exemplares de diversas espécies vegetais. É uma área de climatização agradável, um bosque dentro 16

Gallo, Giovanni. Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara: modelos para o artesanato de hoje. 3ª edição revista e ampliada. Cachoeira do Arari, PA: Museu do Marajó, 2005. 17 Ver figura 2.

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da cidade de Cachoeira. Ali encontram-se ainda: o túmulo de Giovanni Gallo; a Casa do Caboclo, uma palafita construída em bambu (taboca), que representa a casa de um caboclo marajoara; a reserva técnica, inaugurada em abril de 2008 com recursos do Fundo Nacional de Cultura e patrocínio da Petrobrás18; a antiga casa de Gallo foi transformada em Acervo Cultural Pe. Giovanni Gallo (OLIVEIRA, 2012). Assim, “como qualquer museu moderno que se respeite, o Museu do Marajó dá ênfase à atividade comunitária” (GALLO, 1996, p. 265), sendo este o mote que permite a interação entre o museu e a comunidade. Via de regra, as atividades aconteciam em edificações anexas19 ao prédio central, tais como a casa do artesanato; o atelier de cerâmica; a antiga sala de audiovisual, onde se desenvolvia o trabalho do Ponto de Cultura do Museu do Marajó20; a Fazendola Ecológica, construída com o auxílio dos fazendeiros da região: “uma maloca sobre a qual estou curtindo o projeto de transformá-la numa escola alternativa, com arte, teatro e folclore” (GALLO, 1996, p. 265). Na Fazendola21 também funcionava a Escola de Música22, e servia como local de ensaio da Banda de Música Giovanni Gallo. Em outro prédio amplo, localizado em frente à entrada principal do Museu, funciona a secretaria do MdM23; a oficina de costura que, na época em que Gallo era vivo, denominava-se 'casa do artesanato', lugar no qual as bordadeiras produziam os bordados com motivos arqueológicos: “eram oitenta e duas que assim ganhavam o peixe de cada dia” (GALLO, 1996, p. 265). Atualmente, a oficina não está em funcionamento e os bordados são produzidos, de modo eventual, por bordadeiras da 18

A construção da reserva técnica se deu através do Projeto “Memória, Identidade e Cidadania: preservação e divulgação dos acervos Arqueológico e de Cultura Popular do Museu do Marajó” que objetivou a modernização do Museu e a ampliação do acesso da comunidade e visitantes ao patrimônio cultural do Museu e teve o patrocínio da Petrobras, através da Lei de Incentivo à Cultura/ MinC. Disponível em . Acesso em 10.fev. 2012. 19 Ver figura 2. 20 O Ponto de Cultura Giovanni Gallo foi aprovado em 2005. Seus projetos eram voltados para o público acima de 14 anos, e pretendia gerar trabalho e renda através da qualificação profissional e inclusão social, aliando o conhecimento tradicional da cultura marajoara às novas tecnologias digitais, e articulado com os demais projetos implantados pelo Museu. Disponível em . Acesso em 10.fev. 2012. Pontos de Cultura são entidades apoiadas financeira e institucionalmente pelo Ministério da Cultura e que desenvolvem ações socioculturais nas comunidades em que estão inseridas. Podem ser instalados nos mais diferentes espaços – de casas a centros culturais – de onde desencadeiam processos de agregação de novos agentes e parceiros, cf. . Acesso em 18, abr. 2011. 21 Atualmente a escola de música não está funcionando neste prédio por dois motivos. O 1º se deve ao fato de que os instrumentos, que estavam trancados em um quarto de uma casa cedida ao Museu – enquanto o regente estava viajando – haviam sumido. O 2º é em decorrência do assassinato de um instrutor de oficina de luthier, que havia sido convidado para ministrar curso no Museu e que estava alojado na Fazendola. 22 A Escola foi criada em 2001, em parceria com a Prefeitura Municipal de Cachoeira do Arari e a Fundação Carlos Gomes. Gallo pretendia não só oferecer mais um serviço do Museu à comunidade, integrando e despertando o interesse pela música nos jovens do município mas, também, reativar a antiga Banda de Música, criada em 1935, por João Vianna (1909-1965). Disponível em . Acesso em 10.fev. 2012. 23 Ver figura 2.

