O NEGATIVO DA ESCRITA: O MARINHEIRO E O POBRE TOLO, ENTRE SONHO E REAL

June 2, 2017 | Autor: Roberta Ferraz | Categoria: Fernando Pessoa, Poesia Portuguesa, Teixeira De Pascoaes, Poesia e Sonho
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O NEGATIVO DA ESCRITA: O MARINHEIRO E O POBRE TOLO, ENTRE SONHO E REAL ROBERTA A. P. DE F. FERRAZ (Universidade de São Paulo / FAPESP)

RESUMO É sabido que a recusa do editor da revista A Águia, Álvaro Pinto, em publicar o texto pessoano O Marinheiro serviu ao seu autor como motivo de rompimento com o grupo saudosista em 1913, o que é muitas vezes entendido também como signo da divergência, recorrentemente sustentada por uma visada crítica, entre Pessoa e Pascoaes. O drama ‘estático’ de caráter simbolista, enquanto se afasta e rompe com a estética saudosista e dá início ao repertório de vanguarda da revista Orpheu, não se distancia, ao todo, de um diálogo possível com alguma obra de Teixeira de Pascoaes, especialmente O Pobre Tolo, que teve uma primeira edição, em prosa, em 1924 e uma segunda edição, poética, em 1929. Ambos os textos apresentam duas figuras arquetípicas da escrita, que se elabora a partir da negatividade, da sombra, da morte; e ambos, tanto o marinheiro quanto o pobre tolo, fazem-se corpo estático e extático por onde escorrer o texto, levantando reflexões acerca do fazer poético na modernidade, num vagar de deriva, entre sonho e realidade. PALAVRAS-CHAVE: Teixeira de Pascoaes; Fernando Pessoa; modernismo português; Sonho; Poesia;

Toda literatura é elegíaca Silvina R. Lopes Mesmo depois de falecidos, queremos uma ama que nos embale, cantando o sono eterno. Teixeira de Pascoaes

No mesmo ano em que registrava a escrita de seu drama estático O Marinheiro, 1913, Fernando Pessoa escrevia também um apontamento no qual lemos o vínculo, direto e reiterado por ele, entre arte moderna e sonho. Neste excerto Pessoa diz: “Quem quiser resumir numa palavra a característica principal da arte moderna encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é a arte do sonho” (PESSOA, 1966: p. 1

156). Ainda neste texto, Pessoa expõe uma de suas (várias) leituras da modernidade como sendo qualificada por uma “complexidade dura”, formada pelo cientificismo, pela democracia, pelo industrialismo e pelo imperialismo – todos esses, nas palavras do poeta, enfraquecedores da potência sonhadora. Seguindo o gozo de seu raciocinar, o poeta afirma que, justamente, este contexto ‘duro’ seria o mais propício à arte sonhadora, já que, como aprenderemos com Álvaro de Campos, em sua ‘estética não aristotélica’, a arte moderna opera por reação. No dealbar do século XX, já encontramos sintomas da ressaca do positivismo cientificista nos mais variados autores, de diferentes línguas (Rilke, Yeats, Benjamin, etc.), lamentando que os mistérios fossem sentidos como experiência que rumasse ao morno e ao esclarecimento, frutos artificiais da cultura técnica. Se, portanto, o mundo moderno possibilitava que o sujeito fizesse mais de uma vez a viagem de ida e volta ao tédio de todos os seus sentidos, era de se esperar que o artista, vivendo nesta/desta cena, reagindo a ela, resistisse – esse longo exercício do poema – desdobrando sobre a frieza da técnica as vértebras obscuras do sonho. Arte do sonho, sim; mas não mais como dava-se, por exemplo, na mundividência medieval, quando o sonho corresponderia ao desejo de ação, de uma ação grandiosa que se sabia ainda sonho e desejo, cuja impossibilidade ou dificuldade só o faziam crescer. Sonho como ação, projeção de um feito heróico a cumprir. No contexto de Pascoaes e Pessoa – o início do século XX – acendidas as luzes da noite tenebrosa, com as coisas dispostas ao visível da luz elétrica, sabemos, por exemplo, com Pessoa, que “logo no limiar do sonho surge o inevitável pensamento de (sua) impossibilidade” (PESSOA, 1966: p. 156). O autor provoca-nos, portanto, com a ideia de que o sonho agora exigiria outra amplitude e função: não mais apontando para o realizável, mas apoiando-se nas vias do irrealizável: o sonho do sonho. Para o desejo movente e sem fundo, sem teleologia, estático em seu drama. Fraturado da ação, integrado a uma “paisagem” também feita de sonho, que “na sua essência, é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior” pois “quanto mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho” (idem, ibidem). Do não desejo do sonho como motor da ação, esta “arte moderna”

