O NARRADOR ENCENADO

July 12, 2017 | Autor: Adalberto Müller | Categoria: Film Studies, Film Theory, Narrative Theory, Ingmar Bergman Films, Machado de Assis
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[texto apresentado no IX Encontro da SOCINE em Porto Alegre – UNISINOS, em
outubro de 2005]

O narrador encenado: Morangos silvestres, Brás Cubas e Lavoura arcaica.
Adalberto Müller

Veja-nos agora o leitor, oito
dias depois da morte de meu
pai, - minha irmã sentada num
sofá, - pouco adiante, Cotrim,
de pé, encostado a um consolo,
com os braços cruzados e a
morder o bigode, - eu a passear
de um lado para outro, com os
olhos no chão. Luto pesado.
Profundo silêncio.

A epígrafe acima, de Memórias póstumas de Brás Cubas, nos revela um
narrador ao mesmo tempo fora e dentro da cena que descreve. Tal é, parece-
me, a mola da relojoaria do romance machadiano. Minha proposta é falar aqui
do uso de um procedimento narrativo no cinema que se aproxima deste: a
aparição do narrador, de forma explícita, na figura de um ator. Sabemos que
os filmes de ficção pressupõem a presença de um narrador, e que sua
manifestação pode se dar de duas formas: a) o primeiro tipo é aquele que se
esconde nos efeitos de montagem, como um narrador implícito, fundindo-se
aos eventos narrados, de forma invisível e distanciada, ou deixando ver
suas marcas estilísticas – câmeras aberrantes, montagem acelerada, etc); b)
o segundo é aquele em que o narrador se deixa ver através de um personagem
(protagonista ou secundário), que de alguma forma "conduz a montagem",
direcionando a câmera, ou manifestando-se através de sua voz (over ou off)
em alguns momentos do filme (geralmente no começo e no fim): é o caso de
filmes como Apocalypse now, ou o início do filme Morangos silvestres.
Nesse caso, vemos a imagem de Isak Borg/Viktor Sjöström , e, em over,
ouvimos sua voz, assumindo a narrativa. Notamos que as imagens acompanham o
que ele diz. Mas na verdade, ele assume apenas parte da narrativa, já que
devemos considerar que, juntamente com a narrativa de Borg, assistimos ao
desenrolar de uma narrativa que extrapola seu domínio (como a aparição da
sua empregada). Devemos atribuir a um outro narrador, o narrador implícito
(ou meganarrador) a articulação dos planos (som e imagem) e,
conseqüentemente, a articulação da narrativa do próprio Borg, embora haja
em muitos casos a coincidência da narrativa ótico-sonora do narrador
implícito com a narrativa off e os gestos de Viktor Sjöstrom. Mas quando
Borg sai da biblioteca, deixando a sala vazia, sua voz permanece, mostrando
uma curiosa dissociação entre ele e o meganarrador (cf. GAUDREAULT & JOST,
1990).
Isso nos coloca diante da necessidade de distinguir, usando e
ampliando a terminologia dos estudos literários, entre:1) ele-narrante
(meganarrador, sempre "invisível") x eu-narrante (Isak Borg); 2) ele-
narrado (eventos, descrições, diálogos) x eu narrado (Isak Borg). O
importante aqui é não perder de vista o fato de que em filmes como este, do
ponto de vista da temporalidade, e do espaço, há uma coincidência entre os
domínios do Narrante e o Narrado (todos são idênticos, já que a narrativa
se coloca no presente).
No sonho de Isak as coisas mudam de figura: eu narrante e o eu
narrado se dissociam no tempo e no espaço, embora sejam representados pelo
mesmo ator, de tal forma que se pode dizer que agora o que sabemos do eu
narrado depende fundamentalmente do eu narrante (daí porque as imagens
adquirem essa característica de sonho, através do uso de alto contraste e
de uma cenografia surrealista).
Diferentemente do sonho, costuma-se criar o efeito de recordação no
cinema através da troca de atores. Ou seja, normalmente, numa narrativa de
primeira pessoa, o eu narrante e o eu narrado são encenados com diferentes
atores (um mais velho, outro mais jovem) ou com uma mudança de maquiagem ou
de cenografia. Essa troca de atores, ou de maquiagem, serve justamente para
marcar a distância temporal característica das narrativas de primeira
pessoa.
