O Negro é uma Cor: Juventude em Marcha de Pedro Costa

July 24, 2017 | Autor: Kitty Furtado | Categoria: Film Analysis, African Diaspora Studies
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O NEGRO É UMA COR1 Juventude em Marcha de Pedro Costa Ana Cristina Pereira2 Estudos Culturais - Portugal

Resumo: Gesto singular na produção cinematográfica lusa, em Juventude em Marcha, o cineasta Pedro Costa filmou os cabo-verdianos - sampajudos e badius - que vieram para Portugal trabalhar na construção de grandes obras públicas e que se foram organizando em bairros mais ou menos fechados sobre si próprios, quase sempre esquecidos pelo resto da população e pelo poder político. O filme é aqui analisado sob a luz de “um imaginário em tempo de crise” (Martins, 2011-187),

sendo o imaginário essa

encruzilhada antropológica que permite esclarecer particularidades de uma determinada obra humana através de particularidades de outras (Durand, 1989). Porque resulta de um encontro Juventude em Marcha não é um filme sobre "os outros", é sobre a perda de um sentimento de comunidade, sobre a resistência silenciosa de uma forma de estar e de uma língua e talvez seja ainda a proposta de constituição de uma nova lógica de relacionamento: a de uma sociedade pós abissal. Palavras-chave: Pedro Costa; Juventude em Marcha; Cabo-verdianos; Imaginário.

Imaginário Os arquétipos “que podem ser mais ou menos visíveis, mas que não deixam de constituir invariantes antropológicas” (Maffesoli, 2001-22) são os genuínos fundadores da cultura: as classificações temporais servem apenas para permitir a sua compreensão. As formas encontram-se na cultura ao longo do tempo, de maneira secreta, discreta ou ostensiva e podem ressurgir com toda a intensidade, e quando menos esperamos, arquétipos que julgávamos para sempre sepultados (Maffesoli, 2001). Num primeiro olhar, a imagética de Pedro Costa em nada coincide com as formas de representação contemporâneas, na arte (em geral) e no cinema (em particular): a materialidade do representado, a não existência de mundos virtuais, uma tentativa de captar “o real tal como ele é” que se pode situar perto do documentário, a simplicidade de recursos tecnológicos, e sobretudo a duração do tempo, conferem a Juventude em

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Titulo originalmente atribuído por João Bernard da Costa a um ensaio sobre a obra de Pedro Costa, constante na bibliografia do presente texto. 2 Doutoranda em Estudos Culturais nas Universidades de Aveiro e do Minho. [email protected]

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Marcha, uma característica de produto aparentemente anacrónico. No cinema de Pedro Costa o tempo (a arte) parece procurar recuperar os acentos, prescritos por Paul Celan: o acento grave da historicidade, o agudo de relação e circunflexo de expansão, (Celan, 1996-46) e talvez para Costa tal como para Celan o acento mais conveniente seja o agudo de relação, de atualidade (Celan, 1996-48). Mas ao tentarmos compreender em Juventude em Marcha, qual o regime de sonhos (imagens) que permite o filme, as formas grotescas, barrocas e trágicas sobressaem. E assim, perceber, ou ir percebendo, que os arquétipos ou símbolos que estetizam o nosso tempo, afinal, também se inscrevem na obra de Pedro Costa, não deixa de ser uma aventura surpreendente, quiçá paradoxal.

