O NIILISMO RUSSO DO SÉCULO XIX: BREVES CONSIDERAÇÕES

May 29, 2017 | Autor: Neomar Mignoni | Categoria: History, Nihilism, Russian History, Russian Revolution
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O NIILISMO RUSSO DO SÉCULO XIX: BREVES CONSIDERAÇÕES Neomar Sandro Mignoni, e-mail: [email protected] Acadêmico do 2º ano de Filosofia, UNICENTRO

Palavras-chave: Rússia, czarismo, opressão, niilismo, negação.

Caracterizado como um fenômeno histórico, o niilismo, enquanto uma desvalorização dos valores, e uma ausência de finalidade e de sentido ao “porquê” merece destaque, não apenas em filósofos como Nietzsche, Heidegger e Vattimo, mas também em grupos de intelectuais na Rússia do século XIX. Entre os intelectuais, destacam-se Nikolai A. Dobroljubov, Dimitri Pisarev e Nikolai G. Tchernychevki que este estudo pretende voltar o olhar. É a partir de uma perspectiva histórico filosófica que se pretende reconstruir as expectativas e os ideais deste movimento cultural. E embora este tema tenha sido amplamente discutido na literatura da época, sobretudo com Dostoiévski, Turguêniev e Tolstoi, não é de intuito deste discutir as ideias destes autores e sim caracterizar o movimento a partir das principais ideias que dão vida a ele. É a este propósito que as linhas seguintes procuram dar conta. A heterogeneidade do povo russo, bem como sua idiossincrasia sempre foi muito diversa de toda cultura ocidental. Os povos russos nunca possuíram uma cultura unificada de caráter nacional. Seus príncipes sempre foram tidos como estrangeiros, não havendo qualquer vínculo natural entra a minoria governante e a massa governada. Ademais, o povo russo nunca foi proprietário de suas terras o que o levou a trabalhá-la sem abnegação. Sem instrução escolar, o Estado Absolutista e opressor, o excluía da cultura impedindo-o de demonstrar sua força criadora e sua personalidade. Com a “libertação dos camponeses da escravidão” ocorrida em 1861, quando foi distribuídas terras aos camponeses, a situação se agravou. Os grandes latifundiários continuaram donos de grandes proporções enquanto que os camponeses receberam terra de menos continuando escravos dos grandes proprietários, uma vez que se tornaram devedores por muitos anos tendo que pagar quotas pelas terras recebidas (cf. HOETZSCH, 1966, p. 154157). Considerando que, a Igreja Ortodoxa Russa seguiu por caminhos diversos da Igreja __________________________________________________________________________ Anais da IX Semana Acadêmica de Filosofia – UNICENTRO Problemas Filosóficos da Contemporaneidade

Ocidental. Na Rússia a discussão entre ciência e fé nunca foi levada a cabo, da mesma forma, que a questão da emancipação do intelecto em relação à “fé cega” foi deixada de lado o que tornou a Igreja Russa incapaz de compreender e apresentar soluções para as dificuldades da época. Nesse sentido, o pensamento russo não foi autônomo e sim teônomo, visto que as principais características de seu ideal moral são a humildade e total submissão às forças superiores (cf. SIEGMUND, 1966, p. 298). Herdeira do cristianismo bizantino a Ortodoxia russa significou, ao longo do tempo, uma petrificação da fé a qual veio a substituir a fé cristã universal tornando-se uma religião de rígida uniformidade desembocando numa crise religiosa no Século XVII. As reformas czarianas, foram vistas como vindas de cima, uma vez que eram baseadas no livre pensamento ocidental faltando o calor do coração russo. A reorganização administrativa, a supressão do patriarcado e a criação do Santo Sínodo como órgão administrativo e tendo seus Procuradores nomeados pelo Czar ratificaram a total submissão da Igreja ao Estado (cf. TRAGTENBERG, 1988, p. 40ss). Com a identificação da Igreja com a autocracia e o nacionalismo russo, o abismo entre a alto clero governante e o baixo clero dominado aumentou ao nível de uma crise social, provocando, como reação, um niilismo que se alastrou por toda parte impregnando a atmosfera cultural da época. A incultura teológica da sociedade e a falta de uma resistência espiritual decidida por parte da Igreja Ortodoxa geraram uma insegurança interior que logo foi tomada pelo novo espírito proveniente do Ocidente. O ensino filosófico russo desde muito tempo pautava-se nos manuais da filosofia racionalista alemã. E da mesma maneira que os filósofos do idealismo alemão, teólogos em sua maioria, protestaram contra a antiga teologia, a primeira geração de idealistas russos era proveniente das Escolas Eclesiásticas. E com a influência de Hegel muitos abandonaram o estudo da teologia que aos poucos foi sendo substituída pela filosofia idealista, compreendida apenas em parte. Dessa forma, a filosofia cristã e a teologia científica tornaram-se insuficientes empobrecendo culturalmente a Igreja que logo se viu à mercê das correntes liberais protestantes abrindo caminho para um profundo ceticismo religioso. “Assim, a teologia, além de não exercer o necessário influxo na cultura profana, ainda se tornou culpável pela rebelião que inflamaria a muitos jovens, iniciados no estudo da teologia, contra o sistema da rígida disciplina que o Estado impunha à Igreja” (SIEGMUND, 1966, p. 314). Além disso, os jovens iniciados em teologia eram um grupo de seminaristas apóstatas que desejavam apropriar-se das novidades e que segundo eles lhes eram vetado nas Escolas __________________________________________________________________________ Anais da IX Semana Acadêmica de Filosofia – UNICENTRO Problemas Filosóficos da Contemporaneidade

