O MUTUALISMO EM JUIZ DE FORA: AS EXPERIÊNCIAS DA ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE DOS IRMÃOS ARTISTAS

July 15, 2017 | Autor: Cláudia Viscardi | Categoria: Work and Labour, Friendly Societies, Associativismo, Filantropia, History of Philantropy, Mutualismo
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Publicado originalmente em: VISCARDI, Cláudia M. R. e OLIVEIRA, Mônica R. de.(orgs.) À margem do caminho novo: experiências populares em Juiz de Fora. Rio de Janeiro: FGV, 2011.

O MUTUALISMO EM JUIZ DE FORA: AS EXPERIÊNCIAS DA ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE DOS IRMÃOS ARTISTAS Cláudia Maria Ribeiro Viscardi1 Antônio Gasparetto Junior2 As pesquisas acerca do “mundo do trabalho” no Brasil, atenta aos parâmetros internacionais, esteve voltada para o estudo dos setores politicamente organizados, em suas diferentes manifestações de resistência. Sindicatos, federações, greves, imprensa operária e partidos políticos foram objetos recorrentes de análise de um grande número de historiadores e cientistas sociais.3 Tal como ocorreu com o estudo do movimento operário inglês, com o tempo, percebeu-se a importância da análise do processo de formação desta classe trabalhadora que teria antecedido a organização de associações tipicamente reativas às mudanças decorrentes da implantação do capitalismo. Neste campo, afloraram estudos centrados nas experiências cumulativas que levaram - a médio e longo prazo - à emergência de movimentos sociais mais estruturados. É neste campo que temos desenvolvido nossas pesquisas acerca do fenômeno do mutualismo. Entendemos que as experiências associativas mutualistas são manifestações ou 1

Este capítulo é um dos resultados de pesquisas desenvolvidas com apoio da Fapemig e do CNPq. 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Universidade federal de Juiz de Fora. 3 Acerca da historiografia sobre movimento operário brasileiro ler, entre inúmeros outros que poderiam ser citados: DULLES, John W.F. Anarquistas e comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. VIANNA. Luiz W. Liberalismo e sindicato no Brasil, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: Difel, 1983. GOMES, Ângela M. de C. A invenção do trabalhismo, Rio de Janeiro: Iuperj/Vértice, 1988. KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem. 2ed, Rio de Janeiro: Paz e terra, 1994. CARONE, Edgar. Socialismo e anarquismo no início do século, Petrópolis: Vozes, 1996. BATALHA, Cláudio. A historiografia da classe operária no Brasil: trajetória e tendências. In:--- FREITAS, Marcos C. (org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2001.

2 expressões que se inserem no processo de formação da classe trabalhadora, contribuindo para o estabelecimento de redes de solidariedade horizontais entre seus membros, compondo uma cultura associativa e favorecendo a consolidação da cidadania. Isto não quer dizer que consideremos o fenômeno mutualista como um movimento pré-político, ou seja, uma modalidade de associação que necessariamente tenha antecedido aos sindicatos ou tenha neles se transformado. Nem o caracterizemos como a expressão de experiências reformistas e conservadoras que se contrapunham às organizações mais á esquerda do movimento operário. Entendemos que ambas as abordagens acerca do mutualismo, muito comuns até os anos oitenta do século XX, resultaram de uma apropriação pelos historiadores dos discursos de uma minoria militante, atores contemporâneos dos eventos que estudavam. Ao contrário, nossas pesquisas têm demonstrado que o fenômeno mutualista foi concorrente ao movimento sindical, foi-lhe contemporâneo durante muitas décadas e, por esta razão, manteve com as sociedades de resistência variados tipos de relação. E que não pode ser objeto de nenhum tipo de depreciação valorativa por não possuir entre seus objetivos precípuos – a não ser em casos de exceção - a luta política por melhores condições de trabalho para seus associados. Em outras palavras, entendemos que o mutualismo se constituiu em uma das mais precoces alternativas de organização da sociedade civil brasileira, ao lado das irmandades e das associações filantrópicas – a agregar um número significativo de pessoas com o fim de lhes proporcionar rudimentares auxílios no campo da seguridade social, na ausência de políticas sociais efetivas. Portanto, não se pode cobrar das associações mutualistas aquilo que elas não se propunham a fazer, ou seja, lutar por melhores condições de vida para os trabalhadores, como foi o perfil de muitos sindicatos. Nem se pode também ver as associações mutualistas como desvinculadas ou indiferentes às mazelas que atingiam a maior parte de seus associados. Num quadro de exclusão generalizada e de carências difusas, as mutuais pretendiam ser um modesto canal de suporte e amparo social, além de ser um espaço de sociabilidade e lazer para seus membros. Em que pesem tais conclusões, acredita-se que o fenômeno tenha contribuído para o acúmulo de cultura cívica da sociedade brasileira, apresentando-se como uma das estratégias que os trabalhadores escolheram no enfrentamento e superação de suas

3 dificuldades. E como tal, as associações foram agentes estimuladores do processo de organização da sociedade civil, condição indispensável à consolidação da cidadania brasileira. As associações de socorro mútuo proliferaram largamente no Brasil, sobretudo das últimas décadas do século XIX às quatro primeiras décadas do século XX. A partir da década de 1940, ocorreu um significativo declínio do número de mutuais em razão da implantação, de forma mais efetiva, de políticas públicas de proteção social, sobretudo ao longo do governo Vargas (1930-1945). Tais como as mutuais de outros países, as brasileiras eram muito diversificadas. Algumas se organizavam por etnia, outras por ofício, outras por local de trabalho, algumas não possuíam uma identidade específica. O número de associados é muito variado. As mais destacadas reuniam mais de 2000 associados, outras não chegavam a 100. A quase totalidade de associados era do sexo masculino com idade média entre 15 e 55 anos. Para fazer parte de uma mutual, na condição de associado com pleno direito, era preciso ter uma renda fixa. Portanto, pressupõe-se que dela estariam excluídos os desempregados, trabalhadores informais e os marginalizados em geral. Tal fato fez com que as mutuais fossem também espaços de exclusão, às vezes de gênero, de raça, ou de nível social. Os critérios de exclusão constituíam-se em mecanismos de fortalecimento das identidades de quem estava incluído, a partir da edificação de fronteiras que os separavam daqueles que sequer poderiam ousar fazer parte das sociedades.4 Muitas mutuais eram dirigidas por pessoas bem aquinhoadas, que nem precisavam usufruir dos pequenos socorros oferecidos por elas. Estavam ali com o objetivo de reforçar seu status, de obter honrarias ou de realizar ações filantrópicas, uma vez que muitas delas, além de proverem socorros aos seus associados, ajudavam os necessitados delas excluídos. Coletas eram feitas entre os associados para socorrer aqueles que não faziam parte da mutual, mas demandavam algum tipo de socorro. O “contra-dom” recebido por tais lideranças manifestava-se através do enaltecimento de sua benemerência. Muitas salas de prédios das mutuais recebiam o nome de seus maiores contribuintes e dirigentes mais ilustres. Seus retratos eram estampados nas

4

Para análise mais aprofundada deste aspecto ver: CLAWSON, Mary A. Constructing brotherhood: class, gender, and fraternalism. Princeton: Princeton University Press, 1989, p. 45 e 46.

