O NORDESTE BRASILEIRO NAS TRÊS PEÇAS PARA VIOLA E PIANO DE GUERRA- PEIXE

May 17, 2017 | Autor: Rafael Friesen | Categoria: Piano, Viola, Nacionalismo Musical, Cesar Guerra-Peixe
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O NORDESTE BRASILEIRO NAS TRÊS PEÇAS PARA VIOLA E PIANO DE GUERRAPEIXE

Rafael Friesen Universidade Federal de Roraima - [email protected]

Resumo: A pesquisa aqui apresentada busca demonstrar alguns dos elementos caracteristicamente brasileiros utilizados por César Guerra-Peixe em suas obras. O trabalho buscou aspectos típicos da música nordestina e considerou estes em posterior análise das Três Peças para viola e piano. Foi possível encontrar modos, ritmos característicos, sistemas de afinação e analogias a música de rituais religiosos da região. Palavras-chave: Guerra-Peixe. Nacionalismo. Análise. Viola. Piano. Abstract: The research presented here demonstrates some of the typically Brazilian elements used by César Guerra-Peixe in his works. The study aimed to typical aspects of northeastern brazilian music and considered them in further analysis of the Três Peças (Three Pieces) for viola and piano. It was possible to find scales, typical rithms, tuning sistems and analogies to religious rituals from this region. Keywords: Guerra-Peixe. Nacionalism. Analysis. Viola. Piano.

1. Introdução O compositor César Guerra-Peixe é figura importante do nacionalismo musical brasileiro e, de acordo com Faria Jr., seu trabalho costuma ser dividido em três fases distintas (FARIA JR., 1997, 11). Randolf Miguel sugere o acréscimo de uma quarta, à qual chama de “fase de transição”, entre a dodecafônica e a nacionalista (MIGUEL, 2006, 28). Norteado pela leitura dos trabalhos de Mário de Andrade, que afirmou que “música artística não é fenômeno popular, porém desenvolvimento deste” (ANDRADE, 1972, s/n), os conflitos internos do compositor enquanto “adepto da vertente dodecafônica” (MILANI, 2008, 35) foram calados. O desejo de escrever música nacionalista somado à insistência de Mozart de Araújo (FRIESEN, 2011, 10) levaram Guerra-Peixe a Pernambuco, onde realizou pesquisa in loco e encontrou o folclore nordestino. Daí foi extraído material musical aproveitado em muitas de suas obras, inclusive nas Três Peças para viola e piano. A escassez de material sobre a música brasileira, mencionada por Milani em sua dissertação (MILANI, 2008, 15), é maior quando se trata de obras para viola. A pesquisa realizada por Friesen (2011) buscou sanar parcialmente esta lacuna. Da mesma forma o presente trabalho pretende fazê-lo, apresentando os resultados desta pesquisa, onde o material comum ao populário brasileiro é usado por Guerra-Peixe como matéria-prima em suas composições.

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A pesquisa em questão buscou encontrar modos, melodia, ritmo e harmonia nordestinos. A seguir foram pontuados elementos comuns às Três Peças para viola e piano e à música nordestina. 2. Sobre a música nordestina Em meados da década de 1950 Guerra-Peixe mudou-se para Pernambuco, onde pretendia fazer “uma ‘imersão’ na cultura da região” (idem). Ele que buscava compor sem copiar os temas folclóricos, mas à maneira destes (FARIA JR., 1997, 85), buscava uma fonte de “matéria-prima pura” para sua música nacionalista. A mesma proposta de Ariano Suassuna com o Movimento Armorial (FRIESEN, 2011, 12). O compositor chegou a reclamar da falta de execução de maracatus e frevos nos bailes, por causa de influência estrangeira. Apesar disso a sua pesquisa in loco forneceu material para a produção de obras da fase nacionalista do compositor. Esta deu-se após 1954, pois Guerra-Peixe parou de compor por um tempo, para perder o “vício do dodecafonismo” (FARIA JR., 1997, 59). De acordo com Milani, “encontramos a afirmativa de que o crescente predomínio da harmonia modal no final do século XIX, advindo do uso das escalas modais na música folclórica, influenciou os compositores nacionalistas” (2008, 102). Em artigo escrito ao Jornal do Comércio em 1963, Guerra-Peixe contesta Ênio de Castro e Freitas1 (GUERRA-PEIXE, 1963, s/n). Este afirmou que haveria razão para a predominância dos modos maior e menor no folclore brasileiro. Guerra-Peixe reforça em seu artigo que diversos estudiosos e outros documentos publicados testemunham a existência de muitos modos diferentes aos citados por Castro e Freitas. Em A influência africana na música do Brasil (1982), publicada em 1985, o compositor afirmou que há dez modos recorrentes neste país: dórico, frígio, lídio, hipodórico, hipofrígio, hipolídio, o modo maior europeu e seus três modos menores (GUERRA-PEIXE, 1985, s/n). Exemplos poderiam ser encontrados “nos baiões de Luiz Gonzaga, nos aboios, nos ‘caboclinhos’” (idem) e nas músicas dos violeiros, além dos frevos, no pastoril e outras manifestações populares. Modos com quantidades pouco usuais de notas foram encontrados pelo compositor em xangôs e maracatus. Além disso ele apresenta o total de quarenta e nove modos de origem africana. No texto de Friesen temos a informação de que tanto Elba Braga Ramalho quanto José Siqueira afirmam que a influência jesuíta no nordeste brasileiro deixou dois modos bastante recorrentes (2011, 17). Estes contém equivalentes europeus nos modos mixolídio e lídio, como podemos ver nos exemplos abaixo, ambos com fundamental na nota Dó.

