O narrador que (não) estava lá: um estudo de Eva, de Germano Almeida

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O narrador que (não) estava lá: um estudo de Eva, de Germano Almeida Audrey Castañón de MATTOS1

Resumo Neste artigo analisa-se o narrador do romance Eva, de Germano Almeida, partindo-se das concepções de Silviano Santiago acerca do narrador pós-moderno. Segundo Santiago, esse narrador se caracteriza por um movimento de distanciamento em relação ao objeto narrado, por interessar-se pelo outro e não por si, narrando não a sua experiência, mas a de outrem. No romance Eva, publicado em 2006 e inserido no contexto da chamada pós-colonialidade literária – o que autoriza considerá-lo também sob o prisma da estética pós-moderna – o narrador, além de usar a primeira pessoa, confessa-se amante e confidente da personagem protagonista, o que parece contrariar a posição de Silviano Santiago. Entretanto, a despeito desses dois aspectos pessoalizadores, o narrador mantém-se distanciado e fala dos eventos como se os observasse da periferia. O presente artigo procura demonstrar como se desenvolve esse procedimento e, ainda, relacioná-lo com a tematização de aspectos centrais das literaturas africanas de língua portuguesa contextualizadas na pós-colonialidade.

Palavras-chave: literaturas africanas de língua portuguesa séc. XXI; narrador pósmoderno, pós-colonialismo literário.

Abstract In this paper, the narrator of Eva, Germano Almeida’s novel, is observed under Silviano Santiago’s post-modern narrator concepts, according to which that narrator is characterized by a movement of distance from the narrated object, for it is much more interested in others and their stories than in itself. Eva, published in 2006 and placed in the postcoloniality context – which means that it can also be considered from the perspective of postmodern aesthetics – there is a narrator that uses the first person and proclaims himself the protagonist lover and confidant, facts that seem to contradict Silviano Santiago’s position. However, despite those personal aspects, the narrator

1 Doutoranda em Estudos literários. Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (UNESP) - 14800-901 - Araraquara, SP. E-mail: [email protected].

keeps himself far from the plot events, talking about them like an uninvolved one. This paper aims at showing how this procedure develops as well as relating it to some key aspects of postcolonial African literatures in Portuguese language themes.

Keywords: XXI century African literatures in Portuguese language; postmodern narrator; postcoloniality in literature.

Introdução

Embora o termo pós-moderno possa ser rastreado até os anos 1950, ainda hoje se discutem os aspectos fundamentadores de uma literatura pós-moderna. Um desses aspectos é a própria narração – amálgama de visão e voz – que no correr dos séculos se produziu com diferentes níveis de envolvimento daquele que fala, isto é, desde um “narrador onisciente”, intruso ou neutro, até o “narrador câmera”, último passo na direção da exclusão autoral2 (FRIEDMAN, 2002). Nesse sentido, Silviano Santiago (2002) investiga a atuação de um narrador pós-moderno em oposição ao “verdadeiro” narrador, único reconhecido por Walter Benjamin (1975) como tal e definido como aquele de cuja narrativa se depreende uma experiência de vida, aquele que se reveste em “espécie de conselheiro do seu ouvinte” narrando sempre algo que tenha “direta ou indiretamente, um propósito definido”, seja “da transmissão de uma moral, de um ensinamento prático, da ilustração de algum provérbio ou de uma regra fundamental da existência” (BENJAMIN, 1975, p. 65). Em oposição, o narrador pós-moderno, segundo Santiago, seria aquele que deseja extrair-se da ação narrada, em atitude semelhante à do repórter, narrando-a como a um espetáculo a que somente assistisse sem nele atuar ou ter atuado (SANTIAGO, 2002, p. 45). Entretanto, a se adotar a postura quase apocalíptica de Benjamin em relação à narrativa, sequer se poderia falar em um narrador pós-moderno, mas sim em um jornalista ou repórter que não narraria, antes relataria as ações, sem nelas estar ou querer estar envolvido. Para o crítico alemão, o narrador, a despeito da familiaridade que temos com essa palavra, é “alguém já distante

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As noções de narrador onisciente intruso ou neutro e de narrador câmera fazem parte da tipologia de Norman Friedman (2002) a qual, embora não adotemos como eixo condutor de nosso trabalho, foi evocada em virtude de sua nomenclatura praticamente autoexplicativa, a despeito dos equívocos nela apontados por G. Genette [19--].