4 paredes e era comum receberem honrarias nas diversas festividades ocorridas. Dirigir uma mutual era sinal de prestígio. Talvez esta tenha sido a principal razão da pouca renovação dos quadros dirigentes das mutuais estudadas. Muitos diretores permaneciam por longas décadas à frente de tais organizações, não obstante o peso dos cargos, na maioria das vezes, não remunerados. Um pobre ou uma pessoa que dependesse de salário para sobreviver raramente disponibilizaria de tempo para assumir tamanhas responsabilidades. As mutuais festejavam muito5. Promoviam festividades populares visando à arrecadação de fundos. Organizavam sessões teatrais e espetáculos circenses. Muitas dessas festividades constituíam-se nos únicos espaços de lazer existentes para os setores populares em alguns municípios interioranos do Brasil. Daí o seu forte apelo ao público, que respondia participando ativamente de tais promoções. As festas compunham o vasto arsenal simbólico produzido pelas mutuais. Com o objetivo de reforçar suas identidades, demarcando os espaços de inclusão e exclusão, símbolos e rituais eram produzidos, compartilhados e divulgados, atuando como mecanismos de coesão entre diferentes indivíduos, amenizando suas divergências e, desta forma, contribuindo para a longevidade dos grupos. Segundo análises de M. Clawson, boa parte dos rituais compartilhados pelas mutuais provinha da maçonaria e atuava como importantes instrumentos de amenização dos eventuais conflitos entre os sócios, os quais passavam a ser simbolicamente resolvidos.6 Entre os socorros oferecidos pelas mutuais estavam o financiamento de funerais, pensões para viúvas, pequenas coberturas para acidentes de trabalho, auxílio para viagens para o exterior (no caso das mutuais de imigrantes), compra de remédios, entre outros. O atendimento que prestavam se justificava pela ausência de direitos trabalhistas mínimos no Brasil neste período. Como desempenhavam funções que, teoricamente, seriam atributos do poder público, recorriam eventualmente ao Estado exigindo seu auxílio, quando em dificuldades. Muitas mutuais conseguiam receber pequenas subvenções públicas ou isenções de impostos. Mas a participação do Estado era muito pequena em relação às demandas existentes. Interessante é perceber que alguns dos líderes das mutuais dirigiam-se ao poder público cobrando a sua intervenção e alegando que estavam desempenhando funções tipicamente estatais. Na maioria dos casos, não tinham as suas 5

Acerca das festividades ver: BATALHA, Cláudio H.M. et alii (orgs.) Culturas de Classe. Campinas: Unicamp, 2004. 6 CLAWSON, Mary A. op. cit. p. 42, 87 e 96.

5 demandas atendidas pelos representantes públicos, que alegavam não serem as mutuais instituições filantrópicas, pois era mais comum que o Estado subvencionasse tal modalidade de organização. Mas, em estudos anteriores, alertamos para as incertezas que os gestores públicos tinham acerca da real distinção entre filantropia e mutualismo ensejando respostas contraditórias a demandas bem semelhantes.7 A duração de uma mutual era bastante variável. Muitas faliam logo após serem criadas. Outras permanecem até os dias atuais. Tudo dependia de uma boa direção financeira, nem sempre encontrada. As que permaneceram após a introdução de políticas públicas de proteção social se limitaram a ser espaços de sociabilidade e lazer. As que reuniam imigrantes tenderam a ser mais duradouras. O conjunto de trabalhos historiográficos produzidos acerca do mutualismo no Brasil trouxe alguns resultados parciais significativos para a produção de análises comparativas sobre o mutualismo em diversas regiões do mundo8. Através desses trabalhos foi possível perceber que o mutualismo nos principais estados brasileiros teve sua maior expansão entre os anos de 1910 e 1920 e foi contemporâneo ao crescimento das sociedades de resistência, os sindicatos. Após 1930, ocorreu um esvaziamento do movimento mutualista em contraste com o movimento operário-sindical, que tem neste período o seu maior crescimento. Conforme se afirmou, o refluxo do mutualismo relaciona-se diretamente ao advento das políticas públicas de caráter previdenciário e trabalhista, surgidas no Brasil, de forma mais efetiva, a partir na década de 1930.

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VISCARDI, Cláudia M. R. Experiências da prática associativa no Brasil (1860-1880). Topoi, Revista de História. Rio de Janeiro: volume 9, número 16, 2008. 8 Os estudos sobre mutualismo no Brasil são ainda incipientes, embora tenham proliferado muito recentemente. Temos notícias da existência de pesquisas sobre São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Para o caso de São Paulo ver: LUCA, Tânia R. de. O sonho do futuro assegurado; o mutualismo em São Paulo. São Paulo: Contexto, 1990. Para o caso do Rio Janeiro ver: JESUS, Ronaldo P. de. O Povo e a monarquia: a apropriação da imagem do imperador e do regime monárquico entre a gente comum da corte (1870-1889). São Paulo: USP, 2000, tese. e FONSECA, Vitor M. M. No gozo dos direitos civis: associativismo no Rio de Janeiro, 1903-1916. Rio de Janeiro: Faperj e Muiraquitã, 2008. Para o caso do Rio Grande do Sul ver: SILVA JR., Adhemar L.da. As sociedades de socorros mútuos: estratégias privadas e públicas. Estudo centrado no Rio Grande do Sul – Brasil, 1854-1940. Tese de Doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da PUC, Porto Alegre, 2005. Para o caso de Minas Gerais ver: VISCARDI, Cláudia M. R. Mutualismo e filantropia. Locus; Revista de História. Juiz de Fora: EDUFJF, volume 18, 2004 e VISCARDI, Cláudia M.R. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006.

6 Pelos levantamentos estatísticos realizados, em que pesem as deficiências encontradas nos sistemas de mensuração brasileiros, chega-se à média de 5,25% da população associada a algum tipo de mutual.9 Muito embora este percentual de participação seja bem inferior aos índices encontrados para a Argentina, Espanha e Portugal, se comparado ao índice de filiação sindical brasileiro (inferior a 2% da população ativa) ele é significativo. A despeito do pouco número de associados, a importância do mutualismo no Brasil era muito grande. Em uma sociedade civil extremamente desorganizada, as mutuais atuavam como mecanismos quase exclusivos de coesão social. A importância do fenômeno no país pode ser atestada pela sua opção e empenho em sediar o II Congresso Internacional de Mutualidade e Previdência Social ocorrido no ano de 1923, evento que contou com a presença de representantes de vários países e teve muita importância para os contemporâneos, como atesta a documentação pesquisada.10 Em decorrência das pressões advindas dos movimentos sociais, ou resultante da iniciativa estatal, ou, como quer Abram de Swaan - em seu estudo sobre as origens do Estado de Bem-Estar Social na Europa e nos Estados Unidos - fruto da ação política de políticos reformistas no âmbito da burocracia estatal

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, o Brasil assistiu à implantação de

leis de proteção ao trabalhador e à criação de um sistema público previdenciário que, muito embora apresente distorções e limitações, é um dos maiores do mundo. A contribuição das mutuais e das sociedades filantrópicas para a implantação deste sistema é questionável. Não encontramos, até então, indícios empíricos que nos autorize a vincular o advento de políticas sociais às ações das instituições mutuais e/ou filantrópicas, como ocorreu em países como a Inglaterra e a França. Nestes países as mutuais participaram ativamente do processo de estabelecimento do Welfare State. Mas esta é uma hipótese ainda por ser investigada para o caso brasileiro. Em geral, os trabalhos produzidos acerca do mutualismo no Brasil tem se baseado em fontes documentais constituídas pelos estatutos das associações que foram preservados pelos órgãos de registro das mesmas, ou pela imprensa, que ocasionalmente publicava 9

Dados informados por : SILVA JR. op. cit. P. 56. Congresso Internacional de Mutualidade e Previdência Social, 1923 – II – 231, 5, 19, n. 3. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. 11 SWAAN, Abram. In care of the state: health care, education and welfare in Europe and the USA in the modern era. Cambridge: Polity Press, 1988, p. 9. 10

7 extratos destes mesmos estatutos ou divulgavam as atividades de tais associações. Muito embora tais modalidades de fontes nos forneçam um retrato muito útil do perfil de cada mutual, a proliferação de estudos regionais, com base em documentação mais ampla, legada pelas próprias sociedades, poderia nos oferecer um olhar diferenciado sobre o cotidiano das mesmas, enriquecendo sobremaneira as análises. Com o olhar voltado para este horizonte, apresentaremos ao leitor uma análise sobre uma das mais importantes mutuais de Juiz de Fora: a Associação Beneficente dos Irmãos Artistas, acerca da qual encontra-se disponível vasto material empírico, raramente encontrado acerca de tal modalidade de agremiação social.12 Com este fim, inicialmente voltaremos um breve olhar para a análise geral do mutualismo mineiro. Em seguida, focaremos especificamente a Associação citada.

Mutualismo e Filantropia em Minas Gerais

Em razão das diferentes temporalidades em que se processou a ocupação do território mineiro, as regiões mais antigas foram as pioneiras em abrigar as mutuais. Tal como se deu na cidade do Rio de Janeiro, em Minas Gerais o fenômeno associativo iniciouse na primeira metade do século XIX. Mas só atingiria seu ápice entre as décadas de 1910 e 1920, em regiões de ocupação mais recente. As pesquisas que desenvolvemos na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro apontaram para a emergência, já em 1832, de uma associação com características beneficentes em Ouro Preto - a “Sociedade Promotora da Instrução Pública” - como o próprio nome diz, voltada para incentivar seus associados e familiares a se instruírem. Data também de 1832, em Campanha, sul de Minas, a “Sociedade Defensora” e em Sabará, a fundação da “Sociedade Cultora da Religião e Sustentadora da Lei e da Liberdade”13. Muito embora não tenha sido possível acessar os estatutos de tais

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As fontes relativas à Associação Beneficente dos Irmãos Artistas encontram-se organizadas e disponibilizadas no Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. O conjunto documental é composto de correspondências, estatutos, relatórios, fichas de cadastro de sócios, documentos contábeis, entre outros. 13 Dados obtidos em: AZEVEDO, Manuel de Moreira. 1832-1903 – Sociedades fundadas no Brasil desde os tempos coloniais... Revista Trimestral do Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico do Brasil, Tomo XLVIII – Parte II, 1885, p. 307 e 313.