Reconfiguração do Logos, phatos, e ethos modernos na pós-modernidade O quadro teórico em que se baseia este trabalho é proposto por Moisés de Lemos Martins na obra Crise no Castelo da Cultura, das estrelas para os ecrãs (2011). Nesta obra o autor procura compreender a forma como se reorganiza o esquema aristotélico constituído por logos, phatos, e ethos, na era das tecnologias da informação e comunicação. Para Martins de um logos clássico, onde predominavam formas lisas, claras e uma ideia de tempo em linha reta, com princípio e fim, definido entre uma génese e um apocalipse predominante na modernidade, passámos, na pós modernidade a um logos barroco, de “formas exuberantes e confusas, ambivalentes, rugosas” (Martins, 2011-189) que servem a criaturas hibridas, e o tempo passa a apresentar-se pleno de curvas e dobras e povoado por sombras. O phatos moderno seria dramático, e portanto todas as teses teriam a sua antítese e claro a sua síntese, assim a razão (logos) na modernidade controla a ação. Na pós modernidade “a sensação, emoção e paixão” (Martins, 2011-189) dominam toda a existência e portanto o phatos é trágico, sem solução, uma tensão que nenhuma síntese redime. Finalmente na modernidade o ethos associa-se ao sublime, apelando a valores superiores, está ao serviço portanto de um dever-ser e a pós-modernidade realiza-se num ethos grotesco que subverte valores, equiparando categorias nunca antes compagináveis, prevalece o relativismo e o individualismo (Martins, 2011-189). Ressalvo no entanto que, na sociedade pós moderna a necessidade de identificação com o grupo, por parte dos indivíduos que se baseia na necessidade de solidariedade e de proteção que caracterizam o conjunto social, por falta de outros recursos, levaram já Michel Maffesoli a considerar que o individualismo foi substituído por uma espécie de neo-tribalismo (Maffesoli, 2006)

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O céu negro – logos barroco Juventude em Marcha de Pedro Costa é a história num tempo lento onde o passado e o presente se misturam e os mortos convivem com os vivos, um tempo que se apresenta num espaço sem horizonte porque o céu que vemos, quando o vemos é quase sempre negro. Um espaço cheio de sombras, mesmo no branco despojado das novas casas, que remetem a sensação de calor para um outro mais sujo, decadente, amaldiçoado.

Figura 1 – Juventude em Marcha de Pedro Costa. Primeira imagem do filme. Fontainhas: suja, decadente, amaldiçoada. Clotilde deita pela janela peças de mobiliário.

Segundo Ruy Gardnier a estranheza de Juventude em Marcha é conseguida através de um conjunto de movimentos relativamente fáceis de identificar: “Uma câmara posicionada frequentemente alguns graus acima da linha paralela ao solo (contra-plongés), uma câmara geralmente disposta apontando para as linhas verticais que limitam as paredes, uma luz direcionada muitas vezes na parte central inferior da tela, criando uma partilha incomum de luz e sombras. Às vezes, a câmara se coloca também fora do eixo vertical de 90º em relação ao solo. E pronto. Basta o uso sistemático desses elementos e Juventude em Marcha reinventa o olhar, reinventa a organização visual do quadro. Nasce um equilíbrio de composição estranho e sedutor, sem profundidade de campo ou ponto de fuga, em que cada movimento para perto ou longe do quadro implica sobretudo num aumento ou diminuição das dimensões da figura” (Gardnier, 2006).

Os recursos técnicos e tecnológicos podem ser simples mas o filme oferece intencionalmente ao olhar um mundo rugoso, impossível de abarcar na totalidade, porque é constituído por superfícies concavas preenchidas por sombras. A materialidade do que vemos na tela remete-nos, é verdade, para Cézanne, mas a pregnância de rostos, olhares, e corpos, contrasta com a total ausência de naturalismo de interpretação, conferindo às cenas uma multiplicidade de sentidos díspares. A câmara em contraplongé, (muito utilizada para filmar Ventura, o que acentua o poder desta personagem) a luz incomum, o olho da câmara convergindo para um ponto - dentro de aposentos de uma casa, e que divergindo a partir de um ponto - fora, cria um sentimento de monumentalidade e intimidade, (Gardnier, 2006) de uma proximidade com as 3

personagens e seus problemas mas paradoxalmente um sentimento de que o que está na tela é, de algum modo estranho, perigoso porque é sinuoso e opaco. Lembra-nos os versos de Desnos “Méfiez-vous des roses noires/II en sort une langueur/ Épuisante et l'on en meurt” (Desnos, 1933)

Figura 2 – Juventude em Marcha de Pedro Costa. Ventura nas Fontainhas.

Figura 3 – Juventude em Marcha de Pedro Costa. Ventura no novo bairro “meio perdido” procura Vanda, uma das filhas. O branco asséptico dos edifícios contrasta com o céu negro.

