O Músico-Professor

June 19, 2017 | Autor: Luciana Requião | Categoria: Música, Educação Musical, Material didático
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LUCIANA REQUIÃO O MÚSICO - PROFESSOR

Luciana Requião é instrumentista (violão, violão baixo e baixo elétrico), arranjadora, pesquisadora e professora. Desenvolve um intenso trabalho como camerista, tendo participado em concertos e gravações junto a grupos como a Orquestra Rio de Violões, Orquestra de Violões Chiquinha Gonzaga (dirigida por Maurício Carrilho), TrioRio, Roda de Saia e o Trio Violão Brasileiro, entre outros. Tem inúmeros trabalhos gravados e/ou apresentados pelo Trio Violão Brasileiro, Orquestra Rio de Violões, Orquestra de MPB da UNIRIO, Grupo Sem Batuta, entre outros. É mestre em música brasileira e graduada em licenciatura, ambos pela UNIRIO. Atualmente é professora da escola Rio Música, onde ministra os cursos de Leitura e Escrita Musical, Violão, e Introdução ao FINALE (editor de partituras). Fundou a In Pauta, onde desenvolve um trabalho de digitação, transcrição e edição de partituras utilizando o software FINALE. Em 2000 elaborou 150 verbetes para o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira.

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LUCIANA REQUIÃO

O MÚSICO - PROFESSOR SABERES E COMPETÊNCIAS NO ÂMBITO DAS ESCOLAS DE MÚSICA ALTERNATIVAS: A ATIVIDADE DOCENTE DO MÚSICO-PROFESSOR NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO MÚSICO

O MÚSICO-PROFESSOR

Obras do autor disponíveis em nosso catálogo: O músico-professor Seis estudos-canção para violão / songbook Popolina / songbook

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Luciana Requião

O MÚSICO-PROFESSOR SABERES E COMPETÊNCIAS NO ÂMBITO DAS ESCOLAS DE MÚSICA ALTERNATIVAS: A ATIVIDADE DOCENTE DO MÚSICO-PROFESSOR NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO MÚSICO

Copyright © 2002 Luciana Requião

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ISBN 85-88319-25-X

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Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre sob a orientação da Profª Drª Regina Márcia Simão Santos.

Resumo Esta dissertação visa compreender os saberes e competências desenvolvidos na atividade docente do músico-professor, no âmbito das escolas de música alternativas, considerando a formação profissional do músico. Através das perspectivas da escola de música alternativa, do estudante de música, do músico-professor, e da análise de publicações com fins de ensino musical escritas pelo músico-professor, identificamos que os saberes desenvolvidos por este profissional em sua atividade docente vêm atender a uma demanda por profissionalização prioritariamente no âmbito da música popular. Relacionados ao mundo do trabalho, esses saberes são frutos da experiência do músico-professor em sua atividade artístico-musical, caracterizando-se por uma particularidade quanto ao como se ensina, o que se ensina e quem ensina. Essa experiência prática do músico-professor, identificada como uma competência produtiva comprovada, legitima sua atividade docente e justifica a escolha dos estudantes em seu percurso de formação. As escolas de música alternativas foram identificadas como uma instância de formação profissional que vem suprir uma lacuna deixada por Instituições de Ensino Superior, face à atual noção de competência profissional e aos perfis profissionais requisitados pelo mundo do trabalho. Na formação profissional do músico, a tensão detectada entre saberes técnico-profissionais requeridos no mercado de trabalho e saberes que respondam à dimensão social e política constitui um foco para pesquisas subseqüentes, sobre instâncias e redes de formação, onde se inscreve o projeto político-pedagógico de cada IES.

Abstract This work aims the understanding of the knowledge and abilities developed in the teaching activity of the “musician-professor”, in the scope of the “alternative music schools”, considering the professional background of the musician. Through the perspectives of the “alternative music schools”, of the music student, of the “musician-professor”, and the analysis of some publications dedicated to musical education written by the “musician-professor”, we identify that the knowledge developed by this professional in his teaching activity come to take care of a demand for professionalization mainly in the scope of popular music. Related to the world of the work, this knowledge is a result of the “musicianprofessor’s” experience in his artistic-musical activity, being distinguished by the way of teaching, what it is taught and who teaches it. This practical experience of the “musician-professor”, identified as a proved productive ability, legitimizes its teaching activity and justifies the students choice in their course of their formation. The alternative music schools have been identified as an instance of professional background that comes to supply a gap left by Institutions of Upper Education, before the current notion of professional ability and the professional profiles requested by the world of the work. In the musician’s professional background, the tension detected by the technicianprofessional knowledge required in the work market and by the knowledge which answer the social dimension and politics constitutes a issue for subsequent researches on formation instances where the political-pedagogical project of each Institutions of Upper Education is included.

Agradecimentos – À Regina Márcia pela generosidade com que dividiu comigo seus saberes; – A CAPES por financiar este trabalho; – Ao Sérgio Benevenuto e ao Vitor Neto pelas entrevistas; – Aos músicos-professores da Rio Música: Márcia Cabral, Tomás Improta, Euro S. R., Vera de Andrade, Deco Fiori, Rômulo Thompson, Sidney Linhares, Michael Arce e Ricardo Camargos; – Aos alunos da Rio Música: André Mega, Aquilas Couto, Gabriel Liotto e Liza K.; – Ao Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro; – Ao Adriano Giffoni pela disponibilidade e atenção; – Ao Mário Sève pela entrevista; – Aos professores do PPGM da UNIRIO, ao professor Samuel Araújo da UFRJ e ao professor Kazadi Wa Mukuna; – Ao professor José Nunes e à professora Elizabeth Travassos pelas sugestões na banca de qualificação; – Ao professor Ricardo Tacuchian pela orientação na Iniciação Científica; – Ao José Rodrigues pelas orientações e incentivo; – Ao Ari (Aristides Domingos Filho) da UNIRIO pela paciência nos problemas burocráticos; – À Liliane Secco e à Cristina Bhering pelo help no momento decisivo da elaboração do “abstract”; – Aos gatos Reinaldo e Popó pela companhia ao lado do computador; – À Mônica pelo companheirismo em todo este percurso.

Sumário CAPÍTULO 1

Marco referencial ............................................................................... 21 1.1 Saberes e Competências: a construção de perfis profissionais ..................................................................................... 21 1.2 Um debate sobre a formação profissional do músico .............. 30 CAPÍTULO 2

A escola de música alternativa e o músico-professor: um estudo de caso ............................................................................. 37 2.1 Rio Música: uma escola de música alternativa ........................ 37 2.2 O grupo de professores da Rio Música .................................... 40 2.3 Músico-professor: caracterização de um docente ................... 45 CAPÍTULO 3

Saberes e competências representados em enunciados de propagandas, na fala de estudantes e na fala do músico-professor ......................................................................... 55 3.1 Um estudo a partir de três perspectivas ................................... 55 3.1.1 As propagandas de escolas de música alternativas ............... 56 3.1.2 A fala de estudantes de música ............................................. 62 3.1.3 O músico-professor Adriano Giffoni: um informante qualificado ........................................................................................ 67 3.2 Saberes e competências na formação profissional do músico ............................................................................................. 70

CAPÍTULO 4

Análise de publicações com fins de ensino musical ................. 83 4.1 As publicações analisadas ....................................................... 86 4.1.1 Dicionário de acordes cifrados .............................................. 87 4.1.2 Escola moderna do cavaquinho ............................................ 90 4.1.3 A arte da improvisação ......................................................... 92 4.1.4 Música brasileira para contrabaixo ..................................... 93 4.1.5 Vocabulário do choro ............................................................ 96 4.1.6 Harmonia prática da bossa-nova ........................................ 97 4.2 Análise geral das publicações ................................................. 98

Considerações finais .................................................................. 105 Referências bibliográficas ..................................................... 111

Para que uma educação seja válida, toda ação educativa deverá necessariamente ser precedida de uma reflexão sobre o homem, e uma análise profunda do meio, da vida concreta daquele que se quer educar, melhor dizendo, daquele que se quer ajudar a se educar. Sem essa reflexão sobre o homem arriscamos a adotar métodos educativos e de agir de tal modo que o homem ficaria reduzido à condição de objeto. Sem a análise do meio cultural e concreto corremos o risco de uma educação pré-fabricada e castradora. Para ser válida, a educação deverá levar em conta que o fator primordial do homem, sua vocação ontológica, é aquela de ser sujeito, nas condições em que vive, em um lugar preciso, em um momento e num certo contexto. Paulo Freire

Introdução Esta dissertação parte de um marco situacional detectado na monografia que desenvolvi ao final do curso de Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Música da UNIRIO, entre os meses de janeiro e junho de 1999, onde procurei compreender de que forma se dava a atividade docente do músico. Nesta monografia, intitulada “Músico-Professor: um estudo de caso”, coletamos dados que nos permitiram caracterizar aquele que denominamos como “músicoprofessor”, e que se tornou um dos atores principais da presente dissertação. O que me motivou para a realização daquele estudo, foi um fato que vinha observando há muito tempo: o de que ser professor é uma condição intrínseca à atividade profissional do músico, e que esta atividade é, freqüentemente, a mais presente em seu cotidiano profissional e a que lhe garante uma remuneração mais regular. Antes de ingressar no curso de Licenciatura, eu, há dez anos, já desenvolvia uma atividade docente, em cursos de música, paralela à uma atividade artístico-musical, e o contato com questões do âmbito da educação, e da educação musical, me fizeram refletir sobre minha atividade docente. Assim, a questão principal de minha monografia de graduação foi a de compreender como o músico desenvolve sua atividade docente e que tipo de reflexão ele faz sobre esta prática: como e porque iniciou esta atividade, como relaciona sua atividade artística com sua atividade docente, se considera importante para sua formação como músico o exercício da atividade docente, se considera importante para o estudante de música ter aulas com um músico atuante, como resolve eventuais problemas de aprendizagem, se desenvolve alguma metodologia ou tenta aplicar alguma metodologia existente, se o músico se preocupa com questões relacionadas à didática, como foi sua formação profissional, se acha que a atividade docente requer uma formação na área da educação, se faz distinção entre o professor de 15

música e o educador musical, se segue a orientação de algum currículo, e se utiliza ou produz algum tipo de material didático. O que pude observar, entre outros aspectos, é que o músico considera a atividade docente uma atividade secundária no escopo de suas atividades profissionais, embora a atividade docente seja uma constante em seu cotidiano profissional e esta seja também a atividade que em geral lhe proporciona uma remuneração mais regular. Pude ainda observar que o músico-professor vem, nos últimos 20 anos, produzindo um crescente número de publicações com fins de ensino-aprendizagem musical. Essas publicações se caracterizam, de uma forma geral, por estarem voltadas para gêneros da música popular, mais especificamente da música popular brasileira. Observamos que neste mesmo período também houve um aumento do número de escolas de música não oficiais, denominadas freqüentemente como alternativas ou livres, no centro e zonal sul da cidade do Rio de Janeiro, o que significa uma ampliação das possibilidades de atuação docente para o músico. A monografia de graduação partiu de entrevistas realizadas com 100% do grupo de professores de uma escola de música alternativa, e nos permitiu caracterizar, então, aquele que denominamos como “músico-professor”. Concluí, através de sua fala, que ele está atendendo a uma demanda que busca por saberes ainda não legitimados por instituições oficiais para o ensino da música, daí a necessidade da elaboração de um material didático que aborde esses saberes e também de escolas que dêem conta desta demanda. Partindo deste quadro, novas questões surgiram e me impulsionam para uma nova pesquisa. Assim, na presente dissertação interessa-nos compreender: 1. Qual é o conjunto de saberes desenvolvidos pelo músicoprofessor em sua atividade docente no âmbito das escolas de música alternativas, como esses saberes são construídos nesta atividade e como o músico-professor justifica essa seleção; 2. Qual é a demanda atendida pelo músico-professor no âmbito das escolas de música alternativas (motivação e objetivos); 3. Qual é a noção de competência profissional em que o músico-professor se apoia e que procura formar; 4. Quais são as competências que legitimam a atividade docente do músico-professor segundo seu ponto de vista e também da 16

perspectiva do seu aluno. O objetivo da atual pesquisa é responder a essas questões como forma de compreender os saberes e as competências que norteiam a atuação docente do músico-professor. O foco deste trabalho foi delimitado na atividade docente exercida pelo músico-professor no âmbito das escolas de música alternativas. Este recorte justifica-se pela necessidade de compreender como se dá a formação profissional do músico neste âmbito, e de verificar em que este fato vem contribuir para o atual debate em torno da reforma curricular dos cursos superiores em música. Por escolas de música alternativas entendemos escolas nas quais os professores que compõem seu quadro não precisam ser concursados e a legitimação de sua competência docente está ligada diretamente à sua atuação como músico. Silva (1996) retrata outros aspectos, utilizando o termo escolas alternativas de música para designar escolas que estabelecem critérios específicos para seu próprio funcionamento, sem a obrigatoriedade ou existência de um currículo fixo com disciplinas ou repertórios pré-estabelecidos e sem o reconhecimento institucional conferido pela concessão de diploma (Silva, 1996, p. 354).

As escolas de música alternativas não têm que atender a regimentos externos e instrumentos oficiais, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)1 , e os documentos dela decorrentes2 . Não há controle por parte de nenhuma agência estatal ou religiosa. Já as instituições oficiais de ensino estão submetidas às determinações do Ministério da Educação e Cultura (MEC), e têm o reconhecimento legal dos diplomas e certificados por elas conferidos, uma vez atendidas às determinações deste órgão. Entendemos por músico aquele que tem formação profissional voltada para a atividade musical, podendo atuar como instrumentista, cantor, arranjador, compositor, regente, entre outros. Esta formação pode ter sido realizada tanto de forma autodidata, como em instituições oficiais ou alternativas. Consideramos o músico atuante como aquele que atua 1

Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Documentos que podem proceder da União, do Estado ou do Município, conforme Título IV da LDB. 2

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regularmente em atividades práticas musicais, com ou sem remuneração. Por professor entendemos aquele que desenvolve regularmente uma atividade docente. Portanto, o músico-professor seria o músico que, atuante ou não, desenvolve regularmente uma atividade docente de ensino musical. O termo músico-professor, como aqui nos referimos, designa o músico que atua como professor em escolas de música alternativas (muitas vezes também em aulas particulares), e que se caracteriza, entre outros aspectos, por desenvolver um trabalho docente que prioriza o repertório voltado para a música popular3 , trabalhando em geral com gêneros da música brasileira. O músico-professor coloca a atividade docente em segundo plano no escopo de suas atividades profissionais, apesar desta ser, freqüentemente, a atividade mais constante e com uma remuneração mais regular em seu cotidiano profissional. A demanda que parece ser atendida pelo músico-professor no âmbito das escolas de música alternativas procede tanto de estudantes de música diletantes, ou seja, aqueles que não almejam a profissionalização na área musical, como de estudantes com pretensões profissionais ou que já exercem a atividade musical profissionalmente. Na presente dissertação, o estudante de música que interessa é aquele que se insere no segundo caso, e que procura por um percurso de formação que inclui tais escolas. Isso se deve ao fato de nos interessar investigar os motivos que levam um estudante com este perfil a procurar pelo ensino musical em escolas de música alternativas, ao invés de, ou paralelamente, procurar pelo ensino oferecido por instituições oficiais. Assim como Luckesi (1994), acreditamos que “com a identificação dos conteúdos de uma prática escolar, identifica-se também a direção pedagógica que predomina nessa prática” (p.134). Portanto, na presente pesquisa procuramos analisar os conteúdos, que aqui nos referimos como saberes, e as competências representados na prática docente do músico-professor através de sua fala, da fala de seu aluno, em propagandas de escolas de música alternativas, e através da análise de publicações com fins de ensino musical escritas pelo músico-professor. Esta pesquisa se caracteriza como qualitativa, onde toda e

3 Neste trabalho, como não cabe uma ampla discussão a respeito do termo música popular, nos limitamos a reproduzir a definição de Tinhorão (1986): “a música popular [...] constitui uma criação contemporânea do aparecimento de cidades com um certo grau de diversificação social” (p. 7).

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qualquer evidência e manifestação singular é objeto de atenção, constando de debate bibliográfico e pesquisa de campo. Realizamos entrevistas semi-estruturadas e estruturadas com informantes qualificados: o músico-professor Adriano Giffoni, autor de uma das publicações analisadas; o presidente do Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro, Vitor Neto; o fundador da escola de música alternativa Rio Música, Sérgio Benevenuto; e um grupo de alunos que estuda nesta escola. O Capítulo I – Marco Referencial – trata de nosso marco conceitual e situacional. Apresenta conceitos que fundamentam este trabalho (saberes e competências), e estabelece um debate bibliográfico, aproximado dos depoimentos recolhidos através de entrevistas. Estes dados situam a problemática em torno da formação profissional do músico. O Capítulo II – A Escola de Música Alternativa e o MúsicoProfessor: um estudo de caso – analisa dados colhidos em entrevistas semi-estruturadas com Sérgio Benevenuto, fundador da escola de música alternativa Rio Música, palco deste estudo de caso, e em entrevistas semi-estruturadas com a totalidade dos professores desta escola. Neste capítulo é caracterizado aquele que denominamos como músicoprofessor. O Capítulo III – Saberes e competências representados em propagandas, na fala de estudantes e na fala do músico-professor – apresenta a perspectiva da escola, do estudante de música e do músicoprofessor, a respeito dos saberes e competências priorizados pelo ensino musical, tendo como foco o âmbito das escolas de música alternativas. A perspectiva da escola teve como fonte a análise e interpretação de propagandas de escolas de música alternativas, colhidas em três revistas especializadas em música. A perspectiva do estudante de música e a perspectiva do músico-professor foram obtidas através de informantes qualificados – um grupo de estudantes da Rio Música e o músicoprofessor Adriano Giffoni – que se tornaram informantes por estarem inseridos no âmbito de nosso estudo: apresentam características que os tornam, respectivamente, porta voz do estudante de música e do músicoprofessor, da forma como os entendemos neste trabalho. O Capítulo IV – Análise de publicações com fins de ensino e aprendizagem musical – trata das publicações com fins de ensino e aprendizagem musical escritas pelo músico-professor. Foram selecionadas seis publicações e consideradas como unidades de análise 19

os seguintes itens: público alvo, objetivos, justificativa, pré-requisitos, seleção do conteúdo, organização do conteúdo, recursos e seleção de repertório. A interpretação dos dados foi realizada tendo como referência o conceito de conteúdo proposto pelos Diseños Curriculares Base (DCB) segundo Coll, Pozo, Sarabia e Valls (2000). Este projeto, desenvolvido pelas Administrações Educacionais da Espanha, vem influenciando vários países da América Latina, incluindo o Brasil, nas suas reformas de ensino. Considerando os depoimentos de músicos-professores, estudantes de música, e os demais dados coletados, e recorrendo a autores que vêm apontando para a necessidade de reestruturação de cursos superiores (Schön, 2000; Demo, 1993 e 1995; Tardiff, 2000; Perrenoud, 2000; Lopes, 1999; Sacristán, 1999; Santomé, 2001) e especificamente a reestruturação dos cursos de música de nível superior (Ferreira, 2000; Kleber, 2000; Sekeff, 1997; Santos et alli, 1998), pretendemos contribuir para um necessário diálogo entre o ensino musical oficial e o alternativo, enquanto instâncias de formação profissional.

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CAPÍTULO I

Marco referencial 1.1 Saberes e competências: a construção de perfis profissionais Neste trabalho, compreendemos o termo saber como um sinônimo de conteúdo. Os saberes ou conteúdos são entendidos como conhecimentos que podem estar relacionados a fatos, dados, conceitos, procedimentos, atitudes, valores, normas, etc. Esta representação dos conteúdos foi descrita por Coll, Pozo, Sarabia e Valls (2000), e fundamenta a proposta desenvolvida na Reforma Educacional da Espanha. Esta proposta vem influenciando países latinoamericanos como o Brasil, que vêm utilizando seu conceito de conteúdo em documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), elaborado pelo Ministério da Educação em 1998. Segundo Coll et alli (2000), nas propostas curriculares contidas no documento espanhol Disenõs Curriculares Base (DCB)4 , os conteúdos são entendidos como “uma seleção de formas ou saberes culturais [...] cuja assimilação é considerada essencial para que se produza um desenvolvimento e uma socialização adequados dos alunos e alunas dentro da sociedade a qual pertencem” (Coll, p.13). Este mesmo documento defende a ampliação e diferenciação dos conteúdos escolares em factuais, conceituais, procedimentais e atitudinais, e considera que conteúdos relativos a fatos e conceitos têm “uma presença

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Embora os autores não situem a época em que foi desenvolvido o DCB, Maravillas Díaz Goméz (2000) se refere à implementação da Lei Orgánica General del Sistema Educativo em 1990, data a partir da qual o Estado Espanhol se encontra imerso em uma importante Reforma de seu sistema de ensino (p.77).

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desproporcional nas propostas curriculares e nas atividades habituais de ensino e aprendizagem em sala de aula” (Coll, p.14), recomendando que conteúdos procedimentais e atitudinais sejam reconhecidos em currículos escolares: nas propostas curriculares da Reforma considera-se que os fatos e conceitos são somente um tipo de conteúdos e que juntamente com eles devem ser levados em consideração outros tipos de conteúdos [...], ou seja, os procedimentos e as atitudes, valores e normas. Os saberes e as formas culturais cuja assimilação pelos alunos e alunas procura favorecer a educação escolar podem pertencer a uma ou outra dessas categorias, devido ao qual não há motivo algum para reservar a denominação de conteúdos, como tem sido feito, tradicionalmente, à categoria de fatos e conceitos (Coll, 2000, p.14-15).

Coll e Valls (2000) definem os conteúdos procedimentais como estratégias, métodos, habilidades, enfim, como um saber-fazer, e citam a definição do DCB que diz: “um procedimento é um conjunto de ações ordenadas, orientadas para a consecução de uma meta” (p.77). Os autores destacam que não se trata, então, nem de conteúdos recém-inventados, nem de algo completamente diferente do que se tem ensinado e aprendido em todas as épocas, mas é possível afirmar com certeza que, apesar disso, os procedimentos não mereceram na escolarização o reconhecimento, como o que agora é solicitado (Coll e Valls, 2000, p.76).