8 associações, a sua existência neste período indica a emergência de um processo laico de organização da sociedade civil mineira em período semelhante ao do Rio de Janeiro. Na década de 1860 surgiram outras associações, a exemplo da “Sociedade Beneficência Mineira”, a qual encontrava-se voltada para conceder auxílio aos estudantes.14 Pelo que foi possível averiguar, a primeira associação mutualista criada em Juiz de Fora foi a Sociedade Alemã Beneficente, de 1872, a qual reunia imigrantes germânicos que vieram para a cidade atuar na construção da Rodovia União e Indústria. A primeira mutual não étnica do município data de 1885, persistindo até os dias de hoje. Chama-se Sociedade Beneficente de Juiz de Fora. Pelo que foi possível aferir até agora, a primeira mutual criada na região em que seria construída Belo Horizonte data de 1891, a “Associação Beneficente Tipográfica”. A primeira mutual étnica da capital mineira data de 1897 e era conhecida como “Sociedade Italiana Beneficente de Mútuo Socorro”, provavelmente reunindo os imigrantes italianos que atuaram na construção da nova capital.15 Um quadro estatístico composto em 192316 apontou para a existência de 2610 associações, de diferentes modalidades, em Minas Gerais. Entre elas, 178 eram de “cooperação econômica de classe e ação social” , ou seja, sindicais e mutuais. Tais associações reuniam 36.000 membros, num momento em que o estado possuía em torno de seis milhões de habitantes. 17 Considerando o número de homens adultos entre 15 e 55 anos existentes no período, chega-se há um pouco mais de 1,5 milhão de potenciais associados, entre os quais, aproximadamente 2,4% integrava uma das duas associações ou ambas. Somando-se o percentual de associação às demais instituições existentes no estado, o total de associados correspondia a 30% da população adulta masculina de Minas Gerais, número superior as expectativas relativas ao período.

Sociedade Beneficência Mineira – Estatutos, Rio de Janeiro, Typ. da Opinião Liberal, 1869. Conforme informações que constam em: DUTRA, Eliana de F. Caminhos operários nas Minas Gerais. São Paulo: Hucitec, 1988, p. 115 e 216 e FARIA, Maria Auxiliadora e GROSSI, Yonne de S. A classe operária em Belo Horizonte: 1897-1920 In: V Seminário de Estudos Mineiros: A República Velha em Minas. Belo Horizonte:UFMG, 1982. p. 183. 16 O ESTADO de Minas Gerais: Fatos e Números coordenados para a Carta Comemorativa do Primeiro Centenário da Independência Nacional, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1923. 17 Para este cálculo só dispúnhamos dos dados relativos ao ano de 1920. Muito embora o número de associações se refira a três anos depois, trabalharemos com dados aproximados. ESTADO de Minas Gerais, Minas Segundo o Recenseamento de 1920, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1924, p. 271 e 272. 14 15

9 Concentrando os estudos sobre Juiz de Fora fizemos um levantamento das associações e as dividimos com base em suas modalidades específicas.18 Muito embora a classificação possa conter deficiências, a experiência com as fontes demonstrou ser ela a mais adequada. Com base nesta divisão, foi feito o levantamento que apresentamos a seguir. Quadro 1 – Associações de Juiz de Fora (1850-1934)

MODALIDADE

NÚMERO

PERCENTUAL

Ofícios

63

26,8

Patronais

15

6,38

Filantrópicas

54

22,97

Étnicas

25

10,63

Mistas e Regionais

6

2,55

Literárias e Lazer

24

10,21

Científicas

12

5,10

Seguradoras

36

15,31

235

100

FONTES: Este levantamento foi feito ao longo de dois anos, através de pesquisas na imprensa local e no Arquivo Histórico da Prefeitura de Juiz de Fora. 19

O gráfico abaixo ilustra melhor os dados que constam na tabela acima.

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São as seguintes: ofícios (categorias profissionais, trabalhadores em geral e ex-escravos), patronais (comerciantes, empresários, fazendeiros), filantrópicas (leigas e religiosas), étnicas (imigrantes e comemorativas), mistas (mutuais gerais), regionais (por estado ou por cidade), lazer (dramáticas, recreativas e desportivas), literárias e de instrução, científicas e seguradoras (montepios,caixas previdenciárias e cooperativas). Devo esta divisão ao pesquisador Ronaldo Pereira de Jesus (UFOP), com o qual integrei um projeto de levantamento das mutuais do Rio de Janeiros, projeto este financiado pelo CNPq. 19 Agradeço a colaboração dos bolsistas de iniciação científica: Fernando Perlatto Bonjardim, Paola Lili Lucena, Horácio R. Batista Silveira e Lílian Salber Souza e Silva, que atuaram no início deste projeto.

10

150 100 50 0 Ofícios

Patronais

Filantrópicas

Étnicas

Mistas

Literárias/Lazer

Científicas

Seguradoras

Como se pode notar, as associações de ofício eram as mais numerosas em Juiz de Fora, o que se explica pela concentração, ao longo do período, de pequenas manufaturas e fábricas a agregar um volume significativo de trabalhadores no município.20 Destaca-se igualmente o número grande de associações filantrópicas e de seguradoras. A intensa religiosidade local, expressa pela concentração de protestantes, espíritas e católicos, fez com que muitas instituições fossem criadas com vistas ao socorro aos que ficavam à margem deste processo de industrialização. 21 Quanto às seguradoras, houve um aumento de seu número a partir da aprovação da lei contra acidentes de trabalho, tal como ocorreu em outras regiões do Brasil. Muitas empresas contrataram seguradoras ou as criaram para o cumprimento da referida lei. Notase, porém, uma progressiva diminuição de seu número com o passar do tempo, em razão de falências consecutivas.

20

Acerca do movimento operário em Juiz de Fora ver: ANDRADE, Silvia M. B. Vilela de. Classe operária em Juiz de Fora; uma história de lutas. Juiz de Fora: EDUFJF, 1989. e ALMEIDA, Mateus F. de. O movimento operário em Juiz de Fora na Primeira República. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005 – dissertação. 21 Para o estudo da religiosidade e da filantropia ver, respectivamente: MIRANDA, Beatriz V. Dias e PEREIRA, Mabel S. (orgs.) Memórias eclesiásticas: documentos comentados. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2000 e PINTO, Jefferson de A. Velhos atores em um novo cenário: controle social e pobreza em Minas Gerais na passagem à modernidade, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2004. Dissertação.

11 Destaca-se também um número significativo de mutuais étnicas. A cidade recebeu muitos imigrantes, que se associaram com vistas ao reforço de sua identidade, à proteção mútua e à promoção de atividades de lazer.22 Quanto ao grande número de associações literárias e de lazer explica-se pelo dinamismo cultural da cidade, seu grande número de escolas, teatros, espetáculos musicais, dentre outros, financiados em grande parte pelos recursos advindos de uma dinâmica economia cafeicultora.23 Feitas essas considerações de caráter geral acerca do mutualismo e de sua relevância para o estado de Minas Gerais, faremos agora uma análise mais verticalizada sobre uma das mais importantes mutuais de ofício de Juiz de Fora, a dos Irmãos Artistas.

Os Irmãos Artistas

A Sede

A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas foi fundada em Juiz de Fora no dia 15 de maio de 1908, com 25 sócios, e se estabeleceu na cidade como uma das maiores e mais importantes mutuais. Como a grande maioria delas, se definia como mais uma organização cooperativa que oferecia amparo aos associados. Para todos os sócios, que desempenhassem seus deveres e se mantivessem em dia com os compromissos da Associação, lhes era conferido o direito de receber como socorro tratamentos médicos e farmacêuticos, pensões em dinheiro ou auxílio para o funeral. Para cada uma dessas eventualidades uma série de normas deveria ser seguida para garantir o bom funcionamento das coberturas. Para que o atendimento à saúde fosse possível, a Associação contratava médicos e mantinha contas em farmácias, que atuavam como fornecedoras dos medicamentos. Estavam excluídas de assistência médica: doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis, ou doenças previamente existentes. No caso dos tratamentos médicos e 22

Para um estudo mais recente sobre os imigrantes de Juiz de Fora ver: BORGES, Célia M. (org.) Solidariedades e conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora, Juiz de Fora: Ed.UFJF, 2000. 23 Acerca do dinamismo cultural de Juiz de Fora ver: CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. A "Europa dos Pobres": a Belle-Époque mineira. Juiz de Fora: EDUFJF,1994.

