O NARCISISMO E A SUPERVALORIZAÇÃO DA IMAGEM: A BELEZA COMO FONTE DE PERDIÇÃO NAS OBRAS \"O RETRATO DE DORIAN GRAY\", DE OSCAR WILDE, \"ECHO, NARCISSUM\", DE OVÍDIO, E \"O ESPELHO\" DE MACHADO DE ASSIS

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O NARCISISMO E A SUPERVALORIZAÇÃO DA IMAGEM: A BELEZA COMO FONTE DE PERDIÇÃO NAS OBRAS "O RETRATO DE DORIAN GRAY", DE OSCAR WILDE, "ECHO, NARCISSUM", DE OVÍDIO, E "O ESPELHO" DE MACHADO DE ASSIS. Jurandir Lima dos Santos1 Quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. (DEBORD 1997, 18).

RESUMO: “Contemplando seu reflexo nas águas de uma fonte límpida, Narciso apaixona-se por si”. Assim nasce Narciso para a cultura ocidental por intermédio das Metamorfoses de Ovídio. Sem dúvida a versão mais conhecida. Tal mito abriu a possibilidade de inúmeras outras obras ao longo da historia literária possibilitando varias outras simbologias. Dessa forma, a proposta deste trabalho é analisar as representações do narcisismo e a supervalorização da imagem como fonte de perdição nas obras "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, "Echo, Narcissum", de Ovídio, e "O Espelho" de Machado de Assis. Propõe-se, num primeiro momento, através de uma analise literária, abordar o conceito de narcisismos destacando os principais traços presentes dessas obras e, mais adiante, analisar também as varias semelhanças convergentes intertextuais entre as obras a fim de compreender como se constrói a caracterização da figura narcisista e a exaltação de beleza. Palavras-chave: Supervalorização da Imagem, Narcisismo, Reflexos, Duplicidade.

O conceito de narcisismo, no campo da psicanalise, parte da ideia de um sujeito que se admira excessivamente tratando o seu corpo da mesma forma pela qual o corpo de um objeto sexual. Tal definição foi primeiramente apresentada pelo psicólogo francês Alfred Binet em 1857. O termo depois foi apresentado por Havelock Ellis, em 1898, em observações clinicas sobre mulheres que contemplavam, de modo perverso, sua imagem no espelho aludindo ao mito de Narciso. Porém, a definição apresentada por Paul Näcke em 1899, foi a primeira a ser abordada no campo da psicanalise que evidenciava um estado de amor por si mesmo. Proveniente de uma referencia do mito de Narciso, cuja versão mais famosa é a de Ovídio em Metamorfoses2, o termo “narcisismo” deriva-se de Narciso (do grego “narke”) personagem da mitologia grega que quer dizer “entorpecido”, de onde também deriva-se a palavra narcótico. Desse modo, famoso pela sua beleza e orgulho para os gregos, Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade, uma vez que, era emocionalmente entorpecido às solicitações daqueles que se apaixonavam pela sua beleza. Essa característica narcisista, na visão de LOWEN (1983), “indica uma perturbação da personalidade caracterizada por um

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Graduando do nono semestre do Curso de Letras com Habilitação em Língua Inglesa, pela UNEB Universidade do Estado da Bahia, Campus-II, Alagoinhas-BA 2 As Metmorfoses (Livro III, 339-510, 756-762 d.C.), de Ovídio (711-771 d.C.)