de nós e a distanciar-se mais e mais” (BENJAMIN, 1975, p. 63), pois, dada a desvalorização dos eventos a que se podem chamar experiências, explica ele, aliada à supremacia da informação, que desenha um cenário onde “o relato de situações e a descrição de lugares longínquos ou de tempos afastados” é preterido em favor daqueles que têm “alguma relação com a vida prática” (BENJAMIN, 1975, p. 67), torna-se cada vez mais rara “a possibilidade de encontrarmos alguém verdadeiramente capaz de historiar algum evento” (BENJAMIN, 1975, p. 63). Assim, o narrador pós-moderno de Silviano Santiago, caracterizado pelo “movimento de rechaço e de distanciamento” (SANTIAGO, 2002, p. 45) não passaria, na visão de Benjamin, de alguém inapto a contar histórias3 curiosas, hábil apenas em transmitir acontecimentos “permeados de explicações” (BENJAMIN, 1975, p. 67). Silviano Santiago utiliza o termo “narrador clássico” para referir-se a esse narrador descrito por Benjamin, e “pós-moderno” para distinguir o narrador atual tendo em vista sua postura de distanciamento em relação ao objeto narrado, o qual é escolhido dentre aqueles que estão fora de suas próprias experiências. Entretanto, a se acreditar que esse narrador pós-moderno pode não existir de forma pura, o "narrador de romance" seria, talvez, o “modelo” em que ainda se espelharia o narrador contemporâneo, hipótese que pode ser depreendida até mesmo da fala de Silviano Santiago, a despeito de distingui-lo do chamado narrador pós-moderno: “No meio [entre o narrador clássico e o pós-moderno] fica o narrador do romance, que se quer impessoal e objetivo diante da coisa narrada, mas que, no fundo, se confessa como Flaubert o fez de maneira paradigmática: ‘Madame Bovary, c’est moi’” (SANTIAGO, 2002, p. 46), ou, por outras palavras, “a coisa narrada é vista com objetividade pelo narrador, embora este confesse tê-la extraído de sua vivência” (SANTIAGO, 2002, p. 46). O narrador pós-moderno seria, então, distinto por não narrar algo de sua vivência, configurando-se, ainda conforme Silviano Santiago, em “puro ficcionista”, pois tem de dar autenticidade – por meio da verossimilhança, “produto da lógica interna do relato” – a uma ação que não foi vivenciada por ele mesmo (SANTIAGO, 2002, p. 46). Neste trabalho, em que nos debruçamos sobre o romance Eva, do escritor caboverdiano Germano Almeida (2006), pretendemos analisar como se dá o movimento de exclusão do narrado, a que se refere Santiago, num narrador que, falando em primeira Na tradução que utilizamos do texto de Benjamin, foi utilizado o termo “estória” para se referir à fábula, enredo. Entretanto, preferimos, para esse mesmo sentido, “história” com letra minúscula, diferenciando de “História”, grafado com inicial maiúscula, que reservamos para nos referirmos à ciência histórica. 3

pessoa, se inclui como personagem das memórias que evoca. Nosso intuito, com essa análise, é observar também os aspectos da pós-colonialidade no romance em apreço e desvelar o nexo entre a atitude do narrador e esses aspectos. O narrador que (não) estava lá O romance em apreço gira em torno de uma longa conversa entre o narrador Reinaldo Tavares - e o personagem Luís Henriques a respeito da personagem-título. Ambos os interlocutores, assim como a conversa, são especiais; Luís Henriques é amante de Eva, recém-surgido de um "sumiço" de 25 anos; Reinaldo Tavares é jornalista de profissão, confidente de Eva e também seu amante – condição que Luís Henriques ignora. Ao desvelarem as facetas de Eva, desvelam, também, as faces de Cabo Verde e de sua relação com a antiga metrópole. Pensando no narrador pós-moderno de Silviano Santiago (2002), no seu marcante distanciamento daquilo que conta, pode-se intuir a ambiguidade desse narrador-jornalista-personagem do romance de Germano Almeida: parece improvável que haja distanciamento num narrador assumidamente amante e confidente da protagonista de suas memórias: "[...] E foi exatamente nessa época que Eva me elegeu como confidente primeiro, e anos depois como amante."(ALMEIDA, 2006, p. 153). Entretanto, a exemplo do narrador de Flaubert, evocado por Santiago, ele procura olharse a si mesmo como a alguém que observa da periferia até mesmo os eventos cujo protagonismo ombreia com Eva: Mal entrámos no quarto, ela aproximou-se de mim, e encostou a sua boca à minha e beijou-me longamente numa carícia suave e lenta, e depois começou a desabotoar-me a camisa, botão a botão, sem qualquer pressa, como se desse modo estivesse a afirmar que éramos os donos daquele pequeno mundo onde nos encontrávamos encerrados. (ALMEIDA, 2006, p. 186).