12 farmacêuticos o serviço era prestado somente na sede social da Associação, devendo ser as visitas médicas e as prescrições devidamente autorizadas pela diretoria. A alguns membros eram oferecidas pensões mensais que se distinguiam com base nas diferentes modalidades de associação. Aos sócios remidos e contribuintes cabia uma pensão menor do que a paga aos beneméritos, benfeitores e protetores. Em casos mais delicados ou graves, como alienação mental ou doenças incuráveis, a Associação se dispunha a contribuir por até três meses, em cada ano, com pensões ligeiramente maiores. Se a necessidade extrapolasse tal período, o socorrido deveria migrar para a condição de “sócio inválido”, categoria em que os sócios ficavam isentos de qualquer contribuição com a Associação e continuavam a receber mensalmente um pequeno pecúlio, também proporcional à modalidade de associação. O conselho administrativo se encarregava de averiguar cada caso e dar o parecer necessário. No que diz respeito à outra atividade muito típica das mutuais, o auxílio funeral, a Associação Beneficente dos Irmãos Artistas oferecia para a família do sócio, que houvesse falecido e estivesse quite com a entidade, quantia mais que suficiente para cobrir as despesas necessárias. O oferecimento de qualquer cobertura era apreciado pelos membros da diretoria e, caso não fosse possível, a responsabilidade era transferida para uma comissão de beneficência pré-estabelecida. A administração da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas era feita por um conselho administrativo composto por doze membros, que exercia a função pelo prazo de um ano. Cabia ao conselho assumir todas as tarefas previstas pela Associação, o que tornava o trabalho pesado e cansativo e causava desinteresse por parte de muitos sócios em assumir tais encargos. O conselho administrativo era amparado em suas funções pelas comissões de sindicância e beneficência, compostas de três membros cada, eleitas já na primeira sessão do conselho. O órgão máximo da Associação era a sua Assembléia Geral, a qual se tratava da reunião de todos os sócios quites com seus compromissos. A Assembléia era convocada pelo presidente do conselho administrativo, através de publicações nos principais jornais do município. Nela era igualmente eleito um conselho fiscal composto também de três

13 membros. Em casos de necessidade, era permitido ao conselho administrativo estabelecer outras comissões, de caráter temporário, para tratar de assuntos que não cabiam às demais. Todas as deliberações se davam através de eleições, nas quais todos os associados em dia com seus compromissos votavam por escrutínio secreto. Nota-se que tal prática constituía-se em um avanço em relação às práticas eleitorais da Primeira República, onde o voto era a descoberto e os analfabetos não podiam votar. Assumir a presidência de uma associação era desgastante. Por outro lado, ocupar tal cargo rendia ao individuo certa importância social, uma vez que seu nome era propagado e respeitado entre a população da cidade. Tal como afirmado anteriormente, muitos presidentes de mutuais permaneciam no posto por vários anos, o que se aplicou também ao caso da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. Antonio Scanapieco tornou-se um nome de grande identificação com a mutual, assumindo a presidência no ano de 1921 e lá permanecendo até 1938, quando passou o cargo para José Teixeira da Silva Sobrinho. Como se não bastasse todo esse tempo na liderança, Scanapieco voltou à presidência em 1945 e lá permaneceu até a extinção da entidade. Fazia parte do conjunto de preocupações das mutuais brasileiras a construção de uma sede própria para o desenvolvimento de seus trabalhos. Tão logo fossem criadas, faziase um esforço para a compra ou construção de uma sede. Acreditamos que tal empenho servisse aos interesses das mutuais em mostrarem-se sólidas, para que novos trabalhadores se tornassem sócios, ampliando a sua longevidade. Interessante que no Reino Unido tal esforço era muito raro. As mutuais reuniam-se em bares (os pubs) e tais ocasiões funcionavam também como alternativas de lazer para seus membros. Apenas as que tinham uma identidade religiosa ou que se relacionassem às ligas pró-temperança reuniam-se em igrejas ou em outros ambientes que não fossem os bares.24 Mas esta não era a realidade brasileira. Tal como muitas mutuais, a dos Irmãos Artistas interessava-se muito pela construção de sua sede própria. Em 1909, ou seja, após um ano de existência da sociedade, foi adquirido um terreno de onze mil metros, localizado na Avenida Rio Branco, principal

24

Para o caso inglês ver: GOSDEN, P.H.J.H. The Friendly Societies in England (1815-1875), Manchester, 1961 e GOSDEN, P.H.J.H. Self-Help: Voluntary Associations in XIX Century Britain. London, 1973. Uma abordagem mais recente pode ser encontrada em CORDERY, Simon. British Friendly Societies, 1750-1914. New York, Palgrave Macmillan, 2003.

14 avenida do município, com vistas à construção posterior do prédio. Como a sociedade iniciava-se em suas atividades, não possuía recursos para a compra, tendo que contrair um empréstimo. Antes da construção da sede, a Associação funcionava em sala alugada, junto a uma loja maçônica, a Fidelidade Mineira. Os relatórios informam que para a construção do prédio que abrigaria a Associação várias iniciativas foram tomadas, mobilizando ativamente todos os sócios. Com o apoio de políticos da região, do governo do estado de Minas Gerais, de lideranças prestigiosas do município, da venda de tômbolas e obtenção de empréstimos, a Associação dos Irmãos Artistas conseguiu arrecadar os recursos necessários para a obra. Para tal fim foi contratado o construtor Jacob Kneip em setembro de 1925. Com muitas dificuldades, mas grande esforço dos associados, a nova sede ficou pronta e foi inaugurada no dia 7 de outubro de 1927.

Os Sócios

Para que um sócio fosse admitido na Associação Beneficente dos Irmãos Artistas algumas especificações a mais deveriam ser atendidas. Era vetada a filiação de deficientes físicos e indivíduos com doenças crônicas ou incuráveis, circunstâncias que impossibilitavam o trabalho. Não havia proibição nos primeiros estatutos para filiação de mulheres. No entanto, o conselho administrativo da Associação, ao discutir o tema, deliberou por não aceitar a presença de sócias do sexo feminino, por serem elas “incompatíveis com os serviços pecuniários da Associação”, ou seja, não estavam no mercado de trabalho e não tinham como pagar suas mensalidades.

25

Conforme falado

anteriormente, os Irmãos Artistas definiam como critérios de exclusão o gênero e a renda. Na reforma estatutária de 1947 a associação de mulheres foi vetada, embora se tenha comprovação empírica da admissão de duas delas três anos depois. As propostas de admissão deveriam ser feitas por sócios que estivessem em dia com seus direitos sociais. Para os menores de 21 anos o pedido de filiação deveria vir

25

Na década de 1940, provavelmente em razão da necessidade de ampliação do número de sócios, as mulheres passaram a ser aceitas, pois constavam duas sócias na documentação analisada, ambas empregadas domésticas.