Nas imagens da primeira recordação, junto aos morangos silvestres,
Isak (eu-narrante) retorna ao passado, e vê as coisas como elas eram do seu
ponto de vista. Até o momento em que vemos surgir a imagem da prima, trata-
se de um filme convencional, no que diz respeito à relação eu-narrante/eu-
narrado. Mas quando vemos, no contracampo, que Isak permanece tal qual é –
como se ele se transportasse para o passado com seu corpo – passamos a ter
uma situação insólita. O eu-narrante faz um retorno no tempo, e ele aparece
como eu-narrado.
O curioso é que observamos duas atitudes de Isak-narrador: no plano em
que ele contracena com a prima, ele tenta falar com ela (o que parece mais
insólito), e não é ouvido, nem visto. No plano em que ele entra até a sala
de jantar, ele se esconde, com medo de ser visto. No entanto, sabemos que
ele não pode ser visto. A que se deve aparente inocência de Isak, do
narrador? Sabemos que ele se recorda justamente de cenas que ele não
presenciou no passado, e que agora tenta reconstituir. Tudo se passa aqui
como se, ao voltar a cenas do passado que ele não presenciou, ele sentisse
um certo receio, por estar invadindo (e mostrando) uma parte da vida que
não lhe pertence. Ele é um intruso no passado dos outros, e assim é que ele
se sente. Vemos, assim, que essa inocência de Isak esconde um "comentário"
muito sutil do meganarrador, que diz respeito não aos eventos em si mesmos,
mas ao modo de narrá-los – não ao passado em si, ao tempo, mas à forma de
representá-los para o espectador.
Em Brás Cubas, de Julio Bressane, temos a presença de um narrador
encenado cuja atitude é não apenas reflexiva, mas francamente irônica, e
até mesmo satírica. Para pensar esse narrador, temos que ir além da
narratologia, e pensar a própria questão teatral envolvida na produção do
filme. Sabemos que muitos dos atores de Brás Cubas fizeram parte do elenco
da trupe O Asdrúbal Traz O Trombone, cujo modo de pensar/fazer teatro
incidiu diretamente sobre o filme de Bressane. Já nos primeiros planos do
filme, vemos Luis Fernando Guimarães desenvolver um personagem com o qual
ele próprio se confunde, seguindo aquela máxima do Asdrúbal: o ator se
transforma em personagem, ele joga com suas características físicas,
utiliza-as como elemento essencial na construção do personagem. Também é
possível ver no modo de atuação dos atores de Brás Cubas o "aspecto de
ensaio", a descontração, numa cena que se constrói na medida em que a
vemos.
Mas existe uma característica do Asdrúbal que se casa perfeitamente
com o romance de Machado de Assis, e que Bressane explorou muito bem: a
interlocução com o espectador. Para o Asdrúbal, a conversa com o público na
boca de cena era uma maneira de ironizar o próprio espetáculo teatral, em
desmistificá-lo. No filme de Bressane, vemos várias vezes o narrador se
dirigir de alguma forma ao espectador, seja através dos olhares diretos
para a câmera, ou dos olhares indiretos. Muitas vezes, a ironia incide
sobre o modo de recitar o texto, modificando o ritmo das frases, colocando
pausas indevidas, ou até mesmo gaguejando, como se o texto não tivesse sido
bem decorado. Esses artifícios do ator são acompanhados pelos diferentes
enquadramentos e movimentos de câmera. Bressane raras vezes apresenta o seu
narrador encenado "diretamente", às vezes ele coloca apenas o nariz de Luis
Fernando Guimarães no quadro; outras, faz ele recitar como se fosse um
apresentador de programas de tevê; outras, cria um "giro de câmera"
equivalente ao "giro" da frase machadiana.