Em relação aos conteúdos atitudinais, Sarabia (2000) indica que o conceito de atitude é utilizado pela psicologia social, sendo as atitudes definidas por ele como “tendências ou disposições adquiridas e relativamente duradouras a avaliar de um modo determinado um objeto, pessoa, acontecimento ou situação e a atuar de acordo com essa avaliação” (p.122). Os autores apontam para a importância de se considerar, em projetos curriculares, o ensino de conteúdos atitudinais e procedimentais da mesma forma como são considerados conteúdos factuais e conceituais. Entende-se que “os alunos possam aprender os procedimentos e os valores, as atitudes e as normas por si mesmos, sem a necessidade de uma ajuda pedagógica sistemática e planejada” (p.15), embora esses procedimentos e atitudes sejam freqüentemente cobrados dos alunos pelos professores. 22

Nesta dissertação, consideramos que o conteúdo pode estar relacionado a fatos, conceitos, procedimentos ou atitudes, e a partir desta compreensão procuramos identificar esses conteúdos, aos quais nos referimos aqui como saberes, presentes na atividade docente do músicoprofessor, no âmbito das escolas de música alternativas. Saberes

Factuais

Conceituais

Procedimentais

Atitudinais

Figura 1 – Tipos de saberes

Trazendo essa representação de conteúdo proposta pelo DCB para o ensino musical, podemos verificar a articulação entre esses tipos de saberes. Em diversos métodos e manuais destinados ao ensino musical, conteúdos factuais são predominantes, apesar do objetivo final ser, na maioria das vezes, um procedimento, ou seja, um saber-fazer. No caso da aprendizagem da leitura e escrita musical, por exemplo, o objetivo final seria realizar a leitura de uma partitura de modo fluente, a partir da compreensão dos códigos estabelecidos. Neste caso, deveria haver uma relação constante entre dados (nomeclatura de notas, sinais de expressão, convenções gráficas, etc.), conceitos (a função do compasso, tonalidade, etc.) e procedimentos (a leitura e a escrita propriamente dita). Porém, o que se encontra na tentativa de estabelecer conceitos, são fragmentos de informações sobre um suposto objeto generalizável, descontextualizado e sem dimensão musical. Tomemos como exemplo o compasso. Em métodos e manuais encontramos as seguintes definições: “divisão de um trecho musical em séries regulares de tempos” (Med, 1980, p.80), “Os tempos são agrupados em porções iguais, de dois em dois, de três em três ou de quatro em quatro, constituindo unidades métricas às quais se dá o nome de compasso” (Priolli, 1986, p.20), e “compasso é uma seqüência de pulsações ordenadas de diversas durações, que se inicia com um apoio preponderante” (Scliar, 1986, p.34). Observamos que essas definições estão desprovidas de qualquer sentido musical. Se assim fosse, o termo música poderia ser definido simplesmente como uma “sucessão de tempos regulares ou ordenados”. Na verdade, é um saber factual, da ordem dos dados, desprovido da dimensão conceitual. 23

Segundo Coll (2000) “o que caracteriza a aprendizagem de fatos ou dados é que eles devem ser lembrados ou devem ser reconhecidos de modo literal” (p. 20). O autor considera que são os conceitos que dão significado aos fatos e aos dados. Pozo (2000) comenta: “Para que os dados e os fatos adquiram significado, os alunos devem dispor de conceitos que lhes permitam interpretá-los” (p.21). Já a aprendizagem de conteúdos factuais isolada pode acarretar uma aprendizagem memorística, por repetição, que acaba em esquecimento. A aprendizagem de conteúdos procedimentais também necessita de saberes conceituais, podendo correr o risco de se tornar uma mera reprodução mecânica. Coll e Valls (2000) indicam que “um dos principais problemas do ensino dos procedimentos é conseguir a aplicação espontânea daqueles que são os adequados para resolver uma tarefa nova sem depender das ordens ou sugestões do professor” (p.113). Numa aula de instrumento como o violão, em que o professor digita a partitura do aluno para lhe facilitar a leitura e a execução de uma peça, mas que o processo de digitação não é discutido com o aluno, este aluno, ao se deparar com uma nova peça, poderá carecer de conhecimentos necessários para digitá-la com autonomia, sem o auxílio do professor. “Colocar a ênfase mais sobre os processos que sobre o produto, mais sobre a maneira como as coisas vão sendo feitas pelos alunos que sobre o que é realizado. É nisso que reside a maior significação do ensino dos procedimentos” (Coll e Valls, 2000, p.112). No caso do ensino musical, a escolha do repertório também influencia diretamente na aprendizagem. Na aprendizagem de um instrumento, por exemplo, dependendo do repertório adotado pelo professor, podemos ter situações de aprendizagem diversas e até mesmo antagônicas. O que é considerado “certo” em determinado contexto musical pode ser considerado “errado” ou inadequado em outro: seja a postura de um violonista ao tocar seu instrumento, a embocadura de um flautista, a emissão sonora de um cantor, a articulação de um fraseado. A seleção do repertório para a aprendizagem de determinado conteúdo musical traz também implicações em torno da motivação e a aplicabilidade do conhecimento. Os conteúdos de um curso de harmonia podem ser vivenciados através de um coro renascentista a quatro vozes, ou através da condução de acordes do choro, que são duas abordagens distintas. Em cada uma delas, o sentido da aprendizagem pode variar de acordo com a vivência musical do aluno e da forma como ele pretende aplicar este conhecimento. 24

Na formação de um músico, consideramos que a seleção, abrangência e dosagem desses tipos de saberes (factuais, conceituais, procedimentais e atitudinais) no percurso de sua formação, dará a ele uma competência ou um conjunto de competências determinado, que representa certo perfil profissional. Competência A

Competência C

Competência B

Perfil profissional X

Competência E

Competência D

Perfil profissional Y

Competência F

Perfil profissional Z

Figura 2 – Rede de competências na construção de perfis profissionais

Consideramos o termo competência como referente a “habilidades operantes em um contexto” (Manfredi, 2000). Assim, podemos ter variados perfis que terão sua formação direcionada a um ou outro conjunto de competências necessárias à atuação profissional em determinado contexto. Na área da música é o contexto que irá determinar os saberes necessários à aquisição “da” competência necessária ao músico. Esta competência está intrinsecamente ligada à linguagem musical desenvolvida, ou seja, ao repertório. Para um músico que atue em uma orquestra sinfônica, é fundamental que tenha uma leitura musical fluente. Entretanto, para o chorão, o conhecimento e boa percepção dos clichês harmônicos idiomáticos do choro é pré-requisito, e uma leitura fluente não seria condição para uma execução competente. Ramos (2001) realizou um estudo que trata da ressignificação do conceito de qualificação e do conceito de competência, no contexto da relação entre educação e trabalho. A autora comenta que o termo qualificação vem sendo questionado e substituído pelo de competência, face às modificações sofridas no modo de se encarar o trabalho e a formação profissional daquele que vai atuar no “mundo do trabalho”. Segundo Ramos, as dimensões da qualificação são agora fortemente questionadas: o sistema de classificação, carreira e salários baseados em diplomas, portanto em 25

profissões bem definidas, seria inadequado à instabilidade das ofertas de emprego e a uma gestão flexível no interior das organizações. Isto porque a qualificação repousa sobre os repertórios relativamente estáveis: os postos de trabalho, cuja classificação é determinada de uma maneira estática; o diploma e a profissão, cuja possessão é a combinação de direitos precisos e duráveis e não podem ser questionados (Ramos, 2001, pp.61-62). Com a competência, tomam lugar o saber-fazer proveniente da experiência, os registros provenientes da história individual ou coletiva dos trabalhadores, ao lado de saberes mais teóricos tradicionalmente valorizados na lógica da qualificação. [...] Por essa ótica, a emergência da noção de competência é fortemente associada a novas concepções do trabalho baseadas na flexibilidade e na reconversão permanente, em que se inscrevem atributos como autonomia, responsabilidade, capacidade de comunicação e polivalência (Ramos, 2001, p.66).

O debate em torno da formação profissional vem sendo influenciado por estes princípios. Meghnagi (2000) destaca que o enfoque tradicional da formação profissional até o momento direcionase para a construção de perfis específicos; parece essencial raciocinar sobre conteúdos de conhecimento e habilidades necessárias a uma qualificação mais ampla; uma competência [...] não se fundamenta sob rígidas definições de saberes ou de habilidades que lhe são conectados, mas se configura de uma extrema flexibilidade na sua construção, êxito de um potencial e ampla variedade de percursos profissionais (Meghnagi, 2000).

Na prática vigente, a estrutura dos cursos superiores em música no Brasil está institucionalizada em Bacharelado em Canto, Bacharelado em Instrumento, Bacharelado em Composição, Bacharelado em Regência e Licenciatura em Educação Artística com habilitação em música, e ainda não se difere muito do que foi instituído pelo decreto nº 19.852 de 11 de abril de 1931 em seu Artigo 252: “o Curso Superior [visa formar] instrumentistas e cantores (professores), compositores e regentes (maestros) e virtuoses” (Fávero, 2000, p. 149). Hentschke e Oliveira (2000) comentam: A maioria dos cursos de graduação em Música oferecidos pelas universidades brasileiras estão voltados para a formação de profissionais 26

no campo da música erudita, com exceção de alguns poucos cursos que possuem ênfase no campo da música popular. Isto deve-se, principalmente, à exigência imposta aos cursos de graduação – obedecer ao currículo mínimo, estipulado pelo Ministério da Educação em 1969. No entanto, sabe-se que existe uma defasagem significativa entre o que foi previsto no currículo mínimo em 1969 (e ainda em vigor), e o mercado de trabalho nos dias de hoje. Os egressos dos cursos de Bacharelado em Música, dependendo da ênfase escolhida, são profissionais capacitados para atuar como músico solista, de orquestra, como regentes de coro e orquestra, como compositores (Hentschke e Oliveira, 2000, p.56).

A atual reestruturação dos cursos superiores em música se torna indispensável face à realidade social e à demanda profissional do mundo contemporâneo. Já na década de 30 o Ministro Francisco Campos5 indicava a necessidade de ampliação e adaptação do sistema universitário de acordo com o crescimento econômico e cultural do País. [...] Ela [a universidade] se distingue [...] pela flexibilidade das suas linhas e pela capacidade de adaptação resultante da amplitude e da liberdade dos seus planos administrativos e didáticos (Fávero, 2000, p. 23).

Mais do que uma submissão ao mercado de trabalho, reafirmamos a missão da universidade de acordo com Sguissardi e Morin: a competência deveria referir-se à capacidade e habilidade de contribuir para se ultrapassar as demandas imediatas do mercado de trabalho, para se desenvolver a capacidade de pensar criticamente e de produzir conhecimento, libertos dos controles burocráticos do poder (Sguissardi, 1997, p.59). a universidade conserva, memoriza, integra e ritualiza uma herança cultural de saberes, idéias e valores, que acaba por ter um efeito regenerador, porque a Universidade se incumbe de reexaminá-la, atualizá-

5 Diário Oficial de 15 de abril de 1931, pp. 5830-5839. Transcrita de Ministério da Educação e Saúde Pública. Organização universitária brasileira, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1931.

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la e transmiti-la. A Universidade gera saberes, idéias e valores que posteriormente, farão parte dessa mesma herança (Morin, 1999, p.9).

A gama de possibilidades de atuações profissionais para o músico foi detectada na pesquisa “Vocações Musicais e Trajetórias Sociais de Estudantes de Música: o caso do Instituto Villa-Lobos da UNIRIO” (Travassos, 1999a). Considerando os campos de atuação profissional de alunos do Instituto Villa-Lobos (IVL)6 , as funções mais exercidas por eles são nesta ordem: professor, regente de coro, instrumentista, cantor, preparador vocal, operador técnico de áudio, produtor, editor de partituras (transcrição e digitalização eletrônica) e compositor de trilhas musicais. As instituições nas quais atuam com maior freqüência são: escolas de música, teatro, estúdio de ensaio, estúdio de gravação, bares e casas noturnas, clubes, igrejas e televisão. As aulas particulares são igualmente recorrentes. O repertório envolvido nesses ambientes de trabalho abrange os seguintes gêneros7 : erudito, popular, choro, samba de raiz, clássico, rock, sacro, mpb, blues, evangélico, barroco, ópera, balet, concerto, música de mídia, pagode, fusion, funk, jazz, godspel, modernos russos, música instrumental, bossa nova, soul music, pop latino, músicas próprias, folclore e renascentista. Já a Tabela de Cachês Mínimos para Músicos Autônomos do Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado do Rio de Janeiro (SindMusi), prevê as seguintes situações profissionais: atuação em gravações de discos comerciais, jingles ou vinhetas, filmes e tapes especiais (teatro, historieta, etc.), como instrumentista, corista, ritmista, arranjador, regente e copista; atuação em apresentações ao vivo (shows), acompanhando artistas nacionais e artistas estrangeiros; atuação em apresentações ao vivo (concerto sinfônico, câmara, balé, ópera, opereta e congêneres), como spalla, concertino, 1ª parte, solista, instrumentista, corista e 2ª parte; atuação em programas de televisão; atuação em bailes; e atuação em casamentos. Segundo recente pesquisa de opinião realizada a pedido do

6 Dos cursos de Bacharelado em Instrumento, Bacharelado em Canto, Bacharelado em Composição, Bacharelado em Regência e da Licenciatura em Educação Artística com Habilitação em Música. Segundo dados obtidos em questionário aplicado a 157 alunos dentre os 398 inscritos no primeiro semestre de 1999. 7 Conforme preenchimento ao item do questionário tipo de repertório.

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Sindicato dos Músicos Profissionais do Rio de Janeiro com seus filiados8 , 73% são profissionais autônomos, 12,7% são empregados e 14,3% têm emprego mas também trabalham como profissional autônomo. Essa autonomia característica da profissão do músico é o que requer do profissional estar capacitado a enfrentar uma grande diversidade de situações profissionais. Desta forma, o sucesso da formação do músico que almeja atuar profissionalmente parece depender de um percurso flexível, que o permita adquirir competências necessárias para alcançar o perfil ou os perfis profissionais desejados. É por isso que o músico Adriano Giffoni diz: “ser competente é estar apto a trabalhar no maior número de situações profissionais possíveis”9 . Podemos supor que a diversidade de situações profissionais do músico pode levá-lo a uma superficialidade em torno de seus conhecimentos. Porém, autores apontam para um novo modelo profissional, onde a adaptabilidade e a capacidade de atuar em diversas áreas são necessárias. Não defendemos uma idéia de flexibilização no sentido de superficialidade, mas acreditamos que uma instância de formação profissional superior não pode dar as costas à realidade que seus formandos estão tendo de enfrentar no mundo do trabalho, e que soluções alternativas devem ser buscadas. Perrenoud (2000) defende a idéia de se possibilitar aos alunos um percurso de formação individualizado nas instituições acadêmicas. O autor lança a proposta de uma pedagogia diferenciada, onde possa existir o que chama por grupos de necessidades, com “o oferecimento de certas opções no programa, para melhor dar conta da diversidade dos interesses e necessidades dos alunos” (Perrenoud, 2000, p.43). Perrenoud considera que, de uma forma ou de outra, a individualização já ocorre, e que nem sempre o currículo prescrito é o currículo real: o que é uma experiência formadora? Estar sentado em uma sala, no meio de um público, escutando um orador que mostra transparências, é uma experiência formadora? Certamente não para todo mundo. Percebese aí a imensa simplificação que o currículo formal apresenta: é uma ficção, mas permite tratar como idênticos aprendizes forçados a seguir o mesmo programa (Perrenoud, 2000, p.88).

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9

Relatório de pesquisa de opinião com músicos filiados ao SindMusi, realizado em agosto de 2000 pelo Laboratório de Pesquisa Mercadológica e de Opinião Pública da UERJ. Em entrevista concedida à autora em novembro de 2000.

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1.2 Um debate sobre a formação profissional do músico Considerando a importância em contribuir para um diálogo entre o ensino musical oficial e o alternativo, enquanto instâncias de formação profissional, recorremos a autores que vêm apontando para a necessidade de reestruturação do currículo dos cursos superiores de música, no que se refere à seleção de saberes (conteúdos), à questão da organização escolar e à construção de perfis profissionais. Ferreira (2000) apresenta em sua dissertação de mestrado reflexões a respeito do perfil profissional que se está formando através dos cursos de graduação em música, em função dos conteúdos contemplados (onde se inclui a seleção de repertório). A partir de um estudo com alunos da Escola de Música da UFMG, observa “a distância abismal que existe entre esses conteúdos e a realidade cotidiana dos alunos” (p.39) e que os alunos “aparentemente conseguem ser formados por um modelo e se profissionalizar em outro” (p. 39). Kleber (2000) reitera afirmando que “o músico se depara com a problemática de como articular sua prática profissional com a vida cotidiana, se valendo do que vivenciou na Universidade” (p.6). Estes impasses estão presentes também no depoimento de Vitor Neto, presidente do Sindicato dos Músicos Profissionais do Rio de Janeiro10 : acho legal você cursar uma universidade [...] também é um mercado de trabalho que poderia ser ocupado. Agora, que a universidade tinha de ser muito mais aberta sem dúvida nenhuma... na parte de computação, de harmonia. Acho que tem que preparar o cara pra ser músico. Você ter um curso de saxofone, que foi o que eu fiz, e estudar música erudita... Vai tocar aonde?! Ser solista de orquestra? Quantos concertos para saxofone existem?! Por que você não é formado como músico de naipe? Aí tem muito mais trabalho no mercado do que você ser um solista!

Ainda a respeito da formação do músico, Vitor Neto comenta: por exemplo, você estuda contrabaixo. Acho que o caminho é procurar um contrabaixista que esteja tocando e que dê aula. Porque esse cara é o

10

Entrevista concedida à autora em outubro de 2000.

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que vai te jogar no mercado. Esse é um dos caminhos interessantes, estudar com quem sabe fazer. Se você pegar um contrabaixista que só é formado pela universidade e colocar num estúdio ele não vai saber como é que é tocar num estúdio. Você pode até fazer a universidade mas tem que ter uma pessoa da prática. Esse cara devia estar dentro da universidade também, aí seria muito melhor.

O músico Adriano Giffoni complementa este pensamento: eu acho importante que a universidade tenha essa abertura, de incluir outras coisas no seu ambiente. Eu conheço casos de vários músicos que se formam na universidade e chegam perdidos no mercado de trabalho, sem informação. Então eu acho importante essa visão da formação do músico11 .

Estas constatações feitas por profissionais da música se relacionam com questões debatidas por Schön (2000) e Tardif (2000). O primeiro afirma que “o que os aspirantes a profissionais mais precisam aprender, as escolas profissionais parecem menos capazes de ensinar” (p.19), enquanto que o segundo comenta que “há uma relação de distância entre os saberes profissionais e os conhecimentos universitários” (p.11). Neto observa ainda que o músico na atualidade precisa de uma formação versátil: “hoje você não pode mais ser o saxofonista. Você tem que fazer um curso de como operar mesa de som [...] tem que produzir... dar aulas. Acho que hoje você não pode mais ser só o músico instrumentista, tem que fazer muita coisa”. Sekeff (1997) reforça este comentário: um instrumentista, um pianista por exemplo, deve ser agora capaz de exercer também o papel de acompanhador, camerista, revisor, corepetidor, professor, comentarista, crítico musical, pesquisador, restaurador, animador cultural, músico de orquestra, copista, em função da especificidade e... de uma educação mais ampla (Sekeff, 1997, p.201).

Neto ainda indica a necessidade da abordagem a respeito do cotidiano profissional do músico, como, por exemplo, questões a respeito da regularização da profissão. Afirma que isso falta dentro da universidade: “não é só tocar... você tem que cuidar de sua vida profissional, saber os seus direitos”. 11

Entrevista concedida à autora em novembro de 2000.

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A esta busca por saberes e competências necessárias à formação profissional do músico que pretende atuar no mundo do trabalho, se soma a expectativa de que a estruturação dos currículos dos cursos de graduação permita ao aluno a possibilidade de construir um percurso de formação individualizado. Perrenoud (2000) indica novas formas de se pensar a estrutura de cursos superiores: o ideal seria fazer um balanço de competências ao longo de toda a formação, estabelecer e depois revisar, sobre essa base, um projeto personalizado de formação, concebido ‘sob medida’. Cursos diferenciados dariam conta dos impasses, dos atalhos, dos retrocessos, dos fracassos, em suma, da complexidade e da singularidade dos processos de aprendizagem e formação. As restrições financeiras e o peso das instituições, em geral, impedem tal flexibilidade. Pensa-se mais a individualização como possibilidade de trilhar de modo individualizado unidades de formação instituídas e que preexistem aos estudantes. O estudante pode ‘pular’ as unidades de formação que não lhe são necessárias, escolher dentre várias ou percorrê-las na ordem que melhor lhe convier (Perrenoud, 2000, pp.91-92).

Na área da música, esta visão, apesar de ainda não ser uma realidade nas instituições acadêmicas, está sendo considerada em propostas curriculares. Como exemplo podemos citar a proposta de um grupo de professores da UNIRIO, como contribuição para a discussão sobre as novas diretrizes curriculares dos cursos superiores em música. Destacamos os seguintes pontos indicados pelo artigo: Pouca ou nenhuma integração, flexibilização, permeabilidade há entre os cursos de graduação; [...] Nenhuma possibilidade há de autonomia do aluno para administrar o curso de suas atividades acadêmicas; [...] Hoje, há limitações nas grades curriculares que enquadram o aluno num padrão muito pouco flexível, resultando em cursos com visões restritivas do conhecimento, dificultando-se extrapolar a aptidão específica de seu campo de atuação profissional [...]; [A necessidade] de um modelo curricular que considere a flexibilização curricular e a autonomia do aluno; [...] Caberá ao aluno escolher investir mais ou menos em dado conteúdo, em função das competências requeridas em um ou outro “perfil” profissional. E caberá à equipe de orientação acadêmica favorecer o debate contínuo sobre os desafios que as práticas cotidianas vão colocando aos profissionais da música” (Santos et alli, 1998, pp.123126). 32

Ferreira (2000) comenta que na Escola de Música da UFMG está havendo uma reforma curricular: em linhas gerais, dentre outras coisas, o novo currículo diminui significativamente a carga horária de todos os cursos, decreta o fim de algumas disciplinas seriadas, reduz o número de disciplinas obrigatórias e aumenta a oferta das optativas, propõe a discussão sobre as formas de avaliação, abre a possibilidade do aluno cursar disciplinas em outras unidades acadêmicas, cria a figura do professor orientador que vai discutir com ele a melhor opção de curso e implanta Laboratórios de Criação como disciplina comum e obrigatória para todos os cursos (Ferreira, 2000, p.43).

Se por um lado acenamos para a flexibilização curricular, por outro lado permanece a tensão em torno da legitimidade dos saberes, da seleção cultural, do debate sobre os critérios que as instituições utilizam para contemplar determinados repertórios e excluir outros. Esse debate tem sido travado por autores como Sacristán (1999) e Lopes (1999). Considerando os conteúdos como uma “seleção de formas ou saberes culturais” (Coll, Pozo, Sarabia e Valls, 2000, p.13), perguntamos como se dá esse processo de seleção nas instituições oficiais. Lopes afirma que “o processo de seleção cultural da escola parte essencialmente dos segmentos de cultura valorizados socialmente como saber ou conhecimento” (p.93). Para Sacristán, “o significado dos ‘conteúdos’ da escolarização ultrapassa a acepção mais restrita, referente à seleção de matérias ou de disciplinas” (p.148). Ele afirma: a escola que conhecemos, com sua estrutura, seus funcionamentos, suas práticas internas e o papel designado para seus agentes não são fruto maduro, nutrido por uma filosofia concreta da educação, e sim um produto histórico criado pela sedimentação e amálgamas de idéias diversas, interesses variados e práticas multiformes (Sacristán, 1999, p.148).

Segundo Moreira e Silva (2000), o conhecimento corporificado no currículo é tanto o resultado de relações de poder quanto seu constituidor. Por um lado, o currículo, enquanto definição oficial daquilo que conta como conhecimento válido e importante, expressa os interesses dos grupos e classes colocados em 33

vantagem em relações de poder. Desta forma, o currículo é expressão das relações sociais de poder (Moreira e Silva, 2000, p.29).

Santomé (2001) também reconhece que quando se analisam de maneira atenta os conteúdos que são desenvolvidos de forma explícita na maioria das instituições escolares e aquilo que é enfatizado nas propostas curriculares, chama fortemente a atenção a arrasadora presença das culturas que podemos chamar hegemônicas. As culturas ou vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados que não dispõem de estruturas importantes de poder costumam ser silenciadas, quando não estereotipadas e deformadas, para anular sua possibilidade de reação (Santomé, 2001, p.161).

É o que Santomé (2001) chama por culturas negadas12 . Ferreira (2000) destaca que a seleção dos conteúdos a serem contemplados em currículos “não é de natureza neutra, nem se justifica apenas como uma opção de escolha de conhecimentos: na verdade estaria comprometida com uma determinada visão de mundo, de sociedade, de ensino, e no caso em estudo, de música e de músicos” (Ferreira, 2000, p.37). Lembra ainda que “o ensino musical [...] ainda se utiliza, na maioria das escolas em nível de graduação, de procedimentos de reconhecimento e reprodução, tendo como base a música ‘erudita’, de tradição européia, privilegiando-se a produção do séc. XVIII ao séc. XIX” (Ferreira, 2000, p.41). Desta forma, a música popular brasileira estaria sendo negada ou então “estereotipada e deformada, para anular sua possibilidade de reação”, como afirmou Santomé13 . Assim como Ferreira, Kleber (2000) afirma que em cursos de música universitários ainda se perpetua um repertório distante da realidade do aluno: “Como pano de fundo desta questão está a manutenção de valores culturais hegemônicos, neste caso, valores da cultura ocidental européia” (p.4) .