15 acompanhado de declaração dos pais ou responsáveis, dando ciência das responsabilidades dos proponentes e garantindo sua sustentabilidade enquanto sócio, caso fosse necessária. Conforme referido acima, dentro do quadro efetivo eram seis as possibilidades de qualificação dos sócios: fundadores, contribuintes, remidos, honorários, beneméritos, benfeitores e protetores. Os sócios fundadores eram aqueles que haviam participado do primeiro trimestre da fundação da Associação. Ocupavam uma posição simbólica muito representativa, devido a sua ligação histórica com o projeto de criação da sociedade. Os sócios contribuintes eram legalmente admitidos quando contribuíam, no momento da admissão, com quantias previamente estipuladas para o pagamento de uma jóia, do diploma e de algumas mensalidades pagas em adiantamento. Os sócios remidos encarregavam-se de um investimento inicial mais significativo para que pudessem obter a remissão de suas mensalidades, além dos investimentos com as jóias e diplomas. Os remidos se constituíam no maior número dos associados, isso porque também eram considerados remidos os sócios beneméritos, protetores e benfeitores. Além disso, os contribuintes com mais de cinco anos na Associação também podiam remir-se de suas contribuições, mediante o pagamento dos devidos custos. Outra alternativa para os contribuintes alcançarem o título ou as regalias dos remidos era propondo quarenta ou mais sócios. Os sócios honorários eram aqueles responsáveis pelos donativos ou serviços estimáveis prestados à Associação. Já os beneméritos deveriam ter servido na administração durante três anos consecutivos, feito doações significativas, prestado serviços inestimáveis ou repassado benefícios para a Associação que tivessem significativo impacto financeiro. Estas ações eram mensuradas em valores correntes, diferenciados em cada contexto vivido pela Associação, e fundamentados em seus estatutos. A expressão “prestação de serviços inestimáveis” era muito relativa e dificilmente poderia ser transformada em números. Tal deliberação cabia à Assembléia Geral. Ademais, conforme afirmamos em trabalho anterior:

Os chamados beneméritos eram os que despendiam contribuições significativas para a associação e não precisavam usufruir das

16 benesses conferidas aos demais associados. A vantagem residia no status ou no reforço de seu poder junto à comunidade. 26 Seguindo a relação dos sócios, os benfeitores eram os contribuintes ou remidos que fizessem doações de quinhentos mil réis ou angariassem para a Associação benefícios de setecentos mil réis. Poderia ainda ser considerado benfeitor o sócio que recebesse distinção, através de serviços profissionais ou científicos prestados à mutual, se assim considerados pela administração. Poderiam ser sócios protetores pessoas que não fizessem parte da Associação, desde que favorecessem no desenvolvimento, na prosperidade e no engrandecimento da mesma, através de serviços contínuos a ela prestados. Outra alternativa seria doar ou prestar serviços no valor de um conto de réis. O líder político e presidente do estado de Minas Gerais, Antonio Carlos, se enquadrava nessa categoria da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas por ter lhe doado grandes quantias. Com o fim de traçarmos um perfil dos associados, nos utilizamos de algumas fichas de sócios, disponíveis no conjunto documental relativo à Associação. Mas tais fichas só foram criadas – ou estiveram disponíveis – apenas após 1919, ou seja, quando a Associação já contava com onze anos de funcionamento. Ademais, dos 318 sócios fichados, 48 não declararam profissões, o que corresponde a aproximadamente 15% da amostra. Em que pesem tais empecilhos, acredita-se que o levantamento ilustre bem o perfil de associados. Analisando as fichas, percebe-se de imediato um grande número de profissionais tecnicamente qualificados para o desempenho das mais variadas funções, como pedreiros, pintores, funileiros, eletricistas, alfaiates, açougueiros, etc. Como Juiz de Fora se constituía em dinâmico polo urbano no período, tais profissionais contariam sempre com oportunidades de trabalho, que lhes permitiria o pagamento das mensalidades da Associação. Para melhor apreensão do perfil de sócios, os agrupamos em sete categorias, ao longo de quatro das quase cinco décadas de existência da Associação. O resultado obtido é apresentado no quadro abaixo:

26

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro & JESUS, Ronaldo Pereira. A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil. In: A Formação das Tradições (1889-1945). Col. As Esquerdas no Brasil, Vol. 1. Jorge Ferreira (Organizador). P. 29

17 Quadro 2- Perfil Profissional dos Sócios da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas

DÉCADAS

1919-1928

1929-1938

1939-1948

1949-1958

TOTAL

Setor de serviços

32

55

61

37

185

Funcionários Públicos

3

4

1

3

11

Assalariados Industriais

14

12

4

2

32

Proprietários

2

9

0

5

16

Autônomos

3

0

2

1

6

Curso Superior

6

9

3

1

19

Estudante

0

0

0

1

1

Não declarado

26

12

10

0

48

TOTAL

86

101

81

50

318

Percebe-se que a maioria dos sócios possuía profissões eminentemente urbanas, ligadas ao setor de prestação de serviços. Entre essas destacava-se a de comerciários. O segundo grupo mais importante era formado pelos operários das fábricas da cidade. Com base no quadro pode-se igualmente afirmar que a Associação dos Irmãos Artistas era composta por profissionais que detinham algum conhecimento técnico, capaz de qualificálos para o mercado de trabalho, e que, na época, eram conhecidos pelo termo “artistas”, que nomeava a sociedade. Desta forma, a maior parte da sociedade era formada por trabalhadores – assalariados ou não – pessoas simples, mas que podiam contar com certa renda mensal capaz de assegurar-lhe, minimamente, o futuro. Numa sociedade eminentemente complexa, composta por diferentes camadas sociais heterogêneas, os Irmãos Artistas conseguiam agregar um setor da população trabalhadora tecnicamente qualificada, por possuir minimamente uma profissão. Para calcularmos o número médio de associados tínhamos três caminhos a escolher. O primeiro era nos basear nas fichas de inscrição que forneceram os dados acima. Tal escolha foi descartada, a partir da constatação de que nem todos os sócios foram fichados pela secretaria da Associação. O segundo caminho seria nos basear nos dados divulgados pela imprensa. Tal opção foi igualmente descartada, quando percebemos que tais dados eram superestimados, provavelmente com o fim de demonstrar ao grande público uma pujança da Associação, que de fato ela não possuía. Em algumas reportagens fala-se da

18 existência de 600 a 700 sócios, número jamais atingido pela mutual. Restou-nos então nos utilizar dos números contidos nos relatórios anuais, muito embora tenhamos tido acesso a todos eles. Ao mesmo tempo, nem todos os relatórios aludiam ao número de sócios, gerando algumas lacunas. Em que pesem tais problemas, acreditamos que os números obtidos sejam bem próximos da realidade vivida pela Associação. O quadro e o gráfico abaixo ilustram os dados obtidos:

PAREI AQUI Quadro 3- Número de Sócios da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas – 1921- 1950

PERÍODO

MÉDIA DE ASSOCIADOS

1921- 1925 1926-1930 1931-1935 1936-1940 1941-1945 1946-1950 Média Final

Anos 1921 1922 1923 1924 1925 1926 1927 1928 1929 1930 1931 1932 N0

117

210

225

211

208

227

225

354

363

397

397

393

Anos 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939 1940 1946 1947 1948 1949 1950 N0

395

438

402

302

302

316

316

219

Gráfico 1 – Evolução do Número de Sócios (1921-1950)

136

137

146

146

134

19

500 400 300 200 100

1950

1949

1948

1947

1946

1940

1939

1938

1937

1936

1935

1934

1933

1932

1931

1930

1929

1928

1927

1926

1925

1924

1923

1922

1921

0

Como se pode notar, entre 1922 e 1927, período em que a Associação teve sua sede construída e, por esta razão, ganhara visibilidade na comunidade, o número de sócios foi constante. Tendo em vista que ela se iniciou com 25 sócios, após treze anos de existência, ela havia mais que quadruplicado o seu tamanho. Observa-se também que, a partir de 1927, inicia-se um crescimento mais considerável de seu número, que teve seu pico em 1934, quando a associação atingiu seu número máximo de sócios. A partir daí o número de sócios entrou em declínio. Tal declínio foi também comprovado a partir dos relatórios financeiros, que apresentavam queda na arrecadação a partir do mesmo período. Quando a Associação encerrou suas atividades, em 1950, ela possuía 134 sócios, um número próximo do que tinha nos anos iniciais da década de 1920. Com base em algumas fichas de sócios disponíveis, foi possível fazer um levantamento da ascendência dos membros através de uma análise de seus sobrenomes. Muita embora tal levantamento possa conter algumas distorções, acredita-se que ele reflita, de maneira bem próxima, a identidade étnica dos sócios. Os dados apontam para um predomínio de sobrenomes portugueses, os quais deveriam ser de brasileiros. Muito embora saibamos, que em 1915, os portugueses formavam a colônia mais numerosa na cidade, eles tinham as suas próprias mutuais e, provavelmente, a elas davam preferência na hora de se associar. Tal informação nos leva a crer que esses sobrenomes pertencessem, de fato, a