investimento exagerado na imagem da própria pessoa à custa do eu” sendo assim, perde-se o contato com o seu ser interior buscando o reconhecimento no outro. Ainda nesta mesma linha de considerações FREUD (1914) acrescenta que a pessoa não reconhece o seu eu, senão através do contato idealizador do outro. Em 1914, a partir de observações clínicas, Freud formulou o conceito de narcisismo em seu texto “Introdução ao Narcisismo”, como uma etapa normal do desenvolvimento infantil. Sendo assim, para o autor, um bebê é um exemplo do mais puro narcisismo, pois, tanto a mãe quanto o mundo estão ali apenas pra satisfazê-lo. O que nos leva a constatação de que, em algum momento de nossas vidas, temos um grau de narcisismo. Ora em fases iniciais, ora no amor de seus pais para os filhos no que Freud reconheceu como “revivescência e reprodução do seu próprio narcisismo há muito abandonado” (FREUD, 1917, 25), ou seja, narcisismo renascido e transformado em amor objetal. O mito de Narciso nos remete a uma reflexão dos perigos que se pode ter quando alguém é prisioneiro da sua própria imagem. Narciso é alguém que busca a imagem como identificação e ao se apaixonar por sua imagem no momento que se ver refletida nas aguas prateadas, enfrenta um drama de não amar nem o outro, no caso nenhuma das ninfas, como também, não amar a si próprio o que Alexander Lowen chamou de “características narcisista à custa do eu”. Perdendo o contato com o seu "eu” o indivíduo, busca no outro o reconhecimento, uma vez que, o seu "próprio eu" não reconhece sem a imagem idealizadora do outro. Segundo Mariani (2008), “o narcisista costuma trocar o amor pela imagem” agindo, ainda de acordo com o autor, “como uma espécie de espectador de si mesmo, mas geralmente não se dá conta disso”. Assim, quando Narciso contempla a sua imagem refletida e essa imagem é uma reprodução dele próprio, o que está em questão ali é o “eu” representado pelo outro, ou seja, ele é a realidade e ilusão: um corpo verdadeiro enamorado pelo corpo refletido. Este aspecto também é comentado por Freud quando o autor comenta que esse “Eu” enfatizase sobre a forma do “Outro”. Assim, é muito indicativo para o próprio narcisismo se levar em consideração principalmente no dialogo de Narciso e a ninfa Eco, onde Narciso só recebe do outro o seu próprio eco, ou seja, ele lida com os outros como se os outros fossem espelhos refletindo aquilo que vem do outro sendo ele próprio não conseguindo ver a beleza no outro que não o espelhasse. Esse aspecto fica ilustramente percebido na musica de Caetano: Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto chamei de mau gosto o que vide mau gosto, mau gosto é que Narciso acha feio o que não é espelho e a mente apavora o que ainda não é mesmo velho nada do que não era antes quando não somos mutantes (VELOSO, 1978)

Nas palavras de Platão (1999 apud Martins, 2008) Narciso “procurou a verdade onde não cabia alcançá-la; buscou a essência no mundo das aparências (simbolizado no lago)”, dessa forma, prisioneiro da sua imagem, Narciso morre ocupado na "interminável contemplação do seu reflexo". Para Gaston Bachelard3 “a água no qual Narciso se contempla, serve para naturalizar a nossa imagem” por isso, ao olhar sua imagem refletida na agua, o próprio Narciso tem a revelação da sua dualidade e da sua identidade. Ele, Narciso, sente que a sua formosa beleza continua que não está concluída e, sendo assim, precisa conclui-la. É nesse momento, quando Narciso contempla sua imagem no espelho d’água na fonte, que nasce o “narcisismo idealizante”. Ainda na visão do autor, quando Narciso olha para si mesmo no reflexo da fonte projeta a si mesmo sendo o seu reflexo a sustentação da sua identidade. Do mesmo modo, Freud define essa imagem perfeita de si mesmo como ‘eu ideal’ ou seja, o indivíduo “fixa um ideal em si mesmo, pelo qual mede seu eu real” (Freud, 1914, p. 100). Nessa duplicidade4 o espelho aprisiona o que seria um segundo mundo que lhe escapa, no qual Narciso ao se ver refletido não pode se tocar pois está separado por uma ilusória distancia que pode diminuir quando o mesmo tenta abraça-la, mas não transpor já que se trata de um duplo onde a imagem refletida pelo espelho d’água é o “outro” refletindo naquilo que Narciso quer ver em si. Sendo assim, quando não há mais possibilidade de enxergar, perceber ou visualizar o “eu”, o espelho aparece, nesse contexto, como uma possibilidade de visualizar esse “eu”. Narciso morre por que olha apenas pra si mesmo enquanto Eco morre por que só olha pra Narciso configurando assim, um dos perigos em projetar a nossa razão de viver no outro. Narciso caracteriza a capacidade de olhar para nós mesmo, Eco, o olhar do outro assim como a imagem refletida na fonte. O personagem do romance de Wilde também ilustra essa questão de constituição do sujeito a partir do significante vindo do Outro. Propondo-se a retratar Dorian Gray e a sua extraordinária rara beleza num quadro em tamanho real, Basil, ao conclui-la, apresenta ao jovem a sua obra prima. Nesse momento o jovem sente-se fascinado por si mesmo levando-o num golpe da exaltação narcísica: “A sensação da sua própria beleza surgiu no seu íntimo como uma revelação. Até então, nunca tivera plena consciência dela”.5 Dorian se da conta da