12

É importante frisar que no caso do Brasil as culturas “negadas” não são necessariamente culturas minoritárias. 13 A UNIRIO a partir de 2000 instituiu o Bacharelado em Música Brasileira. Segundo nosso ponto de vista isso não resolve a questão da inserção da música popular nos cursos de música universitários. Ao contrário disso, o Bacharelado em Música Brasileira acabou por separar este repertório dos cursos de canto, instrumentos, composição e regência, confinando-o em um curso próprio e exclusivo.

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Entendemos que o que se ensina está intimamente vinculado a como se ensina. Desta forma, a seleção do repertório implica a abordagem de conteúdos tanto factuais e conceituais quanto procedimentais e atitudinais. O marco situacional de nossa pesquisa nos coloca diante de saberes representados e desenvolvidos por instituições oficiais, ao lado de um mercado de trabalho que exige do profissional versatilidade e competências que estão ausentes das propostas de ensino dessas instituições. Torna-se necessário, então, a compreensão sobre o papel da universidade na vida profissional do músico. Segundo a Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, em seu Artigo 43 II, a educação superior tem por finalidade: “formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua”. O Decreto nº 2.208 de 17 de abril de 1997, estabelece que a educação profissional se compreende em três níveis: o básico, o técnico e o tecnológico. Em seu Artigo 10º indica que o “Os cursos de nível superior, correspondentes à educação profissional de nível tecnológico, deverão ser estruturados aos diversos setores da economia, abrangendo áreas especializadas, e conferirão diploma de Tecnólogo”. Nesta pesquisa, nosso interesse é o de colocar em questão os cursos superiores de música enquanto instâncias de formação profissional, sem com isso esquecer que eles estão associados à pesquisa e à extensão. Esta parece ser a maior problemática das Instituições de Ensino Superior (IES). Morin (1999) indica a dupla função paradoxal da Universidade: adaptar-se à modernidade e integrá-la, responder às necessidades fundamentais de formação, proporcionar ensino para as nossas profissões técnicas e outras, proporcionar um ensino metaprofissional e metatécnico (Morin, 1999, p.10).

Tendo como pano de fundo pesquisas que criticam a forma como as IES vêm desenvolvendo seus cursos de música, pretendemos com esta dissertação fornecer conhecimentos que poderão contribuir para o debate em torno da reformulação dos cursos superiores em música, que visam não só a formação profissional como também “a formação de uma atitude de investigação” (Morin, 1999, p.10). 35

CAPÍTULO II

A escola de música alternativa e o músico-professor: um estudo de caso Neste capítulo, retomamos o resultado de um trabalho de pesquisa iniciado em 1999, sob a forma de monografia, intitulado: “MúsicoProfessor: um estudo de caso”. O estudo foi realizado no universo da escola Rio Música – Iniciação e Profissionalização Musical LTDA. Para a realização da presente dissertação, voltamos à escola para colher novos dados e atualizar o que já havia sido observado. A escola Rio Música é uma escola de música alternativa situada no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. A escolha desta escola como objeto de pesquisa se deveu à minha familiaridade com o ambiente onde em determinada época fui aluna, posteriormente professora e coordenadora. Este fato contribuiu para a pesquisa, pois me proporcionou uma visão êmica a partir de três perspectivas diferentes – como aluna, professora e coordenadora – aliada ainda a uma visão ética, em função de minha situação como pesquisadora14 . 2.1 Rio Música: uma escola de música alternativa A Rio Música foi fundada em 1995 por Sérgio Benevenuto, músico capixaba que foi um dos primeiros brasileiros a se formar pela Berklee College of Music, escola americana de música voltada para a

14 A visão êmica seria uma visão de dentro para fora, a visão de quem é insider, assim como a visão ética seria aquela realizada de fora para dentro, a visão de quem é outsider (termos utilizados por etnomusicólogos para designar aquele que se encontra inserido em determinado grupo ou contexto social – insider – e aquele que está fora de determinado grupo ou contexto social - outsider).

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música popular, neste caso especificamente o jazz. Segundo Benevenuto, foi este um dos principais motivos que o tornou, ao voltar ao Brasil, um professor particular muito procurado. Na época em que começou a estudar música ainda não havia cursos que contemplassem conteúdos como harmonia funcional e improvisação, base do que tinha estudado em Berklee. A partir do relato de Benevenuto sobre sua trajetória como estudante de música, percebemos como, na época, era difícil para o músico que desejasse trabalhar com a música popular o acesso a informações que lhe facilitassem o estudo15 . Se eu quisesse aprender um pouco de jazz eu teria de ter a sorte de encontrar alguém, raríssimo, que tivesse o conhecimento, e geralmente aqui no Brasil como também não tinha ensino em torno disso, eram pessoas muito intuitivas. As vezes aqueles criadores natos que criam uma barbaridade mas não sabem colocar essa questão pro aluno.

Segundo Benevenuto, na época só haviam as escolas oficiais. Em sua trajetória como estudantes passou por diversas instituições mas não encontrou o que buscava: entrei na EMES, Escola de Música do Espírito Santo, procurei professores de violão mas só encontrava professores de violão clássico, que eu gostava também mas eu tava sempre no lugar errado, não conseguia obter o tipo de informação que eu buscava. Nessa peregrinação eu vim pro Rio, aí entrei na Escola Nacional de Música, passei pelo Conservatório Brasileiro, fui buscar a Academia Lorenzo Fernandes, o antigo VillaLobos que hoje é a UNIRIO. [...] mesmo no campo da música erudita, se eu fizesse o curso todo na música erudita eu não chegava a compreender o início do séc. XIX. Ou então eu estudava a ponto de fazer música até o séc. XVIII... meio caricata porque eu não vivia no séc. XVIII e não respirava aquele ar... Tinham de vez em quando professores que eram contemporâneos, aí vinham e falavam assim: pode tudo. Pega um balde, põe a cabeça e faz búúúú... Quer dizer, eu pulava de cara dois séculos.

Benevenuto explica que, naquela época, como não havia cursos voltados para a música popular, as únicas fontes para os estudantes interessados eram os discos, o rádio e as revistas. Foi por este motivo 15

Entrevista concedida à autora em agosto de 2001.

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que, ao saber da existência de uma escola que priorizava o ensino da música popular em Boston, EUA, não exitou em buscar por essa nova fonte de saberes. Em 1978 ingressou na Berklee onde se formou em composição. Quando você chega lá a primeira impressão é que: existe! Existem programas idealizados e desenhados para que o aluno desenvolva esse lado da intuição na música, a experimentação dentro da música, não é só ser um reprodutor dos grandes compositores que é legal também. Mas assim, criar, te estimular a isso... e tinha roteiros pra isso. Aí, a primeira impressão que você tem é: cheguei no paraíso! Tudo infraestruturado, aquela diferença do primeiro mundo para o terceiro mundo.

Ao regressar de Berklee, Benevenuto começou a ser procurado para dar aulas, uma vez que poucas pessoas tinham condições financeiras de cursar uma instituição em outro país: “Eu dava aula na minha casa, e aí começou a encher de gente e eu aluguei uma sala, aí encheu mais de gente, tinha turmas de quinze alunos. E fui formando um grupo até que falei: vamos montar uma escola”. A Rio Música foi elaborada a partir da vivência de Benevenuto como estudante de música, ou melhor, a partir das necessidades que sentia quando estudante: A idéia de gerar essa didática e a escola foi porquê eu próprio me sentia indo para a escola e não sendo preparado pro que eu via na minha frente acontecendo. Eu estava sendo preparado para outra coisa, outro século, para um outro tempo... mas nada associado a minha realidade. Então a filosofia básica da Rio Música foi essa. Primeiro, para eu me chamar músico profissional minha profissão é a música, eu viver dela dignamente, pagar minhas contas, fazendo música, e que tenha público, que as pessoas gostem, uma coisa orgânica, natural. E eu percebi que as escolas trabalhavam meio de costas para isso. Então uma das primeiras idéias foi aquela de tentar trazer mais músicos em ação e adaptá-los como professores do que trazer aquele professor um pouco viciado no que chamam de “teoria”. Teoria pra mim nunca foi tão teórico assim, é uma coisa de linguagem interna. Se você ficar no ramo teórico só você não tem efetividade, e quem trabalha no mercado é quem tá fazendo alguma coisa. Qualquer coisa, ou criando, ou tocando... A Rio Música nasceu com essa filosofia: não vamos trabalhar de costas com a realidade. Como é que é a vida, como a indústria participa disso, como é que é o mercado alternativo disso. 39

Através do depoimento de Benevenuto, percebemos a existência de uma demanda por saberes não presentes em instituições oficiais para o ensino da música, demanda esta que vem sendo absorvida por escolas de música alternativas como a Rio Música. Além da questão do repertório, os estudantes estão buscando por saberes profissionais, que resultem efetivamente em saberes procedimentais. Segundo Benevenuto, a Rio Música foi criada com este intuito: “reduzir a distância entre o ensino convencional e a realidade profissional do mercado de música”. O fato do depoimento de Benevenuto apontar para a necessidade de um ensino profissionalizante não o distancia do ensino superior, uma vez que este ensino é também voltado à profissionalização. Como vimos, autores apontam para uma universidade que está formando profissionais com perfis que já não mais se adequam ao mundo do trabalho. Este fato pode estar afastando músicos do ambiente universitário, uma vez que eles procuram por outras instâncias de formação, e isso acaba por afetar a função da universidade de fomentar a pesquisa e de preparar um corpo docente que dê conta de novos perfis profissionais.

2.2 O grupo de professores da Rio Música Realizamos entrevistas com a totalidade dos professores da Rio Música utilizando um questionário que nos serviu como roteiro, somando um total de nove professores entrevistados16 . A partir dessas entrevistas pudemos caracterizar aquele que denominamos como músico-professor, no âmbito das escolas de música alternativas e também das aulas particulares (uma vez que todos os entrevistados também atuam em aulas particulares). O roteiro que utilizamos foi estruturado de modo que procurasse identificar, entre outros itens, a trajetória do músico-professor como estudante e como profissional da música: quais são seus objetivos profissionais e quais são os motivos que os levaram a dar aulas. Procuramos ainda investigar como ele relaciona a sua atividade musical com sua atividade docente, e que critérios utiliza para desenvolver seu trabalho como professor.

16

Entrevistamos 100% dos professores que estavam atuando naquele momento, sendo o quadro total de professores compostos por 12 pessoas.

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Os professores que compunham naquele momento o corpo docente da escola, atuavam na área de canto, guitarra, violão, piano, bateria, gaita, teoria, harmonia e improvisação. Inicialmente nos deteremos, ainda que de forma breve, na trajetória de formação dos músicos-professores entrevistados. Embora consideremos este grupo bastante homogêneo, a ponto de permitir uma caracterização geral, sua formação musical se deu em diversos contextos. Esta breve exposição poderá nos ajudar a compreender seu pensamento, pois acreditamos que o professor “usa como recurso pedagógico a sua própria memória do que é ser professor, que guarda de quando era aluno, ou os modelos que no seu percurso biográfico mais o marcaram e que justamente estão mais próximos da sua identidade” (Vieira, 1999, p. 23).

Márcia Cabral Tomás Improta Euro S. R. Vera de Andrade

Atuação profissional principal Cantora Pianista Baterista Violonista

Sidney Linhares

Guitarrista

Rômulo Thompson

Guitarrista

Deco Fiori Michael Arce Ricardo Camargos

Cantor Gaitista Pianista

Músico-Professor

Curso ministrado Canto Piano/Harmonia Bateria Violão Guitarra/Teoria/ Harmonia Guitarra/ Improvisação Canto Gaita Piano

Quadro 1 – Relação de músicos-professores entrevistados

Márcia Cabral teve aulas de música em sua escola desde o maternal17 . Porém, o estudo específico do canto se iniciou aos 20 anos de idade. Além do canto, em sua trajetória como estudante de música passou pelos cursos de percepção, harmonia e violão. Tem também formação na área da dança e vem atuando em musicais: “Eu sempre pensei na arte como um todo, o corpo como um instrumento completo. Dominando a dança, dominando a palavra e o canto... eu acho que tudo

17

Neste trabalho, o termo escolas se refere à escola de ensino regular.

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é um complemento para minha formação como artista”. Sua atuação como professora tem como principal referência sua própria formação: “Eu estudei 14 anos, pratiquei 14 anos essa técnica. A partir disso, dessa observação, eu trouxe tudo o que meu professor me ensinou e também fui colocando as minhas questões.” Tomás Improta é filho de músicos: “Eu nasci no meio clássico, com 3 anos eu já tocava, com 6 anos já tinha umas musiquinhas...”. Segundo Tomás, sua formação se deu através de aulas particulares “informais”: “Meu pai era crítico de música, então o pessoal puxava o saco do meu pai e eu tinha aula de graça”. Quando criança teve também aula de música na escola, mas, segundo ele, “as aulas nas escolas geralmente se limitam a decorar hinos”. Sua formação foi voltada para o piano clássico mas seu interesse era a música popular: “Não gostava muito de estudar o clássico. Eu era apaixonado pela música popular que eu ouvia no rádio. Mas de música popular eu não tinha aula nenhuma. Não tinha quem ensinasse. [...] Depois é que fui aprender isso, depois dos trinta anos”. Além do estudo musical, chegou a cursar até o segundo período de Engenharia. No final dos anos 80 fundou o Cenário – Centro de Arte Rio. Eu pensei em fazer a melhor escola do Brasil, e acho que certamente seria se tivesse continuado. Teve os melhores professores de cada matéria: arranjo era a Célia Vaz, bateria o Pascoal Meireles, sintetizador era o Rick Pantoja que era a única pessoa que entendia de sintetizador naquele tempo, piano clássico era a Sônia Goulart, deu aula de sax o Mauro Senise, Dirceu Leite dava aula de flauta, eram os grandes professores.

Apesar de dizer que “não gostava de estudar o clássico”, considera que teve aula com bons professores e que foi a partir dessa experiência que direcionou a orientação pedagógica de sua escola: “Dois anos antes de inaugurar o Cenário eu já estava preparando o Cenário... preparando os livros, preparando todos os currículos. A gente se reunia semanalmente com os professores”. Quando perguntado sobre os critérios que utilizava para a elaboração dos currículos de sua escola, Tomás responde: Além dessa coisa toda de eu ter aprendido com bons professores... eu tive professor de composição: o Marlos Nobre. Estudei com Francisco Mignone, então eu tive uma formação muito louca. Foi meio auto-didata mas foi pontuada por grandes professores.

Euro S. R. considera sua formação eclética. É formado em 42

Arquitetura e paralelo à música desenvolve um trabalho com literatura e artes plásticas. Sua trajetória como estudante de música se iniciou através do estudo do piano: “Na infância eu tinha estudado piano mas não gostei. Talvez por causa da professora que era aquela alemã super rígida... quase me tirou a vontade de música”. Na escola Euro teve aulas de música: “Tinha e detestava. [...] Era canto orfeônico, a professora chatíssima, tinha que ter nota pra passar. Era super desestimulante”. Mais tarde, já adulto, foi estudar bateria no Conservatório Brasileiro de Música, onde também cursou três anos de vibrafone. Quando começou a dar aulas teve em seu professor sua principal referência: “Corri atrás do meu professor [...]. Ele falou pra eu pegar [os alunos] que ele ia me orientar e dar o material que ele tinha. Então comecei a dar aula em cima do método dele”. Vera de Andrade iniciou seu estudo musical informalmente: Eu tava assistindo a minha tia dar aula pro meu primo, tentando ensinar umas posições [...]. Aí pedi pra ver se eu conseguia tocar também. Peguei umas musiquinhas e fui indo... pedindo pra um e pra outro me ensinar uma posição, uma musiquinha. [...] Estudar foi bem mais tarde.

Seu estudo inicial do instrumento foi “de ouvido”: “Meu pai me botou num professor, mas eu não aprendi por música não. Eu não queria mesmo, já tinha acostumado a pegar tudo visualmente, vendo as pessoas tocando [...] e com isso eu desenvolvi muito a memória”. Depois que cursou o segundo grau, pensou em seguir a carreira musical profissionalmente: Fui ter aulas de teoria. [...] Aí pintou um curso de preparação pra faculdade e tinha lá o curso de clarinete, não tinha de violão. Eu tinha um clarinete e resolvi aprender outro instrumento. [...] Tinha aula de instrumento, tinha teclado básico, tinha teoria e tinha aula de apreciação musical.

Neste período, o estudo do violão ficou um pouco de lado, sendo o instrumento utilizado para compor. Através de aulas particulares de harmonia funcional “juntei o violão com a partitura”. Quando criança Vera teve aulas de música na escola: “Eu tive até no jardim da infância aquela aulinha que você aprende aquelas musiquinhas. Depois do jardim da infância a aula de música era a professora ensinar os hinos”. Em sua trajetória procurou pelo ensino musical através de aulas particulares e 43

escolas de música alternativas. Muito tempo depois, por volta dos trinta anos de idade, ingressou no curso de Licenciatura em Educação Artística da UNIRIO, transferindo-se posteriormente para o Bacharelado em violão. Sidney Linhares teve aula de música na escola, que segundo ele “era horrível. Ela dava teoria... clave de sol”. Considera que seus estudos musicais se iniciaram na Rio Música, onde veio posteriormente a atuar como professor. Nesta escola estudou guitarra, teoria e harmonia funcional. Em seguida foi ter aulas particulares de improvisação e percepção. Seu interesse em estudar música foi estimulado pelo irmão mais velho, que tocava baixo elétrico. Rômulo Thompson também teve aula de música na escola: “Tinha mas muito ruim. Era tipo cantar musiquinha e tocar instrumentos de percussão”. Em seu ambiente familiar teve bastante contato com música: meu pai escreve letras... e na época ele participava de festivais... e minha mãe cantava e musicava as letras dele. Então eles ganhavam vários festivais e eu com três anos já circulava pelo palco de um lado pro outro. Meu avô era amigo de vários músicos... sempre fui em saraus de chorinho.

Sua formação musical iniciou quando tinha 12 anos. Estudei um ano de violão clássico assim meio bagunçadamente. Depois de um ano comprei uma guitarra [...] aí fiquei estudando sozinho. [...] Comecei a ter aula com um cara que tinha chegado de Berklee, depois tive aula com Ary Piassarollo.

Sua formação seguiu através de aulas particulares e, em 1995, ingressou no curso de Licenciatura em Educação Artística da UNIRIO: “Eu não queria fazer Licenciatura na realidade, por isso até que eu saí”. Deco Fiori iniciou sua trajetória como estudante de música aos 10 anos de idade, quando teve aulas particulares de piano. Após dois anos resolveu deixar as aulas para se dedicar ao vôlei. Em sua escola teve aulas de música quando cursava o antigo ginásio, onde aprendeu a tocar flauta doce. Posteriormente, aos 17 anos, passou a ter aulas particulares de violão, “aí fui tirando música, fui compondo...”. Ingressou 44

na UFF para fazer cinema, e paralelo a isso foi “fazer aula com um primo meu de violão erudito e comecei a gostar [...]. Aí saí da UFF e fui pra UNIRIO fazer TEPEM”18 . Em seguida ingressou no curso de Licenciatura em Educação Artística da UNIRIO onde se formou. Michael Arce não teve aulas de música na escola. Seu primeiro contato com o estudo da música foi aos quinze anos, quando começou a tocar violão. Mais tarde estudou guitarra e gaita com professores particulares. Paralelamente cursou Engenharia e posteriormente Odontologia. Não chegou a concluir nenhum dos dois cursos e seguiu a carreira musical atuando como instrumentista e compositor. Ricardo Camargos também não teve aulas de música na escola. Iniciou sua trajetória como estudante de música com “aquele clássico começo com aulas de piano em casa”, e também cantando em corais. Por volta dos 12 anos começou a tirar música “de ouvido” apesar de que “o músico clássico toca com a partitura na frente [...]. Sem a partitura o cara não consegue tocar nada”. Influenciado por um amigo formou um conjunto de rock: “Fui na cara de pau, mesmo sem ser pianista popular. [...] Eu tinha mais ou menos uma noção de cifra, via naquelas revistinhas”. Posteriormente foi estudar numa escola de música alternativa da qual se tornou professor. “Passou um tempo e o Tomás [seu professor] perguntou se eu não queria dar aula. Tinha um método que ele me ensinou e aí ele me deu umas apostilas e eu fui”. É formado em Arquitetura.

2.3 Músico-professor: caracterização de um docente Os músicos-professores entrevistados, apesar de não terem tido uma educação musical estimulante na escola quando criança, procuraram pelo ensino musical em outras instâncias e terminaram por seguir a carreira musical, tornando-se também professores de música. O modelo docente que parecem seguir distancia-se do modelo que vivenciaram na infância, e aproxima-se do modelo que tiveram num segundo momento de sua formação, através do percurso de formação pelo qual optaram. Segundo os depoimentos, nossa suposição inicial de que a

18

TEPEM é um curso de extensão da UNIRIO, de teoria e percepção musical.

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atividade docente é intrínseca à atividade profissional do músico foi reiterada. É através da atividade docente que o músico dá os primeiros passos em sua vida profissional, e sua principal motivação é o aspecto financeiro: Foi o início de uma tentativa de profissionalização (Michael Arce); A primeira grana que eu ganhei foi dando aula. [...] Foi bom, eu já pensava em trabalhar com música, ser músico, me profissionalizar e achei que seria um incentivo [...] (Sidney Linhares); Acho que por uma necessidade de ganhar uma grana. E é uma prática comum das pessoas que vivem e começam a fazer música, estudar música e querer viver de música. Um dos primeiros trabalhos profissionais é dar aula (Vera de Andrade); Fui também pra ganhar dinheiro porque é também um campo de trabalho (Ricardo Camargos).

O músico-professor tem, num primeiro momento, sua profissionalização legitimada através da sua atividade docente, uma vez que essa atividade é regular e remunerada. Por outro lado, tem sua atividade docente legitimada pelo conjunto de saberes que adquiriu em sua trajetória como estudante de música, e também por sua atividade artística, apesar dessa atividade ser no início irregular e não remunerada: “Alguém te procura também pra dar aula porque te vê tocando...” (Vera de Andrade); “Normalmente quem me procura, o cara já sabe como eu toco, já me conhece, já quer seguir essa linha que eu sigo” (Sidney Linhares). O músico-professor não se reconhece como “professor” e sim como “músico”. Observa-se que na Tabela de Cachês Mínimos elaborada pelo SindMusi não há remuneração mínima para professor de música, fato que consideramos curioso uma vez que o músico tem, freqüentemente, uma intensa atividade docente. Segundo a fala do músico-professor, a atividade pedagógica é importante para seu próprio desenvolvimento como músico: Fora do Brasil todos os grandes caras dão aulas, têm métodos [...] e todos dizem que é importante, que ajuda na formação, você está sempre se reciclando, está sempre revendo coisas básicas que são importantes (Rômulo Thompson); Acho que enriquece, você sempre aprende alguma coisa (Ricardo Camargos); Eu aprendi muito. Ajuda a reforçar aquilo que você já sabe [...] (Sidney Linhares).

Entretanto, se consideram mais instrutores ou orientadores do 46

que professores: Muitas vezes eu trabalho mais orientando... estuda isso, estuda aquilo [...] me considero mais um orientador até porque eu prefiro isso (Rômulo Thompson); Eu acho que sou até mais conselheiro do que professor. Eu tento fazer com que o aluno descubra qual é o ponto fraco dele, e qual é o ponto forte pra ele seguir (Sidney Linhares).