20 trabalhadores brasileiros

27

. O segundo grupo com maior número de sócios era os que

portavam sobrenome italiano. É relevante perceber que no período compreendido entre 1949 e 1958 os sobrenomes italianos se apresentaram como os mais numerosos. Tal fato deve estar relacionado à onda imigrantista de italianos, ocorrida ao longo das duas guerras mundiais. Cabe destacar que foi um descendente de italianos, Antonio Scanapieco, quem presidiu a Associação durante longos anos e foi substituído justamente pela administração de outro presidente com sobrenome português. Além de portugueses e italianos também foram encontrados alguns sobrenomes alemães, que apareciam na terceira posição entre as descendências presentes na Associação. Cerca de mil e duzentos alemães, segundo Luiz Antônio Arantes, chegaram na cidade, movidos especialmente pelos empreendimentos da Companhia União Indústria, a construção da rodovia e a instalação da colônia alemã Dom Pedro II em Juiz de Fora28. Mas tal como os italianos e portugueses, havia mutuais alemãs no município, para as quais eles devem ter migrado preferencialmente. E por fim, foram encontrados ainda sobrenomes judeus, mas em quantidade extremamente reduzida. Percebe-se que o conjunto de sócios que integrava a sociedade dos Irmãos Artistas espelhava bem um setor da população urbana de Juiz de Fora, nas primeiras décadas do século XX. A cidade despontava como um pólo econômico, no qual proliferavam atividades industriais e comerciais. Com sua população composta por imigrantes (portugueses, italianos e alemães, em sua maioria) somada aos negros e mestiços, possuía uma ampla força de trabalho que se associou, com base em suas diferentes identidades, em organizações

distintas,

que

embora

mantivessem

relações

entre

si,

atuavam

segregadamente, incluindo uns e excluindo outros. Os Irmãos Artistas expressam bem parte desta comunidade, ao reunir profissionais qualificados, ligados ao setor de serviços, reunindo trabalhadores nacionais ou imigrantes.

27

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Cotidiano dos portugueses Juiz de Fora. In: Solidariedades e Conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora. Célia Maria Borges (Organizadora). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2000. P. 21 28 ARANTES, Luiz Antônio Valle. Conflitos e Empreendimentos: a trajetória de alemães. In: Solidariedades e Conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora. Célia Maria Borges (Org.). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2000. P. 90

21 Sociabilidades

Conforme afirmamos anteriormente, eram muito imprecisas as delimitações entre o mutualismo e a filantropia. Muitas mutuais se definiam como entidades filantrópicas ou beneficentes, muito embora não o fossem. Ao compartilharem valores como o da ajuda mútua, algumas associações tinham dificuldades em limitar tal ajuda aos sócios em dia com os compromissos financeiros previstos pelos estatutos. E acabavam por permitir exceções, tal o nível de amizade e solidariedade entre os seus membros. Outras mantinham ações filantrópicas destinadas àqueles que não tinham condições de se associar, por não terem renda fixa. Na ausência de um Estado provedor de políticas de proteção social, mínimas que fossem, diferentes estratégias de combate à pobreza eram utilizadas ao mesmo tempo, colocando em risco a identidade das mutuais e sua sustentabilidade financeira. Tal era caso da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. Embora seu estatuto não previsse, a Associação manteve desde a década de 1920 uma “caixa de socorros” destinada a fornecer subsídios para aqueles sócios que, por razões estatutárias, ainda não pudessem usufruir dos benefícios previstos e também para os não sócios que fossem necessitados. Para a composição desta caixa, contava com a contribuição voluntária de seus membros ou de membros externos à Associação. Além da “caixa de socorros”, a Associação manteve por breve período uma escola primária, destinada à educação de crianças pobres e um posto de distribuição de auxílios aos pobres em geral. À exceção da caixa de socorros, as demais iniciativas foram abortadas em 1930, quando a Associação deixou de receber subvenções federais, muito embora tais subvenções não fossem destinadas especificamente para tais atividades. Destaca-se que, muito embora a filantropia fizesse parte do conjunto de atividades realizadas pela Associação, assumia um caráter secundário em relação aos seus fins precípuos, que eram os do mutualismo. Era comum a realização de festivais, que eram atividades organizadas com o fim de captar recursos adicionais para o funcionamento da Associação, bem como propiciar o lazer para seus membros. Num período em que as alternativas de lazer eram muito escassas – não havia ainda a TV, os restaurantes, etc – as famílias tinham como única alternativa de diversão a ida às festas, fossem elas religiosas ou leigas. Para este fim as mutuais

22 cumpriram importante papel. As festas eram organizadas ou no Sport Club ou no Cine Polytheama. Para os festivais outras associações congêneres eram convidadas, bem como as autoridades locais. Os festivais eram ocasiões propícias à confraternização de toda a família. Mulheres e filhos poderiam participar. Em tais eventos os mecanismos de exclusão eram flexibilizados, em prol de uma maior integração comunitária. Os festivais incluíam desfiles, acompanhados das principais bandas de música da cidade. Neles se fazia algumas reverências a lideranças locais, aos jornais ou aos sócios ilustres. Eram rituais que contribuíam para o reforço da identidade das mutuais, dos laços de união entre os sócios e do enaltecimento de lideranças prestigiosas. Mas, conforme dissemos, as mutuais eram também espaços de reforço da masculinidade. A expressão do lazer eminentemente masculino se dava através da organização contínua de campeonatos de futebol. Taças eram adquiridas – ou doadas por empresas locais – e campeonatos eram organizados com o fim de angariar fundos complementares e, principalmente de promover oportunidades de lazer. No conjunto de rituais identificados entre os Irmãos Artistas destacam-se a confecção de distintivos de prata, especialmente encomendados às joalherias da cidade, que serviam para identificar os membros da diretoria. Certamente tais símbolos funcionavam como meio de distinção, conferida a determinado número de sócios dela merecedores, pelo alto investimento que faziam na Associação. Outra forma de conferir distinção aos sócios mais abnegados era a nomeação de salas e pavilhões. Os membros da família Saint Clair de Carvalho, Polisseni e Kneip receberam este tipo de homenagem em agradecimento às inúmeras doações que fizeram. A morte desses benfeitores tornou-se ocasião festiva, onde suas qualidades foram exaltadas publicamente. Este foi o caso do falecimento do engenheiro e industrial Saint Clair de Carvalho, em 1947, o qual foi marcado pela inauguração de seu retrato na sede da Associação, em cerimônia da qual participaram cerca de oitenta pessoas, representativas de várias agremiações sociais, do comércio, da indústria e da imprensa local. As distinções estavam comumente relacionadas a comportamentos filantrópicos de destacadas lideranças econômicas ou políticas do município. Mas o altruísmo não era prerrogativa única dos benfeitores ilustres. Os próprios trabalhadores que compunham a Associação dos Irmãos Artistas também podiam ser prestigiados. Em 1922, a “caixa de

23 socorros”, criada para assistir os ”excluídos” da Associação passou a chamar-se “Caixa Antônio Scanapieco”, em homenagem ao seu líder, tantas vezes presidente. Os valores compartilhados pelos sócios deveriam ser continuamente reforçados, não só pelos rituais, pelos estatutos como também pelas imagens. Em 1925, o próprio Scanapieco encomendou uma estátua de um artista do Rio de Janeiro para embelezar a nova sede, após ser concluída. O artista assim descreveu a sua obra: “Terá a mesma 1,50 m de altura, cuja representação será de uma figura de mulher com um manto que cairá da cabeça aos pés, tendo ao colo um menino semi-nu, que é sustentado com o braço esquerdo e com o braço direito em atitude de proteção a outro menino do mesmo lado, em pé. Será este trabalho executado de cimento e areia, com esmerada feitura em grupo harmonioso.” Muito embora as mulheres tenham tido muitas dificuldades em integrar a Associação, a sua representação como mãe interessava aos Irmãos Artistas. No imaginário do período, a idéia da maternidade expressava bem o sentimento que os homens possuíam em relação ao papel das mutuais. A mulher simboliza a proteção, principalmente a mãe, que cuida de seus filhos, dela dependentes. Esta era a mensagem que os Irmãos Artistas queriam compartilhar, a de que a sua Associação era uma mãe a proteger os filhos-irmãos que dela faziam parte. A retratação do menino nu exalta a carência de proteção dos sócios. A relação entre a Associação dos Irmãos Artistas e as outras mutuais da cidade era, na maioria das vezes, pacífica e harmoniosa. Ocorriam visitas mútuas por ocasiões administrativas ou festivas, além do que, ocorria a utilização de recinto alheio por alguma necessidade ou reuniões conjuntas em prol da resolução de algum problema coletivo. Avançando as fronteiras da cidade, constantemente costumavam se encontrar com a Liga Operária de São João Nepomuceno, que se tratava de uma associação de resistência. Conforme afirmado anteriormente, as fronteiras entre o mutualismo e o movimento sindical ocasionalmente podiam tornar-se bastante fluidas. Muitos sindicatos possuíam um setor voltado para a assistência social de seus afiliados, como um mecanismo de atração de novos membros ou para o preenchimento de lacunas deixadas pela ausência da proteção pública. Algumas mutuais atuaram na defesa de interesses dos trabalhadores, somando-se aos sindicatos em suas tradicionais lutas por direitos.