Veja-se, por exemplo, o modo, como Bressane traduz o capítulo de
Eugênia, aquela moça por quem Brás tem uma queda, mas de quem se afasta ao
descobrir que é coxa. Quando descobre que a moça é coxa, Brás abre a boca
de espanto e se encosta numa palmeira, com a câmera baixa observando o seu
longo silêncio, situando-se abaixo de seu rosto. Imaginamos a frase de
Machado, "Por que coxa, se bonita, porque bonita, se coxa". O plano
seguinte demonstra esse aspecto irônico e cruel de Brás Cubas em relação a
Eugênia: ao acelerar a velocidade, Bressane faz com que todos se pareçam
coxos, inclusive o próprio narrador. Há aqui uma leitura bastante criativa
do significado do narrador machadiano, que explora o aspecto ridículo das
pessoas, mas que se torna ele próprio ridículo, ao fazê-lo.
Em Lavoura arcaica, Luiz Fernando Carvalho empregou uma espécie de
mosaico narrativo, em que todos os personagens são ao mesmo tempo
personagens e narradores. Ele se baseou no princípio de Artaud segundo o
qual um ator pode ser ao mesmo tempo o personagem que vive o drama e o
narrador que reflete sobre o drama que vive. No início do filme, Pedro
(Leonardo Medeiros) narra ao irmão André (Selton Mello) a reação da mãe
depois que André fugiu de casa. Ao mesmo tempo em que ele dialoga-narra,
vemos que parte de sua narrativa é traduzida em imagens, dentro de um
procedimento que Gaudreault (1990) chama de "narrador secundário" ou
"delegado" (ou seja, a narrativa falada de Pedro se transforma em narrativa
ótico-sonora, que vai como que narrando outra história a partir do que ele
conta, com a voz de Pedro mantendo-se off). O diretor explora aqui o duplo
contido no texto de Raduan Nassar, que ora tem a feição de diálogo, com uso
de imperativos e anafóricos, ora é pura narrativa. Nota-se também que nem
sempre uma narrativa textual implica na tradução correspondente em imagens,
permanecendo verbal (como a narrativa sobre a reação do pai).
Quando a câmera muda para André, veremos que ele também irá conversar
com Pedro através de uma nova narrativa, na qual relata a fé que tinha na
infância, fé que mais tarde ele irá perder. Seremos conduzidos novamente a
uma narração delegada, na qual veremos a distinção temporal entre o Eu-
narrante, interpretado por Selton Mello, e o Eu-narrado, interpretado por
um menino. O jogo com a luz solar desempenha um papel narrativo secundário
na trama das imagens, compondo o amanhecer e o despertar, que é também um
despertar para um mundo justo e ordenado por um Deus confiável, que vence o
reino das sombras, das paixões, das revoltas. É o deus da claridade da
razão, do pai, em suma, da tradição contra a qual André se rebela, e em
função da qual se tornará o filho pródigo.
Na seqüência seguinte, veremos o menino André levantar-se, e a imagem
subjetiva de alguém soprando um dente-de-leão enquanto se desloca, e
novamente Selton Mello narrando para o irmão, e falando sobre o aspecto
oculto da claridade e da luz em sua existência: é da luz, da ordem e da
razão que virá o desespero e a revolta de André. Observe-se que a
articulação entre a narrativa de André (narrador encenado) e a narrativa
delegada (ótico-sonora) não é explicativa, e sim metafórica: vai criando um
texto sob o texto, um palimpsexto, no qual também vai se desconstruindo a
luz da razão, e vai se fermentando o germe da revolta, que brota no
esplêndido close do olho de André soltando uma lágrima.
Na seqüência seguinte vemos uma cena do baile campestre. na qual André
– aparentemente mais jovem - está olhando Ana dançar, encostado num tronco
de uma árvore. Subitamente, a imagem escurece: são as mãos da mãe de André
cobrindo seus olhos. Passamos do rosto de André (lembremos que essa imagem
está sendo narrada por André ao irmão Pedro na pensão) a uma imagem dele de
costas (um dublê de Selton Melo), sobre a qual se projeta a voz off de
André, mas agora narrada não por Selton Melo, mas sim por Luiz Fernando
Carvalho.
Na seqüência seguinte, veremos uma discussão entre Pedro e André, na
qual se despertará o discurso virulento de André, marcado por uma
interpretação na qual Selton Mello entra numa espécie de transe artaudiano.