A ação decorre entre os destroços do bairro das Fontainhas e os novos apartamentos, de um branco asséptico, que foram construídos pelo Estado, através do plano especial de realojamento, para esta comunidade. O filme não desenvolve nenhuma controvérsia além da visual. O Bairro das Fontainhas sujo, desordenado, decadente, parece muito mais caloroso do que as opressivas paredes brancas das novas construções. As novas casas não são necessariamente habitáveis e esse sentimento é clarificado durante o filme apenas através de imagens (Rancière, 2009). A proximidade com que o cineasta consegue filmar as vidas destas pessoas, resulta de um longo processo de aproximação, que começou num outro filme há muitos anos atrás. Pedro Costa vive no bairro, faz parte da associação de moradores, tem afilhados, participa nas decisões, e nas aflições, provavelmente. Tenta concertar as coisas, remediar males que foram feitos (Costa, 2006). Esta proximidade permite uma compreensão do que filma que perpassa na obra apenas através das imagens e sem nunca recorrer a artifícios melodramáticos. Na verdade, não há documentário nem ficção, mas um híbrido de ambos.

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O bairro era aquecido porque havia a vida em comunidade, um certo companheirismo entre os operários, um sentimento que também povoava a tomada de consciência da independência de Cabo Verde, acontecida no mesmo 5 de julho em que Ventura conquistou Clotilde, mãe de seus filhos. Juventude em Marcha constrói-se numa relação entre vida amorosa e política, seio familiar e vida comunitária. A elegância e delicadeza de Ventura, que usa um fato preto e uma camisa branca representa o sentimento presente de uma classe perdida, uma realidade de tempos misturados, amor perdido, esperança gorada. Afinal, o momento em que Ventura dita a seu amigo/filho Lento uma carta para o seu amor em Cabo Verde, quando ainda trabalhavam na construção, é hoje ainda. Essa carta, assim como o gira discos que toca a música de libertação política "Labanta Braço", é mais do que uma lembrança nostálgica, ao mesmo tempo sentimental e política, de um outro estado de coisas. Aquele filho que já morreu também se encontra com Ventura. Pedro Costa apresenta os acontecimentos/experiências, sem recorrer ao flashback, ou a outro qualquer dispositivo para tornar clara a sua cronologia. Os tempos aparecem-nos misturados, tornando-se todos igualmente presentes, igualmente importantes, igualmente impossíveis de compreender na sua totalidade. Diria Maffesoli, um presente eterno, onde já nada acontece porque já tudo aconteceu. Estamos num tempo mitológico em que o passado nunca está morto e portanto nunca é passado (Maffesoli, 2000-50) Um tempo, portanto, cheio de dobras, de linhas curvas e camadas, de contornos nem sempre percetíveis. O tempo passado, o presente e o próprio tempo de produção da obra misturam-se/ aglutinam-se neste mundo estruturalmente fragilizado “que se faz acompanhar do sentimento de perda daquilo que nunca teve e pelo sentimento de espera daquilo que nunca terá” (Martins, 2011). Flores do asfalto – ethos grotesco O mundo que Pedro Costa filma foi varrido para fora do tempo e para fora da Cidade, porque não performa, porque não é belo, porque não tem sex appeal, nem velocidade. O bairro das Fontainhas é uma comunidade, é um resto, um erro, o aviso de que há uma falha, na construção da democracia, justa, próspera e solidária. Aqui as pessoas não são belas, não são boas, não sabem o que é a justiça. São “as flores do mal” do nosso tempo que não podem ser incluídas na equação do contemporâneo. São os excluídos, da vida e dos circuitos do progresso (Martins, 2011, p. 131).

Figura 4 - Juventude em Marcha de Pedro Costa. Vanda e Ventura, no quarto de Vanda. Conversando.

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Em Juventude em Marcha quase todas as personagens têm a sua droga. Heroína, metadona, qualquer coisa que se cheira, qualquer coisa que se bebe. Zita, personagem do filme anterior de Pedro Costa, O Quarto de Vanda morre agora com “o veneno de sempre” diz Xana, Ventura corrige “ Não foi o veneno que ela tomou, foi todo o veneno tomado por ela, antes dela vir ao mundo”. No atual quarto de Vanda a heroína foi substituída por metadona e televisão. A hipnose das imagens, o som alto, permitem a Vanda esquecer, ou pelo menos atenuar a aflição da ressaca. Vanda fala com Ventura, sobre a “vida da droga” e nas suas consequências. Sofre de asma, fuma. Tosse, cospe, confessa medo de morrer antes da filha crescer. A televisão parece liga-la ao mundo, é para a televisão que Vanda olha à procura de um mapa e é na televisão que parece encontrar tudo o que pode esperar. O comportamento de Vanda não observa nenhuma tentativa de construir sentido e também não podemos dizer que há uma mobilização para o que quer que seja, a não ser talvez para o consumo. Vanda, que não tem vergonha de apanhar coisas no lixo, quer pôr tudo fora e comprar móveis novos. Incentiva a filha a ver televisão, o boneco com que a menina brinca é a materialização em brinquedo de uma personagem televisiva. Cantam as cantigas dos genéricos e batem palmas. É difícil aceitar “as coisas” como estão ali. São como são. Não se pode fazer nada. O filme não ajuíza, nem propõe nenhuma alternativa, nenhuma cura, nenhuma salvação. “Nos nossos dias, arte radical significa arte sombria, negra como a cor fundamental” (Adorno, 1970).