24 Embora o objetivo precípuo das mutuais fosse o da proteção social e dos sindicatos a luta por direitos trabalhistas, como as bases de ambas as associações conviveram durante um certo período de nossa história, dificilmente tais agremiações caminhariam separadamente. O caso dos Irmãos Artistas é bastante ilustrativo deste argumento. A Associação mantinha uma ampla rede de relações que envolvia os sindicatos, os órgãos públicos, outras mutuais, a imprensa e os agentes econômicos locais. O estabelecimento desta rede trazia benefícios diretos para a Associação, como doações e subvenções públicas, e indiretos, como um público amistoso disposto a comprar suas tômbolas, participar dos festivais e demais promoções que serviam para fortalecer os seus cofres. Esta imensa rede de relações extrapolava o município e se estendia às cidades vizinhas. Os “artistas” eram convidados e convidavam inúmeras outras congêneres a participar de celebrações e promoções diversas. Desta forma, não causa estranheza o envio de representantes da Associação dos Irmãos Artistas aos congressos operários, aos congressos de mutualidade, à posse de diretorias sindicais, etc., tão comuns em sua trajetória. Consta que a Associação dos irmãos Artistas integrava a Federação Operária Mineira e contribuía financeiramente com sua manutenção. No entanto, em 1922, a Federação acusou os Irmãos Artistas de não serem uma organização genuinamente operária e de ter fins exclusivamente políticos. Afirmou que a Associação explorava os trabalhadores “mistificando os verdadeiros interesses operários em benefício de homens que a comandam.”29 O ataque havia sido feito através de uma carta, repassada aos Irmãos Artistas pela União Operária. Assim respondeu os membros dos Irmãos Artistas:

''O Art. 99 dos estatutos bem define o nosso fim que é beneficente e humanitário (...) queriam que nós fôssemos ''trabalhistas e populistas”, em virtude a estas calúnias, lavremos o referido protesto (...) labutar contra estas misérias (...) sanando como por enquanto todas as intrigas e infâmias, voltando paz e amor entre esta associação e os membros da Federação Operária Mineira.''30 29

Carta de Bernardino de Moraes, presidente da Federação Operária Mineira à União Operária de São João Nepomuceno de 24 de agosto de 1922. 30 Carta-resposta de Antonio Scanapieco ao presidente da União Operária de São João Nepomuceno.

25

A citação nos faz atentar para o fato de que nem sempre as relações entre mutuais e sindicatos foram marcadas pela cooperação. A fluidez das fronteiras expressava-se também em nível de discurso. Nos primeiros anos de vida dos Irmãos Artistas, os sócios se tratavam como “irmãos”. Por volta dos anos vinte, tratavam-se como “camaradas”. Tal mudança certamente se relaciona à difusão da expressão a partir da vitória dos bolcheviques na Rússia e o impacto que teve sobre os trabalhadores brasileiros. As posses das diretorias da Associação ocorriam sempre no primeiro de maio, ocasião em que ela se somava às festividades dos trabalhadores. Por mais que a Sociedade evitasse se posicionar sobre temas ligados ao direito trabalhista, suas intensas relações com outras associações tornavam tal intenção difícil de ser concretizada. Em 1928, os Artistas foram convocados pela Associação dos Empregados do Comércio de Juiz de Fora a apoiá-los em sua luta pelo fechamento do comércio às 18 horas. Em março de 1930, ela própria teve a iniciativa de convocar todas as associações de Juiz de Fora para uma reunião, na qual elaborariam um ofício pedindo ao presidente de Minas Gerais, na época Olegário Maciel, que tomasse providências, tendo em vista a situação de penúria em que se encontravam inúmeros chefes de família. Em 1931, membros da Associação dos irmãos Artistas somaram-se à outras mutuais e sindicatos da cidade: “no sentido de ser feita, pelas mesmas, um apelo aos Poderes do estado afim de que seja dada uma outra orientação às medidas de economia aqui postas em prática, evitando-se a dispensa em massa de servidores do estado, cuja situação de penúria é notória e, evitando, também e, conseqüentemente, que seja aumentado o número dos sem trabalho, que já é bem grande” 31 Consta também na documentação um pedido endereçado ao Centro Anarquista de São Paulo, no qual os Irmãos Artistas pediam ajuda financeira para o envio de um de seus delegados a um encontro de trabalhadores em Londres. Tal iniciativa denota que a mutual

31

Faziam parte da comissão as seguintes associações: diretorias da Associação Comercial de Juiz de Fora, da Associação Beneficente Portuguesa, da Sociedade Brasileira de Beneficência, da Sociedade Beneficente Italiana, da Sociedade Brasileira Beneficente Alemã, da Associação dos Empregados do Comércio e da União Operária.

26 se sentia como legítima representante dos interesses trabalhistas e era vista desta forma pelos sindicatos e demais associações de resistência. Por várias vezes, sindicatos solicitaram o empréstimo ou o aluguel de sua sede para se reunirem. Um desses pedidos partiu de uma comissão, composta em sua maior parte por sócios dos Irmãos Artistas, que planejava criar o sindicato dos têxteis em Juiz de Fora. Mas nem só de apoio aos sindicatos viviam os Irmãos Artistas. Por mais que tentassem permanecer alheios às injunções políticas, como dependiam de subvenções públicas, eventualmente eram levados a desrespeitar seus estatutos. Artur Bernardes havia doado generoso recurso para a construção da sede da Associação. Em troca, os Irmãos Artistas apoiaram a sua controvertida candidatura presidencial em 1922. O mesmo comportamento político se dava em relação a Antônio Carlos, sócio protetor dos Irmãos Artistas. Em várias ocasiões lhe deram apoio político. Diante deste quadro podemos ponderar que os Irmãos Artistas tinham como pressuposto fortalecer uma rede de relações que lhes favorecessem a expansão e a solidificação de suas atividades. Para este fim, mobilizavam diferentes estratégias, que iam desde o envolvimento em lutas sindicais à cooperação com lideranças reconhecidamente oligárquicas, numa típica relação de troca de favores. Herdeiras que eram de uma tradição paternalista, em um período de rápida introdução de valores individualistas e competitivos, próprios do capitalismo liberal, os irmãos Artistas mostravam-se ambíguos e contraditórios. Em nada este papel desmerece os sujeitos que tanto se mobilizaram em prol do êxito de sua organização. Tratava-se de um comportamento possível, aceitável e previsível em meio ao ambiente cultural em que se inseriam.

Seguridade

Através da análise das atas relativas às sucessões das diretorias, percebe-se em primeiro lugar um desinteresse muito grande da maioria dos sócios em participar, tanto como candidatos como enquanto eleitores. Daí se explica a longa permanência dos mesmos diretores ao longo do tempo. À exceção do tesoureiro e dos cobradores, os demais cargos não eram remunerados.

27 Esta ausência de profissionalização tem sido apontada, por vários estudos sobre o tema, como a responsável pelo progressivo endividamento das mutuais, o que as levava ao fechamento. Mesmo sendo o tesoureiro remunerado para o desempenho de suas funções, faltava-lhe um saber técnico e os instrumentos de cálculo de riscos. O Brasil não possuía estatísticas amplas e confiáveis que subsidiassem análises prospectivas por parte das mutuais. No cálculo dos riscos era fundamental acompanhar de perto as taxas de expectativa média de vida, conhecer as principais causas que levavam às doenças e falecimentos, enfim, informações que possibilitassem às mutuais calcularem o valor de suas mensalidades de forma a garantir a sua salubridade financeira a médio e longo prazo. Como tais informações não se encontravam disponíveis, os gestores atuavam com base em sua experiência prévia, acumulada ao longo dos anos. Mas até que tal experiência fosse longa o suficiente para embasar cálculos futuros, muito tempo havia sido perdido e o risco já encontrava-se bastante avançado. Tal circunstância foi claramente percebida, ao analisarmos a trajetória dos Irmãos Artistas. Primeiramente a Associação endividou-se para poder construir a sua sede própria. Em que pesem os juros pagos regularmente aos credores, a Sociedade ainda tinha recursos para manter o pagamento dos benefícios aos sócios, sem ter que majorar suas contribuições. Mas teve que vender a sua “Biblioteca Internacional de Obras Célebres”, adquirida em 1922, e ampliada com doações incansavelmente solicitadas pelos diretores. Nos anos de 1924 e 1925 o presidente da Associação, Antonio Scanapieco, fez várias menções a uma crise pela qual o Brasil passava, o que não permitia que a situação dos sócios se tornasse melhor. Provavelmente se referia às dificuldades vividas no entreguerras, dificuldades essas que levariam à crise de 1929. Ademais, foi no decorrer dessa década que as seguradoras proliferam e as mutuais começaram a perder espaço, situação em que a competição capitalista superava a cooperação32. Para agravar a situação, quase 50 sócios foram expulsos, entre 1925 e 1926, por falta de pagamento de suas devidas taxas. Conforme referido anteriormente, desde 1922, a Associação dos Irmãos Artistas recebia uma subvenção federal, obtida por Antônio Carlos, quando este era Senador por Minas Gerais. Por intermédio do próprio Antônio Carlos a intendência municipal VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Mutualismo e Filantropia. In: Lócus – Revista de História. Juiz de Fora: Departamento de História/ Pós-Graduação em História/ EDUFJF, 2004, Vol. 10, Nº. 1. P. 107. 32