Mas esse transe é interessante não apenas pelo tom, e pela altura da voz,
que traduz a série de impropérios que constituem o "estouro" no texto de
Nassar, mas porque mais uma vez a fala de André se consitui como duplo:
discurso e narrativa. A narrativa, no entanto, é hipotética, se coloca como
possibilidade, no futuro. Aqui, novamente, teremos a alternância entre a
narrativa de André e a narrativa delegada (ótico-sonora). Mas observa-se
aqui um aspecto novo e interessante. Assim como a fala de André, através da
colocação da voz e dos gestos, traduz a idéia de violência, de estouro,
assim também, na narrativa ótico-sonora, a montagem rápida, os movimentos
tensos de câmera, traduzirão estilisticamente essa idéia de estouro. Há
aqui uma espécie de orquestração muito armada entre a fala de André (ora
direta, ora off) e as imagens da narração ótico-sonora, na qual o ritmo da
fala e do trabalho corporal de Selton Mello será articulado num contraponto
ou contracanto visual/sonoro na narrativa delegada. Não é à toa que a
crítica ressaltou o aspecto operístico de Lavoura Arcaica.
Tanto mais operístico será esse trecho na medida em que vemos a
utilização de parte da fala de André dentro da narrativa delegada,
proferida pelos outros atores ("Ele nos abandonou"). Na verdade, o diretor
aproveita do texto essa característica "lírica", por assim dizer, na qual
dentro de uma mesma frase se colocam vozes em dueto, ou em terceto, ou em
coral, fazendo com que a própria linguagem adquira o caráter duplo de
discurso e narrativa, típico do discurso indireto livre, no qual se
confunde também a voz do narrador e do personagem.
É justamente através dessa forma anfíbia ou ambígua que é o discurso
indireto livre que devemos tentar compreender a tessitura narrativa de
Lavoura Arcaica, sobretudo quando se usa o jogo entre o narrador encenado e
a narrativa delegada (visual/sonora). Vemos que isso é particularmente
interessante no momento que surge na narrativa de André o discurso do Pai,
que é representado, na narrativa delegada, por Raul Cortez. Podemos ver
aqui como o discurso indireto livre se transforma naquilo que Pasolini
chamava de "Subjetiva indireta livre", sendo que aqui essa passagem se
efetua pela articulação entre as imagens da narrativa ótico-sonora e o
discurso do narrador encenado (André-menino/eu narrado estendendo os braços
para o pai x André (Eu-narrante) estendendo os braços para Pedro. Observe-
se que esse paralelismo narrativo cria um paralelismo semântico, segundo o
qual Pedro nada mais é do que um duplo do pai, da ordem, da razão, contra a
qual André se rebelou, e diante do qual agora se prostra, como anjo caído.
Quando voltamos à imagem do passado com a voz de Carvalho, novamente o
jogo narrativo irá sofrer mutações, agora com a passagem da voz de Carvalho
para a voz de Raul Cortez. Luz. Calma. Ordem. Tanto na narrativa ótico-
sonora quanto na narrativa off.
Aos usar um narrador curioso e inocente em Morangos Silvestres, um
narrador intruso e irônico em Brás Cubas, e, ao encenar uma verdadeira
polifonia narrativa em Lavoura Arcaica, com destaque para a narrador
ambíguo interpretado por Selton Melo, Bergman, Bressane e Carvalho criam
sentidos insuspeitados entre a trama narrativa e a função do narrador
dentro (e fora) da cena, devendo a interpretação desses filmes passar antes
de mais nada pela função que desempenham tais narradores. A hipótese deste
trabalho também diz respeito à função do ator e da concepção dramática
dentro de um filme. Ao contrário do que dizem teorias clássicas da
montagem, nem sempre é a ordem dos planos que determina o sentido do filme.
A escolha de um ator, de um estilo de interpretação, enfim, de tudo o que
diz respeito ao teatro, é por vezes tão mais ou muito mais importante na
feitura e na significação de um filme que os efeitos de montagem. Ou talvez
se tenha que pensar num conceito expandido de montagem – muito além de
mesas e de ilhas.

Bibliografia:
GAUDREAULT, André. & JOST, François (1990) Le récit cinematographique.
Paris:Nathan.
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