O excerto acima foi selecionado por ilustrar não apenas o distanciamento a que o narrador se propõe, mas, também, por representar o centro do qual as temáticas desta narrativa se desprendem. Tais temáticas, relacionadas ao momento em que se encontram as literaturas africanas de língua portuguesa, isto é, contextualizadas no póscolonialismo, são metaforizadas, em Eva, por meio da construção de sua protagonista, que é focalizada primordialmente sob o ponto de vista de suas relações amorosas e da forma como lida com sua própria sexualidade. Desse modo, o romance trata com leveza

e originalidade alguns dos motivos que alimentam a atual prosa de ficção das excolônias portuguesas, e se configura como uma obra que extrapola os limites de uma muito singular história de amor. Essa forma de tematização parece-nos condizente com o deslocamento do discurso estético para outros "locais da cultura" que Inocência Mata (2003, p. 44) aponta como um dos aspectos dessas literaturas. A escrita de Germano Almeida, romancista apontado como o introdutor do humor na literatura de Cabo Verde (TUTIKIAN, 2006, p. 35), caracteriza-se pela superação - no sentido de ir além e não de deixar para trás – do culto às temáticas apontadas como tipicamente cabo-verdianas (e centrais ao Movimento Claridoso), "como o sentimento de insularidade e o consequente desejo de evasão, a seca, a fome, a decadência do Porto de São Vicente, a família cabo-verdiana sob o risco permanente da dispersão, a miséria como agente de desagregação social." (SANTILLI, 2006, p. 93). Tais temas são tratados de modo enviesado em Eva, conferindo-lhe outra marca de originalidade e patenteando "a perlaboração [das] temáticas já sublinhadas" (MATA, 2003, p. 44), própria do contexto em que se insere o romance em pauta. Veja-se, a exemplo, que a questão da insularidade que gera o desejo de fuga vem sugerida nas constantes viagens que suas personagens – e entre elas encontra-se o narrador – fazem ao exterior do arquipélago; além disso, encontra eco no comportamento sexual de Eva, cuja infidelidade, tanto conjugal quanto aos amantes, remete aos imperativos que impelem a que se busque alhures a satisfação de necessidades. Embora essas personagens não sejam afetadas pela obsessão do êxodo, pelo simples motivo de que podem sair a qualquer tempo, e o fazem, a constância de suas idas ao exterior acaba por desvelar as carências do arquipélago, sejam elas econômicas ou culturais: "[...] quem nos dera haver livros à venda em Cabo Verde, mesmo que nas ensebadas tascas de fraldas, perdidos entre garrafas de grogue, linguiça assada ou peixe frito de escabeche!" (ALMEIDA, 2006, p. 14). Voltando ao narrador, tem-se, na sua postura ambígua, uma estratégia que impõe à forma o conteúdo temático que subjaz a narrativa, o qual, por sua vez, é reflexo daquilo que Inocência Mata identifica como significantes da nova forma de dialogar com o mundo global imposta pelo processo de descolonização. Para a estudiosa, o primeiro desses significantes é a concepção de uma cultura híbrida africana decorrente da colonização; em segundo lugar ela aponta o "equilíbrio entre o tradicionalismo e a adaptação da tradição às exigências de um mundo cujos mecanismos de regulação

ultrapassam os limites dos sujeitos dessa tradição" e, em terceiro lugar, a recusa das instituições e significações oriundas tanto do colonialismo quanto dos regimes do pósindependência. (MATA, 2003, p. 46). Os assuntos que se atrelam a esses significantes são metaforizados, como já mencionamos, na figura de Eva; esse processo que induz à reflexão sobre tais significantes se complementa com a conduta ambivalente do narrador. Analisemos, portanto, essa estratégia narrativa - a da construção da personagem principal pela ótica ambígua do narrador - por via da qual se tece o discurso ideológico do romance. Ressalta, desde o título, o protagonismo de Eva, mulher de múltiplos predicados, a quem não seria possível definir com simplicidade. Portuguesa, filha de militar conservador e mãe submissa e machista, foi, no entanto, uma ativista política ferrenha durante a juventude, tomando parte em quase todas as grandes manifestações contra o regime de Salazar e pela independência das colônias ultramarinas. Com a queda da ditadura portuguesa e o fim do regime colonial, a personagem estabelece-se em Cabo Verde, a princípio como professora e, mais tarde, como próspera empresária do ramo de decoração. A respeito desse contraste entre passado e presente, diz dela o narrador: Eva tinha sido uma esquerdista militante e desde que enveredara pela via do negócio que eu me habituara a chamá-la de capitalista activa que continuava sofrendo da síndrome do comunismo passivo, porque parecia que quanto mais enriquecia mais aumentava, para compensar, o seu palavreado a favor dos desfavorecidos para quem aliás não movimentava a ponta de um corno, dado que todo o seu negócio era dirigido aos endinheirados da terra. (ALMEIDA, 2006, p. 91).