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comunidade, quando há demanda por parte da gestão do MdM. Nesse prédio, também estavam instaladas a biblioteca e a escola de informática24; há, também, uma outra edificação onde se desenvolve o trabalho da serraria do Museu. A partir da reprodução dos motivos arqueológicos – com vistas à sua comercialização -, Gallo ensejou a popularização da cultura marajoara, não só em Cachoeira do Arari, mas em todo o arquipélago marajoara. A realização de oficinas de serigrafia, cerâmica, bordado e confecção de adornos, somada às de aulas de informática, à montagem da biblioteca e à transformação do MdM em Ponto de Cultura, proporcionou, às pessoas da cidade, possibilidades de profissionalização e de geração de renda, aspectos dos quais a cidade ainda permanece carente. Com a invenção, ou reinvenção dessa tradição - de utilização dos motivos arqueológicos nos mais diferentes suportes -, os habitantes de Cachoeira passaram a conhecer e a reconhecer o valor das peças arqueológicas encontradas e a pensar que aqueles achados se constituíam em mais do que cacos de cerâmica. De acordo com Schaan (2007), pode-se dizer que, antes de Gallo, pouco ou nada se sabia sobre a importância dos achados arqueológicos para a história local, sendo o contrabando de peças arqueológicas atividade muito comum na região. Mais recentemente, alguns moradores têm reconhecido a importância deste patrimônio. A partir do trabalho de Gallo, os motivos marajoaras saíram dos objetos arqueológicos e dos museus e passaram para as ruas, sendo reproduzidos nas praças, postes, fachadas de casa, laterais de ônibus etc. Neste sentido, o MdM desempenha um papel importante na formação da consciência histórica dos marajoaras, pois estes passaram a valorizar o patrimônio cultural da região. Assim, através da importância dada ao conhecimento do passado, bem como a produção/reprodução de objetos, nas oficinas, o Museu passou a influenciar no desenvolvimento cultural e econômico da região. Podemos supor que, ao reproduzir os desenhos marajoaras e repassá-los aos moradores, Gallo buscou fazer a mediação da tensão existente entre conservação patrimonial e desenvolvimento económico-social. 24

Todos os computadores que havia no Museu foram danificados em função da má conservação. O MdM foi contemplado pelo Programa Navegapará e será um Infocentro. O Navegapará é um programa governamental que interliga, através da internet de alta velocidade, os principais órgãos administrativos do Estado, viabilizando ações como tele-educação, telenegócios e inclusão digital. É um projeto de inclusão digital, que se realiza através da implantação de centros públicos de acesso à tecnologia da informação. Para mais informações ver . Acesso em 08.fev.2012.

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Imbuído dessa missão de preservar a cultura marajoara e contribuir para o desenvolvimento social da região, o MdM, que é Ponto de Cultura desde 2006, atua, desde 2008, como incentivador da manutenção do ofício de foliões e promove oficinas de repasse do conhecimento aos jovens de Cachoeira do Arari. Apesar de todas as dificuldades financeiras pelas quais passa o MdM, e sem receber, atualmente, o repasse de verbas do Ministério da Cultura – em decorrência de processos burocráticos – as oficinas de folias se mantém durante toda a semana numa sala instalada no Museu. Cerca de vinte pessoas, de variadas idades, aprendem a tocar os instrumentos musicais, cantar e compor folias, e rezar as ladainhas. Os recursos necessários para o pagamento do professor são repassados pela Prefeitura Municipal de Cachoeira do Arari, parceira fundamental para a manutenção das oficinas. Os instrumentos utilizados para o aprendizado, além daqueles que pertencem à igreja local e à própria comissão, foram fornecidos pelo Ponto de Cultura que doou 8 violões, 2 cavaquinhos, 1 banjo, 2 pandeiros e 4 triângulos (BARROS et Al. 2008). Os alunos de folias já se apresentam (fig. 3) em festejos a santos (não somente aquele em louvor a São Sebastião) nas residências das cidades e das fazendas próximas.

Figura 3: Alunos das oficinas de folia apresentam-se no arboreto Autor: Karla de Oliveira Fonte: Oliveira, 2012.

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Outro momento de aprendizagem ocorre durante o período de esmolação, quando a Comissão de São Sebastião percorre os campos. Os aprendizes, juntamente com foliões mais antigos, esmolam pela cidade, arrecadando donativos. Essa proximidade entre foliões experientes e novatos contribui para estimular a transmissão de conhecimento (BARROS et Al. 2008), além de propiciar aos mais jovens a oportunidade de firmarem-se como foliões. A participação efetiva, do Museu do Marajó, desde o princípio das discussões acerca da proteção da memória dessa herança cultural, contribuiu, fortaleceu e facilitou o processo de preservação, manutenção e repasse do conhecimento tradicional referente as folias.