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nos vem falar do desejo do fora, lugar de desaceleração vertiginosa, na contramão do “cheio do mundo”. Ou seja: essa arte nos vem falar do seu e do nosso vazio e de sua proliferação. Como diria o astrólogo Rafael Baldaya, em seu Tratado da Negação (PESSOA, 1968: p. 42), tudo que conduzia à ideia de unidade e emanava de um desejo de princípio afirmativo, nada mais era do que esta grande ficção, da qual ironicamente afirma Baldaya, “Deus é a Mentira Suprema” (ibidem). Já as forças de ‘negação’, por sua vez, seriam aquelas “que partem de além do Único, Fora do Único” (ibidem). Fazendo-se cantor de sua modernidade, Pessoa, como abre-alas de sua tão ansiada revista Orpheu, apresenta um texto cuja materialidade textual, abarrotada de inúmeros nãos, (des-)faz-se em sonho, sonho do sonho sonhado sonhando-se, força do fora em toda sua potência negativa, numa dinâmica – palavra curiosa – do desdobramento e do esvaziamento do sujeito nas suas mais diversas (e falhas) tentativas de nomeação e conhecimento do real: da mudez gestual do corpo (as três veladoras não se movem, e também não se movimenta a morta no centro da cena) ao sonambulismo abissal da linguagem, música que experimentamos como monótona canção de ninar e velar, ladainha que desencadeia (n)o caos, dando-nos o gosto daquela epígrafe pascoaesiana: “Mesmo depois de falecidos, queremos uma ama que nos embale, cantando o sono eterno” (PASCOAES, 1993: p. 85). Tudo que n’O Marinheiro se expressa, resvala na esfinge que habita a voz de velar, no oráculo de silêncio que dela ecoa. Se as veladoras existem em sua função de velar o sonho, já que toda ação é vã, abre-se, no tempo do velório, a perspectiva do jogo: façamo-nos lúcidos, jogando com a linguagem o jogo sério das crianças, inflando e esmorecendo, a nosso bel prazer, esta ausência constitutiva com que nos dizemos e nos buscamos, metalinguagem aporética que assume um corpo sonoro e breve, uma fantasmagoria imagética, que nos reverta de volta ao incessante ruído mudo que se move por tudo deste (nosso) drama estático: a morte. Façamo-nos com a morte, façamos como a morte: cantemos a opacidade da existência, fascinados e horrorizados com nosso corpo ainda vivo. Ou seja: escrevamos a partir da morte. A iniciação pela morte – como aponta também um outro poema avassalador de Pessoa – Episódios / A múmia (PESSOA, 1998: p. 131) – inscreve no poema a demanda ética e estética da sensibilidade do invisível, ou seja, faz do corpo poético o lugar, por excelência, 3

da linguagem, por reforçar, da linguagem, a sua conjugação aporética de presença e ausência, simultaneamente. Se a linguagem é já espessura sensível de seu vazio, o canto poético será, por sua vez, a ponte que intensifica o seu abismo. O poeta, portanto, não tem como escapar de seu destino órfico. Como no mito, só lhe cabe seguir cantando aquele ‘nada que é tudo’. Inaugurando a revista cujo nome não podia ser outro que ORPHEU1, Pessoa nos dá à leitura a anti-história de um múltiplo marinheiro nenhum, que só pôde tornar-se imagem porque desde sempre fantasma e desejo, ou seja, sonho daquelas veladoras que, como nós, desassogadamente sossegadas, cantamos e fiamos o tempo, velando o futuro de nosso próprio cadáver. O que fazer, dentro e diante deste nosso drama estático? Ora, cantar. Cantamos o sonho de um marinheiro que sonhamos sonhar. Imaginemos, na tela invisível do visível da linguagem, este nada que nos substancializa, essa materialidade do insondável que, somando-se à nossa voz, projeta no tempo a nossa situação de espectadores de nossa própria espera. Enquanto esperamos, cantemos, aquilo que o canto mais propriamente pode suportar: os sonhos, os desejos do desejo. Aquilo que na ausência nos move, movendo-se em nós: a sombra do velado, o negativo que a linguagem cava em sua possessão despossuidora, cientes daquilo que dirá Deleuze: “A linguagem é ela própria um duplo último que exprime todos os duplos, o maior simulacro” (DELEUZE, 1996: p. 16). Na trama pessoana, além dos English Poems, notamos que, depois do marinheiro sonhado sonhando, será, principalmente, Bernardo Soares, quem irá passar todo um livro que não é livro a ensaiar respostas àquelas três veladoras de Orpheu:

Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o (distraidamente) confere mais apego ao nosso momento de sonhar. Fazer isto consciente, muito conscientemente, da inutilidade e (...) de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo, perder-se da realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher de areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e despejar, futilissimamente. Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar.

Embora consideremos o aleatório do nome da revista, já que não há indícios textuais suficientes que nos autorize a afirmar a sua extrema pertinência e adequação, esta nossa leitura d’O Marinheiro, como exercício poético do negativo da escrita, abre-nos uma inevitável compreensão de que, sim, o nome não poderia ser outro... 1

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Estagnar em torpor todos os nossos pensamentos de acção.(..) Ver o Tempo pintar o mundo e achar o quadro não só falso mas vão (PESSOA, 1982: p. 370 ).

Nesta ‘ética da inação sonhadora’ nos deparamos com uma das figuras mais recorrentes da obra pessoana: a figura antiga (grega e medieval) do Destino enquanto ‘roda da Fortuna’, imageticamente representada por uma roda inexorável a girar, independente da vontade e da ação humanas. Assim como, fatalmente, a noite sucede o dia, fatalmente nossa morte nos assiste. Existir consciente da vanidade da vida pede, no exercício poético de Pessoa, que se consiga (pelo esforço ou pela resignação) inverter esta lei natural, desconsiderando o apego às instâncias daquilo que se pode ler como real (matéria, ação, vida desperta) e “desmanchando o Universo”, como ensina Soares, fazer-se senhor do/no sonho. Voltando ao artigo pessoano, se “a arte moderna é a arte do sonho”, podemos, partindo desta premissa, investigar muitas coisas acerca da elasticidade e utilização do próprio conceito de ‘moderno’. Por exemplo: na reação moderna ao moderno, que o poeta propõe via sonho, haveria – diz-nos ele – três caminhos possíveis ao artista, no que concerne à relação, na arte, entre SONHO E REAL: o primeiro seria, como ele diz, “entregar-se ao mundo exterior, deixar-se absorver por ele, tomando dele a vida oca e ruidosa (...)” (PESSOA, 1966: p. 156) – esta seria a via seguida por Nietzsche e Whitman, entre outros; o segundo caminho deu-se com “pôr-se ao lado, (...), num sonho todo individual, todo isolado, reagindo inerentemente e passivamente contra a vida moderna, quer pela ânsia medieval, quer pela fuga para o longe no espaço (...)” (ibidem) – casos em que cita, por exemplo, Poe e Verlaine; já o terceiro caminho, que ele entende como “tão caracteristicamente português” (ibidem) e no qual inclui a si mesmo, numa linhagem que começaria com Antero de Quental seguindo até “a nossa recentíssima poesia” (ibidem), seria o caminho em que o poeta opera “metendo esse ruidoso mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho – e fugindo da ‘Realidade’ nesse sonho” (ibidem). Esta ‘terceira via’ de reação insere-se num caminho, portanto, pós-simbolista; entretanto, vemo-lo ainda na sequência não só do Simbolismo como do Romantismo, se 5