Nesse comentário o narrador despe-se de qualquer indulgência, numa atitude aparentemente objetiva; entretanto a aspereza de seu julgamento não é suficiente para dissimular o ângulo de visão (TODOROV, 1976)4 de onde observa a outra personagem. Embora esse não seja precisamente interno, o seu grau de envolvimento com Eva denuncia a percepção subjetiva que tem dela. Assim, por um lado, tem-se tematizado, nesse fragmento da vida de Eva, o próprio percurso das ex-colônias, que assistem aos

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Segundo Todorov, o narrador, colocado em um ângulo externo de visão não teria acesso ao interior da personagem a que se refere; o oposto seria o ângulo interno, cuja profundidade pode variar em "graus na presença do interno", isto é, uma visão mais interna teria acesso a todos os pensamentos da personagem, enquanto uma menos interna veria o comportamento daqueles que a cercam, podendo, inclusive, interpretá-lo de maneira errônea (TODOROV, 1976, p. 66). Em nome da verossimilhança que a narrativa em apreço reclama, o mais alto grau de visão interna seria uma opção incoerente.

seus ideais de independência e de nacionalismo transformarem-se em "espectros agônicos" (MATA, 2003, p. 58) – no caso de Cabo Verde, a privatização dos bens e a manutenção das condições precárias de vida da população –; por outro lado, o distanciamento encenado pelo narrador espelha o desencanto dos ex-colonizados diante dessa marcha antiépica das novas nações, mas um desencanto ainda não convertido em indiferença, ainda interessado nos destinos da terra. A trajetória de Eva, sua relação com as demais personagens e o fato de ela ter se radicado no arquipélago, onde constituiu família e assumiu-se como legítima nacional, relaciona-se, ainda, com outro aspecto da pós-colonialidade literária, que é a tematização do processo de hibridização da cultura em decorrência da colonização. O romance aborda a questão em seu aspecto bilateral, de troca, uma vez que o relacionamento de Eva com o cabo-verdiano Luís Henriques começa antes da independência e em solo português. Eva tinha entrado em Cabo Verde como cooperante, porém apenas por razões de emprego. Desde sempre que se tinha assumido para todos os efeitos como nacional, comprometendo-se de alma e coração na construção do país [...] Fez parte do grupo dinamizador da nascente organização das mulheres cujo objectivo era congregá-las em defesa dos seus específicos interesses [...] e muito rapidamente se sentiu integrada no ambiente da Praia porque nunca recusou nenhum convite para dançar quer no Di nôs quer no Djonsa [...] Para evitar outras explicações, dizia-se casada com um caboverdiano de quem estava à espera e que deveria chegar brevemente. E quando deram conta de que afinal esse marido nunca mais aparecia, estavam de tal modo habituados a ela no seu meio que já a tratavam como a uma igual. (ALMEIDA, 2006, p. 224).

Por outro lado, é preciso pensar a hibridização como fato do mundo contemporâneo, no qual as fronteiras (culturais) cada vez mais se dilatam ou mesmo se esbatem, donde o processo, no caso das ex-colônias africanas, também decorreria de sua inserção, a partir das respectivas independências, nesse contexto globalizado. Assim sendo, a hibridização cultural nas antigas possessões portuguesas (para ficarmos somente com o nosso objeto de estudo), que tem inegavelmente a sua raiz na mestiçagem étnica, é ampliada a partir de seu contato com uma realidade que sua inserção no mundo, como nações, não pode evitar: [...] mas pensa que nestes anos de independência as coisas mudaram muito? Um tanto bem entendido, respondi, temos agora outras e diferentes influências, o mundo acabou ficando mais pequeno, a terra longe já é apenas um mito, de modo que das outras formas de arte

talvez já não tanto, temos outras referências, porém, a nível da literatura muito pouco mudou até agora, continuamos dependentes da consagração de Lisboa, só é bom em Cabo Verde quem for dito de Lisboa que é bom, ainda não temos crítica quanto mais massa crítica. (ALMEIDA, 2006, p. 229).