4 Considerações finais: o papel do museu frente à memória e o patrimônio O museu é parte constitutiva do ser social e como tal, não é indiferente ao tempo, ao lugar e às condições gerais que conformam qualquer sociedade. Desse modo, a existência e a institucionalização do museu explicam-se justamente por e a partir dessas condições. Daí porque o seu fazer sentido e papel social que exerce, bem como as interpretações que propõe sobre a realidade, assim como as que sobre ele são elaboradas, tampouco encontram-se imunes às condições de tempo, lugar e ethos. Isso nos permite dizer que o real do museu é inseparável do real da história, uma vez que a condição de existência do museu é o seu historicizar-se, sendo este o eixo teóricometodológico a partir do qual abre-se a possibilidade de tratar, analisar e interpretar discursivamente o museu (BORGES ,2011). Todo museu expressa uma determinada maneira de ver, recortar, conhecer, classificar, compreender e representar uma dada realidade, em suma, todo museu comporta uma visão de mundo. Desse modo, o museu institui-se, em termos narrativos, como interseção entre a história e a linguagem, sendo o sujeito-ator de suas narrativas, pelas quais faz representar a seus leitores a sua construção/interpretação de uma dada realidade. Este fazer-se em signo é um dos elementos vitais do ser museu ou, dito de outro modo, um constituinte imediato do real do museu. Nesta acepção, o museu se faz, igualmente, um lugar de disputa de/por memórias e sentidos. Assim considerado, o museu, em sua função de ordenador/disciplinador de uma dada realidade, exerce um importante papel social e 17

político de observar, distribuir e incutir as regras (legais, políticas, culturais) existentes na sociedade, razão pela qual a finalidade intrínseca do museu é educar. Entendido como uma tecnoestrutura cujo fim é produzir formas de racionalização sistêmica da realidade, o museu procura disciplinar sentidos ao produzir recortes, representações e narrativas museografadas, a partir de sua relação específica com a realidade. Com base nessas considerações, podemos dizer que o museu não é apenas um local de memória e de poder (CHAGAS, 2009), mas também um lugar de vestígios deslocados e no qual ocorrem entrecruzamentos e co-ocorrências de memórias e contra-memórias. Daí

porque o museu ser um espaço de interpretação,

produção/ordenação de sentidos, um espaço de entrelaçamento tensionado de diversas memórias (dos objetos, da sua ressignificação, da comunicabilidade, das muitas formações discursivas e imaginário-ideológicas). Poderemos, assim, dizer que o museu desempenha, na sociedade, uma função criptomnésica, pela qual este armazena e processa informações, tornando-as suas e difundindo-as por meio de exposições – isto é, plasmando-as em seu próprio processo de memorialidade, de modo que essa função é inseparável de sua produção de sentido. O patrimônio, entendido como aquilo que um grupo social considera parte de sua própria cultura e com o que compõe a trama de sua identidade e que, concomitantemente, traça uma linha diferenciadora em relação a outros grupos sociais, é outro ponto em que observamos o atravessamento entre o museu e a sociedade. Assim, podemos dizer que todo patrimônio se configura em um jogo simbólico, determinado no tempo e no espaço, em um permanente entrelaçamento entre sujeitos (individuais e/ou coletivos), suas formações (culturais, discursivas e suas condições materiais de existência), em consonância com as condições históricas que, em determinado momento, atuam em uma comunidade. Consideramos relevante compreendermos o papel que o museu, na qualidade de agente social, exerce em uma dada sociedade, se quisermos compreender a importância do MdM no processo de preservação das heranças culturais da Ilha do Marajó e, em particular, a sua ação protagonista como mediador entre o passado e o futuro de um dos traços culturais que compõe a realidade marajoara e que, em larga medida integra a trama das identidades em jogo nessa Ilha: a folia de São Sebastião. No caso específico do MdM, além de sua óbvia posição simbólica – por aquilo que representa para a sociedade de Cachoeira do Arari -, é interessante notar o grau de 18