Mesmo não sendo a função docente seu objetivo profissional principal, e estando diretamente ligada a questões econômicas, todos os entrevistados concordam que dar aulas é uma atividade prazerosa: eu adoro dar aula. Eu gosto de participar desse processo da descoberta do aluno, de encaminhar o aluno, de ver o amadurecimento do aluno. Sempre gostei de dar aula. Claro que também fica muito prático porque vira um ganha pão também. Mas eu não poderia ser secretária e cantora. Eu gosto de fazer uma pessoa descobrir que ela tem uma voz, de orientála, encaminhá-la pra estudar uma teoria ou então encaminhá-la pra estudar um instrumento se ela tiver jeito pra isso. Gosto de ver a voz se desenvolvendo, eu gosto de acompanhar todo o processo, o crescimento musical do aluno, do aprendizado, dele se desenvolvendo, desabrochando aquela voz que não era nada e de repente tem uma voz (Márcia Cabral).

O músico-professor tem uma proposta de plano de curso bastante centrada em um determinado tipo de competência que considera importante, e assume a postura de especialista. Sua credencial de “especialista” parte da atividade artístico-musical que desenvolve paralelamente à atividade docente. O ensino proferido por ele teria como ideal um ensino profissionalizante. Apesar disso, freqüentemente desvia de sua proposta inicial, direcionando a aula para propostas trazidas pelo aluno que procura a escola com objetivos bastantes variados: “tem muita gente que tem aula e não quer ser profissional” (Ricardo Camargos). Os músicos-professores afirmam, quando perguntados se continuariam a dar aulas mesmo que não precisassem desta atividade para sobreviver: “Sim, mas não teria 30 alunos, teria 5” (Márcia Cabral); “Sim, mas em outras condições” (Euro S. R.); “Eu teria muito poucos alunos” (Rômulo Thompson); “Continuaria, talvez selecionasse mais [...]” (Michael Arce). Essa seleção parece estar relacionada com sua expectativa em relação ao aluno: “Muitas vezes o cara não tá muito a fim de aprender [...] nem pega no instrumento, não nem aí pra música. Eu até mandava 47

esses caras irem embora” (Sidney Linhares). A seleção e a organização de conteúdos inerentes ao curso de cada músico-professor entrevistado, aparece de forma clara e objetiva em sua fala: “Eu tenho um cronograma. Pra começar eu pensei qual era o meu público alvo. [...] Então a metodologia tinha que girar em função disso. [...] Então eu bolei toda uma série, um cronograma de 2 anos” (Michael Arce); Eu divido a aula em 6 matérias: técnica, solfejo rítmico, harmonia, composição, repertório popular e repertório no pentagrama. No geral uma aula são 3 dessas 6, e a aula seguinte as outras 3. É a aula A e a aula B. Aula A é técnica, composição e harmonia. Aula B é solfejo e repertório. Numa semana o cara tem a aula A e na outra a aula B (Tomás Improta).

Através deste relato sobre a trajetória do músico-professor como estudante de música, o desenvolvimento de sua metodologia está, na maioria das vezes, calcada em sua trajetória como aluno: “Eu sempre fui muito organizado comigo mesmo. O meu estudo foi sempre muito organizado e eu acho que a minha coisa didática refletiu isso” (Rômulo Thompson). O músico-professor demonstra ainda em sua fala uma capacidade de reconhecer as “deixas” dos alunos no decorrer da aula: Às vezes você programa uma aula e faz de uma outra maneira e é ótimo. Mas eu já tinha preparado a aula, tinha elementos pra trabalhar (Vera de Andrade); É super importante você poder tomar novas diretrizes no meio da aula, coisas que às vezes o aluno diz e muda o rumo da aula... é bom ter jogo de cintura (Deco Fiori); Eu fiz um programa aula a aula. Então eu tive um trabalhão... é claro que isso não é uma coisa rígida. Eu tenho um roteiro, uma direção da onde o curso quer chegar. Então eu já sei o que vou dar pro cara e eu marco mesmo. Tenho uma ficha pra cada aluno em que eu marco o nível que ele tá, a aula que ele tá fazendo. Essa aula não é no sentido de na primeira aula vou dar isso, na segunda isso. Essa é a matéria. O cara pode fazer a primeira e segunda aula numa aula só. O outro levar três aulas fazendo a primeira aula. Isso é um roteiro mais vai rolando conforme o aluno, isso eu explico pra ele. São trinta níveis de 8 aulas cada (Euro S. R.).

Para o músico-professor, é importante para o aluno que deseja se tornar um profissional ter aulas com um músico atuante: “Muito bom. Mesmo que seja só pra ouvir história, só pra aprender uma passagem do 48

dedo ou aquela maneira que ele faz pra atingir aquele som. Mesmo que seja uma aula só de timbre” (Michael Arce); É bom ele passar por isso. Eu tive aula com o Ary Piassarollo que não tinha didática nenhuma e só de eu tocar com ele aquilo ali me inspirava, cheio de idéias na cabeça, cheio de músicas na cabeça, e pronto... isso funciona. [...] Eu acho que eu consigo motivar porque eu sou motivado pra música e isso gera uma troca (Rômulo Thompson).

Em sua própria formação o músico-professor buscou professores com este perfil, e é este modelo de competência que parecem querer seguir: depois de estudar com o Almir fui estudar com a Celinha Vaz, fui buscar as pessoas, buscar as fontes. Fui estudar no Cenário com gente famosa, que na época era um pouco a venda... o forte do Cenário era ter músicos profissionais com uma certa notoriedade no meio musical dando aula, com um método todo montadinho, apostilas, aquela coisa toda. Fui estudar lá não só pra ter aula mas também pra ficar perto do artista que você gosta. Estar ali junto, ver como a pessoa faz, ter um contato mais estreito com aquela pessoa (Vera de Andrade).

O músico-professor diferencia o perfil do professor de música que atua em escolas alternativas dos que atuam em escolas regulares, especificamente os que trabalham com o público infantil, tornando clara a questão de que para o músico aspirante a profissional o que vale é o conhecimento musical do professor, e não a capacidade de desenvolver habilidades com o aluno: acho que são pessoas especiais, que têm uma tarefa muito grande, uma dedicação muito grande... não é o músico não. É um professor que tenha uma didática muito boa, que seja uma pessoa muito bem humorada que atraia a atenção das crianças. O ideal é alguém que tenha estudado Piaget, que tenha uma coisa didática pra lidar com criança muito desenvolvida, a formação muito sólida (Rômulo Thompson); Eu dou aula pra quem é músico ou quer ser músico. O professor da escola dá uma aula obrigatória. O cara que vem pra uma escola de música acha música um grande barato, você só tem que confirmar isso. Na escola de repente você tem que dizer que música é legal, você tem que trazer esse universo pra eles (Deco Fiori). 49

Percebemos aí uma contradição, pois, paralelamente aos depoimentos onde o conhecimento musical parece sobrepor a capacidade docente, encontramos depoimentos como: Acho que se ele não tem didática o aluno não aprende. Tanto que existem instrumentistas e cantores maravilhosos mas que não sabem dar aula. Não sabem simplificar, acho a didática muito importante (Márcia Cabral); A didática nem todo mundo tem (Ricardo Camargos); Acho que tem a coisa da didática. Tudo o que você aprende sistematizado é melhor (Euro S. R.); Você passar uma informação tem que saber como (Vera de Andrade).

O músico-professor encara o ensino universitário da música como um ensino complementar à sua formação profissional, priorizando uma formação em escolas de música alternativas ou aulas particulares, que atenda à sua necessidade imediata e urgente: “Eu acho que pra mim, pro que eu pretendo ser, acho que não ia acrescentar muito. Ia tomar muito tempo, eu ia deixar de estudar” (Sidney Linhares); Eu acho que as pessoas ficam muito trancadas dentro da universidade, acho que na universidade a música é muito paralela, as vezes ela não é real. Acho que o professor tem que saber como é o palco e trazer essa experiência dele pra dentro de sala (Márcia Cabral); Acho importante você desenvolver a musicalidade de alguma forma organizada, mas não necessariamente dentro de uma sala de aula, dentro da universidade. Eu sempre preferi mais a aula particular do que a escola. Eu sempre soube o que quis e ia encaminhando as minhas aulas. Então eu acho legal por esse lado que você encaminha na aula particular. Na escola você tem que seguir um programa (Rômulo Thompson).

O músico-professor demonstrou ainda uma preocupação em relação ao desenvolvimento de materiais com fins de ensinoaprendizagem musical que os auxiliem em sua atividade docente. Muitos deles têm como fruto desta atividade a elaboração desse tipo de material, na forma de apostilas, livros, CDs, vídeo aulas entre outros: “Pra circulação interna no Cenário eu lancei 4 livros. E agora eu lancei esse grande de harmonia” (Tomás Improta); esse material nasceu da prática. Me lembro que quando entrei pra dar aula no Cenário pediram pro corpo docente preparar um material, apostilas e tudo. Mas todo mundo ficou muito perdido de ter que preparar 50

aula por aula porque as pessoas não sabiam o que iriam encontrar. A partir dos alunos que a gente foi encontrando, da proposta de dar aula em grupo... daí foi nascendo da prática. Foi um pouco de tentativas, você vê o que funciona (Vera de Andrade) .

A produção desses materiais aponta ainda para outra direção. Na maioria dos casos o músico-professor trabalha em suas aulas com um repertório voltado para a música brasileira, e isso se reflete em suas publicações. Utilizam-se de um repertório brasileiro para desenvolver alguma habilidade musical ou até mesmo procuram sistematizar alguma característica ou gênero desta música. Podemos dizer que o músico-professor:

√ Considera a atividade artística musical como primeiro objetivo profissional; √ Tem na função docente a fonte de renda mais estável e segura no escopo de sua atividade profissional; √ Atua em escolas de música alternativas e em aulas particulares; √ Distinge e se reconhece como um instrutor ou orientador, e não como professor; √ Tem sua atividade docente legitimada pelo conjunto de saberes musicais que adquiriu através de sua trajetória como estudante de música e como músico; √ Considera a atividade docente importante para seu próprio desenvolvimento como músico; √ Considera a atividade docente prazerosa; √ Tem sua atividade docente baseada em um modelo de competência profissional. Apesar disso, abre mão freqüentemente de suas propostas em função do perfil do aluno que o procura, e isso se deve a fatores financeiros; √ Restringiria o tempo dedicado à atividade docente, se não fosse pelo fator financeiro; √ Tem a sua trajetória como estudante de música como uma referência para o desenvolvimento de sua atividade docente; √ Preocupa-se em desenvolver o que considera uma metodologia própria para o ensino de determinado conteúdo musical; √ Tem uma noção de didática ligada à ordenação e organização de idéias ou conteúdos, e à capacidade de facilitar a aprendizagem; 51

√ Considera importante o estudante aspirante a músico profissional ter aulas com um músico profissional atuante, uma vez que só este pode passar ao aluno informações de que realmente ele necessita; √ Teve em sua formação aulas com músicos atuantes; √ Define o professor de música que atua nas escolas regulares, especificamente os que trabalham com o público infantil, como aquele que não precisa necessariamente saber música ou ser um músico profissional atuante mas que precisa ter “didática” e uma sensibilidade considerada especial; √ Considera o ensino universitário da música como complementar à sua formação profissional; √ Desenvolve materiais com fins de ensino-aprendizagem musical na forma de apostilas e livros baseados em sua atividade musical, na maioria das vezes voltados para a música brasileira; √ Prioriza a música popular brasileira no desenvolvimento de sua atividade docente. Assim, o músico encontrou uma alternativa para sua atividade profissional artístico-musical na atividade docente, em escolas de música alternativas e/ou em aulas particulares. Frente às dificuldades impostas pela profissão que exige do músico versatilidade, a atividade docente representa a possibilidade de uma maior estabilidade financeira. A Revista Backstage na reportagem “Com Licença, vou à luta!” (nº37, 1997) comenta: vida de músico nunca foi fácil. Além da pequena quantidade de shows e gravações, em relação ao grande número de artistas, a profissão não é valorizada. O que fazer? Desistir? Não. Aqui vamos mostrar alguns exemplos de músicos que buscam novos meios de ganhar a vida. De aulas e workshops a abertura de estúdios e escolas de música, dependendo da quantidade de capital disponível para investimento, as alternativas são muitas. É só tomar coragem, e começar a correr atrás (p.58).

Desta forma, acreditamos que ser professor é uma condição que se tornou intrínseca à atividade profissional do músico. Não só pela maior estabilidade oferecida por esta atividade como pela crescente demanda por um ensino musical oferecido fora do ambiente oficial, ou seja, em escolas de música alternativas e aulas particulares. Segundo o depoimento 52

de Sérgio Benevenuto, fundador da Rio Música, e de Tomás Improta, fundador do CENARIO, as escolas de música alternativas surgiram com a finalidade de suprir uma suposta carência na formação do músico profissional, com um ensino voltado para o mercado de trabalho e a música popular, e ainda trazendo o músico para a sala de aula, preferindo “transformar grandes músicos em grandes professores do que transformar grandes professores em grandes músicos”19 .

19

Texto extraído do book da Rio Música.

53

CAPÍTULO 3

Saberes e competências representados em enunciados de propagandas, na fala de estudantes e na fala do músico-professor 3.1 Um estudo a partir de três perspectivas Neste capítulo, cruzamos dados obtidos através da análise de propagandas de escolas de música alternativas com a fala de estudantes de música e do músico-professor. As propagandas foram coletadas em três revistas especializadas de circulação nacional, publicadas entre os anos de 1997 e 2001. Elas são: Revista Guitar Player (Trama Editorial Ltda, São Paulo), Revista Backstage (H. Sheldon Serviços de Marketing Ltda, Rio de Janeiro), e Revista Áudio, Música & Tecnologia (Editora Música & Tecnologia Ltda, Rio de Janeiro). Para confrontarmos esses dados com a perspectiva do estudante de música, voltamos ao campo de nossa monografia de graduação, a Rio Música, onde realizamos um debate entre estudantes de música que têm como característica comum a busca pela profissionalização na área da música, ou o fato de já exercerem esta atividade profissionalmente. Os estudantes foram convidados a participar do debate a partir de uma lista que foi solicitada aos professores da escola, contendo o nome dos alunos com tal característica. Esses alunos representam cerca de 50% do quadro de alunos desta escola. Para o debate, compareceram quatro estudantes, 10% dos alunos com o perfil mencionado. Eles estão numa faixa etária entre os 19 e 30 anos de idade e estudam música há pelo 55

menos dois anos. O debate foi realizado a partir de questões lançadas pelo mediador (esta pesquisadora) e de outras questões que surgiram a partir da fala dos estudantes. Para obtermos a perspectiva do músico-professor, optamos por selecionar um único informante qualificado: o músico-professor Adriano Giffoni. O informante foi selecionado segundo a caracterização do músico-professor exposta pelo Capítulo 2 desta dissertação, e pelo fato deste informante ser também o autor de uma das publicações analisadas por esta pesquisa (Capítulo 4). Foram realizadas com o músico-professor Adriano Giffoni duas entrevistas, a primeira de forma semi-estruturada e a segunda de forma estruturada. 3.1.1 As propagandas de escolas de música alternativas A partir da coleta e análise das propagandas de escolas de música alternativas em revistas especializadas, pudemos detectar estratégias discursivas postas em jogo, visando atrair um público consumidor, ou seja, quais os saberes e competências evidenciados e que tipo de ensino é privilegiado. Incluímos ainda propagandas de aulas particulares, uma vez que o músico-professor também atua em aulas particulares, e, como veremos, se utiliza das mesmas estratégias na propaganda dessas aulas. Entendemos por aula particular aquela em que não há mediação institucional entre professor e aluno. Aquela em que professor e aluno entram num acordo a respeito do local, do conteúdo, da carga horária, do preço e da regularidade das aulas. A coleta dessas propagandas (nas revistas Backstage, Guitar Player e Áudio, Música & Tecnologia) foi realizada em edições publicadas no período entre os anos de 1997 e 2001. Foram encontrados enunciados como: Quem é escolhido pelos melhores é porque sabe bem o que está fazendo...; Aulas com músicos famosos; Aulas particulares [com] o pianista das estrelas; métodos desenvolvidos pelos maiores profissionais da música; workshops gratuitos com músicos de renome; venha estudar com quem fez a história da guitarra brasileira.

Tais enunciados nos indicam que a legitimação desses cursos está na atividade profissional do professor como músico: a competência do músico é legitimada pela sua atuação profissional ao lado de artistas reconhecidos socialmente. As propagandas indicam freqüentemente o 56

nome desses artistas: “tocou com Marisa Monte, Djavan, Gal Costa, BB King”. Os enunciados das propagandas deixam explícito o tipo de repertório com o qual os cursos trabalham, delimitando assim o recorte que faz dentro da amplitude de gêneros musicais: “No mês de abril, começa o curso Guitarra Brasileira de Heraldo do Monte”; “Guitarra Jazz, Violão Solo (MPB)”; “A guitarra no Rock’n’roll, Gaita de Blues, A Percussão no Soul, funk e ritmos latinos”; “Técnica Vocal para metal em geral”. Isso nos remete ao músico-professor especialista, que se propõe a ensinar música através de determinado estilo, técnica ou gênero musical definido. Ao estudante de música é oferecida uma ampla oferta de cursos, sem a exigência de pré-requisitos. Desde que tenha condições financeiras, o aluno pode trilhar seu caminho como bem entender, adquirindo as competências que considera necessárias à construção de seu perfil profissional. A eficiência dos cursos é sugerida pelas propagandas através de enunciados que indicam como o ensino é realizado: “cursos 100% práticos”; “aulas com CD Trainer, audio-livros e métodos importados”; “métodos desenvolvidos pelos maiores profissionais da música”. A possibilidade de individualização do percurso de formação se torna possível uma vez que os cursos oferecem “aulas totalmente individuais”, indicam que “não precisa conhecimento prévio”, oferecendo ainda “curso rápido e avançado de guitarra, direcionado à necessidade do aluno” e ainda garantem: “curso que fará de você um verdadeiro profissional”. Os cursos oferecidos pelas escolas de música alternativas ainda disponibilizam ao aluno acesso a inovações tecnológicas: “Equipamentos modernos”, “Guitarra Midi, Programação de teclados e módulos, Sequencers”, e associam cursos de música com cursos de áudio: “Cursos de Música e Introdução à Tecnologia Musical”, “Você vai descobrir todos os segredos: Gravação, Mixagem, Masterização”. Identificamos três aspectos primordiais nos discursos sobre a oferta de ensino de música, aspectos sobre os quais o emissor constrói uma imagem para seu público receptor: o que se ensina, quem ensina, e como se ensina. As operações de enunciação20 em torno desses aspectos 20

Operações de enunciação são “operações que apontam, que localizam objetos, seres, num ato de referenciação interna no movimento narrativo. [...] Certas referências vêm como repertório de textos já dados na cultura, já construídos por processo histórico cultural” (Santos, 1997, pp.63-64). As operações de enunciação podem ser operações de atualização, extração, indicação, totalização e identificação.

57

Figura 3 – Propagandas de escolas de música alternativas 58

Figura 4 – Propagandas de escolas de música alternativas (continuação) 59

Figura 5 – Propagandas de escolas de música alternativas (continuação) 60

Figura 6 – Propagandas de escolas de música alternativas (continuação) 61

indicam que os cursos são “idiomáticos”, voltados para a música popular; que são ministrados pelo músico-professor “especialista”, que tem sua legitimação como professor dada através de sua competência artísticomusical; que sua forma de ensino “prático” se dá através de métodos que vêm acompanhados de CDs ou fitas K7, e que têm o atributo ou de ser importado ou de ser desenvolvido “pelos maiores profissionais da música”; e que utiliza outros recursos de ensino que garantem acesso à inovação tecnológica e asseguram um saber prático. 3.1.2 A fala de estudantes de música A perspectiva do estudante de música em relação aos saberes e às competências buscadas no âmbito das escolas de música alternativas, foi baseada em dados colhidos em 2001 entre estudantes da escola Rio Música, campo ao qual voltamos para atualizar informações colhidas em pesquisa iniciada em 1999. Convidamos alunos da escola Rio Música para um debate, com dia e hora determinados, a partir de uma lista que foi solicitada aos professores da Escola contendo o nome dos alunos que têm como característica comum a busca pela profissionalização na área da música, ou que já exercem esta atividade profissionalmente. Esses estudantes representam cerca de 50% do quadro de alunos da escola. Para este debate, compareceram quatro estudantes: Gustavo, André, Marcos e Lúcia 21 , 10% dos alunos da Rio Música com o perfil mencionado. Dentre os estudantes que participaram do debate, apenas um, André, não freqüentou a universidade, quer seja em cursos técnicos ou de graduação. Gustavo faz o curso de Teoria e Percepção Musical (TEPEM) da UNIRIO com a intenção de se preparar para o teste de habilidade específica do vestibular para o Bacharelado em MPB da mesma instituição. Marcos cursa Licenciatura e Lúcia é formada em Licenciatura, ambos pela UNIRIO. Gustavo, André, Marcos e Lúcia estão numa faixa etária entre os 19 e 30 anos de idade e estudam música há pelo menos 2 anos, como consta do quadro a seguir:

21

Nomes fictícios.

62

Identificação Idade

Curso atual na Rio Música

Gustavo

23

Canto

André

19

Flauta

Marcos

25

Baixo

Lúcia

30

Harmonia

Outros cursos na Rio Música Guitarra Técnicas de Gravação Composição de música pop

Tempo de Tempo de estudo na Se atua ou Se atua estudo pretende atuar profissionalmente Rio musical Música profissionalmente em outra área 5 anos 2 anos Atua Não 2 anos

5 meses

Pretende

Não

10 anos

2 anos

Atua

Não

13 anos

3 anos

Atua

Sim Professora de música

Quadro 2 – Identidade de um grupo de estudantes de música da Rio Música

Quando perguntados se atuam profissionalmente em outras áreas profissionais que não a música, Lúcia respondeu que sim, que é professora de música do município. Gustavo respondeu que não, embora seja professor numa escola de música alternativa. Isso converge para a diferenciação que os músicos-professores fizeram entre o professor de música e o educador musical, que atua em escolas regulares22 . Para eles, o educador musical tem que ter uma formação específica na área da educação e tratar a música de forma mais abrangente, enquanto que o professor de música é o próprio músico-professor, especialista em determinado estilo ou saber musical. Talvez por compartilhar desta representação, Lúcia respondeu que atua também em outra área, a área da Educação Musical, e Gustavo respondeu que não, uma vez que ser professor é condição intrínseca à atividade profissional do músico. Ainda em seu depoimento, Gustavo diz: “Eu divido em três as funções mais fortes do músico: ser professor, tocar na noite e gravações”. O debate foi realizado a partir de questões lançadas pelo mediador e a partir de questões que surgiram a partir da fala dos estudantes. Detectamos três questões principais apontadas pelos estudantes: um paralelo entre o ensino musical oferecido pela universidade e pelas escolas de música alternativas; a atuação do músico como professor; e competências necessárias ao professor de música e ao músico profissional. Gustavo, André, Marcos e Lúcia apontam para três diferenças básicas entre o ensino oferecido pela universidade e o ensino oferecido pelas escolas de música alternativas. A primeira diferença refere-se ao

22

Em depoimentos apresentados no item 2.3 desta pesquisa.

63

fato do currículo dos cursos de música das universidades não contemplar certos instrumentos, que em geral são empregados com mais freqüência no âmbito da música popular: Eu fui buscar pelo ensino da guitarra [em escolas alternativas] consciente de que eu não ia encontrar isso na universidade (Gustavo); Eu vim estudar aqui na Rio Música por causa do Ezio [professor de baixo elétrico], e porque no ensino oficial não tem baixo elétrico (Marcos).