Na conversa com Luís Henriques, o narrador faz ver que Cabo Verde faz parte da aldeia global em que se transformou o mundo e denuncia os resquícios de uma dependência da consagração da metrópole. O tom de explicação com que se pronuncia a esse respeito faz lembrar do veredicto de Benjamin, segundo o qual, aquele que não narra a partir de sua própria vivência está fadado a permear sua fala de explicações (BENJAMIN, 1975, p. 67). Tal postura, entretanto, vem apenas ratificar o contexto em que se insere esse narrador-personagem – tem razão Benjamin quando aponta a falta da experiência em relatos desse tipo, por outro lado, ao deixar clara a sua não-vivência dos fatos sobre os quais discorre, o narrador também mostra que tais fatos, por decorrerem de um processo relativamente longo, de décadas, são efetivamente parte do contexto em que vive, o da pós-colonialidade: Você é jovem, disse [Luís Henriques ao narrador], porém, se não sabe por experiência, dado que depois da independência o ensino de caboverdianos no exterior se diversificou de forma exponencial, começou-se a ir estudar para os países mais diversos do mundo, [...] mas, dizia-lhe, se não sabe por experiência própria terá sabido de livros e leituras o fascínio que a Metrópole sempre exerceu sobre o povo das ilhas. (ALMEIDA, 2006, p. 229).

A fala de Luís Henriques, por seu turno, parece encerrar a mesma crítica benjaminiana, a de que a informação superou a experiência - veja-se como contrapõe o saber pela vivência própria ao conhecimento adquirido dos livros. Dessa forma, ainda que reconheça a ciência do narrador, acusa-o, veladamente que seja, de não ter chancela para falar do assunto. Entretanto, Luís Henriques representa um passado que se vai recuando à medida que avançam as novas configurações impostas, como já dissemos, pela inserção do arquipélago no cenário mundial. Muito embora Eva seja contemporânea de Luís Henriques – é cerca de dez anos mais jovem que ele –, sua posição no triângulo amoroso que vive com essa personagem e o narrador pode ser enxergada como uma metáfora das relações entre passado e presente, velho e novo, entre os quais Eva seria o elo. Não obstante ter iniciado Eva nos ideais de liberdade - especialmente sexual Luís Henriques mantém resquícios de conservadorismo que o impedem de adentrar os

novos tempos. Tal fica patente na cena, descrita por Eva, do pavor que ele sentiu em meio à multidão que comemorava a queda da ditadura em Portugal, e da sua incapacidade para comemorar com o povo. A sua liberalidade era, afinal, programática, como o atestará, anos depois, o próprio Luís Henriques, a quem o narrador cede constantemente a fala: [...] era um imperativo da época, ajudar as mulheres a libertarem-se a si próprias da escravatura sexual em que os homens as tinham mantido. [...] Mas por outro lado era como se nós homens disséssemos, Sim, sim, é bom que aprendas a ser livre, já não é tão bom que exerças a tua liberdade sem a minha bênção... (ALMEIDA, 2006, p. 266).

No excerto a seguir, depreende-se de sua fala não apenas uma postura conservadora, mas se percebe como o 25 de Abril em Portugal - seguido da independência das colônias - representa um corte profundo que põe, de um lado, o passado a ser superado, de outro, o porvir dos novos tempos: [...] a verdade é que a minha Eva, aquela cujo caráter, cuja inteligência, cuja alma eu julgava ter moldado à imagem e semelhança da mulher que sempre sonhei para mim, a saber, dócil, obediente, cordata, pensando pela minha cabeça, essa perdi-a na noite do 25 de Abril e nunca mais pude reencontrá-la, porque quando dias depois ela finalmente regressou ao meu quarto, que considerávamos a nossa república, já não tinha nada a ver com a antiga, essa tinha morrido ou então pura e simplesmente suicidado. (ALMEIDA, 2006, p. 221).

Retomando Silviano Santiago, para quem o narrador pós-moderno se interessa pelo outro e não por si e se afirma por olhar e observar os seres, fatos e incidentes do seu entorno, identifica-se na cessão da voz que o narrador faz ao seu interlocutor, a estratégia de levá-lo a falar para, indiretamente, dar fala a si mesmo: "A fala própria do narrador que se quer repórter é a fala por interposta pessoa." (SANTIAGO, 2002, p. 50). Dessa forma, Reinaldo Tavares se coloca em oposição a Luís Henriques ao dar relevo ao seu conservadorismo. Oposição já anunciada pelo próprio narrador páginas antes e que a fala de Luís Henriques só veio, mais à frente, confirmar: [...] não obstante o meu amor, eu sempre tinha defendido que [a Eva] deveria assumir-se como uma mulher pública, pública no sentido de que devia ter permanecido para sempre livre, livre de maridos, livre de filhos e amantes e paixões, uma gueixa portuguesa onde à vez nos pudéssemos esconder como num refúgio para chorar as mágoas e dores e frustrações dos dias, uma deusa compassiva onde confessar as derrotas perante a vida [...]. (ALMEIDA, 2006, p. 160).