aderência que existe entre a instituição Museu e a comunidade cachoeirense. Chamamos a atenção para a aderência, pois compreendemos que a legitimidade de qualquer instituição depende diretamente do modo mediante o qual a coletividade se aceita e justifica para si mesma as instituições (BORGES; CAMPOS, 2012). Ressaltemos, ainda, que, se de um lado o MdM contribui para o resgate e a permanência de vários elementos do imaginário marajoara; de outro, o próprio MdM, à medida em que se integra à comunidade, passa a fazer parte desse imaginário. Neste sentido, podemos dizer que o MdM se inscreve numa ação de resistência, propiciando à comunidade marajoara “uma nova maneira de existir, com maior visibilidade, exibindo a si mesmos, como forma de reconfiguração permanente de sua cultura” (ABREU, 2012, p. 295). Neste mesmo movimento de auto-representação, o MdM substitui, em seu plano museológico e em sua narrativa museográfica, o ponto de vista do outro por uma perspectiva enunciativa em que a representação da alteridade se mescla à construção imaginária de si. Em suma, o MdM, em sua configuração e relação com a comunidade, pode ser considerado “um museu na primeira pessoa” (ABREU, 2012, p. 296). Daí sobressair-se o papel que o MdM desempenha no sentido de contribuir ativamente para o desenvolvimento e a sustentabilidade sociocultural e econômica de Cachoeira do Arari e, mais amplamente, da Ilha do Marajó. Desse modo, atuar como mediador para a formação de novos foliões e, assim, auxiliar a população na manutenção de suas práticas culturais, como a prática da folia, é um dos muitos contributos que o MdM vem legando à sociedade marajoara. É justamente essa integração, tornada possível, de um lado, pela aderência e, de outro, pela assunção de uma narrativa museal em primeira pessoa, que abre possibilidades para uma atuação endógena do MdM tanto para a valorização do passado e do presente marajoara, para a conscientização quanto à importância dos vestígios arqueológicos e da história cultural da Ilha do Marajó, quanto para o desenvolvimento de ações educativas e de processos de sustentabilidade, seja econômica, seja sociocultural. O exemplo das oficinas de folia, pelas quais o MdM ajudou a tornar possível a continuidade desse traço cultural, é revelador dessa integração e, mais do que isso, dessa simbiose entre o museu e a comunidade de Cachoeira do Arari. Além do seu plano museológico e de sua museografia, esse 19

conjunto ao um tempo museológico e político de especificidades compõe a singularidade da imaginação museal do MdM. Referências ABREU, Regina. Museus indígenas no Brasil: notas sobre as experiências Ticuna, Wajãpi, Karipuna, Palikur, Galibi Marworno e Galibi Kali´na. In: FAULHABER, Priscila et Al. Ciência e Fronteira. Rio de Janeiro: MAST, 2012. p. 289-316. AGASSIZ, Luís; AGASSIZ, Elisabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 – 1866. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2000. BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio corográfico sobre a província do Pará. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2004. BARROS, Liliam Cristina da Silva. Folias e Ladainhas no Marajó. In: LIMA et Al, Maria Dorotéa. Marajó: culturas e paisagens. Belém: 2ª SR/ IPHAN, 2008, p. 44-57. ______; ABUFAIAD, Verena. Folias de São Sebastião: um estudo da transmissão musical. Belém: IPHAN, 2ª S.R. Pará e Amapá, 2008. ______; ______. O repertório de ladainhas nas festividades de São Sebastião na Ilha de Marajó. In: BARROS, Liliam Cristina da Silva et Al. SEMINÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA MÚSICA E IDENTIDADE NA AMAZÔNIA. Anais do 1º Seminário do Grupo de Pesquisa Música e Identidade na Amazônia – Belém - Pará. Belém, Pará. 2010, p. 13-23. BORGES, Luiz Carlos. Museu como espaço de interpretação e de disciplinarização de sentidos. In: Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS Unirio / MAST, vol. 4, nº 1, 2011, p. 37-62. Disponível em http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus. Acesso em 05. jan. 2012. ______; CAMPOS, Márcio D’Olne. Patrimônio como valor: entre ressonância e aderência. In SCHEINER, T. C. M; GRANATO, M; REIS, M. A. G de S.; AMBROCY, G. B. Encontro Regional ICOFOM LAM. Documentos de trabalho do 21º Encontro Regional. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Museu de Astronomia e Ciências Afins. Rio de Janeiro, 2012. P. 112-123. Disponível em http://www.youblisher.com/p/736266-Livro-ICOFOM-LAM-2012/. Acesso em 10. Jun. 2013. CARACAS. Declaração de Caracas. 1992. portugal.net/index.php. Acesso em 12. jan.2012.

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