temos em mente não o Romantismo como foi experimentado em sua versão mais didática, preocupado em levantar das invocações geniosas toda uma nova mitologia nacional, feita de híbridos passados imaginados e desejosos, num apelo missionário do qual o Poeta, com P maiúsculo, se autoinvestia. Falamos daquele Romantismo radical, febril, convulsivo, que abriu os primeiros rasgos modernos na reflexão sobre a arte, dissolvendo a velha lógica das mimeses e representações e instaurando a (auto)crítica no bojo da própria criação artística. Não, portanto, o romantismo da inflação do eu, mas aquele do excesso que estoura, dissolve e suspende qualquer possibilidade de identificação e separação entre sujeito e objeto, aquele romantismo que, fora de lugar, aconteceu em Portugal com Teixeira de Pascoaes. Não falo do Pascoaes saudosista. Falo do Pascoaes cuja obra toda se entrelaça compondo um excessivo e inacabado – porque o excesso transborda seu próprio fim – romance da saudade, e que tem como um dos pontos fulcrais e luminosos a obra O Pobre Tolo, cuja primeira edição é de 1924, numa versão em prosa. Pascoaes também se compromete, em toda a sua obra, a reagir à pretensa perda de intensidade acarretada pelo excesso comercial e científico do ‘moderno’ tal como experimentado por ele e muitos de sua geração. Já em 1914, com a publicação de Verbo Escuro, ano em que Pascoaes assume a direção literária da revista A Águia, lemos a gênese d’O Pobre Tolo de 1924. Diferentemente do que se costuma querer ver, a referida obra de 1914 em muito pouco se coaduna com o messianismo ideológico-cultural das páginas da revista em que o poeta assinava os editoriais. Há no Verbo Escuro um primeiro rompimento – o estranho é ele ser concomitante com o engajamento e o compromisso – de Pascoaes com o saudosismo mais ideológico e uma aproximação mais vertical à poética da saudade, que já vinha sendo trabalhada desde a sua primeira obra. Podemos dizer que é com este livro que Pascoaes entende a sua poética, a saudade, enquanto verbo escuro, voz plasmando sombras, chamamentos e saudações da ausência. Na abertura deste livro, no capítulo primeiro nomeado “O Poeta”, ele diz, definindo o poeta em reação ao mundo moderno, definindo, portanto, o seu entendimento da função moderna do poeta diante do mundo

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moderno: “Poetas, cantai os fantasmas; quero eu dizer – o que é eterno” (PASCOAES, 1999, p. 43)2. Contra o enfraquecimento do sonho e da perda do mistério, Pascoaes tece, com mais vigor a partir de Marânus, de 1911, esse seu duplo arquetípico, figuração do poeta em toda sua cômica tragédia. N’O Pobre Tolo, a personagem principal que dá nome ao livro compõe-se dos mais valiosos signos com que Pascoaes entende o poeta em sua função demiúrgica de sagração agônica e fantasmagórica da vida: a simplicidade, inocente e assombrada do tolo; a dor enquanto princípio de comunhão com as coisas – mística melancolia; e o resultado dessas alianças: a compaixão com o não-lugar dos sonhadores, estes pobres lunares, híbrido de homem e jumento, compaixão que acarreta em compaixão generalizada: na noção de simpatia dolorosa, pacto que chega até o leitor, o atravessa, e o coloca de volta, na intimidade ultrassensível do texto pascoaesiano. O ‘pobre tolo’, híbrido de homem e jerico, eternamente parado no meio da ponte de São Gonçalo, em Amarante, revela, para Pascoaes, a figura do poeta, elogio do vagabundo exilado, parvo absorto, sujeito-quase hipnotizado pela impossibilidade de qualquer ação decisiva, que, tal como o marinheiro e suas veladoras, num mundo cuja carnalidade se oferece como um carnaval de máscaras e esquecimento, encarna também um drama estático. Para o sujeito tragicômico, inerente à cosmovisão poética de Pascoaes, a vida se forma a partir de uma aguda luta entre sonho e real, luta que é bailado duplamente eufórico e fúnebre, levando seu ator – o sujeito – a experimentar a constância da dor, dor que, por sua vez, é matriz de toda a criação. Dor criativa: negatividade que se faz motor. O sonho e assombração do real, n’O Pobre Tolo, dão-se enquanto partilha terrível e sublime

E continua: “Fumo das fábricas, gritos de sirenes, velocidades – sois atitudes da Matéria, impostas pelo espírito imitativo e simiesco (...). // Eu fui dado à luz elétrica deste século; o denso fumo industrial satura-me os pulmões; o ruído mecânico faz sangrar os meus ouvidos – e eu não compreendo, não assimilo esta Vertigem, que é de ferro! // Fumos das fábricas, gritos das sirenes, velocidades, qual a vossa entoação espiritual, o vosso significado? Qual o sentido das palavras – Força, Vitória, Actividade, que modernos vates apregoam? Sois ocas palavras de metal... a bruta matéria a tornar-se nublosa, a incompreender-se. / Hulha negra feita nuvem de fumo. // Poetas, deixai cantar o vosso coração. A inteligência conhece a Liturgia, mas ignora a Divindade. // Cantai os Fantasmas e os Anjos; cantai os obreiros da nova Redenção – os que trabalham, em névoa de alma, o Relâmpago futuro. / Cantai o que não existe... O resto é cinza. (idem, p. 44)