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BACHELARD, Gaston, 1884-1962. A água e os sonhos : ensaio sobre a imaginação da matéria / Gaston Bachelard ; [tradução Antônio de Pádua Danesi]. - São Paulo : Martins Fontes, 1997. - (Coleção Tópicos) 4

Levando-se em conta o duplo como um reflexo do “eu” e do “outro”,

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WILDE, 2000, p 20

totalidade da sua beleza, fato esse, que ate então jamais tinha reparado. Ele se olhava no quadro tal como fazemos num espelho. Na visão do pintor, Dorian era um jovem onde a sua bela aparência "era dons dos deuses".6 Na trama, Dorian se envaidece tanto com a sua beleza a ponto de desejar que a mesma fosse eterna, que se tornasse fixa igual ao seu quadro levando-o a fazer um pacto sórdido de si mesmo com a pintura. Nas palavras de Dorian ele daria a sua própria alma afim da realização desse desejo:

Que tristeza!- murmurou Dorian.- Que tristeza!- repetiu, com os olhos cravados na sua efígie- Eu vou ficar velho, feio, horrível. Mas este retrato se conservará eternamente jovem. Nele, nunca serei mais idoso do que neste dia de junho... Se fosse o contrário! Se eu pudesse ser sempre moço, se o quadro envelhecesse!... Por isso, por esse milagre eu daria tudo! Sim, não há no mundo o que eu não estivesse pronto a dar em troca. Daria até a alma! (WILDE, 1980, 36)

Funcionando como um espelho onde ele podia mirar-se todos os dias, e somando a isso, os comentários do seu amigo Lord Henry Wotton que o inflavam através de seus belos discursos sobre a beleza imensurável do jovem, Dorian começa a ficar obcecado pela sua própria beleza. Essa imagem serve como um espelho para que Dorian possa perceber uma beleza que ate então era presenciada pelos outros a sua volta. Nesse contexto, vemos uma relação com a experiência de Narciso que se apaixona pela própria imagem espelhada num lago. Assim com Narciso, o jovem Gray no decorrer da narrativa passa pelo drama da dupla personalidade aqui enfatizada no quadro. Esse duplo será sempre o outro, porém, muito mais misterioso. Se no mito de Narciso esse duplo, esse outro eu, era a imagem refletida na lagoa, em Dorian Gray, o seu duplo (o outro eu) estará representado no quadro. Sendo assim, esse contraste do jovem entre o belo e o horrível: Dorian representa o belo e o seu duplo (o retrato) representa o contraste, o horrível. Esse outro eu (o retrato) na medida em que o jovem Gray for se corrompendo com as superficialidades do mundo, este assumirá um aspecto assustador. Contrario a narrativa de Narciso que ao vê sua própria imagem refletida na lagoa e consequentemente enamora-se por ela, o despertar da sua plenitude de beleza no jovem Gray tem muita influencia do seu amigo Basil. Esse despertar influenciado nos discursos do seu amigo sobre beleza começa a se apoderar do jovem Gray perturbando-o e sendo assim, fazendo-o refletir sobre a sua vida. Alguns desses diálogos assemelham-se muito da narrativa de Narciso: “Um homem pode ser feliz com qualquer mulher, desde que não a ame”,7 também encontrada na descrição de Basil sobre a beleza “que a sua beleza seja de tal ordem que a Arte 6 7