Ex. 1: modo mixolídio, chamado por SIQUEIRA de I modo.

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É possível que tenha havido um equívoco na publicação do texto em questão e o nome correto seja Ênio de Freitas e Castro.

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Ex. 2: modo lídio, chamado por SIQUEIRA de II modo.

Este último autor apresenta um terceiro modo recorrente na música nordestina. Este modo, apresentado no exemplo 3, é chamado por ele de modo misto, por conter as alterações dos outros dois modos apresentados acima. Siqueira afirma, também, que este deve ser considerado o modo nacional, por não encontrar equivalente nos modos europeus.

Ex. 3: III modo ou modo misto.

Além da herança jesuíta, Siqueira afirma que o III modo também pode ter sofrido influência da série harmônica. Ele mostra como os dois primeiros acidentes encontrados na série (na fundamental Dó são as notas Sib e Fá#, como visto no Exemplo 4) são exatamente as notas que diferenciam o III modo do modo maior tradicional

Ex. 4: na série harmônica de Dóépossível perceber que as notas Fá# e Sib são os acidentes que aparecem no modo misto.

O mesmo autor ainda apresenta mais três modos alterados, que seriam como “relativas”, pois se iniciam no sexto grau dos modos citados acima. Destes, dois possuem equivalentes europeus, como é possível notar nos exemplos abaixo.

Ex. 5: I modo alterado, equivalente ao frígio. O exemplo tem sua fundamental em Lá, que éo sexto grau do I modo, daísua comparação com as escalas relativas.

Ex. 6: II modo alterado, equivalente ao dórico. O exemplo tem sua fundamental em Lá, que éo sexto grau do II modo, daísua comparação com as escalas relativas.

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Ex. 7: III modo alterado, sem equivalente europeu. O exemplo tem sua fundamental em Lá, que éo sexto grau do III modo, daísua comparação com as escalas relativas.

Quando aborda características melódicas da música brasileira, Friesen menciona autores diversos e apresenta adjetivos como “serelepe” e “afeiçoada às frases descendentes” (idem, 19), além do uso habitual de terças paralelas em rezas-de-defunto. No que diz respeito ao ritmo, este mesmo autor apresenta afirmações de Mário de Andrade para embasar “um certo ad libitum rítmico, devido à dicção” (idem, 20), resultado da prosódia brasileira. Este aspecto se faz mais intenso no canto nordestino. Além disso a síncopa, “mais derivada dos portugueses do que dos africanos” (idem), é uma constante. Os autores mencionados no texto de Friesen afirmam existir uma certa liberdade rítmica na música nordestina, resultando inclusive em oscilações de acentuação métrica, onde o “executante pode desprezar o compasso, desde que não despreze o tempo” (idem, 21). Friesen, ao citar Wagner Ribeiro e José Siqueira, afirma não existir “uma harmonia própria da música brasileira” (idem), e que a forma tradicional de nomear acordes deve ser evitada no folclore deste país. O mesmo vale para as cadências. Ou seja, qualquer acorde pode servir de início e/ou fim de qualquer música. 3. As Três Peças para viola e piano As obras em questão estão localizadas cronologicamente após o período de estadia de Guerra-Peixe em Pernambuco, quando ele já tinha retornado a São Paulo. São peças relativamente curtas, tal qual suítes. A escolha por tal estrutura pode ter sido motivada por Mário de Andrade, como meio de desenvolver a técnica composicional (idem, 15). A primeira das obras, um Allegretto moderato, também é conhecida como “Baião2 de viola”. Os cantadores3 nordestinos nomeiam desta forma a parte instrumental que dá início a uma cantoria ou que está entre uma estrofe e outra. Em um CD organizado por Antonio Madureira4 é possível encontrar uma gravação de uma execução em uma viola nordestina comumente usada nessa região. A obra executada apresenta uma célula rítmica semelhante à apresentada no exemplo 8. Esta célula é utilizada por Guerra-Peixe em quase toda a primeira das três obras em questão. No exemplo 9 vemos uma forma de utilização deste toque5.