A segunda diferença refere-se ao tipo de repertório e ao conteúdo abordado nos dois contextos: Eu acho que estudar numa escola como a Rio Música é legal porque a escola oferece bons professores, igual à universidade, mas a universidade tem mais aquela coisa da música erudita que não é o que eu quero (André); Quando eu entrei [para a universidade] eu tava buscando tocar mais, conhecer gente, compor [...] Aí depois quando começou era muita teoria. Nada que eu tava imaginando aconteceu. [...] Eu fiquei animada em estudar harmonia, pensei que poderia me ajudar com o violão. [...] Mas a harmonia eu achei um pouco fria porque era uma harmonia a quatro vozes, não era a harmonia que eu queria. Fiquei sabendo todas as regras mas não conseguia utilizar. [...] Quando eu procurei o curso daqui eu já sabia que ele dava dicas de composição pop. Me interessou analisar o que as pessoas já fazem por aí, as fórmulas da música pop [...]. E também porque na UNIRIO a análise que era feita era em cima de músicas clássicas (Lúcia).

A terceira diferença refere-se à possibilidade de um percurso de formação com maior ou menor autonomia, como expressam os alunos: Aqui respeita-se mais a individualidade do aluno. Lá [na universidade] tem um programa formal que você tem que obedecer (Gustavo); Como formação o curso livre é interessante justamente por isso, coloca você estudando aquilo que você quer objetivamente (Marcos); Quando me dizem que tem um curso legal eu vou ver como é que é, vou experimentando. Porque se eu não gostar eu saio. Vou procurando vários caminhos (Lúcia).

Os estudantes relacionam o ensino oferecido pela universidade e o ensino oferecido fora do âmbito oficial como complementares um ao outro: 64

Eu estou entrando numa faculdade só pra complementar. Acho que o de lá complementa o daqui [da escola alternativa] porque eu já estou tocando, já estou trabalhando, dando aulas (Marcos); o ensino médio não apresenta um ensino musical. Uma pessoa que quer freqüentar uma faculdade de música vai ter que buscar pelo conhecimento numa escola de música [alternativa] ou em aulas particulares (Gustavo); Eu tentei entrar três vezes para a universidade, primeiro pr canto e depois pra violão. Mas eu não estava preparada e não passei no teste de habilidade específica. Depois eu entrei no curso de Licenciatura pra tentar me transferir depois pro Bacharelado em Violão (Lúcia).

A busca pelo saber musical fora das instituições oficiais se deve ao tipo de conteúdo aí oferecido, intrinsecamente ligado ao repertório, que é determinante para a oferta e seleção dos instrumentos musicais. Deve-se também à possibilidade de uma maior autonomia dos alunos em seu percurso de formação, e em especial no preparo do iniciante de modo sistematizado, longe dos cursos universitários que exigem uma série de pré-requisitos. Daí o curso universitário ser encarado como um complemento, ou como uma especialização: “Na verdade, [referindo-se à UNIRIO] todos os cursos são de especialização [com] exceção da Licenciatura. A Licenciatura forma a base pro cara, essas especializações não [...] o cara não vai se formar como cantor, ele vai se especializar” (Marcos). A segunda questão deflagrada no debate se refere a atuação do músico como professor. Os estudantes consideram importante que o professor de música seja ou tenha sido um músico atuante. A experiência do músico é vista como um saber a ser adquirido: Eu tenho aula com o Rômulo Thompson e ele tem uma experiência de já ter tocado que eu quero vivenciar. Ele trás coisas dos bastidores que não se pode ensinar diretamente (Gustavo); Acho que o professor de música tem que ter aquela experiência de já ter tocado pra poder passar segurança para o aluno. Agora, acho que não é preciso hoje em dia ele estar atuando (André); Acho importante o professor de música ser atuante. Lá na escola que eu trabalho tem umas professoras que não tocam mais e elas ensinam músicas antigas, desatualizadas pra um garoto adolescente. Ensinam hinos, são cabeças antigas. [...] quando eu falo que toco numa banda, que gravei um CD, mostrei o CD pra eles. Eles gostam (Lúcia); Faz diferença você estudar com um músico e com um acadêmico. Com um você vai aprender música e com o outro vai aprender como se toca. O acadêmico te dá uma informação básica, e tocar você vai aprender com 65

o músico. Acho os dois importantes, mas se você quer tocar vai perder tempo se estudar com um catedrático o tempo todo (Marcos).

Gustavo, André e Lúcia concordam com o depoimento de Marcos. Assim, podemos dizer que os estudantes consideram que os saberes representados pelo músico-professor são prioritariamente procedimentais e atitudinais, contrastando com os saberes articulados pela universidade, onde, segundo eles, se priorizam os fatos e os conceitos. Por isso, Marcos estabelece uma diferença entre “estudar música” e “aprender como se toca”. Esta aparente dicotomia teoria versus prática, presente no discurso do estudante de música, talvez se deva ao fato do estudante não conseguir relacionar os fatos e os conceitos articulados pelos cursos superiores em música com a sua prática musical. Para Gustavo, André, Marcos e Lúcia, o percurso de formação do músico e sua atuação profissional são fatores importantes para que ele se torne um bom professor de música: “Onde ele estudou, onde ele se formou, a convivência que ele teve” (André). Gustavo ainda diz que “o professor tem que ver o que o aluno quer e tentar facilitar a vida dele naquilo que ele quer”. Quanto à terceira questão deflagrada no debate, os estudantes relacionam a competência necessária ao músico profissional principalmente a saberes procedimentais e atitudinais: Tem que ter leitura, técnica, noção de harmonia e uma boa percepção. Não digo nem o solfejo propriamente dito, mas saber tirar uma música de ouvido, saber acompanhar só de ouvir a melodia. Ter essa intuição (Gustavo); Tocar uma música que você nunca ouviu antes. Saber se situar harmonicamente. Tem que ter a competência de ouvir, ter ouvido musical (Lúcia); Eu acho que pra mim é a humildade. Acho que o músico tem que saber conquistar as pessoas, não só pela música dele mas pela pessoa dele. Acho que o músico tem que saber se virar, até quando as coisas dão erradas... saber na hora se virar. Tem que saber improvisar, tem que ser esperto. Pra mim, ser competente seria quando alguém botar uma partitura na minha frente e eu olhar aquilo e sentir, poder transformar aquilo... não sentir dificuldade, estar bem seguro (André); Músico competente é aquele que resolva o que o cliente está pedindo... o contratante. Aquele que se adapta da melhor maneira possível ao trabalho. Tem que ter sonoridade, técnica, a própria responsabilidade.. e a compatibilidade, até social, com os outros músicos (Marcos). 66

3.1.3 O músico-professor Adriano Giffoni: um informante qualificado Realizamos duas entrevistas com um informante qualificado: o músico-professor Adriano Giffoni. A primeira, semi-estruturada, foi realizada a partir do mesmo roteiro utilizado nas entrevistas com os professores da Rio Música; a segunda, estruturada, foi feita com base em perguntas mais objetivas e direcionadas às questões que nos interessavam. Adriano Giffoni é um músico instrumentista, compositor e arranjador. Tem 42 anos e é natural de Quixabá, no Ceará. Seu percurso de formação se deu através de instituições oficiais, como o Conservatório da Universidade do Amazonas, de escolas de música alternativas e de professores particulares. Sua atuação artístico-musical é principalmente como contrabaixista (contrabaixo elétrico e acústico) em shows e gravações, atuando em grupos instrumentais ou acompanhando cantores, e em geral trabalhando com um repertório voltado para a música brasileira. Paralelamente, desenvolve um trabalho próprio, tendo lançado quatro CDs. Sua atividade docente se iniciou em escolas de música alternativas e atualmente é realizada através de aulas particulares e workshops. “Música brasileira para contra-baixo” foi o seu primeiro livro com fins de ensino musical. Giffoni se identifica como músico profissional: “Trabalho como baixista, produtor, arranjador, professor, tudo isso está inserido dentro dela [da música]”. Assim como foi apontado pelos outros músicosprofessores entrevistados23 , a capacidade de organização e a objetividade são entendidas como qualidades fundamentais ao professor: “a organização [...], procuro ser bem objetivo. E eu sempre procurei isso em meus professores também”. Seu relato nos permite observar que seu trabalho como docente é o resultado de uma reflexão sobre seu próprio percurso de formação. Assim, procura repetir situações em que obteve êxito e procura evitar o que não considera “positivo”, agindo como um mediador entre saberes e estudantes, procurando organizar esses saberes de forma a facilitar seu acesso aos alunos: “uma coisa que eu acho que tem sido um ponto positivo que é você encurtar um pouco o caminho 23

Ver item 2.3 desta pesquisa.

67

das pessoas que estão entrando no meio profissional”. A forma de organizar o seu próprio estudo serve ainda como uma espécie de modelo para seus alunos: “A didática está no professor organizar o estudo do aluno. Eu tenho um esquema de estudo que me organiza, a forma como eu vou estudar em quatro horas de estudo, por exemplo. Eu passo a organização do meu estudo para o aluno”. Seu público alvo não é restrito apenas a contrabaixistas aspirantes a profissionais, apesar de todo o seu trabalho docente estar voltado à capacitação profissional: “dar as bases, o que a pessoa precisa saber para poder tocar, para trabalhar”. Sua atividade docente está voltada também para profissionais que necessitam de aperfeiçoamento ou atualização: tem muito profissional que já toca e que não tem uma boa leitura e que até agora não conseguiu achar uma metodologia boa de aprender a ler. Têm outros que querem estudar improvisação mas não têm informação de harmonia e vai esbarrar numa barreira que eu tenho de mostrar a ele o que que é pra ele vencer as etapas.

A atividade docente de Giffoni está calcada principalmente em saberes procedimentais e atitudinais voltados para o mundo do trabalho: eu comecei a criar uma metodologia voltada para as coisas que as escolas não ensinavam, que as escolas tradicionais de música não ensinavam... como a interpretação, os estilos musicais, o comportamento musical de cada música de acordo com o trabalho que você vai fazer... comportamento assim até na maneira de tocar. Se você for tocar com um trio, quarteto ou quinteto vai ter que tocar de um jeito diferente, então, a maneira do contrabaixo tocar mais ou menos nota, a sonoridade, estudar a sonoridade da amplificação. Botei meus alunos pra estudar com headphone pra entender o que é o som do contrabaixo antes de pensar em equalizar, botar efeito.

Desta forma, a realidade do mundo do trabalho é trazida para a sala de aula: Então eu tentei fazer um estudo voltado pra realidade do profissional que tem que trabalhar. Aí eu dava, por exemplo, partituras de shows, usava as coisas que eu fazia no dia a dia, quando acabava de gravar alguma coisa levava pro aluno pra mostrar na aula seguinte. 68

Giffoni considera que o ensino oferecido pelo músico-professor no âmbito das escolas de música alternativas e aulas particulares está suprindo uma lacuna: “tem gente que chega com muito conhecimento teórico sobre os modos mas não sabe na hora de improvisar como usar. Então eu senti falta disso nas oportunidades que eu tive de estar nas universidades”. Esse relato vem corroborar com nosso pensamento de que a problemática que vem sendo apontada entre teoria e prática não está na “quantidade”, mas sim na forma como conteúdos factuais e conceituais vêm sendo ensinados, não necessariamente dissociados da prática, mas associados a uma prática que não aquela reconhecida e desejada por estudantes. Sua noção de competência profissional passa pela idéia de flexibilidade: “Acho que o músico tem que estar sempre atualizado, trabalhar um pouquinho em cada área conforme eu te falei. Às vezes eu estou fazendo pouco show e se eu não tivesse a versatilidade de trabalhar em outras áreas seria mais difícil ainda”. Referindo-se ao seu livro, Giffoni indica a necessidade da teoria vir sempre acompanhada da prática: Acho que tudo que tem que ser explicado tem que ser praticado. Se não for praticado de uma maneira legal pode dar uma certa confusão. Então eu botei as músicas [se referindo ao livro], botei as levadas gravadas e escritas, e botei as músicas de modo que o baixista pode tirar [a linha do baixo] do lado esquerdo da caixa e tocar junto.

Sobre a elaboração de seu livro comenta: Eu sempre juntei muito material viajando com os artistas, ia nos centros culturais pegava material, comprava disquinhos... e a junção desse material que deu no meu livro “Música brasileira para contrabaixo”. Eu já usava uma apostila e fui amadurecendo esse livro aos poucos fazendo teste com os alunos, dava um exercício que dava certo pra um, o outro já não gostava, quando eu sentei pra fazer o livro eu fiz rápido, mas entre testes e pesquisa eu levei uns 4 anos, até conceber a forma de fazer. Eu achei uma fórmula ideal: uma página explicativa [sobre cada ritmo ou levada], uma página com 10 exemplos pra cada um, uma música gravada com banda, porque aí o músico pode participar junto e tirar o baixo no canal esquerdo e tocar junto com a base que tem o Gilson 69

Peranzzeta, Afonso Cláudio na flauta. No primeiro livro eu coloquei fotos de baixistas representativos de cada ritmo, tem outro livro que deve sair lá pra abril, que vai englobar outros ritmos, e também estou colocando alguns ritmos do primeiro mas com coisas novas.

3.2 Saberes e competências na formação profissional do músico Através do depoimento de Gustavo, André, Marcos e Lúcia, percebemos a aproximação com os pontos identificados na análise das propagandas. As propagandas e os estudantes apontam para um perfil de professor de música que é (ou já foi) um músico atuante, que se legitima pela capacidade de performance como músico. Benevenuto, criador da Rio Música, assim como o músicoprofessor Tomás Improta (que foi dono de uma outra escola de música alternativa, o CENARIO), compôs o quadro de professores de sua escola com músicos atuantes, convidados. A busca pelo saber desses profissionais foi também o que Vera de Andrade, professora da Rio Música, relatou em seu depoimento a respeito de sua formação profissional: “Fui buscar as pessoas, buscar as fontes. [...] Fui estudar lá não só pra ter aula mas também pra ficar perto do artista que você gosta. Estar ali junto, ver como a pessoa faz, ter um contato mais estreito com aquela pessoa”. O músico-professor considera importante o estudante aspirante a músico profissional ter aulas com um músico profissional atuante, uma vez que, segundo ele, só este pode passar ao aluno informações de que realmente ele necessita. Gustavo, estudante entrevistado, concorda com essa visão quando diz: “Ele [o músico-professor] trás coisas dos bastidores que não se pode ensinar diretamente”. Vitor Neto também comentou a esse respeito enfocando o ensino do contrabaixo: “Esse é um dos caminhos interessantes, estudar com quem sabe fazer”. A partir desses depoimentos, acreditamos que o saber-fazer procurado pelos estudantes não se relaciona simplesmente a conteúdos procedimentais. Não se trata, então, de colocar em oposição o ensino oferecido pela instituição oficial e o ensino oferecido no âmbito das escolas de música alternativas, o primeiro com um ensino mais teórico (conteúdos factuais e conceituais) e o segundo voltado para a prática (conteúdos procedimentais e atitudinais). Os cursos oferecidos por 70

instituições oficiais também visam conteúdos procedimentais. Se não fosse assim, essas instituições não formariam instrumentistas e cantores. O ponto primordial apontado nesses depoimentos é a necessidade de conteúdos do “mundo do trabalho” estarem presentes nos currículos dos cursos de música de instituições oficiais, isto é, que os cursos de música dessas instituições proporcionem aos estudantes uma formação mais ampla, formação que contemple perfis profissionais que estão sendo requisitados pelo “mundo do trabalho”. Por isso, o ensino oferecido pelas instituições oficiais é comumente visto como complementar, conforme mencionou Gustavo, em depoimento transcrito anteriormente: “Eu estou entrando numa faculdade só pra complementar. Acho que o de lá [universidade] complementa o daqui [Rio Música] porque eu já estou tocando, já estou trabalhando, dando aulas”. Como vimos, os conteúdos provenientes do mundo do trabalho são valorizados pelo músicoprofessor Adriano Giffoni, na sua prática docente e na sua publicação com fins de ensino musical. Sobre o “mundo do trabalho”, Travassos (1999) pesquisando sobre a trajetória de estudantes de música do Instituto Villa-Lobos (UNIRIO), reconhece que, embora os cursos do IVL sejam divididos em Composição, Regência, Instrumentos e Canto e Licenciatura, é relativamente pequeno o número de alunos do IVL direcionados para carreiras de concertista, músico de orquestra ou conjunto de câmara, compositor e regente. A maior parte deles já deu passos importantes no processo de constituição da identidade de músico profissional, tocando ou cantando em bares, teatros e estúdios, gravando jingles, compondo e executando trilhas sonoras (Travassos, 1999, p.123).

O motivo que leva esses alunos a procurarem o ensino acadêmico mesmo depois de adquirirem uma identidade profissional e desenvolverem estudos essenciais para a atividade profissional, vem reiterar a função complementar do ensino acadêmico, ou de ampliação de competências: estão em jogo o desejo de uma formação melhor ou mais completa, a expectativa de novas oportunidades de trabalho geradas pela ampliação da rede de contatos, o valor simbólico do diploma de terceiro grau e a ansiedade gerada pela instabilidade dos ganhos como profissional autônomo de música (Travassos, 1999, p.124). 71

O ensino oferecido em escolas de música alternativas vem atender às necessidades expostas pelo músico-professor Tomás Improta, que lembrou a inexistência de cursos que ensinassem música popular na época em que iniciava seus estudos musicais. O mesmo identificou Benevenuto em seu depoimento sobre seu percurso de formação. Ele diz ter tido a necessidade de buscar esse tipo de conhecimento fora do país, uma vez que os saberes e as competências que buscava ainda não haviam sido sistematizados em escolas brasileiras, oficiais ou alternativas. Diz ainda que o ensino oferecido pelas escolas oficiais, que era a única opção do estudante na época, “dava as costas” para a realidade do mundo do trabalho do músico, e que este foi um dos motivos que o levou a abrir uma escola de música alternativa: “a Rio Música nasceu com essa filosofia: não vamos trabalhar de costas com a realidade. Como é que é a vida, como a indústria participa disso, como é que é o mercado alternativo disso”. Esses saberes foram apontados pelos estudantes como referentes à seleção do repertório e dos instrumentos musicais ensinados, e também a saberes oriundos da prática, do cotidiano profissional. Lúcia observou que, através do ensino que obteve na universidade, ficou sabendo “todas as regras mas não conseguia utilizar”. Adriano Giffoni também identificou este fato quando disse que muitos dos estudantes que o procuram possuem conhecimentos teóricos mas não sabem como utilizálos em sua atividade prática. Assim, percebemos que a aplicabilidade imediata de conhecimentos associada à realidade cotidiana do estudante é outro fator fundamental na escolha de um percurso de formação. Benevenuto relatou em seu depoimento: “eu próprio me sentia indo para a escola e não sendo preparado pro que eu via na minha frente acontecendo. Eu estava sendo preparado para outra coisa, outro século, para um outro tempo, mas nada associado à minha realidade”. Willians Pereira, coordenador pedagógico do CIGAM – Centro Ian Guest de Aperfeiçoamento Musical, uma escola de música alternativa situada no centro da cidade do Rio de Janeiro, também observou a necessidade dos alunos em fazer uso imediato de conhecimentos aprendidos 24 : “a gente trabalha com música popular e com um determinado tipo de interesse específico e imediato”25 .

24

Em Simpósio realizado na UNIRIO em 30/03/1998 pelo Departamento de Educação Musical do Instituto Villa-Lobos, evento que foi coordenado pela professora Regina Márcia Simão Santos. 25 Transcrição do referido Simpósio. Texto de circulação interna, IVL, CLA, UNIRIO.

72

Masetto (1998) comenta a respeito do professor universitário: Colocar a aprendizagem na prática como objetivo central da formação dos alunos significa iniciar pela alteração da pergunta que fazemos regularmente quando vamos preparar nossas aulas – o que devo ensinar aos meus alunos? – por outra mais coerente – o que meus alunos precisam aprender para se tornarem cidadãos profissionais competentes numa sociedade contemporânea? (Masetto, 1998, p.12).

Com base nos dados colhidos até aqui, nesta pesquisa, a seleção do repertório, o ensino de instrumentos oriundos de práticas da música popular, o contato com tecnologia atualizada, o contato com saberes profissionais através de cursos ministrados por músicos atuantes e a possibilidade do estudante traçar seu próprio percurso de formação, são as tônicas pelas quais se anunciam as escolas de música alternativas. Esses itens, fundamentais à formação do músico conforme apontados por músicos-professores, estudantes de música, donos de escolas alternativas, entre outros, são identificados como ausentes em instituições oficiais de ensino de música. Segundo os depoimentos obtidos, um fazer ou saber-fazer parece caracterizar um saber profissional. A experiência profissional do músico é vista como um saber e como uma competência a ser aprendida, daí a necessidade de se ter aulas com um músico atuante. Schön (2000) defende a idéia de um ensino prático reflexivo, onde “estudantes aprendem principalmente através do fazer, apoiados pela instrução” (p.viii). O autor aponta para a necessidade de se “encontrar as raízes da distância existente entre faculdade e local de trabalho, entre pesquisa e prática, em uma concepção errônea de competência profissional e sua relação com a pesquisa acadêmica e científica” (p.21). Segundo Schön, existem zonas indeterminadas da prática, que vêm a ser certas situações de incerteza e singularidade com que os profissionais se deparam, da qual somente uma atitude reflexiva poderia dar conta. O autor ilustra essa situação da seguinte forma: “Uma médica reconhece um conjunto de sintomas que não consegue associar a nenhuma doença conhecida. Um engenheiro mecânico encontra uma estrutura para a qual ele não pode, com as ferramentas à sua disposição, fazer uma determinada análise” (p.17). São situações onde não basta saber técnicas aprendidas e aplicá-las, mas onde o profissional tem que ter uma espécie de “jogo de cintura” e uma grande capacidade de reflexão (ou reflexão-em-ação, como diz Schön) para poder gerar um conhecimento que o autor chama de conhecimento73

em-ação. A essa capacidade se daria o nome de artistry26 . Isso nos remete ao depoimento de André quando diz que o músico “tem que saber se virar até quando as coisas dão erradas”. O estudante reconhece como um saber dos profissionais a capacidade de resolver situações problemáticas enquanto elas ocorrem. Gómez (1995) aponta para a mesma direção: assume-se definitivamente que nas situações decorrentes da prática não existe um conhecimento profissional para cada caso-problema, que teria uma única solução correta. O profissional competente atua refletindo na ação, criando uma nova realidade, experimentando, corrigindo e inventando através do diálogo que estabelece com a realidade (Gómez, 1995, p.110).

Demo (1995) aponta para a diferença entre fazer e saber fazer. O fazer seria seguir regras, reproduzir leis, tratar casos estereotipados, decorar fórmulas, etc. Para saber fazer é necessário compreender, a capacidade que Schön chama de reflexão-na-ação. Segundo a definição de Coll e Valls (2000), conteúdos procedimentais estariam relacionados ao que Demo entende por saber fazer, por isso se torna importante contextualizar o conhecimento na situação prática onde ele pode ser usado. Demo se utiliza do seguinte exemplo: o motorista amador sabe apenas que, apertando o acelerador, o carro anda. Esta pergunta não está resolvida ao dizermos: anda porque apertamos o acelerador. Isto significa apenas como anda. Tanto é assim que, se, de repente, surgir algo errado na engrenagem do acelerador podemos apertar o acelerador, e mesmo assim o carro não vai andar. O amador não terá outra solução senão levá-lo para a oficina. O profissional poderá consertar o problema por si mesmo [...]. Isto implica capacidade de argumentar, que começa pela capacidade de compreender, por trás dos sintomas, as causas do defeito (Demo, 1995, p.23).

Schön (2000) argumenta que se faz necessário um estudo para que se perceba o relacionamento entre prática competente e conhecimento profissional, e uma investigação sobre “as manifestações do talento artístico profissional” e das “várias maneiras através das quais as pessoas o adquirem” (p.23).

26

Traduzido como “talento artístico”.