WILDE, 2000, p. 17 WILDE, 2000, p 119

não pode exprimi-la (...) toda a paixão do espírito romântico, toda a perfeição do espírito que é grego”8. Ainda em contraste com Basil, percebemos aqui uma semelhança a jovem Eco já que o pintor é fixado narcísicamente em Dorian da mesma forma que Eco por Narciso. É interessante aqui ressaltar que o retrato do jovem Gray só passa a refletir a sua alma apos o mesmo ter rejeitado a jovem Sibyl Vane. E, além disso, após ter matado o seu amigo Basílio Hallward que o duplo de Dorian passa a se agravar monstruosamente. Em contraste com Narciso, o mesmo era incapaz de ter sentimentos profundos o que é uma das características do narcisismo encontradas no romance de Wilde. Eles ficam auto investidos, sem conseguirem investir em relacionamentos externos e excluem tudo e todos que não seja a si próprio. Tratam o outro apenas como um mero objeto. Essa característica narcisista, a exemplo do jovem Gray, e aqui reforçada na teoria de Alexander Lowen, costuma agir como um espectador de si mesmo trocando o amor pela imagem. Na narrativa o jovem Gray troca o seu amor por Sibyl e de uma experiência afetiva mais profunda com Basil pelo amor a própria imagem. A pessoa narcisista se idolatra e pode esperar isto dos outros também, ou seja, que os outros continuem a exaltá-la sempre. Essa supervalorização da imagem por parte do narcisista gasta muita energia na manutenção dela acarretando efeitos arrasadores e por que não dizer, destruidores. Para Sousa (2008) Narciso adorou a sua imagem até que foi consumido pela chama da paixão morrendo assim, de amor por si próprio. Dorian se assemelha a Narciso não só pela sua maravilhosa e esplêndida beleza externa, mas também por carregar dentro de si um egoísmo muito grande. A grande diferença dos dois é que Narciso ao se enxergar refletido nas aguas não teve a menor chance de voltar atrás. Por outro lado, Dorian teve inúmeras chances de se redimir, pois passou por uma vida inteira antes do seu fim. Cabe aqui expor que, tanto Narciso quanto Dorian Gray não era apaixonado por si próprio, e sim, pela sua imagem. O jovem Gray preferiu a sua própria imagem refletida no quadro, que servia como um espelho da sua alma, a qualquer outro objeto, recusando dessa forma o amor. Vale notar a contribuição de Freud que diz respeito a esse objeto:

Quando o objeto se torna fonte de sensações prazerosas, produz-se uma tendência motora que busca aproximá-lo do Eu, incorporá-lo ao Eu; fala-se então da “atração” que o objeto dispensador de prazer exerce, e diz-se que se “ama” o objeto. (...) Não dizemos que amamos os objetos que são úteis à conservação do Eu; enfatizamos que temos necessidade deles, e expressamos algo referente a um outro tipo de relação. (Freud, 1914, p. 55)

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WILDE, 2000, p 10

Percebemos então que o jovem Gray amara a beleza, mas a beleza superficial e extrema de tudo o que possuía. Ele nunca conseguiu admirar e enxergar a verdadeira beleza, pois tinha uma preocupação exorbitada com a imagem trocando o contato com o outro pela fixação dele mesmo. Essa exaltação da beleza narcisista destaca-se na narrativa. Basílio Hallward enaltece tanto o Dorian a ponto de compara-lo ao rosto de Antoníoo9 e da própria invenção da pintura à óleo uma das duas grandes marcas importantes no mundo. Nas palavras de Basil "um trabalho de qualidade, é a melhor obra da minha vida"10. Já Dorian, é narcísicamente fixado na contemplação da sua própria beleza. Ele é dominado por ela tornando-se, a partir do outro, aprisionado à sua própria imagem. E só apos o jovem Gray, um adolescente amedrontadamente tímido, inocente no seu simples terno, que posava como modelo para Basil, ter trocado sua alma num suposto pacto com o Diabo em favor do seu narcisismo, é que ele realmente se torna um Lorde narcisista insensível a suas emoções. Tudo começou por causa da sua beleza. Por ser exuberantemente belo e por escolher usar isso de forma egoísta. Igualmente a Narciso, a bela imagem do jovem Gray só lhe trouxe maldição e desgraças e consequentemente seu fim. Outro aspecto que devemos levar em consideração nas obras analisadas se da pela descoberta da própria imagem por parte de Narciso e do jovem Gray que os levaram a morte. Dessa forma, podemos estabelecer uma ligação com o texto machadiano no que tange tanto as características narcisistas quanto a busca pela identidade. O conto "o espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana" começa pelo fim. Nele vemos um fascínio pela imagem de forma muito singular onde a imagem que se reflete no espelho configura uma alma externa: aquela que se olha de fora pra dentro. Jacobina em seu relato de experiências passadas diante de um duplo no espelho afirma a existência dessas duas almas: interior e exterior. Destacando a contribuição dos autores como FREUD (1914), MARIANI (2008), LOWEN (1983) entre outros, quanto às características e conceitos narcisistas aqui abordados, tal experiência de Jacobina levou-o ao apagamento da sua alma interior configurando numa crise de identidade. No momento em que foi nomeado alferes, desencadeou assim como em Narciso, um longo processo de transformação de auto amor. Esse amo próprio da figura do alferes acelerase quando o mesmo passa uma estadia no sitio da sua tia, que deixa em seu quarto um espelho