É de se destacar que a atitude do narrador em relação à amante condiz com os ideais de democracia das nações recém libertas – a "nova fonte de matéria ficcionalizante", segundo Inocência Mata (2003, p. 50) – além, claro, de trazer à discussão a tensão entre a tradição e as novas formas de se estar no mundo. Finalmente, e encaminhando para uma conclusão, de Eva também se depreende outro aspecto que serve de assunto às literaturas pós-coloniais de língua portuguesa, que é a recusa das instituições herdadas tanto do colonialismo quanto do imediato pósindependência. Para Inocência Mata, o fato de a elite intelectual que produz literatura nas antigas colônias portuguesas se constituir de um grupo multirracial para o qual concorrem contribuições originárias de entidades originalmente antagônicas (MATA, 2003, p. 52), faz com que a tensão negro-branco seja apenas simbólica. A se pensar na situação especial de Cabo Verde, essa tensão é ainda mais sutil. O país, assentado em pequenas ilhas vulcânicas e assoladas por meses de seca todos os anos não atraiu, durante a colonização, o interesse de Portugal em investir na agricultura, o que teria levado ao território "o diretor, o capataz, a monocultura e a descaracterização regional" (TUTIKIAN, 2006, p. 37), ainda que o fascismo salazarista reinante na metrópole se impusesse também ao arquipélago. Somado ao fato de que Cabo Verde não sofreu, com a mesma intensidade que os demais territórios ultramarinos de Portugal, as lutas independentistas, nem se viu mergulhado em sangrenta guerra civil após a independência, além de outros fatores, como a raiz mestiça do cabo-verdiano em geral e o seu conhecido "temperamento morabe", talvez se justifique a ausência de um antagonismo racial declarado, ao menos no romance em pauta, em que se identifica no narrador o "autor textual feito do negro e do branco", de que fala Inocência Mata (2003, p. 53). Ainda assim, o personagem de Luís Henriques faz referência a um sentimento xenofóbico ou racista do cabo-verdiano e menciona o estigma das relações entre negros e brancas: [...] uma portuguesa em Portugal namorar um africano até era considerado politicamente correcto, e também uma africana levar um branco com ela para o seu país, eram situações que passavam sem grandes reparos sociais. Porém, já não um de nós com uma branca, dava logo lugar a mal-entendidos, confusão, enfim, era quase tão grave como falarmos em português em vez de usar o crioulo. Sabe, o próprio Cabral tinha abertamente defendido que se devia privilegiar as nossas mulheres [...] ele mesmo tinha-se divorciado de uma branca e escolhido uma africana. (ALMEIDA, 2006, p. 249).

A situação acima, entretanto, é localizada pela personagem nos contextos imediatamente anterior e posterior à independência, pois, conforme ele, "hoje em dia já é mais que pacífico, os africanos já se casam com quem lhes apetece, seja a pessoa de que nacionalidade for, e ninguém repara ou tem alguma coisa a dizer sobre o assunto" (ALMEIDA, 2006, p. 248). Outra herança imediata do pós-independência, o regime de partido único é o grande questionamento dos cabo-verdianos, assunto a que o narrador não se furta, evocando-o diversas vezes. O presente narrativo, entretanto, situa-se nas vizinhanças dos trinta anos da independência, quando o sistema pluripartidário já se encontrava efetivamente instalado no país, restando, portanto, a defesa de sua manutenção, louvando-lhe os predicados. Novamente a sexualidade de Eva tem poder evocador e é eloquente para fazer entender as vantagens de um sistema em que se pode auferir dos benefícios da multiplicidade: [...] é verdade que gosto da forma como me acaricias, exacto e directo no prazer que me proporcionas desde o primeiro toque. Mas também tenho saudades daquele outro que me afagava quase sem tocar, e tinha dedos compridos e finos que se compraziam em rodear as zonas de prazer num jogo de aproximação e afastamento que me fazia ranger os dentes de desejo e entregar-me com fúria. Ou daquele outro que gostava de ficar dentro de mim em movimentos quase imperceptíveis, num amor feito de suavidade, carícias e ternas palavras murmuradas em que era surpreendida por orgasmos súbitos e prolongados... (ALMEIDA, 2006, p. 164).