74

Essa idéia se assemelha ao que Gomes (2001) reconhece como competência profissional: a competência profissional não será decorrência direta dos resultados obtidos na escola, nem do nível do ensino, nem da qualidade e quantidade dos conhecimentos adquiridos, mas sim da capacidade de saber obter resultados com esses conhecimentos. Só haverá competência após a ocorrência da ação de transformação de conhecimentos (Gomes, 2001).

Schön (2000) argumenta que o ensino prático reflexivo é “um ensino prático voltado para ajudar os estudantes a adquirirem os tipos de talento artístico essenciais para a competência em zonas indeterminadas da prática” (p.25). Diz ainda que as escolas profissionais devem repensar tanto a epistemologia da prática quanto os pressupostos pedagógicos sobre os quais seus currículos estão baseados e devem adaptar suas instituições para acomodar o ensino prático reflexivo como um elemento-chave da educação profissional. (Schön, 2000, p.25)

Esse “talento artístico”, ou seja, essa competência profissional, parece ser o que estudantes reconhecem e valorizam no músico-professor. Demo (1993) diz que os estudantes de música procuram no profissional atuante um espelho para seu desenvolvimento profissional, procuram “não qualquer professor ou qualquer aula, mas determinada competência produtiva comprovada, para poder contar com conhecimento atualizado e atualizante” (p.136). Schön complementa afirmando que “podemos dizer que os estudantes são capazes de reconhecer, desde o início, os sinais externos de uma execução competente [...], eles regulam sua busca pelos sinais externos de competência que já sabem reconhecer” (p.75). A crítica que Schön faz ao ensino praticado nas escolas profissionais aponta para a ausência desse tipo de conhecimento profissional, um saber que, para Gustavo, “não se pode ensinar diretamente”, e que Schön identifica como presente em situações de aprendizagem como workshops, onde “os estudantes aprendem por meio do fazer ou da performance” (p.25), ou seja, onde é focalizado o saber procedimental tal qual é entendido por Coll e Valls (2000). Segundo Schön, a aula prática busca representar as características essenciais da prática a ser aprendida, 75

ao mesmo tempo em que capacita os estudantes para que façam experiências sem grandes riscos, variem o ritmo e foco do trabalho e repitam as ações quando lhes parecer útil. [...] Para que tenha crédito e seja legítima, uma aula prática deve passar a ser um mundo com sua própria cultura, incluindo sua linguagem, suas normas e seus rituais (Schön, 2000, p.133).

O autor utiliza o termo design referindo-se a uma forma de se realizar uma determinada prática, e que deve ser aprendido “no fazer”. Assim, não importa o quanto os estudantes possam aprender sobre o processo de projeto a partir de leituras ou palestras, pois há sempre um componente da competência para o design, na verdade, seu aspecto central, que eles não podem aprender dessa forma. Uma prática com caráter de design é passível de ser aprendida, mas não de ser ensinada, por métodos de sala de aula. E quando os estudantes são ajudados a aprender a projetar, as intervenções mais úteis a eles são mais como uma instrução do que um ensino, como em uma aula prática reflexiva (Schön, 2000, p.123).

Schön acredita que, através da exposição e da imersão, a aprendizagem se dá, mesmo que de maneira inconsciente. Assim, o contato e a observação de profissionais “em ação” se torna indispensável ao aprendiz: Se concebermos o saber profissional em termos de “pensar como um”, os estudantes aprenderão também as formas de investigação pelas quais os profissionais competentes raciocinam para encontrar, em instâncias problemáticas, as conexões entre conhecimento geral e casos particulares (Schön, 2000, p.41).

Apesar de muitos músicos-professores aqui entrevistados valorizarem mais o domínio do conteúdo em detrimento da didática, considerando-se muitas vezes mais como orientadores do que como professores, isso não quer dizer que o músico-professor não se utilize de estratégias de ensino. Por exemplo, Benevenuto serve-se de metáforas: Acho que o professor intuitivamente tem que ter um dom de comunicação fácil, a comunicação professor/aluno... e eu acho fundamental isso: conhecer o assunto e perceber onde você pode chegar. Muitas vezes eu fui fazendo intuitivamente e depois fui percebendo que a metáfora é 76

muito boa para o ensino de música, porque música passa pelo ouvido. Porque é difícil você falar assim: aquela notinha lá no compasso 38... complica longamente. Não é que nem nas artes plásticas que você vê e aponta para o que vê. Naturalmente você vai vendo que as pessoas podem compreender muita coisa através da metáfora27 .

Schön (2000) relata o master class de um conceituado pianista onde a metáfora é utilizada para motivar e instigar o aluno a novas formas de interpretação de uma música. Franz [pseudônimo que Schön dá ao pianista] não faz referência explícita à estrutura musical da peça como um todo, como faria um teórico musical. Contudo, por suas escolhas dos momentos nos quais concentra atenção, suas formas de ligar meios técnicos com qualidades de som, estilo ou caráter, ele revela o esqueleto da estrutura através de uma análise-emação que se concentra exclusivamente nas questões da execução (Schön, 2000,p.155-156).

Para Davidson e Scripp (1992) as metáforas dependem da experiência pessoal do músico com palavra e imagem. Elas crescem de uma pesquisa para dentro do significado musical, da pesquisa do significado musical na performance não sempre emanando de preocupações técnicas, habilidades motoras ou termos teóricos padrões (Davidson e Scripp, 1992, p.407)28 .

A modelagem é também outra ferramenta de trabalho detectada como inerente à atuação docente do músico. O músico-professor identificou como válido para o aluno que deseja se tornar um profissional ter aulas com esse músico “Mesmo que seja [...] só pra aprender uma passagem de dedo”. Segundo Davidson e Scripp29 , na modelagem o foco é dirigido à performance do professor [...]. Através do processo de imitar o modelo, percepção durante a ação, os alunos trabalham na

27

Depoimento de Sérgio Benevenuto, fundador da Rio Música (escola de música alternativa que foi o universo de nosso estudo exploratório) à autora em agosto 2001. 28 “Metaphors depend on the musician´s personal experience with words and images. Metapjors grow from an inquiry into musical meaning in performance not always emanating from technical concerns, motor skills, or standard theoretical terms” (tradução da autora desta dissertação).

77

direção de transformar a compreensão musical a partir de seu próprio ponto de vista. Embora a informação seja experimentada principalmente através da imitação total, a troca de informação explícita e tácita entre o músico mestre e o aprendiz está no âmago desse processo. ‘O aprendiz, inconscientemente, capta as regras da arte incluindo aquelas que não são explicitamente conhecidas pelo próprio mestre’ (Davidson e Scripp, 1992, p.404)29 .

Uma aprendizagem a partir da metáfora e de um processo de modelagem relacionam-se ao processo de design descrito por Schön (2000), e vai ao encontro a três máximas colocadas pelo autor: “as coisas mais importantes não podem ser ensinadas mas devem ser descobertas e apropriadas pela própria pessoa” (p.78); “o professor não ensina mas serve como provocador e parteiro da autodescoberta de outros” (p.78); e “muito do que eles sabem dizer é compreensível por um estudante apenas a medida que o instrutor começa a produzir o design. Nesse processo vários tipos de aprendizagem estão entrelaçados” (p.85-86). Os estudantes apontaram ainda para questões referentes a atitudes. Eles relacionaram um músico competente àquele que tem “responsabilidade e a compatibilidade, até social, com os outros músicos”, conforme afirmou Marcos. Adriano Giffoni também demonstrou preocupação com esta questão. Assim como Sarabia (2000), Masetto (1998) destaca a importância do ensino de atitudes: por aprendizagem de atitudes e valores queremos dizer a necessidade de os cursos superiores se preocuparem com o fato de que seus educandos valorizem o conhecimento, a atualização contínua desse conhecimento, a pesquisa, o estudo dos mais diversos aspectos que cercam um problema, a cooperação, a solidariedade, a criticidade, a criatividade e o trabalho em equipe (Masetto, 1998, p.16).

Conforme vimos, o músico-professor não teve uma formação voltada à área da educação. Sua capacitação como professor parte de

29

“the focus is directed to the teacher’s performance (production-in-action). Through the process of imitating the model (perception-in-action), students work toward transforming musical understanding from their own point of view. Although information is experienced principally through wholesale imitation, the explicit and tacit exchange of information between the master musician and the apprentice is at the heart of this process. ‘The apprentice unconsciously picks up rules of the art, including those wich are not explicitly known to the master himself’ (Polanyi, 1962, p.53)”. (Tradução da autora)

78

seu conhecimento a respeito do conteúdo ensinado e de sua experiência como aluno, através de seu percurso de formação. Segundo sua própria fala, o músico-professor procura situações para que o aluno alcance resultados de uma forma sistematizada, e acredita que com isso irá lhe facilitar e encurtar o caminho. Sua legitimação perante o aluno parte, além de sua performance como músico, do que Demo (1995) chama de “discurso competente”: um discurso “devidamente argumentado, logicamente consistente, fundado em conhecimento de causa, tipicamente re-construtivo” (p.25). Em recente encontro da série “Roda de Filosofia – temas de música, cultura e educação”, realizada em junho de 2001 promovida pelos Seminários de Música Pro Arte e coordenado por José Alberto Salgado, estudantes de música debateram a respeito do processo de preparação ou aperfeiçoamento para a vida profissional. Segundo os estudantes, nem sempre a melhor opção a seguir na trajetória de seus estudos é a universidade, o que muitas vezes é imposto pelos pais dos alunos que vê na instituição oficial o melhor caminho a ser trilhado: “o que eu queria é continuar tocando bateria aqui na Pro Arte, continuar encaminhando meus estudos da maneira que eu quiser, mas essa oportunidade não me dão, tem que fazer uma faculdade”30 . Para esses alunos, a universidade não apresenta, conforme vimos, os saberes e competências imediatos que os estudantes almejam alcançar: eu fui na UNIRIO e vi que lá eles têm aula com um professor de percussão, tem uma bateria e tal, mas eu vi que lá eu vou tocar pouca bateria [...] a faculdade ocupa muito o seu tempo, minhas tardes todas, e isso já vai impedir muitos ensaios.31

A crítica que se faz à universidade não está apenas nos saberes e competências por ela articulados, mas também pela sua própria organização que não proporciona ao aluno uma autonomia na construção de seu perfil profissional. Os músicos-professores da Rio Música relataram: “eu acho que pra mim, pro que eu pretendo ser, acho que não

30

Depoimento de um estudante transcrito de uma fita gravada neste evento pela pesquisadora. 31 Idem.

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ia acrescentar muito [estudar numa universidade]. Ia tomar muito tempo, eu ia deixar de estudar”. A possibilidade do estudante realizar um percurso de formação individualizado conforme indicou Perrenoud (2000), vai ao encontro ao pensamento de estudantes e do músico-professor, além de estar de acordo com o conceito que se tem, atualmente, de competência, conforme vimos. Segundo o autor, a competência seria a “capacidade de encontrar, de reunir, de reconstruir, de reler, de reaprender [...] é isso que constitui uma competência, além dos conhecimentos que ela mobiliza, atualiza, extrapola ou produz” (p.69). Mais do que ter acesso ao conhecimento, o aluno precisa desenvolver competências procedimentais, um saber fazer. Segundo ele, trabalhar a competência equivale a formar para competências mais do que para apenas conhecimentos. Ora, o saber-mobilizar que está na raiz de toda competência não é uma representação, ou seja, um saber no sentido estrito. É uma aquisição incorporada, aquilo que Piaget chama de esquema, Bourdieu de habitus, Vergnaud de conhecimento-em-ato (Perrenoud, 2000, p.69).

E isso é o que Schön (2000) chama de reflexão-na-ação, uma característica inerente ao conhecimento profissional, capacidade que pode ser desenvolvida através de um ensino prático reflexivo. A proposta de Perrenoud (2000) para um plano de formação indica que ele deve ser elaborado de modo a favorecer a individualização dos percursos, criando dispositivos de acompanhamento personalizado dos estudantes: conselho, tutoria, grupos de análise e de apoio. Também se pode agir sobre a própria definição de conteúdo e do papel das diversas unidades de formação, por exemplo, criando unidades de integração, lugares e momentos cuja função seja correlacionar os outros elementos da formação (Perrenoud, 2000, p.92).

O autor cita o caso da Bélgica, onde existem cursos “híbridos” e cursos “meta”: os cursos “híbridos” organizam encontros entre especialistas de áreas normalmente estanques [...]. Os cursos “meta” baseiam-se na própria experiência de formação e no modo como os estudantes vivenciam-na, integram-na, dão-lhe sentido. Tais unidades permitem a cada estudante 80

compreender melhor o que acontece, delimitar o que lhe interessa e aquilo de que tem necessidade, decidir sua orientação ou precisar seu projeto de formação (Perrenoud, 2000, p.93).

A possibilidade da universidade abrir este espaço ainda se vê apontada na fala Adriano Giffoni: “Acho que eles [os profissionais das universidades] agora teriam de abrir mais, levar mais para a universidade músicos atuantes, formar um núcleo de músicos atuantes, mas aí a gente esbarra naquela coisa de não ter diploma”. No próximo capítulo, analisamos seis publicações escritas pelo músico-professor, onde o que se ensina, quem ensina, e como se ensina são também evidenciados.

81

CAPÍTULO 4

Análise de publicações com fins de ensino musical A falta de um material para o estudo da música voltado para o repertório da música popular é apontada por músicos e estudantes de música. Em entrevista à Revista Backstage (2001), o violoncelista Lui Coimbra declarou que, por não existir na época em que começou seus estudos musicais uma escola popular de violoncelo, foi obrigado a procurar métodos destinados a outros instrumentos: “Eu comecei a pegar a linguagem do saxofone, teclado e guitarra e transpor para o violoncelo. O violoncelo também é capaz de fazer coisas de percussão superlegais. Comecei a descobrir novas linguagens rítmicas”32 . A Irmãos Vitale Editora, fundada em 1923, é uma das mais tradicionais editoras do país em matéria de música. Editou inúmeras partituras e álbuns para diversos instrumentos além de métodos. Um dos autores que mais publicou métodos nesta editora foi Mário Mascarenhas, autor também de uma série de coletâneas de músicas para piano e violão, entre outros. Segundo o maestro Cláudio Hodnik33 , da Irmãos Vitale Editora, “Duas mãozinhas no teclado (método para crianças desde os 4 anos)”, de autoria de Mascarenhas, foi o primeiro método editado pela Irmãos Vitale. A editora, além da publicação de métodos e partituras, vem ainda publicando álbuns compilando a obra de algum autor ou dedicado a algum gênero musical. Segundo a última edição do catálogo da editora (1998/1999), alguns dos últimos álbuns lançados contendo cifras, melodia e letra (quando é o caso) são: “O melhor de Victor

32 33

Revista Backstage nº66 – maio/2001, p.113. Em contato telefônico com a pesquisadora em dezembro de 2001.

83

Biglione”; “O melhor do choro brasileiro” em dois volumes; “O melhor de Beto Guedes”; “O melhor de Garganta Profunda”; “O melhor de Pixinguinha”; e “Música Brasileira para conjuntos de flauta”. Porém, até o início da década de 80, não era tão comum como hoje a existência de publicações voltadas para o repertório da música popular contendo partitura com melodia cifrada e letra. Esse quadro mudou quando, a partir da década de oitenta, foi lançado pela Lumiar Editora o songbook “Caetano Veloso”, em dois volumes. Este foi o primeiro de uma série de songbooks e livros com fins de ensino musical voltados para a música popular brasileira, na maioria das vezes publicados por iniciativa do músico-professor. A Lumiar Editora, fundada em 198634 , é totalmente dedicada à música brasileira. Segundo o catálogo da editora (s.d.), a Lumiar lançou seis biografias, 23 livros didáticos e 31 songbooks, contemplando composições de 15 autores diferentes (Ary Barroso, Caetano Veloso, Carlos Lyra, Cazuza, Chico Buarque, Djavan, Dorival Caymmi, Edu Lobo, Gilberto Gil, João Donato, Marcos Valle, Noel Rosa, Rita Lee, Tom Jobim e Vinicius de Moraes) além de uma série de cinco songbooks dedicados à bossa nova, somando um total de 36 songbooks. A grande novidade apresentada pela Lumiar em seus songbooks é o fato dos autores das músicas participarem do processo de escrita da partitura da música. Segundo o músico Tom Jobim35 , O trabalho dos editores sempre foi muito descuidado. Lembro-me daquelas edições que saíam com o nome de “Venicius de Morais” Vinicius com ‘Ve’ e Moraes com ‘i’. Se a capa era assim, imaginem lá dentro. As edições estão todas erradas na melodia, nos acordes, no ritmo e na letra. Para falar a verdade, considero o trabalho de Almir Chediak uma coisa patriótica, pois tem a ver com a memória do Brasil. Estou com dois netos que já tocam piano e violão. Estes cancioneiros são como um tesouro.

A partir da década de 80 tivemos um crescimento do número de álbuns e songbooks voltados para a música brasileira. Na época, a

34

Segundo informação obtida através de contato telefônico com a editora em dezembro de 2001. 37 Depoimento divulgado pela home page da Lumiar Editora (www.lumiar.com.br) consultada em 26 de dezembro de 2001.

84

publicação de songbooks com canções populares já era um fato corriqueiro em outros países. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, por exemplo, um Songbook de Cole Porter ou George Gershwin contém partituras que perpetuam, nota por nota, palavra por palavra, o que cada um deles criou. Aqui, a prática corrente é a de não se respeitar a música popular do mesmo modo que se respeita a erudita. Hierarquiza-se a obra (ou a maneira de tratá-la) em razão de quem a escreveu, respeitando-se por exemplo, um Villa-Lobos, mas nem sempre (ou raramente) Tom e Vinícius38 .

Com isto, professores e alunos de música interessados em música popular brasileira, puderam utilizar-se de um material antes indisponível, e realizar suas aulas a partir de um repertório em sintonia com sua formação e interesse musical. Essas publicações passaram a ser consultada servindo aos professores para ilustrar situações harmônicas ou praticar a leitura no pentagrama, entre outros. Chediak relata: A idéia dos Songbooks nasceu exatamente na casa de Caetano Veloso. Eu estava dando aula de violão a seu filho Moreno, quando comecei a pensar no quanto seria importante para professores, músicos, arranjadores e estudantes se tivéssemos as obras de nossos compositores catalogadas em um álbum do modo como foi criada por eles, o que raramente acontece em edições musicais, principalmente no que se refere às harmonias, fundamentais na medida em que grande parte de nossos compositores é de excelentes harmonizadores, músicos que sabem exatamente os acordes com que melhor vestem suas melodias (s.d., p.8).

Num segundo momento, começaram a proliferar publicações voltadas para o ensino do canto, de instrumentos e também de harmonia, arranjo, entre outros, escritas por músicos-professores e priorizando um repertório voltado para a música popular brasileira. O crescimento do número desse tipo de publicação pode ser percebido através do seguinte gráfico das edições publicadas pela Lumiar Editora:

36

João Máximo in Songbook Caetano Veloso vol. I, Rio de Janeiro, Lumiar Editora, sd., contracapa.

85

30 25 20 15 10 5 0 2000

1999

1998

1997

1996

1994

1993

1992

1991

1989

1988

1986

Figura 7 – Crescimento do número de publicações editadas pela Lumiar Editora.

4.1 As publicações analisadas As publicações que aqui apresentamos, foram selecionadas a partir da consulta ao catálogo das editoras Lumiar, do Rio de Janeiro, e Irmãos Vitale, de São Paulo. São publicações escritas pelo músico-professor, selecionadas de forma que abrangessem um período que vai de 1984 – ano em que foi publicado o livro “Dicionário de Acordes Cifrados”, o Editora Ano

Título

Autor

Dicionário de Acordes Cifrados: harmonia aplicada à música popular

Almir Chediak

Irmãos Vitale

1984

Henrique Cazes

Lumiar Editora

1988

Nelson Faria

Lumiar Editora

1991

Escola Moderna do Cavaquinho A arte da improvisação: para todos os instrumentos

Vocabulário do Choro: estudos e composições

Mário Sève

Irmãos Vitale 1997 Lumiar Editora 1999

Harmonia prática da Bossa-Nova: método para violão

Carlos Lyra

Irmãos Vitale

Música Brasileira para Contrabaixo

Adriano Giffoni

Quadro 3 – Relação das publicações analisadas 86

1999

primeiro escrito por Almir Chediak – e 1999, ano em que elaboramos o projeto desta pesquisa. (Ver Quadro 3) Dados observados: 1) Público alvo – Nesta unidade observamos se o livro é direcionado a um público específico ou não, e de que forma evidencia-se isto. 2) Objetivos – Destacamos quais são os objetivos explicitados pelo livro. 3) Justificativa – Verificamos se o autor evidencia os motivos ou as necessidades que o levaram a escrever o livro. 4) Pré-requisitos – Observamos se o autor refere-se a algum tipo de prérequisito necessário à utilização do livro. 5) Seleção do conteúdo – Destacamos quais são os saberes articulados pelo livro. 6) Organização do conteúdo – Observamos de que forma estes saberes são organizados. 7) Recursos – Observamos os recursos de que o autor lança mão, como a proposta de exercícios teóricos, práticos, indicações bibliográficas e a utilização de materiais de apoio como CDs e fitas K7. 8) Seleção de repertório – Verificamos a seleção do repertório em função dos gêneros musicais apresentados pelo livro, e se o autor utiliza-se de um repertório representativo dentro de determinado estilo ou de composições próprias. 4.1.1 Dicionário de acordes cifrados O livro traz uma série de pareceres de músicos, onde evidencia-se, entre outros aspectos, o público alvo que pretende atingir. Na contracapa encontramos os seguintes depoimentos: “[...] para estudantes de música na área da harmonização popular”, “destina-se tanto a iniciantes quanto a profissionais”. A introdução escrita pelo músico e professor Ian Guest reitera: para “estudiosos e músicos já formados”. Quanto aos objetivos, no prefácio do livro o autor comenta que, além de ser um dicionário de acordes, o livro pretende “racionalizar e uniformizar o sistema de cifragem, levando em consideração as diferentes correntes nacionais e internacionais em uso”. Não é o autor quem propriamente justifica a necessidade da elaboração do livro. Nas dezenas de pareceres contidos tanto em sua 87

contracapa quanto em seu interior, podemos destacar alguns depoimentos que apontam para essa justificativa: é absolutamente necessário ao ensino do jovem músico brasileiro, porque somos carentes desse tipo de trabalho; Um livro pioneiro. Há muito esperado por instrumentistas, arranjadores e compositores; O êxito dessa proposta vai facilitar a difusão das cifras nas escolas de formação musical, atendendo a um público e mercado de trabalho cada vez maiores; esta obra vem iluminar o universo catatônico dos manuais técnicos de harmonia; surgiu o primeiro método com princípios de harmonia teórica e prática dirigida ao violão ... como conseqüência natural o reconhecimento e uso obrigatório nas escolas de ensino tradicional de música; um presente dado à música brasileira, ainda carente de sua própria cultura; espero que todas as universidades e escolas de música deste país adotem este livro, pois é o primeiro trabalho completo que podemos ter para atender à cifra; O conteúdo [...] mostra ao leitor [...] o que até hoje não foi mostrado em matéria de cifragem.

Apesar de haver a indicação de que o livro é destinado tanto para iniciantes quanto para profissionais, o autor, no prefácio, indica que “para uma boa assimilação dos textos, é desejável o conhecimento dos fundamentos da teoria da música”. Em relação ao repertório, não há indicação quanto ao gênero ou estilo das canções apresentadas, sendo comentado pelo autor que foram escolhidas músicas de modo que “as mesmas fossem do conhecimento de todos” (p.272). Na publicação predominam conteúdos factuais e procedimentais, e o autor preocupa-se também em definir e conceituar termos. Ele diz: cadência é o resultado de combinações funcionais de acordes com sentido conclusivo ou suspensivo, sendo que cada uma dessas combinações resulta em maior ou menor conclusividade, isto é, de forças diferentes, sendo que essa força depende da sua definição tonal. Necessita-se de cadência para definir a tonalidade e deve-se ter no mínimo dois acordes para uma definição tonal, já que dois acordes de diferentes funções podem concentrar todas ou quase todas as notas de uma tonalidade (p.268).