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Antínoo, o favorito do imperador Adriano no qual teve um relação homo afetiva com o mesmo, Sobreviveu ao ataque do leão, porém, navegando pelas águas do Nilo, e de alguma forma ainda misteriosa, Antínoo caiu no rio e afogou-se em 130 d.C. 10 WILDE, 2000, p 10

pelo qual o Senhor Alferes, trajando sua farda, se enaltecia todos os dias. Para o Senhor Alferes “era a melhor peça da casa"11. Esta condição levou-o a aceitar apenas uma das duas almas que o formam o homem. Sua personalidade então deixara de existir permanecendo somente o titulo. Quando sua tia Marcelina parte, o Senhor Alferes sente-se só. Então decide, para acabar com a sua solidão, olhar no velho espelho. No começo, vê a imagem desfocada, mas ao colocar a farda, a imagem passa a se tornar nítida. Ao ficar sozinho, Joaozinho perde sua identidade não conseguindo mais se reconhecer como tal, apenas como o Senhor Alferes. Nesse aspecto vemos que ele não consegue enxergar a sua verdadeira imagem, e sim, a imagem criada pelos outros. Entretanto, não basta apenas vestir a farda. É preciso que o outro o veja e o reconheça como tal, nesse sentido o espelho serve como o olhar do outro que lhe falta. É a sua alma exterior que protagonista precisa para se encontrar no mundo:

Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho... (ASSIS, 1994, p. 85)

O narrador termina dizendo que o melhor remédio que encontrara para acabar com a solidão era, a certa hora do dia, por no mínimo duas horas, se olhar no espelho vestido com a farda patente. Num primeiro momento, quando olhava no espelho, Jacobina via a figura construída pelo olhar do outro. Era a imagem do Senhor Alferes provocador de suspiros e elogios. Esse era o Narciso fardado que o antigo espelho refletia quando mirado por Jacobina. Percebemos então que, o espelho nesse contexto, configura-se como a "alma exterior",12 que é nada mais do que a opinião alheia, a imagem que somos para os outros, narrada por Jacobina. Aparece como uma possibilidade de visualização do eu quando este não existe mais. Sob o olhar do outro a imagem do Senhor Alferes já se fixava em Jaconbina: "o alferes eliminou o homem. (...) ao mesmo tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa (...). era o outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes".13 Nesse processo de esvaziamento da alma, a alma interior entrega-se a imagem do objeto, nesse caso a alma exterior. Na verdade só evidencia o que o narrador relata no conto sobre a existência

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ASSIS, 1994, p 82 ASSIS, 1994, p. 85 13 ASSIS, 1994, p. 82 12

de duas almas: "uma que olha de dentro pra fora e outra exterior que olha de fora pra dentro" podendo essa ultima ser "um espirito, um fluido, um homem, (...) um botão, um objeto"14 seja lá o que for, é algo de muita importância para seu portador. Em seu texto de 1914 sobre Narcisismo Freud argumenta que a escolha do objeto por parte do narcisista é, segundo ele, amar a si mesmo através do semelhante sendo que, esse amor pelo objeto comporta uma parcela, mesmo que mínima de narcisismo. Sendo assim, ainda nas palavras do autor, o eu representa um reflexo do objeto. Nesse aspecto, a pessoa narcisista amará a escolha objetal. Para Freud “a pessoa ama, em conformidade com o tipo da escolha narcísica de objeto”15 e para isso “aquilo que possui o mérito que falta ao Eu para torná-lo ideal é amado”.16