Figura 5- Juventude em Marcha de Pedro Costa. Ventura na Gulbenkian que ajudou a construir, enquanto pedreiro e onde não é aceite enquanto visitante. Não vão ali pessoas como ele. Apenas o guarda da exposição é como ele.

Ventura é o pai espiritual de quase todos no filme. Um elo de ligação e de religação com a memória de uma forma de estar que decorria do conhecimento que se tinha do princípio e do fim (génese e apocalipse). Agora que as casas onde vivem, dificultam o convívio Ventura é fio de Ariadne que permite encontrar o caminho de volta, e assim inventa a continuação da “comunidade”. Ventura que aparece frequentemente prostrado 6

por terra cumpre uma missão religiosa. Este padre de todos não professa nenhuma ideia universal de salvação. Pelo contrário: deambula entre um bairro e outro, entre o passado e o presente, entre filhos, um amor perdido, comprimidos, cerveja e alguma coisa que cheira. Vai ao museu da Gulbenkian, que ajudou a construir enquanto pedreiro (e onde somos surpreendidos por dois Rubens e um Van Dyck contrastantes com o resto da realidade do filme) mas não o deixam visitar a exposição. Por outro lado, todos aqueles que Ventura encontra são seus filhos. E aos filhos dá a mão, aos filhos ouve, aos filhos presta assistência, oferece abrigo. E todos os seus filhos falam com ele muito profundamente sobre as suas vidas, sobre as suas falhas, suas derrotas, caminhadas, travessias. Ventura escuta, compreende. Paulo o filho que tem uma perna doente, está como que de joelhos perante Ventura, enquanto fala naturalmente, sobre as suas “técnicas” de pedinte. Ao filho Nhurro, o suicida dá a mão e escuta. Toma conta da filha de Vanda e ouve-a com atenção e infinita. Com Bete, ao colo de quem se deita (numa imagem que é uma Pietà) “reinventa” paredes, conversa longamente sobre o bem e o mal, sobre o como é ser um homem bom. Assim constrói uma nova realidade, uma nova forma de organização da rede, uma nova possibilidade de vida. Ventura é como a brisa do deserto que permite o Rizoma, uma possibilidade de vida que não existe e que ele está a inventar (Deleuze, 1997). Paralelamente a tudo isto, Ventura relê (de memória) a carta que escreveu para o seu amor em Cabo Verde, “mete na tola” diz a seu amigo/filho Lento: “Nha cretcheu, meu amor, o nosso encontro vai tornar a nossa vida mais bonita por mais trinta anos. Pela minha parte, volto mais novo e cheio de força. Eu gostava de te oferecer 100.000 cigarros, uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos, um automóvel, uma casinha de lava que tu tanto querias, um ramalhete de flores de quatro tostões. Mas antes de todas as coisas bebe uma garrafa de vinho do bom, e pensa em mim. (…) ”

Esta carta é também uma memória dentro de uma memória, uma espécie de mise en abyme amorosa: a 15 de Julho de 1944, a cerca de um ano da sua morte, Robert Desnos escreveu à mulher do campo de concentração de Flöha uma última carta. Nessa carta dizlhe que queria oferecer-lhe "Cem mil cigarros louros, doze vestidos de grandes costureiros, o apartamento da Rua de Seine, um automóvel, a casinha da mata de Campiègne, a de Belle-Isle e um raminho de flores de cinco tostões. Na minha ausência, compra à mesma as flores, que eu tas pagarei. O resto, prometo-o para mais tarde. Mas, acima de tudo, bebe uma garrafa de bom vinho e pensa em mim."