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de uma simpatia dolorosa que parece brotar do luto verbal (verbo escuro) da cruz que somos, composta de carne e verbo, irmanados num giro sem conciliação:

Tudo é o sonho dum pobre tolo. E o pobre tolo é também um sonho, um sonho de Deus que não encarnou inteiramente. Por isso, ele anda envolto numa auréola, e tem a leveza duma nuvem... Somos o sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a faculdade mitológica de idealizar todas as cousas. (...) A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne e o Verbo. (...) E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca. (PASCOAES, 2000: pp. 19-20)

Preso numa cruz formada pelo elo tragicômico de carne e verbo – substância e ausência – o poeta-cantor elabora a sua musa que, com o passar das obras, vai tornando-se mais e mais complexa: a SAUDADE. Musa-metáfora – arte poética – de um amor lúgubre, a Saudade será o cais buscado por meio de um canto órfico-alquímico, que se esboça com todo o fôlego, na sutileza do negativo, sutileza que complexifica, refina e adensa:

A incerteza, a hesitação, o querer e não querer, o partir e ficar, o vaivém da sorte, como diz o poeta, é a própria atividade universal cindida em duas forças contrárias que se neutralizam mutuamente e se condensam, originando um ponto definido na imensidade indefinida, uma luz acesa nas trevas, um grito no silêncio – a Criação! Tudo é lembrança e esperança: duas forças contraditórias e hesitantes no seu ímpeto criador. Hesitam, equilibram-se, casam-se e originam o Existente - uma autoescultura da Saudade. (PASCOAES, 2000: pp. 21-22)

Ocasião poético-ontológica em que a ausência é transmutada numa outra forma de si mesma, sutilizada como diriam os alquimistas (mais do que sublimada), por meio do 8

canto que, Pascoaes o sabia, faz-se num verbo escuro. A incerteza do real, composto por uma carne que se faz verbo, e portanto, sonho, leva o sujeito à consciência de sua fantasmagoria que, por sua vez, o impele à criação, à vontade de dar outras formas à materialidade deslizante do visível. Elegia erótica sutilizando as rudezas da matéria-viva que estarão sempre diante do aniquilamento e do esquecimento. É por isto tudo que o tolo, nas palavras de Pascoaes,

é e não é; desperta e devaneia; foge não sabe para onde e, afinal, está sempre no mesmo sítio; está ali, sentado numa pedra, mas o sonho não se desfaz absolutamente. Há horas em que se torna mais intenso; pretende resistir, viver, e envolve a cabeça do tolo que se perturba e magica além dos astros. (...) O tolo é desmaio, silêncio e um medo enorme ao seu fantasma, tão destacado e vivo, diante dele! Sempre diante dele! - Quem és tu? – atreve-se a murmurar. Mas a sombra não responde, porque a sombra é um pobre tolo que não existe, a imagem negativa dum pobre tolo, figurada neste Azul de milagre que nos envolve e dá o mesmo aspecto de realidade aos sonhos e aos penedos. (PASCOAES, 2000: p. 27)

Entre a inflação da voz potente e a mudez abobalhada, o sujeito é indecisão e assombro, plasmado em sua encruzilhada cuja cruz dolorosa em si mesma se faz mãe dos afetos que, para Pascoaes, são os mais intensos: beleza, comoção, compaixão e a mesma dor. Tudo que o perpassa e o imaterializa, confere à sua efígie uma grandiosidade fantasmagórica que, em si mesma, já é o modo de resistir ao mundo ‘moderno’ empedernido pelo excesso de razão. Bernardo Soares também dirá que “somos morte”: “O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela. (...) Povoamos sonhos, somos sombras errando através de florestas impossíveis, em que as árvores são casas, costumes, ideias, ideais e filosofias” (PESSOA, http://arquivopessoa.net/textos/4518). Além dos acordes entrevistos entre o drama estático do Marinheiro e a estaticidade tragicômica d’O Pobre Tolo, é forçoso percebermos que é na consciência da linguagem que encontramos o posicionamento das diferenças entre eles. Se, com Pessoa, somos levados ao apuro sombrio do epigrama, cuja concentração simbólica faz de todo dizer um ato de 9