Ainda que inserido no contexto cabo-verdiano de uma relativa harmonia entre colonizados e colonizadores, ou talvez por isso mesmo, o romance em apreço não deixa de parte a problemática da relação entre o escritor africano e a língua portuguesa. Herança legítima do colonizador, onde, entretanto, encontra-se pátria5, a língua portuguesa é também o espaço do embate do sujeito na busca da afirmação de sua identidade - retome-se a fala de Luís Henriques, acima mencionada, em que aponta para a gravidade de os cabo-verdianos falarem o português em lugar do crioulo. Essa afirmação identitária, entretanto, não se assenta numa ruptura, visto que a descolonização é um processo, mas, antes, num projeto de remitologização de utopias, como, por exemplo, o ideal nacionalista (MATA, 2003). Desse modo, para Inocência

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Mia Couto, parafraseando a frase do semi-heterônimo pessoano Bernardo Soares, no Livro do desassossego - "Minha pátria é a língua portuguesa" - afirma: "encontro pátria na minha língua portuguesa" (apud MATA, 2003, p. 62).

Mata, a visível "africanização da língua portuguesa" (levada a cabo, por exemplo, nas literaturas angolana e moçambicana) tematiza, em determinados contextos, "o desfasamento entre a estruturação cultural da língua portuguesa e a expressão de uma vivência conduzida em lugares não harmoniosos de convivência de vários diferentes (o português e o kimbundu, a cidade e o campo, a letra e a voz)" (MATA, 2003, p. 63). Para além dessa tensão, o escritor africano tematiza, ainda conforme Inocência Mata, a "'oraturização' do sistema verbal português" (2003, p. 64). Em Eva, essa oraturização não passa pela "crioulização" do idioma e é de se destacar o apego do narrador à norma culta da língua portuguesa, mesmo nos raros momentos em que se excede e faz uso de palavrões ou expressões chulas. Por outro lado, não deixa de ser tematizada nas constantes digressões do narrador, que deslocam a conversa no tempo e no espaço, desfiando, uma história de outra, "com a graça da oralidade" (SANTILLI, 2006, p. 96). Nesse sentido, encenam-se também na escrita os aspectos da mestiçagem cultural e da busca pelo equilíbrio entre o tradicional e o novo, caros às atuais literaturas africanas de língua portuguesa. Conclusão Visto sob a ótica defendida por Silviano Santiago (2002), o narrador deste romance de Germano Almeida surge-nos de modo ambivalente, afinal, como esperar distanciamento de um narrador que nos conta sobre sua própria amante, de quem é, além do mais, o confidente? Reinaldo Tavares, esse narrador sui generis de Eva, executa alguns movimentos que o tornam simples na aparência, porém, de uma complexidade discursiva elogiável. Ressalte-se, em primeiro lugar, o seu esforço para parecer confiável, contando tudo com profusão admirável de detalhes. Entretanto, é justamente essa memória prodigiosa – e quase inumana – que o coloca em posição duvidosa, colocando sob suspeição grande parte daquilo que conta, exceto, talvez, alguns eventos históricos relativos a Portugal e a Cabo Verde. Em segundo lugar, considere-se a sua profissão. Reinaldo Tavares não é um jornalista de notícias, mas um cronista da vida privada que se ocupa das histórias alheias, publicando-as com alterações que impedem a identificação dos protagonistas na vida real (o real fictício, bem entendido): Sou bisbilhoteiro! [...] alguém que se intromete na vida alheia, que procura saber dos actos e factos e segredos das pessoas para contar às

outras. [...] Bem entendido que sempre sem nome ou pelo menos com nome inventado [...] afinal de contas o que me interessa é o drama, a estória, falsa ou verdadeira, isso não importa muito, mas nunca a pessoa em si. (ALMEIDA, 2006, p. 99).

Se a sua memória prodigiosa já o coloca sob suspeita, a confissão acima indicia a existência de um procedimento ficcionalizante no interior da própria ficção, pois, se para ele não interessam, nem a pessoa nem a veracidade da história, nada o impediria de criar, ele mesmo, os “actos e factos e segredos” para contar depois. Assim, dada a objetividade com que narra, pode-se desconfiar de uma história inventada em que até mesmo o “eu” narrante seria uma criação do cronista, um eu metaficcional que asseguraria um relato livre das subjetividades e dos ensinamentos (Benjamin) que permeariam a narração de uma experiência pessoal. Tal procedimento se coaduna com a intenção declarada do narrador de escrever um livro que desse voz aos que na época da independência de Cabo Verde foram obrigados, por razões diversas, a deixarem o arquipélago e se exilarem no estrangeiro, especialmente em Portugal: Mas de todo o modo será um livro escrito a partir de dados, informações e lembranças e desventuras de algumas das pessoas que deixaram, ou foram obrigadas a deixar Cabo Verde nessa altura da independência, algumas por se sentirem mais portuguesas que caboverdianas, outras não só com medo do comunismo, que se dizia o PAIGC se preparava para instalar como regime político, mas também porque não acreditavam na viabilidade de Cabo Verde como país soberano.