Num tempo de micro narrativas, para contar o amor e o sofrimento de Ventura foi preciso ouvir o amor e o sofrimento de um poeta francês (Costa, 2006). A estória do amor perdido, no túnel escuro, de Ventura, faz parte da história do amor perdido de todos os exilados. O corpus etéreo desta carta que vai sendo reconstruída ao longo do filme 7

contrasta com a realidade onde vivem aprisionados, porque são reféns de um mundo que não conseguem e não querem abandonar. São vultos fantasmagóricos que deambulam pelos estilhaços dos casebres e são, eles próprios, estilhaços de um mundo familiar que estará prestes a desaparecer.

Resistir é vencer – phatos trágico Resistem, e a sua existência silenciosa representa, uma falha, uma falacia. É a história de uma comunidade parada, que está também em marcha de resistência. É portanto a história trágica de uma travessia. Travessia porque há muito tempo se perdeu a energia do início e há muito mais tempo ainda se perdeu o sentido, o rumo, a ideia de onde se quer chegar, apenas o caminho, a sobrevivência, o processo. Trágica porque não tem solução, não tem saída, não vai acabar bem e muito provavelmente não vai acabar.

Figura 6- Juventude em Marcha de Pedro Costa. Ventura com Nhurro. O filho suicida que já morreu.

Há muito tempo que estes filhos de Cabo Verde (e seus descendentes) perderam a esperança e a vontade de voltar às ilhas que já não são as suas, o que não significa que se sintam portugueses ou que sejam aceites como portugueses. Vivem numa espécie de limbo, já não são sampajudos (S. Vicente) nem badius (Santiago) mas obviamente também não são alfacinhas (Lisboa). Têm como lugar seguro, único e impartilhável essa língua a que chamam crioulo (sem saberem que a desconsideram) e que sendo também ela hibrida permite uma união e uma resistência. A resistência faz-se também à custa do “lado positivo” da exclusão. São maioritariamente operários e trabalhadores desempregados e se antigamente trabalhavam de sol a sol para encontrar o seu sustento, hoje sobra-lhes todo o tempo do mundo. Um “privilégio” que decorre do desaparecimento do trabalho e com ele da figura do operário. Há uma ociosidade que perpassa por todo o filme. As personagens de Juventude em Marcha parecem estar presas numa realidade a que não podem, mas também não querem fugir. Ventura resiste à nova casa por ter “teias de 8

aranha” e por ser pequena para todos os seus filhos. Bete ainda está na sua casa nas Fontainhas e, numa cena a que já fiz alusão, está com Ventura no colo, e diz: “ Na hora em que nos derem aqueles quartos brancos deixaremos de poder ver estas coisas na parede. Acaba.” Refere-se a riscos, sujidade, sombras e buracos onde têm estado a tentar reconhecer figuras, como as crianças fazem com as nuvens. Figuras, neste caso, do diabo e de outros entes medonhos, claro. Porque os símbolos aqui não podem ser os de um regime de imagens diurno, apenas o noturno, o que confunde, liga, dilui (Durand, 1979), pode servir como imaginário deste par que é filha e pai e também mãe e filho. Pedro Costa, como Nickolas Ray, filma os vencidos da vida. Mas, diferentemente do que acontece com as personagens do realizador americano, em Juventude em Marcha todos acabam por aceitar o que o destino lhes oferece. As personagens de Pedro Costa não são perseguidas pela polícia e nem mostram preocupações de carater político. Não se podem considerar “os explorados” num sentido moderno do termo, até porque já não têm trabalho, são apenas abandonados, marginalizados (Rancière). Glosando Maffesoli diremos que as questões do presente já não encontram uma resposta no futuro. No presente tradicionalmente dever-se-ia preparar, programar, a longo prazo a vida adiante. Mas, assistimos hoje ao “retorno do destino, o qual se exprime sob a forma do imprevisível e do puro presente” (Maffesoli, 2006). A ideologia individualista do progresso foi substituída por um conjunto de rituais coletivos e imaginários partilhados. “A ética que nasce dessa sociedade nova só pode ser a do trágico. A de uma aquiescência à plenitude do instante, duplicado da aceitação lúcida do efémero.” (Maffesoli, 2006)