Sua preocupação é descrever um sistema de cifragem e demonstrar a formação de acordes no braço do violão com sua respectiva escrita no pentagrama. A utilização desses acordes é demonstrada através de progressões harmônicas cifradas e ilustradas através da análise harmônica em canções oriundas do repertório da música popular brasileira. O autor 88

ainda utiliza este repertório para fornecer ao aluno material para que exercite os conhecimentos aprendidos. Vale dizer que este livro foi um dos primeiros a trazer o repertório da música popular, neste caso em grande parte a bossa-nova, com as cifras e a letra disponíveis, sendo as cifras dispostas em compasso. O livro foi utilizado por músicos e estudantes de música, muitas vezes, como uma espécie de songbook37 . Podemos supor que foi a partir desta constatação que o autor, Almir Chediak, fundou a Lumiar Editora para fazer o que os americanos, por exemplo, vinham fazendo há tempos: editar songbooks de música popular. O livro foi organizado em partes teóricas e partes destinadas à prática tanto da execução de acordes (desenho de acordes e progressões harmônicas) quanto à análise harmônica. A primeira trata exclusivamente de uma parte teórica introdutória e a segunda parte é o dicionário de acordes cifrados propriamente dito (desenho dos acordes no braço do violão com a respectiva grafia no pentagrama). A terceira parte apresenta uma série de progressões harmônicas “clichês” e também conceituações teóricas a respeito de tonalidade, harmonia e modulação. A quarta e última parte trata do “relacionamento melodia / harmonia”, apresentando procedimentos em relação a como realizar a análise harmônica, trazendo exemplos em progressões harmônicas, e ainda um repertório como exemplificação de análises e também para ser analisado pelo leitor como forma de exercitar os conhecimentos aprendidos. As músicas foram grafadas com as cifras separadas em compassos, com a letra da música abaixo. Quanto aos recursos usados, a parte teórica contida no livro é exclusivamente expositiva, não trazendo nenhum tipo de exercício. A segunda parte do livro, onde o autor elaborou um dicionário de acordes, também não apresenta nenhuma sugestão de exercícios. O autor oferece apenas uma dica de como transpor estes acordes, uma vez que o dicionário limita-se a explorar diversas possibilidades de digitação de tipos de acordes partindo da fundamental Dó. Na terceira parte, onde são apresentadas progressões harmônicas, não há nenhuma indicação procedimental quanto à realização de exercícios, a não ser pela seguinte observação feita pelo autor: “Todos os exercícios no decorrer deste trabalho deverão, também,

37 Até então, a fonte de repertório cifrado para o músico popular eram principalmente as revistinhas “Violão & Guitarra”, também conhecidas como “VIGU”. Essas revistas até os dias de hoje são vendidas em bancas de jornal, mas a cifragem nem sempre é confiável, conforme advertiu Tom Jobim e Chediak, e não vem disposta em compassos.

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ser tocados em forma de tríade (sem a sétima), exceto dominantes (V7) e os m7(b5)” (p.128). Destaca ainda, em seu prefácio, que “os acordes relacionados ao sistema tonal são apresentados em pequenas progressões, obedecendo a uma ordem didática”. Assim, o autor apresenta progressões harmônicas que vão ficando cada vez mais complexas, começando com progressões diatônicas em tonalidades maiores, em seguida em tonalidades menores, e posteriormente utilizando acordes de empréstimo modal. Nessas progressões ele utiliza tríades e tétrades. Na parte 4, onde encontramos músicas a serem analisadas pelo leitor, o autor destaca: “deve-se observar que as músicas, no decorrer deste trabalho, aparecem obedecendo uma ordem didática” (p.272), ou seja, do simples ao complexo, seguindo o mesmo critério da terceira parte do livro. O estilo das músicas não foi identificado pelo autor, sendo todas composições que fazem parte do repertório da música popular brasileira, compostas por autores conhecidos tais como Moraes Moreira, Martinho da Vila, Luiz Gonzaga, Caetano Veloso, Vinícius de Moraes, Chico Buarque, entre outros, e que, segundo o autor, “são de conhecimento de todos”. 4.1.2 Escola moderna do cavaquinho Quanto ao público alvo, o livro não traz uma indicação direta, senão pelos pareceres de músicos que constam no início do livro: “cavaquinistas amadores e profissionais”, “para quem deseja obter uma boa técnica [...] ser um bom cavaquinista”, “um método para os que buscam a oportunidade de usufruir das qualidades do cavaquinho como instrumento solista...”. O autor não explicita seus objetivos. Porém, estes já ficam claros por conta do prefácio onde músicos afirmam: conhecer o cavaquinho em todos os seus recursos harmônicos, melódicos e rítmicos; usufruir das qualidades do cavaquinho como instrumento solista; pôr fim a uma antiga deficiência no ensino do cavaquinho; viabilizar o estudo do cavaquinho.

Assim como o Dicionário de acordes cifrados, este livro apresenta justificativas através dos pareceres de músicos que o acompanham. Entre eles destacamos: Pela primeira vez no mundo os músicos terão oportunidade de conhecer 90

todos os recursos do cavaquinho; existia uma carência muito grande no que diz respeito ao aprendizado deste instrumento; para que, seguindo caminhos brasileiros, as nossas artes evidenciem, através dos tempos, a contagiante força de expressão que a índole do nosso povo oferece em suas manifestações musicais.

Não há indicação de pré-requisito. Por seu conteúdo, podemos supor que seja um livro dedicado ao iniciante no cavaquinho, muito embora apresente exemplos notados em partitura tradicional sem qualquer explicação adicional sobre leitura e escrita musical. Nesta publicação, conteúdos factuais e procedimentais predominam. O autor apresenta um resumo histórico a respeito do cavaquinho e descreve as partes que compõem o instrumento. Se refere ainda a procedimentos de como melhor estudar, e demonstra células rítmicas para serem executadas pela mão direita através da grafia musical convencional. Faz também comentários a respeito da postura corporal com a qual se deve tocar o instrumento. A demonstração da formação de acordes no braço do cavaquinho é realizada, muitas vezes, através de ilustrações. Ao final do livro, um repertório é sugerido para a prática dos conhecimentos adquiridos, ou seja, o autor apresenta uma série de músicas cifradas para servirem de “exercício para o uso dos acordes e ritmos ensinados neste método” (p.54). Há um desnível entre saberes conceituais e procedimentais, ou seja, o leitor ao iniciar um estudo musical através deste livro já deve dispor de conhecimentos sobre os fundamentos da leitura e escrita musical, mas pode ter pouco conhecimento a respeito de como “tocar” o instrumento. O livro foi organizado em quatro partes. A primeira, onde apresenta características gerais do instrumento, e as demais, onde apresenta um misto de técnica, leitura, teoria e desenho de acordes no braço do cavaquinho. Os conteúdos estão organizados seguindo uma ordem que vai do simples ao complexo. Por exemplo, a parte destinada à leitura no instrumento se inicia com exercícios chamados de preparatórios, com a utilização somente de cordas soltas e figuras como semínimas, mínimas e mínimas pontuadas. Aos poucos o autor vai introduzindo outras notas e figuras rítmicas mais elaboradas, além de apresentar exercícios em tonalidades diferentes e compassos simples binários, ternários e quaternários. Na última parte ainda são apresentadas partituras contendo cifras e letras dispostas em compassos, de músicas do repertório da música popular brasileira. O livro apresenta uma série de exercícios técnicos escritos no pentagrama com observações e dicas do autor sobre procedimentos de 91

utilização. Na primeira parte, apresenta exercícios de leitura melódica que “visam a desenvolver a prática da leitura com o instrumento, bem como a associação entre a altura da nota e sua localização no braço do cavaquinho” (p.16). É importante lembrar que, embora o autor não indique nenhum tipo de pré-requisito, o leitor não poderia realizar este exercício, bem como os exercícios técnicos mencionados anteriormente, sem o conhecimento prévio da grafia tradicional no pentagrama, ou sem a ajuda de um professor. São sugeridos também exercícios relacionados aos conteúdos teóricos. Ainda sobre a questão da leitura, o autor indica uma listagem de músicas como sugestão de solos a serem tocados ao cavaquinho. Para o exercício da leitura melódica, são utilizadas músicas do autor, além de compositores como J. S. Bach, Radamés Gnattali e M. Ravel. São apresentadas como sugestão de leitura polcas, valsas, choros, estudos, maxixes e baiões de autores como Anacleto de Medeiros, Garoto, Hermeto Pascoal, Jacob do bandolim, K-Ximbinho, Pixinguinha, Waldir Azevedo, entre outros. O repertório cifrado apresentado ao final do livro apresenta músicas tradicionais do repertório da música popular brasileira como “Guardei minha viola”, de Paulinho da Viola, “Trem das onze”, de Adoniran Barbosa, “Acontece”, de Cartola, e “Kid Cavaquinho”, de João Bosco e Aldir Blanc, entre outras. O estilo de cada uma dessas composições não está indicado, ficando subentendido que o leitor já deva ter alguma intimidade com este repertório. 4.1.3 A arte da improvisação O autor introduz o livro dizendo: “Este livro é destinado a qualquer instrumentista”. Ainda na introdução, esclarece que seu objetivo é “dar ao estudante uma intimidade gradativa com o inter-relacionamento entre escalas e acordes e desenvolver a arte da improvisação”. O autor do prefácio do livro, o músico e professor Toninho Horta, prevê que com ele será dado “um passo à frente em termos de material didático sobre o tema” e ainda acrescenta: “este trabalho é bastante atrativo por conter o lado prático e o lado teórico da improvisação unificados numa só proposta”. Segundo o autor, Os pré-requisitos básicos para que se tire maior proveito deste livro são: reconhecimento dos intervalos, formação das escalas e dos acordes, leitura de cifras e domínio no instrumento, da escala maior e das três formas da escala menor (natural, harmônica e melódica) em todas as tonalidades (p.18). 92

Predominam nesta publicação conteúdos procedimentais. A fita K-7 que acompanha o livro segue junto aos exemplos do início ao fim, para que o leitor possa praticar o improviso. O livro foi organizado em seis partes distintas, cada uma tratando de um aspecto específico da improvisação. A primeira delas é mais geral, apresentando conceituações teóricas, técnicas e fraseados correspondentes a centros tonais. As partes dois e cinco trabalham determinadas progressões harmônicas “clichês”, e as partes três e quatro a utilização de escalas específicas. Na sexta e última parte são apresentados solos escritos sobre progressões harmônicas cifradas, sendo indicado o estilo musical. Segundo o autor, “as partes neste livro estão organizadas de forma a dar ao estudante uma intimidade gradativa com o inter-relacionamento entre escalas e acordes e desenvolver a arte da improvisação no estilo “passo a passo” (p.17). Assim, o livro segue a ordem dos exemplos gravados na fita que o acompanha, começando com progressões harmônicas em centros tonais maiores e menores, com a utilização de acordes diatônicos, em seguida trabalha com a improvisação sobre acordes dominantes secundários, alterados e substitutos, etc. Uma fita K7 acompanha o livro com a gravação de bases harmônicas que servem para se exercitar o improviso. Há, inclusive, um sumário da fita, com indicação da exemplificação que faz de estilos musicais e progressões harmônicas. As frases propostas pelo autor foram gravadas de duas maneiras: uma lenta “para que possam ser assimiladas com mais facilidade as nuances de interpretação” (p.18) e outra num andamento mais rápido. O autor sugere que o leitor “experimente fazer um estudo gradativo para o domínio na mudança de escalas, tocando inicialmente apenas mínimas, depois semínimas [...]” (p.18) e ainda oferece outras dicas de estudo na introdução e no decorrer de todo o seu livro. São propostos exclusivamente exercícios práticos aplicados ao instrumento. No repertório contido no livro não há canções propriamente ditas, mas progressões harmônicas “clichês” com a sugestão do estilo musical do acompanhamento. Os estilos utilizados são: bossa-nova, bolero, salsa lenta, swing, disco funk, samba-canção, baião, funk, salsa, samba, frevo, blues e jazz. 4.1.4 Música brasileira para contrabaixo Não há uma indicação direta do público alvo. Apenas o título já deixa a sugestão de que o livro se direciona para o contrabaixista que se 93

interessa pelo repertório da música popular brasileira. Segundo o autor, este é “um trabalho de objetivos práticos” onde “são apresentados oito estilos musicais brasileiros com suas acentuações características, diferenças de compasso e interpretação para o contrabaixo” (p.8). Não encontramos nenhuma espécie de justificativa. Porém, pelo autor tratar-se de nosso informante qualificado, temos o seguinte depoimento: eu comecei a criar uma metodologia voltada para as coisas que as escolas não ensinavam, que as escolas tradicionais de música não ensinavam... como a interpretação, os estilos musicais, o comportamento musical de cada música de acordo com o trabalho que você vai fazer... comportamento assim até na maneira de tocar. Se você for tocar com um trio, quarteto ou quinteto vai ter que tocar de um jeito diferente, então, a maneira do contrabaixo tocar mais ou menos nota, a sonoridade, estudar a sonoridade da amplificação. [...] Pra cada acorde eu estudava células de ritmos brasileiros, fazendo também isso nas escalas... para eles [os alunos] tomarem conhecimento do baião, do maracatu... e isso tudo foi funcionando e me levando a fazer uma apostila. Eu sempre juntei muito material viajando com os artistas, ia nos centros culturais pegava material, comprava disquinhos... e a junção desse material que deu no meu livro Música brasileira para contrabaixo40 .

Giffoni não se refere a nenhum tipo de pré-requisito. Porém, devido ao conteúdo e à forma como ele é apresentado (partituras e cifras), fica claro que o aluno deve ter um mínimo de domínio técnico sobre o instrumento e também alguma noção de leitura de cifras e partitura. Esta publicação nos parece a mais completa das seis analisadas, no que se refere à abrangência dos conteúdos. O objetivo principal é a aquisição de conteúdos procedimentais, e para isso o autor dá um suporte que passa por conteúdos factuais e atitudinais. Ele se preocupa em situar o conteúdo aprendido com situações reais de utilização não sendo raras referências como: “esta condição técnica é muito importante para o bom desempenho em shows e gravações profissionais” (p.11). A apresentação de dados e fatos vem muitas vezes associada a afirmações como “para tocar bem a música brasileira, é essencial conhecer e praticar as síncopes nas escalas” (p.11). Ao apresentar um gênero, são feitas referências às suas características.

40

Entrevista concedida à autora em dezembro de 2000.

94

O autor dá dicas ao leitor, como: “a sonoridade do baixo deve ser aguda para não se confundir com a percussão [no samba]. Já no estilo bossa-nova, a equalização pode ser mais grave e as notas devem ser executadas ligadas, com um toque leve da mão direita” (p.13). O livro não se divide numa ordem que vai do simples ao complexo. O seu índice não separa em partes o conteúdo, mas indica os estilos musicais apresentados pelo autor. Exceto pelos itens “Síncopes Brasileiras”, “Slap na Música Brasileira “ e “Baixo de Cinco Cordas na Música Brasileira”, todos os outros itens se referem a estilos musicais brasileiros específicos. Para cada estilo o autor obedeceu um único critério, que estabeleceu a seguinte ordem: apresentação da célula rítmica básica do estilo em estudo; referências discográficas a esse estilo; apresentação de linhas de baixo em progressões, utilizando-se da célula rítmica básica; apresentação da partitura de uma música no estilo estudado, contendo a melodia e a linha de baixo escritas no pentagrama e a harmonia cifrada. Ao final do estudo de cada estilo, é apresentado ao leitor um baixista que se destacou naquele estilo, ou que foi representativo dentro de determinada técnica (como é o caso dos dois últimos itens), constando sua foto e um pequeno comentário . Ele diz: Luizão Maia – baixista e compositor, participou de muitas gravações entre 1970 e 1990 e fez shows com diversos artistas da MPB [...]. Destacou-se no cenário das gravações devido à sua forma percussiva de tocar samba com muito swing e musicalidade, além de produzir, no baixo, um som muito ‘claro’ e definido. (p.12)

O autor propõe apenas exercícios práticos no instrumento. Um CD acompanha o livro, servindo como ilustração aos exemplos e exercícios propostos pelo autor. Todas as músicas foram gravadas por uma banda composta de piano, sax / flauta, baixo, bateria e percussão. Os instrumentos foram divididos em canais, de forma que o aluno possa excluir o baixo da gravação, e assim poder tocar junto com a banda. O autor sugere ainda que o leitor, além de tocar a linha de baixo escrita na partitura, crie sua própria linha. A seleção do repertório abrange composições do autor sobre os seguintes estilos da música popular brasileira: samba, samba partido alto, samba-funk, sambaião, sambão, samba-canção, afoxé, baião, ciranda, xote, maracatu, frevo e quadrilha. Algumas dessas composições estão presentes em CDs do autor ou foram gravadas por outros artistas. 95

4.1.5 Vocabulário do choro Sobre o público alvo, o prefácio escrito pelo músico Paulo Moura ressalta: “para os que são apaixonados pelo choro [...] assim como para os iniciantes, os recém enamorados desta tradição popular brasileira”, porém, não há indicação feita pelo autor. Espera-se proporcionar ao músico uma “intimidade com a linguagem do choro, seja nas sua interpretação, na composição ou nas diversas maneiras de se usar a interpretação” (p.7), e “contribuir para a criação e sistematização de um estudo técnico sobre o choro, valorizando sua importância na formação de uma escola (de fato) para música brasileira”. (p.6) O autor justifica o valor desta publicação ao indicar que “pouco se conhece sobre esta matéria devido à ausência de publicações, já que predomina o método do aprendizado informal através das rodas de choro” e que “não se conhecem estudos musicais baseados na sua obra [de Pixinguinha], nem de autores por ele influenciados, muito embora Pixinguinha seja encarado como uma das grandes ‘escolas’ da música brasileira” (p.6). Não há indicação de pré-requisitos, embora o livro seja escrito em notação tradicional na pauta e cifras. Pela complexidade dos estudos fica claro que são necessários conhecimentos técnicos prévios. Nesta publicação, os conteúdos são predominantemente factuais (fatos e dados) e procedimentais, e dividem-se em duas partes básicas. Na primeira, são apresentados aspectos característicos do gênero estudado; na segunda, é apresentado um repertório de músicas que serve como ilustração e referência para a parte anterior. Os “estudos melódicos” contidos na primeira parte são, segundo o autor, “o fundamento deste projeto” e estão distribuídos “dentro de uma ordem crescente de dificuldade técnica” (p.21). O autor refere-se ainda à necessidade de se tocar em todas as tonalidades, justificando a forma como elaborou esses estudos. No repertório apresentado na segunda parte do livro, cada música é representada por uma partitura para piano (contendo ainda as cifras, e a melodia para flauta), uma partitura para flauta (com melodia e cifras) e uma partitura transposta para sax soprano (também com as cifras). Quanto aos recursos, o livro apresenta, inicialmente, uma série de exemplos a respeito do conteúdo abordado, sem contudo indicar de que forma o leitor pode exercitá-los. Para a realização dos “estudos melódicos” o autor sugere que o leitor os toque fazendo uso de um metrônomo e que, se possível, os exercitem com um acompanhamento harmônico (por isso 96

os exercícios vêm com a indicação da harmonia cifrada). O autor ainda sugere que as frases sejam decoradas e que o leitor experimente “modificar para os modos menores algumas escalas e aplicar arpejos aumentados ou diminutos sobre certos arpejos dados” (p.22). A seleção do repertório inclui composições do autor abordando os seguintes estilos musicais: choro, valsa, samba, frevo e baião. 4.1.6 Harmonia prática da bossa-nova A introdução escrita pelo autor recomenda que o livro pode ser usado tanto pelo “leitor que já conhece alguma coisa de violão e cifras” quanto pelo iniciante. O autor indica que “este livro é apenas um ponto de partida”, e que se dedica “particularmente ao estilo bossa-nova de harmonizar” (p.9). O autor comenta: Espera-se mesmo que o leitor possua algum rudimento musical tal como ter idéia das notas musicais, diferenciar melodia (seqüência de notas) de harmonia (seqüência de acordes), etc. E naturalmente, que tenha um mínimo de senso rítmico (p.9). Para o iniciante, recomenda “como complemento deste trabalho, a aquisição de um manual de teoria musical, assim como um método que o oriente no estudo da técnica do violão” (p.9). A esse respeito o autor indica uma bibliografia. Conteúdos procedimentais são o foco do trabalho, mas eles vêm associados a conteúdos factuais que acabam por predominar a abrangência desta publicação. Das cinco partes que compreendem o livro, apenas a última não é teórica, com exceção de um item apresentado pela primeira parte do livro. As quatro primeiras partes apresentam elementos de teoria musical e harmonia, cruzados com informações a respeito de sua aplicação ao violão (disposição dos acordes no braço do violão) e quanto ao estilo musical focalizado no livro (segundo o autor, “ritmos” específicos aplicados à mão direita do violonista39 ). A quinta e última parte constitui-se de um repertório que serve como ilustração e referência ao que foi apresentado nas partes anteriores. As partituras contêm a melodia da música cifrada,

39

Entrevista concedida à autora em dezembro de 2000. 97

com o desenho do acorde no braço do violão representado sobre a cifra e ainda com a letra da música abaixo da melodia. O livro não se preocupa em conceituar termos por ele utilizados, limitando-se a defini-los de forma reduzida. A respeito de “escala”, o autor escreveu: “Escala é uma seqüência de notas, formada por graus sucessivos, representados por algarismos romanos” (p.15). Apresenta ainda a noção do que é “certo” e “errado” na orelha do livro, quando demonstra através de fotografias “a posição errada ou certa das mãos”. O autor propõe uma série de exercícios teóricos nas suas três primeiras partes (a quarta parte, apesar de ser também teórica, é exclusivamente expositiva). Um CD acompanha o livro onde apresenta a gravação de 9 trilhas com ilustrações de “ritmos” apresentados pelo autor na parte 1, e as 17 músicas cujas partituras estão disponíveis na parte 5 do livro. O autor sugere que estas gravações sirvam como ilustração e também para que o leitor as acompanhe ao violão, orientando-se pela partitura. O repertório consta de composições do autor, algumas, inclusive, que fazem parte do repertório tradicional da bossa-nova (como, por exemplo, “Minha Namorada”, composta em parceria com Vinícius de Moraes). Estão presentes os seguintes estilos: baião-toada, samba-canção, samba, bossanova, marcha-rancho e toada. 4.2 Análise geral das publicações Segundo os dados observados, podemos resumir as características das seis publicações analisadas da seguinte forma:

Público Alvo

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São indicadas para iniciantes ou profissionais, embora não fique claro a que tipo de “iniciante” o autor se refere, uma vez que os autores fazem uso da grafia musical tradicional, por exemplo, sem nenhuma explicação prévia. Quando não trazem uma indicação explícita, a delimitação do público alvo pode ser observada através do próprio título da publicação.

Objetivos

Justificativa

Pré-requisitos

Seleção e Organização dos conteúdos

As publicações têm por objetivo sistematizar algum conhecimento, como um sistema de cifragens, a improvisação ou o fraseado do choro; atingir “objetivos práticos”, como tocar dentro de determinado estilo; e viabilizar o estudo de algum instrumento ou gênero musical, freqüentemente voltado para a música popular brasileira. Suprir lacunas, como uma “carência no aprendizado do instrumento” e/ou na utilização de um repertório ou conteúdo que permita ao estudante seguir “caminhos brasileiros”. Os autores fazem referência à união do “lado prático” ao teórico numa só proposta, embora exista uma separação entre o que é teoria e o que é prática, nos limites da própria publicação. Quando há indicação, o autor sugere que o estudante já tenha conhecimentos teóricos e de leitura e escrita musical. Observamos que os autores partem do princípio que o estudante conhece o repertório utilizado, uma vez que nem sempre está indicado o gênero das músicas. A maioria das publicações é dividida em partes teóricas e partes práticas, e seguem uma ordem que vai do simples ao complexo. Os conhecimentos articulados estão intrinsecamente ligados a um determinado repertório. 99

Recursos

Seleção do Repertório

A parte teórica, em geral, traz exercícios de fixação. Na parte prática há um repertório cifrado, separado em compassos, ou a sugestão de um repertório a ser praticado pelo estudante. São utilizadas fitas K7 ou CDs como apoio à prática musical. As publicações trabalham com um repertório oriundo da música popular, mais especificamente da música popular brasileira.