silêncio sepulcral, com Pascoaes, pelo avesso, entramos no ritmo das incansáveis (e por vezes, cansativas) repetições, dos excessos, da difusão oscilante das metáforas que insistem em retornar, num esforço de nomeação das coisas, que, dolorosamente caindo em seu próprio luto, só sabem resistir na epifania também sombria que é a Saudade. No entanto, se podemos dizer que com Pessoa, n’O Marinheiro, somos conduzidos ironicamente (ironia que não resolve a tensão) à mudez, ao vão da palavra, não será menos correto dizer, de Pascoaes, que, depois de páginas e páginas de grito, lamentação, louvação, acordamos também na antemanhã do silêncio, o mesmo cais-nenhum, apenas sonora travessia: duas ausências – ou viagens pelo negativo da escrita – em cada um deles. Do vozerio espectral que assombra o pobre tolo, levando-o ao exílio da língua, diz ainda Pascoaes:

É um fantasma, só memória. Anda descalço e em cabelo; e por isso é tolo e meio poeta. Põe-se a evocar o Passado; e esta evocação é uma névoa que lhe transtorna o juízo e escurece as cousas que se ilimitam e aumentam de tamanho, como aparições prodigiosas. (...) Vive no meio de vozes que lhe falam, mas não as compreende. São confusas, distantes: - uma nuvem musical que se condensa em lágrimas espectrais; uma nuvem que o absorve por completo e onde ele boia, abstrato e doloroso – tão abstrato que não é ninguém! tão doloroso e sensível que é todas as almas deste mundo e do Outro Mundo! (...) Os monstros não largam o pobre tolo, a debater-se, aflito, entre um rochedo e uma nuvem, o que existe e não vive e o que vive mas não existe. (...) O pobre triste não dorme; sonha. Sonha de dia e tem a ilusão da realidade; e tem, de noite, sonhando, a realidade da ilusão. Possui, em alto grau, estes dois sentidos da Realidade, como todos os malucos que avistam as duas faces da medalha. É que ele existe e vive. E existe de tal modo, que penetra na própria substância dos rochedos. (PASCOAES, 2000: pp.50-52)

Para além da insistência do vazio e sua inquietude, para qual ambas as obras nos levam, cumpre ressaltar que, apesar do sim da saudade, o resultado final não é de todo afirmativo, já que, como o dissemos, o corpo deste sim, desta afirmatividade que a Saudade encarna, é a própria ausência. Não se trata, reiteramos, da conclusão satisfeita numa identidade ou unidade salvífica localizada numa origem ou num além-morte. Pascoaes o sabe: a saudade pode mostrar-se um inteligentíssimo xeque-mate às intrínsecas ameaças de finitude, mas de maneira alguma conclui o jogo. Ele o sabe porque a saudade só é enquanto 10

se canta, na ponte do poema, no corpo desse doloroso verbo escuro, voz em gangorra que, assim como conquista e celebra, perde e põe a perder, novamente, o já sempre perdido. Em São Paulo, por exemplo, biografia escrita em 1934, Pascoaes escreve: “Ninguém atinge a meta na corrida. Não há destinos concluídos. O acabado é quimera. Há esboços” (PASCOAES, 2002: p. 236). Experiência poético-ontológica que o crítico M. Blanchot, em seu texto “O pensamento trágico”, assim apresenta:

Onde tudo é indeciso só se pode viver num desvio perpétuo, pois ater-se a uma coisa suporia que há algo de determinado a que se ater, suporia portanto uma separação nítida de sombra e de claridade, de sentido e de não-sentido e, por fim, de felicidade e de infelicidade, mas como um é sempre o outro e o sabemos, mas numa espécie de ignorância que nos dissuade sem nos esclarecer, não buscamos senão preservar a incerteza e obedecer-lhe, inconstantes por uma falta de constância inerente às próprias coisas, não nos apoiando em nada porque não há apoio em nada, e essa ligeireza responde à verdade de nossa existência ambígua que é rica apenas de sua ambiguidade, a qual cessaria tão logo quisesse realizar-se: ela nunca é mais do que possível (BLANCHOT, 2007: p. 28)