Então tive medo... receei... enlouquecer... Subitamente... lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a... defronte do espelho...levantei os olhos e... O vidro reproduziu então a figura integral, nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. (ASSIS, 1994, p. 84)

Em um determinado momento, quando Jacobina sente-se só no sitio, desprovido da ausência do olhar do outro, a vida do Senhor Alferes vai se esvaziando. Nessa situação, percebe-se que Machado vai retirando também de Jacobina o referencial do outro. Sem essa alma exterior, Jacobina não se sentia nem vivo, nem morto. Sem saber mais exatamente quem é e sozinho, Jacobina, mergulha num caos espiritual. Sua existência, sua alma exterior era agora um vazio. Na ausência do “outro” para enaltecê-lo, para sustentar essa imagem, Jacobina teve que encontrar um “outro” substituto. Essa ideia de se vestir de alferes e de se colocar diante do espelho permitiu-lhe ver-se como o outro realmente o via. Isto foi o suficiente para que a sua “alma” estampasse uma figura nítida:

Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentavame diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despiame outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir... (ASSIS, 1994, p. 85)

Diante disso, e reforçando a noção de narcisismo no qual é caracterizado no amor que temos a nossa imagem e no investimento que damos a ela para sustenta-la passando dos embelezamentos, dos cuidados e da sua supervalorização, fica evidentemente clara essa 14

ASSIS, 1994, p. 81 FREUD, 1917, p. 34 16 FREUD, 1917, p. 34 15

característica em Jacobina que, uma vez investido sob o olhar do outro, trouxe pra si um revivescimento do seu próprio narcisismo. A supervalorização do outro quando Jacobina teve sua nomeação acarretou numa transformação do si pelo olhar do outro. Essa perda da imagem ao espelho se dá em conformidade com o tipo da escolha narcísica de objeto. Tal como Narciso que si via espelhado nas aguas de uma lagoa, tal como o jovem Gray que via sua alma refletir no seu gracioso quadro, Jacobina relaciona-se com o espelho no qual ele se mira. Acredito que nesse contexto podemos configurar uma relação dessas obras mais uma vez com a ideia freudiana de que o narcisismo resulta no retorno ao eu dos investimentos feitos sobre objetos externos17. Ainda nesse contexto, ao mirar-se no espelho apresentando-se como o outro em um mesmo, percebemos que esse reflexo é duplo, ou seja, o seu eu efetiva-se, mas sob a forma do outro. Assim como em Narciso, essa dualidade é ilusória. Para Jorge Luís Borges (1899-1986) essa dualidade no espelho serve para se construir um labirinto no qual passa por um processo de transfiguração entre o real, “O reflexo de teu rosto já é outro no espelho”18 e o ilusório ate confundir uma com a outra “(...) um duvidoso labirinto”19. Essa admiração pela imagem que um transmitiu ao outro e criada pelo seu duplo é um perfeito símbolo de alienação. Quando Jacobina se vê destituído do olhar social do outro, abandonado no sitio e sentindo-se "como um defunto andante"20, vê a paisagem tão familiar tornar-se um pesadelo. Num "impulso inconsciente"21 olhou no espelho a fim de "achar-me dois"22 porém, o mesmo não lhe devolvera senão rastros perdidos e difusos de sua figura. Essa anulação da autoimagem só termina quando, ao olhar-se no espelho e o mesmo reflete, numa relação imagem-objeto, o olhar do outro em si quando esse se ausentara. Em seu outro refletido no espelho "Não era mais um autômato, era um ente animado"23 no qual passava horas trajando sua farda operando assim sua recomposição narcísica. Partindo do principio narcisista, para o texto machadiano, conhecer a si é ser conhecido pelo outro. Jacobina só se reconhece como alferes na fixação de uma imagem construída pela farda. Nessa imagem do homem fardado, seu duplo começa a ganhar forças, retornar à vida, e, ao mesmo tempo, vai restituindo a vida ao rapaz.

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FREUD, 1914, p. 11 BORGES, 1985, p 29 19 BORGES, 1985, p 29 20 ASSIS, 1994, p. 83 21 ASSIS, 1994, p. 84 22 ASSIS, 1994, p. 84 23 ASSIS, 1994, p. 85 18

Considerações Finais.