Eclesiásticas. E foi este grupo que introduziu o espírito de negação total nos jovens da época. Deste modo, o niilismo tornou-se um inesgotável tema nas discussões de estudantes famintos e intelectuais aristocratas. O principal interesse era negar tudo o que é proveniente da autoridade e da tradição afirmando como válido apenas o que é perceptível aos sentidos humanos buscando viver livre de todo vinculo social e moral recusando toda forma de ordem existente reclamando o direito de viver como indivíduo numa total independência (cf. HOETZSCH, 1966, p.152). Contudo, o niilismo russo, ao radicalizar seus princípios, buscava retirar do âmbito da religião e do Estado toda a capacidade de reger os passos do homem. Assim, todas as ideias, as normas, os valores, a alma e o espírito cultivado pela civilização do século XIX deveriam ser negados, uma vez que eram considerados como ilusões e nulidades fadadas a extinguir-se. Envolvido numa revolta anti-metafísica e anti-romântica dos “filhos contra os pais” o movimento niilista russo servia ao imperativo de negar a qualquer preço, renegando o passado, condenava o presente. No entanto, nessa necessidade de prosseguir a todo custo, tornavam-se incapazes de abrir-se a uma configuração positiva e concreta do futuro, embora coerentes em sua proposta individualista e utilitarista de sustentar uma rebelião contra o poder e a cultura dominante (cf. VOLPI, 1999, p. 37). Como simples sintoma de dissolução associado a um individualismo exacerbado, o niilismo russo não alcançou o necessário para uma revolução. Foi necessária a confluência de uma expectativa escatológica, um ideal mistificado, de uma verdade libertadora e que, embora de origem cristã, havia se secularizado a muito tempo. Tal perspectiva, com tendências à radicalização absoluta desde a muito disseminada entre a massa passou a ganhar forças

“à medida que o ideal czariano se desintegrava, quanto mais crescia entre o povo a insatisfação, e quanto a desmoralização das guerras repercutia entre o povo tanto mais influência conseguiram estes revolucionários sobre as grandes massas, necessária para que a revolução vingasse” (SIEGMUND, 1966, p. 315).

A partir de então o niilismo russo passou a tomar como pano de fundo uma mentalidade cristã ainda não corrompida. Suas ações revolucionárias bem como suas discussões ideológicas encontravam-se sob a sombra de sua consciência cristã. Lutavam por uma causa sagrada, uma vez que o Czar, ao por-se à frente da Igreja como ungido de Deus concebera a pior blasfêmia. Assim, a luta pela liberdade incluía, se preciso fosse, matar o Czar. Certamente um pecado imperdoável, no entanto, pecar e morrer pelo povo era um __________________________________________________________________________ Anais da IX Semana Acadêmica de Filosofia – UNICENTRO Problemas Filosóficos da Contemporaneidade

sacrossanto dever (cf. SIEGMUND, 1966, p.315). No entanto, poucos foram os resultados concretos. Uma série de condenações e deportações em massa no início da década de 1880, fizeram surgir, na exacerbação dos contrastes sociais, o movimento da “Vontade do Povo” cuja principal meta a atingir para efetivar a mudança era extinguir o símbolo do poder: matar o Czar, ato que foi efetivado em 1º de abril de 1881. Sobreveio então, a mais violenta repressão na qual foi capturado Serguei Netchaiev autor do “Catecismo Revolucionário” cujas teses “se distinguem por um impiedoso senso de organização em prol da fé revolucionária” (VOLPI, 1999 , p. 39). Ora, a concepção radical de conceber a ação revolucionária foi compartilhada por Mikhail A. Bakunin o qual exaltava a negação radicalizando seu niilismo associando-o a ideais anarquistas, socialistas utópico-libertários. Por outro lado, Aleksandr I. Herzen, de idéias moderadas e concretas recusava os extremismos de Netchaiev e Bakunin, preferindo lutar pela “moderação que o amor à cultura e à história lhe passava” (VOLPI, 1999, p. 40). Herzen veio a tornar-se o principal teórico do populismo. Portanto, o niilismo russo, mais do que uma negação de toda a tradição e religião e metafísica fundamentada na opressão, constituiu o principal fomento para uma vasta produção intelectual que influenciou, não apenas os movimentos libertários, da Rússia, ligados à ideologia socialista, mas também o Ocidente através de sua derivação em populismo e anarquismo. Dentre os principais méritos deste movimento destaca-se sua influência em relação às mulheres ao reconhecer-lhes a igualdade de direitos perante aos homens contribuindo para a dignificação do trabalho e a libertação de muitos preconceitos familiares.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HOETZSCH, Otto. A Evolução da Rússia. Lisboa: Editorial Verbo, 1966. SIEGMUND, Georg. O Ateísmo Moderno. Tradução de Bruno Rabuske e Frederico Laufer São Paulo: Edições Loyola, 1966. TRAGTENBERG, Maurício. A revolução Russa. São Paulo: Atual 1988. TROYAT, Henri. A vida cotidiana na Rússia no tempo do ultimo Czar. Trad. Maria da Graça Lameiras Fernandes. Lisboa: Edição Livros do Brasil. VOLPI, Franco. O niilismo. Tradução de Aldo Vanucchi. São Paulo: Edições Loyola, 1999. __________________________________________________________________________ Anais da IX Semana Acadêmica de Filosofia – UNICENTRO Problemas Filosóficos da Contemporaneidade

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