Essas pessoas a quem o narrador pretende dar voz não aparecem no romance, a exceção de um certo Doutor Rocha cuja história é contada ao leitor; no entanto, a ideia do desagravo a elas é levada a cabo na medida em que sua história é apresentada, ainda que de modo indireto – o narrador comenta que fará as entrevistas por ocasião da proximidade dos trinta anos da independência. Por outro lado, ele extrapola a intenção inicial ao evocar aspectos centrais na configuração das novas nações africanas de língua portuguesa por meio da figura de uma mulher que, assim como o território caboverdiano, só pode ser entendida em sua multiplicidade: “a Eva idealista, a Eva amiga e generosa, a Eva de todas as lutas.” (ALMEIDA, 2006, p. 268). Apropriando-se da postura sexual totalmente libertária da personagem, o narrador introduz com originalidade os temas caros à pós-colonialidade literária: a Eva de seu relato lembra, em muito, a personagem de Ava Gardner em Os amores de Pandora. A relação entre Eva e Pandora, na mitologia, está no fato de terem ambas perdido o Paraíso pelo mesmo

motivo, a curiosidade. Ora, a protagonista de Eva, por motivo semelhante (viver de modo original em lugar não familiar é uma forma de curiosidade), abandona o berço da civilização – ainda que Portugal seja considerado a periferia da Europa – sem a bênção do pai, aliás, “com o velho a jurar, uma mão sobre o peito a outra numa espada imaginária, que exigia que ela nunca mais voltasse a pisar-lhe a soleira da sua porta, filha ingrata e desnaturada que se mostrava indigna do amor dos seus pais” (ALMEIDA, 2006, p. 208), para cair num Cabo Verde onde os sacrifícios [...] iam desde levantar de madrugada para transportar em baldes e bidões a pouca água que escorria de alguma torneira, até plantar-se horas e mais horas em infindas bichas para a compra de fosse o que fosse que pudesse servir de comer, isso sem contar com a luta para se obter um contrato de fornecimento e depois uma garrafa de gás butano. (ALMEIDA, 2006, p. 223).

Qualquer semelhança entre o excerto acima e a passagem da expulsão de Adão e Eva do paraíso, ou da descrição da Idade do ferro, pode não ser mera coincidência. Ao focalizar uma Eva sem Éden e sem pai, Reinaldo Tavares obriga a que se voltem os olhos para a “terra trazida” por onde deambula, tomando ciência dos seus piores e de seus melhores dias. Ainda, por meio da ficcionalização de si próprio, garante a objetividade de seu relato, além de figurar como espécie de protagonista de uma história que não deixa de ser de amor, ao lado de uma das mulheres mais interessantes que a ficção já criou. Referências bibliográficas ALMEIDA, G. Eva. Lisboa: Editorial Caminho, 2006. FRIEDMAN, N. O ponto de vista na ficção. O desenvolvimento de um conceito crítico. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. Revista USP. São Paulo, n. 53, p. 166-182, mar. mai. 2002. BENJAMIN, W. O narrador: observações acerca da obra de Nicolau Lescov. In: LOPARIÉ, Z.; ARANTES, O. B. F. (Org.). Textos escolhidos. Tradução de Edson Araújo Cabral e José Benedito de Oliveira Damião. São Paulo: Victor Civita, 1975. p. 63-81. GENETTE, G. Discurso da narrativa. Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, [19--]. MATA, I. A condição pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa: algumas diferenças e convergências e muitos lugares-comuns. In: LEÃO, A. V. (Org.).

Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. p. 43-72. SANTIAGO, S. O narrador pós-moderno. In: ______. Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 44-60. SANTILLI, M. A. Prosa de ficção cabo-verdiana e caminhos identitários: imprevisíveis e intermináveis. Via Atlântica, n. 10, p. 91-100, dez. 2006. TODOROV, T. Estruturalismo e poética. São Paulo: Cultrix, 1976. TUTIKIAN, J. Germano Almeida: Cabo Verde no pós-independência através das coisas mais sérias do mundo, como se fossem de brincadeira. In; ______. Velhas identidades novas. O pós-colonialismo e a emergência das nações de língua portuguesa. Porto Alegre: Sagra Luzzato, 2006. p. 32-56.

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