A exaltação da beleza é destruidora. Jacobina, o jovem Gray e Narciso carregam em si uma maldição que praticamente todos os humanos carregam: a preocupação pela imagem. E na vivencia dessa relação com a imagem onde o que realmente importa é a sua aparência, no modo de se ver pelo outro, a sua essência, a sua alma, acaba ficando em segundo plano. Todos os três textos propostos apresentam uma variante: a imagem refletida no espelho como elemento para configuração da alma externa. Para Dorian, o espelho que revela o seu outro eu é o seu quadro; para Narciso, são as aguas do rio Téspias e para Jacobina é o próprio espelho. O espelho torna se então um elo essencial nessas obras para se descobrir a relação do eu com o mundo funcionando como uma ponte entre o eu e a sua imagem, entre o eu e o outro. Quando olhamos para o espelho, o reflexo que nos apresenta não se trata de nós mesmo e sim de uma imagem refletida, nesse caso, um duplo que se contempla e que também será contemplado. Quando damos preferencia a essa imagem refletida ao invés de escolhermos entre nós mesmo e o duplo, estamos nada mais do que sendo narcisistas amando apenas a beleza externa refletida no olhar do outro. Em razão dessa escolha, tornamos incapazes de amar alguém, apenas nossa imagem, nosso objeto de admiração e prazer. O narcisismo então conduz a uma forma de fascínio em relação à beleza, a uma alta exaltação, a um brilho. Porem, no respaldo dos teóricos aqui fundamentados, devemos considerar que esse fascínio é engodo, ou seja, esse fascínio é altamente enganoso e jamais estarão dispostos a abandonar sua ilusão. Por outro lado, uma dose de autoestima não faz mal pra ninguém, mas de forma exagerada, caracteriza uma forma de narcisismo. Ainda nesta mesma linha de considerações, cabe aqui expor que nenhum dos textos analisados evidenciou o narcisismo de forma positiva (expressado como um simples gesto de autoconfiança ou de autoestima) no qual o mesmo poderia de forma equilibrada traduzir o lado pleno das qualidades humanas. Distante disso ficou evidenciado: (a) uma supervalorização da imagem em detrimento do eu, (b) da ausência de sentimentos e a insensibilidade com os problemas alheios, (c) do fascínio pela imagem, (d) a superexposição de corpos, (e) preocupação em manter a juventude, (f) a preocupação com a beleza. Onde há fascínio há servidão. Dessa forma, conclui-se assim que total é a exaltação da beleza, total será a sua destruição. Ainda vivemos na "Sociedade do Espetáculo" escrita e descrita há muito tempo atrás pelo filósofo francês Guy Debord (1997), onde este criticava essa tal sociedade mediada por imagens.

REFERÊNCIAS

ASSIS, M. de. O espelho. Esboço de uma nova teoria da alma humana. In: ___..Obra Completa, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. v.2, p 80-85. BACHELARD, Gaston. 1989. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. Trad. Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes. BORGES, Jorge Luís. "Os Conjurados". Obras completas. São Paulo: Editora Três, 1985. COSTA, Sueli Aparecida da & CRUZ Antonio Donizeti da. O mito de Narciso e a imagem especular na lírica de Ferreira Gullar. Terra Roxa e outras terras: Revista de estudos literários. Volume 11 (2007) – 1-131. ISSN 1678-2054. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol11/11_1.pdf. DEBORD, Guy. A sociedade do Espetáculo, trad. Estela do Santos Abreu. Rio de janeiro: Contraponto, 1997. FREUD, S. (1917). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. vol. XIV. JESUS, C. M. A flauta e a lira: ensaios sobre a poesia grega e papirologia. SOUZA, Cleonice Fatima de. O Avesso da Alma em The Picture of Dorian Gray: duplicidade e metamorfose. Monografia (Graduação em Letras) – Faculdades Integradas Mato-Grossenses de Ciências Sociais e Humanas Souza, Cleonice, 2008. ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Plotino: um estudo das Enéadas. 2. ed - Porto alegre: EDIPUCRS. 2008. 319 p. (Coleção Filosofia; 134) V. Jabouille 1999, Platão. Íon, Lisboa. WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Martin Claret, 2000.

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