O pós-abissal Escolher ver e pensar sobre Juventude em Marcha de Pedro Costa é ainda a continuação de um ato de resistência inscrito na própria obra. Porque, este filme proporciona uma experiência “verdadeira” ao recusar a lógica de apresentação frenética dos acontecimentos, ao permitir uma relação com o que se vê na tela ao mesmo tempo primeira e íntima. Juventude em Marcha contém um paradoxo no seu título. "Juventude em Marcha" é um lema da libertação cabo-verdiana, mas durante o filme não vemos nem jovens, nem marcha. Pelo contrário, como foi dito, há uma ociosidade que perpassa toda a obra. Uma sensação de que o bem mais valioso que aquele grupo de pessoas possui é uma enorme quantidade de tempo para desperdiçar. Se há que morrer, pois que seja devagar. Apenas Ventura, que nas suas próprias palavras, confirmadas por Bete é um homem bom, parece mover-se, passa de canto em canto, visita seus filhos, deambula entre as Fontainhas e o seu novo apartamento, visita o museu que ajudou a construir como pedreiro. O filme acontece, como também já foi referido, a partir de uma relação 9

entre passado/presente e um presente/passado: a memória e a atualidade misturam-se. Mas se Juventude em Marcha aponta para um passado revolucionário e um presente melancólico através da figura de Ventura, ao mesmo tempo mostra uma intensa confiança nas suas personagens em resistir ao estado das coisas, e criar novas possibilidades de relação com o tempo e o espaço. Se é verdade que a marcha desta juventude não acontece no sentido pensado durante a libertação de Cabo Verde também é verdade que Juventude em Marcha mostra através da força comunicativa das suas imagens e das suas palavras (quase todas em cabo-verdiano) uma intensa confiança nos poderes ocultos daqueles que não têm poder nenhum. Poder de resistir ao estado das coisas, de criar ritmos, atmosferas e comportamentos que exigem uma adaptação, uma mudança de sintonia. Lógica revolucionária num mundo ainda e sempre separado, transformado em mercadoria, desaquecido. Lógica revolucionária, operacionalizada numa copresença radical entre o realizador e aqueles que filma, por forma a superar o abismo que tradicionalmente impera na forma de olhar o outro nas sociedades ocidentais e que prevalece nos nossos dias (Santos, 2007). O filme de Pedro Costa sugere uma utopia de comunidade, uma “comunidade que vem” remetendo para Giorgio Agamben, comunidade como acontecimento, formada pelo qualquer: singularidade sem identidade, que não almeja a pertença a nenhum grupo ou classe (Agamben, 1993). Comunidade como acontecimento que se estende a quem o vê, a quem dele participa, construída na aceitação da vida como travessia.

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REFERÊNCIAS: Agamben, G. (1993). A Comunidade que Vem. Lisboa: Presença. Adorno, T. W. (1970). Teoria Estética. Lisboa: Edições 70. Celan, P. (1996). A arte poética. Meridiano e outros textos. Lisboa: Cotovia. Costa, J.B. (2009). “O negro é uma cor” in Cabo, R. M. (org.) Cem Mil Cigarros: os filmes de Pedro Costa. Coimbra: Orfeu Negro Deleuze, G. & Guatari, F. (1997). Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34 Durand, G. (1979). A Imaginação Simbólica. Lisboa: Presença. Durand, G. (1989). As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Lisboa: Arcádia. Gardnier, R. (2006). “Juventude em Marcha”. Contracampo: revista de cinema. Rio de Janeiro.http://www.contracampo.com.br/82/festjuventudeemmarcha.htm; acedido em 15/01/2014 Gonçalves, A. (2009). Vertigens. Coimbra: Grácio Editor. Maffesoli, M. (2006). O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Maffesoli, M. (2000). O eterno Instante: o retorno do trágico nas sociedades pós modernas. Lisboa: Instituto Piaget. Larrosa, J. (2002). “Notas sobre a Experiência e o Saber de Experiência”. Revista Brasileira de Educação, 19: 20-28. Rio de Janeiro. Perniola, M. (1993). Do Sentir. Lisboa: Presença. Rancière, J. (2009) The Politics of Pedro Costa. London: Tate Modern’s Catalogue Santos, B. S. & Meneses, M. P. (2009) (orgs.). Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina

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