28 igualmente subsidiava a Associação. Em 1930 as subvenções federais haviam sido canceladas em razão da crise econômica de 1929 e da Revolução de 1930. As subvenções municipais foram ainda mantidas por algum tempo. Em artigo de jornal, publicado em 1934, saiu uma relação de instituições que recebiam subvenção da prefeitura municipal de Juiz de Fora. Constam doze entidades, todas elas filantrópicas, à exceção dos Irmãos Artistas. O fato é que era subsidiada, com poucos recursos em relação às demais, mas, pelo que se sabe até então, era a única mutual do município a recebê-los. Tais subsídios municipais escassearam-se ao longo dos anos trinta e em 1935, a Prefeitura negou-lhes o pedido de isenção fiscal. Por esta e por outras razões, a década de 1930 ficou então marcada pelos anúncios de provável falência, caso medidas extremas não fossem tomadas. A década de 1940 marcou o cumprimento da falência anunciada. Em 1945 a Associação teve que vender todo o seu mobiliário para cumprir os mínimos compromissos financeiros, limitados ao pagamento de funerais e alguns serviços médicos. Sua diretoria propôs uma forte campanha para aumentar o quadro social e uma modificação do estatuto, que visava a abrir a possibilidade de aumentar as contribuições dos sócios e reduzir a carta de benefícios oferecidos, sem saberem ao certo se tais medidas resolveriam ou não os problemas financeiros da mutual. Segundo os diretores, as mensalidades encontravam-se muito baixas em relação aos benefícios proporcionados aos sócios. Em 1947, Scanapieco falava que a mensalidade paga era menor do que o custo de uma entrada para um jogo de futebol ou de uma cerveja. Sem entender muito as razões que teriam levado à eminente bancarrota, Scanapieco acusava os gestores anteriores pela falta de empenho e compromisso. Certamente os problemas não derivavam de tais mazelas, mas do desconhecimento dos pares acerca dos riscos anunciados, agravados pelo envelhecimento dos primeiros sócios, que passavam a demandar da Associação seus recursos outrora investidos. Para a resolução paliativa dos problemas, nova hipoteca foi feita sem que a sociedade conseguisse abater dívidas anteriores. Limitava-se a pagar os juros para manter o crédito. Além disso, em 1948 tornou-se obrigatória a confecção de carteiras de identificação de sócios, como uma estratégia de prevenção de eventuais fraudes, o que desagradou a muitos sócios, que recusaram-se a enviar suas respectivas fotografias.

29 Tal medida restritiva não se adequava bem aos valores de solidariedade e ajuda mútua que haviam sido responsáveis pela criação e expansão dos Irmãos Artistas. Mas os problemas financeiros vividos pela Associação exigiam comportamentos mais racionais por parte de seus gestores, os quais acabaram por esvaziar o caráter solidário da agremiação, aproximando-a do modelo das seguradoras. Tal fenômeno não ocorreu somente com os Irmãos Artistas. O historiador inglês Simon Cordery destaca que à medida que as mutuais inglesas avançavam rumo à profissionalização de suas estruturas, diminuíam os gastos com a sociabilidade, o que conferia às mutuais uma maior racionalidade capitalista e o abandono progressivo das relações paternalistas, próprias dos momentos de sua criação.33 Outra expressão das mudanças que estavam ocorrendo revelava-se através da rejeição de alguns sócios das visitas domiciliares, que eram feitas por diretores da Associação nos períodos em que demandavam ajuda por estarem doentes, em suas casas ou nos hospitais. No início da Associação, as visitas ocorriam com freqüência, sem que houvesse reclamações contra as mesmas. Provavelmente, eram vistas como manifestações de solidariedade, em momentos de fragilidade vividos pelos sócios. Ao final da década de 1940, tais visitas eram criticadas e mesmo rejeitadas, certamente por terem assumido um caráter mais fiscalizador, o que rompia com a tradição solidariamente construída pelos sócios. Com o fim de evitar um naufrágio completo, conforme narravam as atas, os Irmãos Artistas tentaram fundir-se com outras mutuais, numa estratégia última de preservar parte dos direitos de seus sócios. Após inúmeras tentativas frustradas, conseguiram, no ano de 1950, fundir-se com a Associação Ítalo-Brasileira Anita Garibaldi, uma associação cultural que também oferecia assistência jurídica e dentária para seus 120 sócios. Para lá levaram a sua sede, seus 134 sócios e suas dívidas. Nas cláusulas do acordo de fusão estavam previstas a manutenção de todos os direitos de seus sócios e a manutenção do nome da sede e dos nomes de suas salas, os quais faziam referências aos grandes contribuidores da Associação. Além disso, previa-se a manutenção da “caixa de socorros” aos pobres.

Considerações Finais

33

CORDERY, Simon. op. cit.p. 107 e 145.

30 Através destas breves páginas, foi possível acompanhar a trajetória de uma mutual que,

em

nosso

entendimento,

expressa

muito

tipicamente

experiências

outras

compartilhadas por outras agremiações congêneres no Brasil. A forma como se organizaram, os valores que compartilhavam, o perfil de seus associados, suas práticas ritualísticas e de lazer, suas estratégias de construção e afirmação de identidade, seus problemas financeiros e suas relações com o Estado ilustram bem o cotidiano das mutuais brasileiras. Dada esta ausência de relações mais freqüentes entre mutuais e sindicatos e o caráter predominantemente assistencial das mutuais, que razões justificariam a afirmação, feita no início deste artigo, que a mutualização teria contribuído para o processo de formação da classe trabalhadora? Acreditamos que o processo de formação da classe trabalhadora incluiu, entre outras práticas, a criação de espaços sociais compartilhados, o acúmulo da experiência associativa – em seus mais diversos níveis – as vivências administrativas, os experimentos jurídicos, o assembleísmo, o amadurecimento do debate político, a promoção de festividades, a comunicação escrita e verbal, os contatos com as autoridades locais, entre outras. Acreditase que todo esse conjunto de experiências presentes nas vivências mutualistas contribuiu para a formação de uma cultura cívica. Além do que, as mutuais foram espaços de consolidação e/ou estabelecimento do sentido de pertencimento, da crença no poder da associação, elementos essenciais à organização da sociedade civil brasileira. Cabe ainda destacar como a mutual em questão expressava as ambigüidades do período de transição que vivia o Brasil nas primeiras décadas do século XX. Este período, marcado pela predominância de uma cultura política oligárquica, encoberta pelos preceitos doutrinários do liberalismo, por um lado, incentivava a formação de uma cultura cívica, manifesta pela proliferação do associativismo. Por outro, mantinha intactos os valores políticos paternalistas, que pré-existiam no país. As mutuais ficavam a meio caminho entre uma prática e outra. Ao mesmo tempo em que eram organizações de direito privado, que cultivavam valores de autonomia por parte da sociedade civil com o fim de resolver seus próprios problemas (self help), atuavam no reforço de valores tradicionais, como o da troca de favores, o do enaltecimento de lideranças oligárquicas ou o do paternalismo em relação aqueles que se encontravam excluídos da agremiação. Ao mesmo tempo, reforçaram, pela

31 via da exclusão, valores como o da masculinidade, da boa saúde, da moral e dos bons costumes e do trabalho qualificado com renda fixa. Em que pesem tais ambigüidades, as mutuais prestaram importante colaboração no lento e contínuo processo de construção da cidadania no Brasil.

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