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Lúcia Gaspar afirma que o termo “baião" é derivado de “baiano”, que é um misto de música, poesia e dança. Cantador é um termo comumente usado para designar repentistas. Suas músicas costumam ser acompanhadas por viola nordestina e pandeiro. 4 Antonio Madureira foi integrante de um importante grupo que participou do Movimento Armorial liderado por Suassuna. 5 Toque é o termo popular que designa o aspecto rítmico de um acompanhamento, de acordo com Maracatus do Recife de Guerra-Peixe. 3

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Ex. 8: Exemplo de célula rítmica de um baião de viola, em RéMaior.

Ex. 9: Aplicação do toque apresentado no exemplo 8.

A viola também executa uma espécie de ostinato rítmico derivado do já mencionado toque. Difere do piano por não incluir as duas últimas colcheias. Nos exemplos 10 e 11 vemos o inciso rítmico usado e a parte da viola, onde podemos perceber como ele é insistentemente utilizado.

Ex. 10: Exemplo do inciso rítmico usado na parte da viola.

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Ex. 11: Partitura da viola com utilização bastante recorrente do inciso rítmico demonstrado no exemplo 10.

Além dessa espécie de ostinato usado por ambos instrumentos, a parte do piano contém notas graves que remetem a sistemas de afinação da viola nordestina. Friesen afirma ter encontrado dois sistemas compatíveis com essas notas (idem, 24), os quais estão apresentados nos exemplos 12 e 13.

Ex. 12: Sistema de afinação de viola nordestina denominado “cana verde”ou “cururu”.

Ex. 13: Sistema de afinação de viola nordestina denominado “oitavado”, “de guitarra”ou “ponteado do Paraná”.

Ao analisar esta obra Friesen afirma ter sido possível constatar a utilização dos modos sugeridos por Siqueira, a saber o II modo alterado, o I modo e o II modo (idem, 46). Na segunda das três peças, Andantino, ou Reza-de-Defunto ocorrem repetição e variação de células rítmicas. Isto “pode ser comparado ao canto responsorial, comum entre a ‘rezadêra’ e os ‘sentinelas6’ durante os velórios populares” (idem, 32). No exemplo abaixo é possível notar a analogia.

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Os velórios populares pesquisados por Guerra-Peixe recebiam o nome de rezas-de-defunto. Elas possuem liturgia conduzida por um líder denominado rezadô, rezadêro ou rezadêra e respondida de forma responsorial por homens e mulheres denominados sentinelas. As rezas-de-defunto são exclusivamente vocais.

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Ex. 14: Demonstração de analogia ao canto responsorial utilizado em rezas-de-defunto.

Nas rezas-de-defunto o canto é realizado a duas vozes, geralmente em terças paralelas. Este aspecto não é imitado por Guerra-Peixe na obra em questão, mas o compositor se utiliza de terças descendentes em alguns compassos, como demonstrado no exemplo abaixo.

Ex. 15: Exemplos da utilização de terças melódicas na parte da viola. Os compassos 5, 7 e 14 são apresentados aqui.

Na peça em questão o piano realiza pouco mais que o acompanhamento harmônico. Além da alusão ao responsório demonstrado no exemplo 14, as células rítmicas repetidas e variadas no final da obra, são os únicos momentos em que o piano executa mais do que mero acompanhamento harmônico. Tal demonstração vemos no exemplo 16.

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Ex. 16: Um dos dois trechos da obra em que o piano executa mais que mero acompanhamento harmônico. Neste caso ocorre repetição e variação de célula rítmica.

Os modos característicos da música nordestina que puderam ser encontrados nessa obra foram o eólio, o I modo, o II modo e o I modo alterado (idem, 46). A última das Três peças analisadas também é chamada de Toque Jêje. Este “é um termo pejorativo usado para designar povos trazidos como escravos de várias regiões da África Central e África Ocidental” (idem, 34) e significa “estrangeiro, estranho”. Esta obra remete a um canto do povo jêje, e sua música é usada no candomblé e na umbanda. Durante a obra ocorre a repetição intensa do motivo rítmico abaixo, que remete o ouvinte a um som de “batucada” do candomblé, com efeito hipnótico e possível propósito de produção de transe.

Ex. 17: Motivo rítmico muito usado na terceira das Três Peças para viola e piano de Guerra-Peixe.