O crítico de arte francês Didi-Huberman em “O evitamento do vazio: crença ou tautologia” (1998, p. 37), falando sobre a inelutável cisão do ver apresenta-nos uma ‘situação exemplar’ em que somos olhados velo vazio. É, diz ele, “a situação de quem se acha face a face com um túmulo, diante dele, pondo sobre ele os olhos” (DIDI-HUBERMAN: 1998, p. 37). Sabemos que as veladoras d’O Marinheiro cantam nesta situação acima, mas nos parece interessante perguntar se, também a imobilidade física do pobre tolo sobre a ponte, olhando a natureza em toda sua diversidade, plasmado ali como um ‘túmulo de pé’, não seria melhor compreendida se abarcando esse reverso do vazio que vê a personagem, absorta nessa inelutável cisão do ver... Como se ele, parado, olhando a paisagem movente, olhasse para um imenso volume do vazio, vazio que lhe devolve o olhar, movendo-o assim (o sujeito) ao ‘trabalho’ do sentido inelutável da perda: o poema. Este arfar-entre, este jogo do visível/invisível, é o ritmo que Pascoaes labora para impregnar, em texto, o sentido pleno da ausência que ele chamou de Saudade. A saudade acaba por ser (ou 11

querer ser) esta forma hesitante, em que não apenas se evita o vazio, a dominação do vazio, a negação; como que, muito habilmente, fá-lo evitando o pleno, a verdade do sentido, o apaziguamento. Nas palavras de Didi-Huberman:

“(...)diante de um túmulo, a experiência torna-se mais monolítica, e nossas imagens são mais diretamente coagidas ao que o túmulo quer dizer, isto é, ao que o túmulo encerra. Eis por que o túmulo, quando o vejo, me olha até o âmago – e nesse ponto, aliás, ele vem perturbar minha capacidade de vê-lo simplesmente, serenamente – na medida mesma em que me mostra que perdi esse corpo que ele recolhe em seu fundo. Ele me olha também, é claro, porque impõe em mim a imagem impossível de ver daquilo que me fará o igual e semelhante desse corpo em meu próprio destino futuro de corpo que em breve se esvaziará, jazerá e desaparecerá num volume mais ou menos parecido. Assim, diante da tumba, eu mesmo tombo, caio na angústia – a saber, esse ‘modo fundamental do sentimento de toda situação’, essa ‘revelação privilegiada do ser-aí’, de que falava Heidegger... É a angústia de olhar o fundo – o lugar – do que me olha, angústia de ser lançado à questão de saber (na verdade, de não saber) o que vem a ser meu próprio corpo, entre sua capacidade de fazer o volume e sua capacidade de se oferecer ao vazio, de se abrir”. (DIDI-HUBERMAN: 1998, p. 38)

Nomear é ausentar-se, ou retomando a epígrafe de Silvina R. Lopes, “toda literatura é elegíaca” (LOPES, 2012: p. 11). Desta arte de prestidigitação negativa, faz-se a mágica dos desaparecimentos, acentua-se a composição de ausência das coisas. É neste sentido que lemos o negativo da escrita, nos dois textos comentados aqui. Escrevendo, Pascoaes e Pessoa, sobre a escrita em si mesma – a escrita enquanto agenciamento de um mundo – os autores devassam as entranhas deste ato/gesto que está no escrever: a morte, a indecisão, o inelutável, o suspenso, as reticências... e assim experimentam o reverso desta ‘queda’: a aposta no sonho. Da autopsia do texto no texto, do negativo da escrita, por meio de suas figuras arquetípicas principais – o ‘pobre tolo’ e o ‘marinheiro’ – chega-se a uma positivação da própria escrita (faz da ausência um esplendor fulgurante), que não significa salvação durável, mas sim, resistência. E resistência convidativa, aberta, que, como diz R. Lopes, tem como função suscitar em nós, leitores, a nossa, coletiva, ‘estranheza emcomum’:

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No desfazer de estereótipos ou fórmulas fixas, o dirigir-se ao outro põe em movimento uma memória transindividual, um pensamento que se ergue sobre o ‘luto originário’, o de tudo ter desde sempre desaparecido na palavra que o nomeou. Como efeito singular do que neles, sobre-vivendo, é material e imaterial inseparavelmente, os textos e poemas são espaços de vacilação – aproximação e afastamento, realização e expectativa. Voltada para o resgate de um tempo perdido, que nunca esteve presente, toda a literatura é elegíaca, independentemente dos seus temas e estilos. Nesse movimento, porém, ela fazse afirmação: em qualquer obra literária – visionária, elíptica, orientada para o conhecimento, para o humor ou para o trágico – sobra sempre o que a torna incompleta, uma intensidade que lhe desfaz os limites e a expõe como apresentação impossível do infinito (LOPES, 2012: p. 12).