Quadro 4 – Análise geral das publicações

As publicações com fins de ensino-aprendizagem musical editadas nos últimos 20 anos pelo músico-professor vêm atender a uma demanda por saberes que, segundo a fala de estudantes, do músico-professor, de músicos e dos próprios autores, não haviam ainda sido sistematizados em um material didático. A carência deste tipo de material refere-se ao instrumento, em Escola moderna do cavaquinho, onde foi apontada uma “carência muito grande no que diz respeito ao aprendizado deste instrumento”; ao repertório, em geral, a música popular brasileira; ou à sistematização de algum tipo de conhecimento, como é o caso de Dicionário de acordes cifrados, que pretende unificar o sistema de cifragens. Todas as publicações possuem temáticas que abordam conteúdos específicos. O público alvo certamente é, em quase todos os casos, o estudante que tem alguma intimidade com os gêneros estudados e conhece o repertório tradicional de cada um deles, uma vez que em muitas dessas publicações os gêneros das canções utilizadas não vêm identificados pelo autor. Assim, as publicações são destinadas especificamente ao que podemos chamar de grupo sonoro, ou a quem deseje se familiarizar com a música de determinado grupo sonoro40 .

40 John Blacking (1995) utiliza o termo sound groups para definir um grupo social que compartilha uma linguagem musical comum, compartilhando a mesma idéia do que seja música e suas formas de manifestação.

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A necessidade e o valor de se publicarem livros com fins de ensinoaprendizagem musical é justificada com afirmações como: o êxito dessa proposta vai facilitar a difusão das cifras nas escolas de formação musical, atendendo a um público e mercado de trabalho cada vez maiores; pela primeira vez no mundo os músicos terão oportunidade de conhecer todos os recursos do cavaquinho; contribuir para a criação e sistematização de um estudo técnico sobre o choro, valorizando sua importância na formação de uma escola (de fato) para música brasileira; e deve ser reforçada pelas escolas de música, indicando esta obra como veículo fundamental nas disciplinas que se relacionam com a harmonia.

São saberes que foram (ou ainda são) negados e silenciados por instituições oficiais, e que careciam de uma sistematização, conforme indicou Santomé (2001)41. O objetivo central dessas publicações é saber fazer alguma coisa. Portanto, os conteúdos procedimentais são valorizados e estimulados através, principalmente, da possibilidade de se praticar com o apoio de um CD ou fita K7, que freqüentemente acompanham livros deste tipo. Conteúdos factuais (fatos e dados) são encontrados como complemento ou como forma de introduzir ou fornecer bases aos conteúdos procedimentais. Assim, estas publicações, na grande maioria, preocupam-se principalmente em levar o aluno a “manejar, usar, construir, aplicar, coletar, observar, experimentar, elaborar, simular, planejar, compor, avaliar, representar, etc” (Coll, Pozo, Sarabia e Valls, 2000, p.91). As publicações analisadas carecem, contudo, de conteúdos conceituais. Apesar de encontrarmos definições em todas as partes teóricas apresentadas pelas publicações, elas não chegam a se constituir em conceitos. Tomemos como exemplo a demonstração do que é tonalidade em Harmonia prática da bossa-nova. O autor diz: “Tonalidade é um trecho de música em que predomina um tom” (p.14) e tom é definido como “a altura, ou seja, abaixamento ou elevação do som” (p. 14). Conceituações teóricas poderiam e deveriam auxiliar o estudante na aprendizagem de fatos, dados, conforme recomendou Pozo (2000): “Para que os dados e os fatos adquiram significado, os alunos devem dispor de conceitos que lhes permitam interpretá-los” (p.21). Para o autor, o importante não é privilegiar um ou outro tipo de conteúdo, mas sim a integração entre eles: “Nem a

41

Ver Capítulo I, item 1.2, pp.22-23 desta dissertação.

101

aprendizagem de fatos nem a compreensão de conceitos podem ser isoladas do restante dos conteúdos do currículo” (p.22). Acreditamos que, pela carência de conteúdos conceituais, as publicações analisadas são aproveitadas parcialmente pelos estudantes, quando eles não possuem conhecimentos prévios a respeito do assunto abordado ou quando não possuem o auxílio de um professor ou de outro estudante. Assim, muitas delas podem se tornar, por exemplo, apenas uma fonte de consulta ao repertório apresentado. Por outro lado, quando o estudante não possui familiaridade com o gênero musical em questão, nem com seu instrumento, acreditamos que, se auxiliado por um professor, por outro estudante, por um músico mais experiente ou até mesmo pelo autor da publicação, esta carência de conteúdos conceituais fica de certa forma sanada. Isso, porque acreditamos que, através deste contato e da vivência musical, os conceitos se formarão. Conteúdos atitudinais estão representados nas publicações. As atitudes assumem grande importância dentro de proposta e dos objetivos dessas publicações, inicialmente pelos processos de influência que os músicos têm em relação aos seus discípulos. Como vimos na análise das propagandas de escolas de música alternativa e aulas particulares, o grande atrativo é oferecer ao aluno um modelo de competência, competência que é comprovada pela atuação artística do músico-professor. É o que Demo (1993) aponta, quando diz que os alunos procuram “não qualquer professor ou qualquer aula, mas determinada competência produtiva comprovada” (p.136), e Schön (2000) comenta quando argumenta que os estudantes “regulam sua busca pelos sinais externos de competência que já sabem reconhecer” (p.75). Sobre a importância das atitudes Sarabia (2000) coloca características de poder que o comunicador pode ter sobre seu público. Além do poder coercitivo e do poder de recompensa, o autor se remete ao poder referente: o poder referente baseia-se na identificação com a fonte de poder. Segundo o grau em que o aluno ou aluna se veja atraído pelo professor, o primeiro tentará moldar o seu comportamento ou atitudes ao do segundo e, dessa forma, o comportamento ou as atitudes do emissor, enquanto pessoa significativa, estarão influenciando o receptor (Sarabia, 2000, p.156).

O autor ainda nos fala sobre o poder de especialista e o poder legítimo, que se relacionam diretamente ao pensamento de Demo e Schön descrito acima: 102

o poder de especialista ou perícia baseia-se na percepção de que o comunicador possui uma série de conhecimentos especiais dos quais o receptor carece. [...] O professor confere ao aluno um sentimento de credibilidade, segurança e confiança ao comunicar-lhe que a sua conduta (física, verbal, simbólica) é correta ou está bem orientada (Sarabia, 2000, p.156). O poder legítimo se baseia na aceitação pelo receptor das normas internas e dos valores que o orientam ou pressionam para agir corretamente. No contexto escolar, isso pode significar a aceitação voluntária do aluno da autoridade do professor em função de certas características: a sua idade, a sua posição na hierarquia escolar, a sua condição reconhecida de especialista, etc (Sarabia, 2000, p.156).

São ainda as atitudes que impulsionam o aluno à construção de seu percurso de formação. O aluno autônomo, que toma decisões sobre o que deve ou não aprender, tem nas aulas particulares, escolas de música alternativas e também nas publicações e workshops desenvolvidos pelo músico-professor a possibilidade de construir seu perfil profissional de acordo com as competências que considera importantes, indo buscar os saberes onde eles se encontram disponíveis e acessíveis, sem intermediários ou punições. De acordo com a análise das propagandas de escolas de música alternativas e aulas particulares, a importância conferida a quem ensina, ao que se ensina e a como se ensina, é também visível nas publicações analisadas. Quem ensina é identificado como um músico experiente e sua competência é demonstrada através da realização de trabalhos ao lado de artistas famosos. Almir Chediak, autor de Dicionário de Acordes Cifrados, é identificado como “violonista, compositor, arranjador, estudioso de música, é professor desses grandes nomes da música”42; Henrique Cazes, autor de Escola moderna do cavaquinho, como um músico experiente: “autodidata”, “instrumentista, vocalista e arranjador”, tendo atuado ao lado de nomes como Radamés Gnattali e Nara Leão; Nelson Faria, autor de “A arte da improvisação”, apresenta na contracapa do livro um extenso currículo, onde figura ao lado de Mauro Senise, Nico Assumpção, Antônio Adolfo, Toninho Horta, Cássia Eller e outros; Adriano Giffoni, autor de

42

Parecer de João Máximo contido no livro.

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Música brasileira para contrabaixo, apresenta também uma extensa lista de artistas com os quais atuou, como Gal Costa, Vinícius de Moraes, Elba Ramalho, entre outros; Mário Sève, autor de Vocabulário do choro, é identificado como: “flautista e saxofonista, compositor e arranjador”, “integrante e fundador dos quintetos Nó em Pingo d’Água e Aquarela Carioca”, “gravou quatro discos”, “com o Aquarela Carioca foi indicado três vezes para o prêmio Sharp”, “integrou os trabalhos de Geraldo Azevedo, Ney Matogrosso e Alceu Valença”; e Carlos Lyra, autor de Harmonia prática da bossa-nova, que apresenta composições suas que se tornaram representativas da bossa-nova, ao lado de parceiros como Vinícius de Moraes e Ronaldo Bôscoli. As referências feitas aos autores no interior do livro também ressaltam sua experiência didática: “é professor da Escola Brasileira de Música”, “foi professor da Escola Pró-Arte”. Elas também apontam para sua trajetória como estudante como um indicador de sua competência: “estudou durante um ano com músicos como Joe Pass”, “[estudou] baixo elétrico com Zeca Assumpção e arranjo com Ian Guest”. O que se ensina é representado inicialmente através do título, e também de indicações na capa da publicação: “todos os acordes incluindo os dissonantes”, “solo e acompanhamento”, “músicas cifradas”, “harmonia aplicada à música popular”. O como se ensina é identificado também na capa das publicações: “inclui CD com 9 trilhas contendo demonstrações de ritmos e 17 músicas para ouvir e acompanhar com o violão”, “acompanha CD com 90 trilhas gravadas”, “demonstrações e exercícios com ritmos brasileiros”, “acompanha uma fita cassete”.

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Considerações finais Esta dissertação parte de um marco situacional onde a atividade docente é percebida como intrínseca à atividade profissional do músico. Este marco nos levou a procurar compreender de que forma se dá esta atividade através de um estudo de caso realizado em uma escola de música alternativa: a Rio Música. Entrevistamos a totalidade dos professores desta escola, o que nos permitiu caracterizar aquele que denominamos como músico-professor. O músico-professor foi caracterizado como aquele que teve uma formação profissional voltada para o desenvolvimento de atividades artísticas na área da música, e que coloca a atividade docente em segundo plano no escopo de suas atividades profissionais, apesar desta ser, freqüentemente, a atividade mais constante e com uma remuneração mais regular em seu cotidiano profissional. Sua atuação como docente se dá prioritariamente no âmbito de escolas de música que são freqüentemente denominadas como alternativas ou livres e em aulas particulares, onde desenvolve um trabalho, em especial, através da música popular brasileira. O músico-professor vem atendendo a uma demanda por saberes profissionais, que reconhece sua competência docente através de seu desempenho artístico. Como fruto desta atividade, o músico-professor vem publicando livros com fins de ensino musical onde a música popular brasileira tem papel de destaque. São livros que procuram sistematizar conhecimentos específicos de algum gênero musical brasileiro ou promover o ensino de algum instrumento musical através de um repertório brasileiro. Entendendo que as escolas de música alternativas, através da atividade docente do músico-professor, estão sendo uma instância de formação profissional, neste trabalho procuramos compreender quais os saberes e as competências que norteiam esta atividade; quais os fatores que levam estudantes a procurar por uma formação profissional em escolas de música alternativas, uma vez que existem outras instâncias de formação profissional como as Instituições de Ensino Superior (IES); e quais são as competências que legitimam a atividade docente do músico-professor. 105

Realizamos este trabalho através de um estudo que se valeu de três perspectivas – a das escolas de música alternativas, a do estudante de música e a do músico-professor – e da análise de publicações com fins de ensino musical escritas pelo músico-professor, selecionadas através do catálogo das editoras Lumiar (Rio de Janeiro) e Irmãos Vitale (São Paulo), e editadas entre 1984 e 1999. Esta análise foi realizada sob a ótica dos conteúdos (sua seleção, organização e abrangência), entendido neste trabalho como um sinônimo de saberes, a partir da proposta apresentada por Coll, Pozo, Sarabia e Valls (2000) onde se incluem conteúdos factuais, conceituais, procedimentais e atitudinais. A perspectiva das escolas de música alternativas foi percebida através da análise do enunciado de propagandas publicadas em três revistas especializadas de circulação nacional: a revista Guitar Player (Trama Editorial Ltda, São Paulo), a revista Backstage (H. Sheldon Serviços de Marketing Ltda, Rio de Janeiro), e a revista Áudio, Música & Tecnologia (Editora Música & Tecnologia Ltda, Rio de Janeiro), em edições publicadas entre os anos de 1997 e 2001. A perspectiva do estudante de música foi percebida através de um debate, promovido na escola Rio Música, entre estudantes de música que têm em comum a busca pela profissionalização na área da música ou que já exercem esta atividade profissionalmente, tendo como mediadora esta pesquisadora. E a perspectiva do músicoprofessor foi percebida através de entrevistas com um informante qualificado: o músico-professor Adriano Giffoni, que também é um dos autores de uma das publicações analisadas por esta pesquisa. Para a realização deste trabalho fomos amparados por Sguirssadi (1997), Meghnagi (2000), Manfredi (2000), Ramos (2001), Tardif (2000), Schön (2000), Demo (1993 e 1995) e Perrenoud (2000), autores que fazem referências a uma atual maneira de se pensar a formação profissional, especificando o conceito de competência profissional, ensino práticoreflexivo, design, competência produtiva comprovada e percurso de formação individualizado. Considerando os depoimentos de músicos-professores, estudantes de música, e os demais dados coletados, percebemos três pontos fundamentais que aparecem como norteadores da atividade docente do músico-professor no âmbito das escolas de música alternativas: o que se ensina, quem ensina e como se ensina. Os saberes desenvolvidos pelo músico-professor em sua atividade docente no âmbito das escolas de música alternativas, vêm atender a uma demanda por saberes profissionais. São saberes relacionados ao mundo do 106

trabalho, fruto da experiência do músico-professor em sua atividade artísticomusical. Sua noção de competência está ligada à noção de versatilidade. O músico-professor Adriano Giffoni assim definiu sua atuação como músico profissional: “Trabalho como baixista, produtor, arranjador, professor, tudo isso está inserido dentro dela [da música]”, e disse que “ser competente é estar apto a trabalhar no maior número de situações profissionais possíveis”. Saberes procedimentais e atitudinais são valorizados em sua atividade docente, sendo esses saberes referência para os estudantes ao buscarem por um percurso de formação profissional. Um dos estudantes entrevistados relatou: “ele [o músico-professor com quem estuda] tem uma experiência de já ter tocado que eu quero vivenciar”. Essa experiência prática do músico-professor foi identificada como uma competência produtiva comprovada, que vem legitimar sua atividade docente, e é o que regula a busca dos estudantes em seu percurso de formação. É através da competência produtiva comprovada de músicosprofessores em sua atividade artístico-musical, que as propagandas de escolas de música alternativas defendem a qualidade de seus cursos, assim como este é o meio pelo qual os músicos-professores se identificam em suas publicações para o ensino musical. Segundo o ponto de vista do músico-professor, o que legitima sua atuação docente é justamente o conjunto de saberes por ele representados e legitimados através de sua atuação artístico-musical. Em seu discurso, traz uma noção de didática ligada à capacidade de organização e, segundo ele, esta capacidade de organização é o que o torna um professor competente, que procura “encurtar um pouco o caminho das pessoas que estão entrando no meio profissional”. Contraditoriamente, distingue o educador musical (que seria o professor que atua em escolas regulares) do professor de música (que é o seu caso), reconhecendo que no primeiro é a capacidade didática que assegura a qualidade de seu desempenho docente, enquanto que, no segundo, é a experiência prática artístico-musical. Identificamos a metáfora e a modelagem, tal qual nos colocam Davidson e Scripp (1992), como ferramentas que orientam a atividade docente do músico-professor, o que veio corroborar com o conceito de design proposto por Schön (2000). O autor utiliza este termo como uma forma de se realizar determinada prática, e que os estudantes devem aprender através do “fazer”, e no contato com o “fazer” de seus instrutores (ou professores). Encontramos em Schön também a idéia de um ensino práticoreflexivo, onde os estudantes desenvolvem a capacidade de reflexão-em107

ação. O autor considera a existência de zonas indeterminadas da prática, onde profissionais se deparam em seu cotidiano com situações não previstas, e onde esta capacidade de refletir em ação se torna indispensável. Esse mesmo aspecto vimos apontado por Demo (1995), quando faz a distinção entre o fazer e o saber fazer. No segundo caso, torna-se necessária a capacidade de compreensão, que vem a ser a capacidade que Schön (2000) denomina por reflexão-na-ação. Na análise das publicações, percebemos que conteúdos procedimentais, ou seja, o saber-fazer, são priorizados. Porém, os autores se preocupam em fornecer ao estudante conteúdos factuais, que freqüentemente aparecem nas primeiras partes das publicações onde elementos da teoria e harmonia musical são expostos. Em muitos casos observa-mos uma carência de conteúdos conceituais, o que dificulta a compreensão desta parte teórica sem o auxílio de um outro suporte (outro livro, um professor, um exemplo musical, etc.). As publicações priorizam um saber referido como “prático” e com “aplicabilidade imediata”, onde se trabalha, por exemplo, técnica junto com determinada “levada” ou com uma fraseologia característica de algum gênero musical, promovendo o tocar junto através de recursos como CDs ou fitas K7. Saberes atitudinais assumem grande importância dentro da proposta e dos objetivos dessas publicações, pelos processos de influência que os músicos têm em relação a seus discípulos, onde o grande atrativo é oferecer ao aluno um modelo de competência, competência produtiva que é comprovada pela atuação artística do músico-professor. As escolas de música alternativas, através da atividade docente do músico-professor, foram apontadas como uma instância de formação profissional que vem suprir uma lacuna deixada pelas IES, conforme os depoimentos apresentados por esta pesquisa cruzados com as pesquisas de Ferreira (2000) e Kleber (2000). Entendemos que essa lacuna se refere à não articulação dos saberes contemplados no currículo de seus cursos com o mundo do trabalho, conforme também indicou Tardif e Schön, O que não quer dizer que as escolas de música alternativas dêem conta disso. A insatisfação constatada reside, principalmente, no fato dos saberes presentes nos currículos das IES estarem desarticulados com o cotidiano profissional do músico, incluindo aí a seleção do repertório que, segundo os autores mencionados, atualmente privilegia a música erudita. Tendo em mãos documentos que regulamentam e / ou estabelecem bases e diretrizes para o ensino, como a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, entendemos que as IES têm como uma de suas funções preparar o 108

profissional para o mundo do trabalho, sem que com isso se submeta às regras do mercado de trabalho. As IES devem proporcionar aos estudantes não só a dimensão técnica, onde são desenvolvidos saberes que os habilitem à atuação profissional, como também a dimensão social e política, onde os estudantes desenvolvem sua capacidade de compreensão, argumentação e crítica, tornando-se agentes transformadores capazes de produzir conhecimento. Entendemos que uma formação calcada num modelo estático e previsível não atende às exigências profissionais atuais. Encontramos em Perrenoud, suporte para os indícios apontados por Travassos (1999), Sekeff (1997) e no depoimento de Vitor Neto, presidente do Sindicato dos Músicos Profissionais do Rio de Janeiro, quando indicam a variedade de perfis profissionais encontrados na área musical, e a necessidade de versatilidade exigida ao profissional pelo mundo do trabalho. O autor defende a possibilidade das escolas formadoras propiciarem aos estudantes percursos individualizados de formação. Conforme apontamos no decorrer do trabalho, apesar desta ainda não ser uma realidade nos cursos superiores em música, algumas propostas já surgiram no sentido de propiciar aos estudantes uma maior autonomia na construção de seu perfil profissional através de um percurso de formação individualizado. Assim, o conjunto de saberes desenvolvidos pelo músico-professor em sua atividade docente, no âmbito das escolas de música alternativas, privilegia conteúdos procedimentais, tendo como objetivo um saber-fazer. Este saber-fazer está relacionado a “especialidade” do músico-professor, fruto de sua atividade artístico-musical. Sua atividade docente é dirigida à formação profissional, mesmo que esta não seja o objetivo de seu aluno, e é este direcionamento que justifica a seleção dos saberes articulados nesta atividade. A noção de competência profissional em que o músico-professor se apóia, e que procura formar, está relacionada à noção de versatilidade. As escolas de música alternativas, através da atividade docente do músico-professor, oferece aos estudantes cursos direcionados a algum conhecimento específico, delimitado em determinado contexto ou repertório. Em sua propaganda enuncia: curso de guitarra brasileira. A demanda atendida pelo músico-professor, no âmbito das escolas de música alternativas, consta de estudantes diletantes, que não almejam a profissionalização na área musical, e de estudantes que almejam a profissionalização ou que já exercem a atividade musical profissionalmente. Os estudantes que buscam pelos saberes articulados pelas escolas de música alternativas em seu percurso de formação profissional, entendem que nesta instância irão encontrar um ensino objetivo, direcionado às suas 109

necessidades imediatas. O ensino oferecido pelas IES foi apontado como complementar, uma vez que não garante um saber-fazer relacionado ao seu cotidiano profissional ou ao perfil profissional almejado. Podemos observar que entre esses dois âmbitos de formação profissional (as IES e as escolas de música alternativas) alguns pontos convergem e outros divergem. As IES também possuem em seus quadros professores com “competência produtiva comprovada”, e contemplam em seus currículos conteúdos procedimentais, conforme comentado no decorrer deste trabalho. Porém, entre outros aspectos divergentes, destacamos que as escolas de música alternativas definem abertamente o repertório, a linguagem musical com que trabalham, inclusive se utilizam disso em sua propaganda, ao contrário das IES que não assumem de forma explícita estar calcado seu ensino em um repertório clássico-romântico. O músico-professor é tido como um professor capacitado, já que sua competência produtiva é comprovada através de sua atuação artística. Segundo a perspectiva do aluno, o saber-fazer comprovado do músicoprofessor é o que legitima sua atividade docente. Para o músico-professor, sua experiência profissional e capacidade em organizar e orientar o estudo de seu aluno é o que lhe garante uma atividade docente bem sucedida. Esta pesquisa, através dos dados coletados e das questões debatidas, pretende contribuir para um diálogo entre o ensino musical oficial e o alternativo, considerando a questão da formação profissional do músico. Como prosseguimento deste trabalho, sugerimos que sejam estudados os campos de atuação profissional do músico, com seus respectivos saberes e competências, e, de acordo com Schön (2000), recomendamos um estudo para que se perceba o relacionamento entre prática competente e conhecimento profissional. Recomendamos ainda um estudo sobre a utilização das publicações com fins de ensino musical escritas pelo músicoprofessor, por professores e estudantes de música. Termino me reportando à epígrafe desta dissertação, com palavras de Paulo Freire: “para que uma educação seja válida, toda ação educativa deverá necessariamente ser precedida de uma reflexão sobre o homem, e uma análise profunda do meio, da vida concreta daquele que se quer educar” (1976, p.37).

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