Ex. 18: Motivo rítmico da obra sendo apresentado pela viola.

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Ex. 19: Motivo rítmico da obra sendo apresentado pelo piano.

Ex. 20: Motivo rítmico encontrado na obra e utilizado de maneira responsorial entre piano e viola.

Ernani Aguiar afirma que este ritmo é derivado de um toque chamado “cego” e que a obra se utiliza de um “ritmo dos xangôs pernambucanos” e de “um recitativo baseado em um canto que faz o sacerdote em determinados momentos das cerimônias” (AGUIAR apud FRIESEN, 2011, 35). Dentre os modos utilizados nessa peça foi possível encontrar o modo eólio e o II modo alterado. 4. Conclusão - 171 -

Guerra-Peixe foi um compositor que, motivado pela leitura de textos de Mário de Andrade, buscou elementos nacionalistas no nordeste brasileiro. Nesta região o compositor buscou fazer uma espécie de “imersão” cultural para, posteriormente, usar o material coletado em suas composições. As Três Peças para viola e piano, de 1957, se enquadram nesse último período, onde Guerra-Peixe já possuía o material do sertanejo nordestino e o aplicava em obras que Mário de Andrade chamava de “música artística” (ANDRADE, 1972, s/n). Na pesquisa foi possível encontrar elementos dessa fonte sertaneja, especialmente no que tange aos modos e ao ritmo. O Allegretto moderato, também chamado de Baião de viola, apresenta um ritmo comumente usado nas violas nordestinas por cantadores da região. Esta peça também remete o ouvinte a dois sistemas de afinação dessas violas, uma chamada de “cana verde” ou “cururu” e a outra “oitavado”, “de guitarra” ou “ponteado do Paraná”. Os modos utilizados foram o I modo, o II modo e o II modo alterado. Na segunda obra, Andantino ou Reza-de-defunto, foram encontradas analogias ao canto responsorial comum a essa liturgia, bem como a utilização de terças e os seguintes modos: eólio, I modo, II modo e I modo alterado. Já no Allegretto que também é chamada de Toque Jêje, o elemento mais marcante é o ritmo, que se utiliza de um toque chamado “cego”, utilizado em cerimônias do candomblé pernambucano. Nesta obra foram encontrados os modos eólio e II modo alterado. Com base na pesquisa é possível afirmar que Guerra-Peixe utilizou-se de elementos característicos da música nordestina para compor suas Três Peças para viola e piano, a saber, os modos eólio, I modo, II modo, I modo alterado e II modo alterado, um ritmo e dois sistemas de afinação comuns à viola nordestina, analogias a liturgias fúnebres realizadas no nordeste brasileiro, melodias com terças e um ritmo do candomblé pernambucano. Referências bibliográficas AGUIAR, E. Resenha. Disponível em: . Acesso em 10 abr 2015. ANDRADE, M. Ensaio sobre a música brasileira. 3ª ed. São Paulo: Vila Rica; Brasília: INL, 1972. FARIA JR., A. E. G. Guerra-Peixe: sua evolução estilística à luz das teses andradeanas. Rio de Janeiro, 1997. Dissertação. Rio de Janeiro: UNI-RIO, CLA, 1997. FRIESEN, R. Elementos de música nordestina nas Três Peças para viola e piano de César GuerraPeixe. Curitiba, 2011. Trabalho de conclusão de curso (Especialização em performance). EMBAP, Curitiba, 2011. GUERRA-PEIXE. A influência africana na música do Brasil. In: III CONGRESSO AFROBRASILEIRO. 1985, Recife. Editora Massangana. Disponível em . Acesso em 10 abr 2015. ______. Escalas musicais do folclore brasileiro. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 1963. Disponível em: . Acesso em 10 abr 2015.

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MADUREIRA, A. Iniciação aos instrumentos musicais do nordeste. Pernambuco: Ancestral. Compact Disc. Faixa 5. MIGUEL, R. A estilização do folclore na composição de Guerra-Peixe. Rio de Janeiro, 2006. 107f. Dissertação (Mestrado em Música Brasileira). UNI-RIO, Rio de Janeiro, 2006. MILANI, M. M. Prelúdios tropicais de Guerra-Peixe: uma análise estrutural e sua projeção na concepção interpretativa da obra. Salvador, 2008. 236f. Dissertação (Mestrado em Execução Musical). Universidade Federal da Bahia - Programa de Pós-graduação em Música, 2008. RAMALHO, E. B. Cantoria nordestina: música e palavra. São Paulo: Terceira Margem, 2000. SIQUEIRA, J. O sistema modal na música folclórica do Brasil. João Pessoa, [s.i.e.], 1981.

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