Se, como vaticinou Pessoa, “o maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho”, além de uma galáxia toda de exímios sonhadores de nossa frugal fragilidade e hesitação, podemos, sem dúvidas, saber ler que o par Pascoaes-Pessoa nos revela um dueto cuja força nos legou uma das mais excitantes constelações literárias do negativo. O negativo como poder sonhador, a voz que move, não montanhas, mas fantasmas de montanhas, vastidões de vácuos, uma plenitude que, para sorte nossa, não nos deixa ceder ao tédio, à movimentação anestesiante e histérica de um mundo que, como o deles, segue demandando que saibamos responder a ele, cantando com nossa voz a centelha de Orfeu cuja cabeça, depois de morto, rolando por um rio, seguiu chamando na morte a sua amada morta, resistindo ao esquecimento. A Saudade não será, portanto, cais nenhum que receber qualquer marinheiro desejado ou seus despojos. Pascoaes o dirá: “O tolo é um mar e boia em pleno mar” (PASCOAES, 2000: p. 58). É apenas, durante a viagem, enquanto se boia, aquela paisagem abstrata e infinita, entranhada e comovente, que se faz poema, num esforço da voz em sustentá-la, esforço, lembramos, trágico e cômico, tragicômico, cuja figura por excelência é a do pobre tolo. Pascoaes o sabia e o disse ao longo de todo o seu romance da saudade: o canto é poderoso porque é frágil. Pascoaes e Pessoa, em diferentes graus, são ambos viajantes de um mundo cuja representação libertou-se de suas margens, sonhadores de um devir em deriva, escrevendo o negativo de qualquer conquista, em intimidade ardente com o que hoje se faz legado nosso: o desejo de seguir resistindo, pela poesia, na poesia, a toda ameaça de menos sonho, menos loucura, menos intensidade. A poesia como frágil desejo de antídoto 13

da banalidade. Tudo para que, seguindo o mote pascoaesiano, “a raça dos tolos não se extinga, nesse mundo do Bom Senso e da Razão” (PASCOAES: 2000, p. 22), para que, ardentes, sigamos, resistentes e resilientes, bailando contra toda força normativa e banalizadora, resistindo ao cadáver nosso, convidando o perder e o morrer à nossa boca de leitores insaciáveis num mundo muitas vezes entristecido pela saciedade banal de todos os dias. E fechamos, convocando os pobres tolos, com Pascoaes:

O tolo arde, embriaga-se de fumo e canta como os pássaros noturnos. Põe-se a cantar, e aparece-lhe a morte. Dança e vê, junto dos pés, a boca aberta dum sepulcro. E canta e dança em volta dum sepulcro: uma dança de velhos ritos funerários. O pobre tolo já morreu. Esta figura em que ele se mostra, à luz do sol, é feita duma substância espectral e fabulosa: uma sombra, orelhuda e lanzuda, que ergue as mãos e põe os ouvidos em íntima comunicação com as estrelas. Ergue as mãos, canta e dança embriagado, e deita fumo pela boca. E fuma, e fumega, e torna a fumegar. Esconde-se num eclipse total (...) E o pobre tolo dança, em volta do seu túmulo, com a sombra da sua infância (PASCOAES, 2000: p. 122)

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BIBLIOGRAFIA FINAL BIBLIOGRAFIA ATIVA PASCOAES, Teixeira de. O pobre tolo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000. __________. O Homem Universal. Lisboa: Assírio & Alvim, 1993. __________. São Paulo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982 __________. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. __________. Páginas de Estética e Teoria Literária. Orf. Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática, 1966. __________. Textos Filosóficos – Vol. I (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho). Lisboa: Ática, 1968. __________. http://arquivopessoa.net/textos/4518 (09/02/2011)

BIBLIOGRAFIA PASSIVA BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – a experiência limite. São Paulo: Escuta, 2007. DELEUZE, Gilles. O mistério de Ariana. Lisboa: Veja, 1996. DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.

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