O novo marco regulatório do Terceiro e a disciplina das parcerias entre Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público

May 26, 2017 | Autor: L. Coelho Ribeiro | Categoria: Direito Administrativo, Direito Público, Terceiro Setor, Contratos Administrativos, Parcerias sociais
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O novo marco regulatório do Terceiro Setor e a disciplina das parcerias entre Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público Leonardo Coelho Ribeiro Mestrando em Direito Público pela UERJ. Coordenador do LL.M em Direito da Infraestrutura e do Curso de Regulação da Infraestrutura e dos Recursos Naturais – Ibmec. Professor de Direito Administrativo em cursos de pós-graduação. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/RJ e do IAB. Advogado.

Resumo: Este artigo se dedica a investigar a disciplina das parcerias entre as Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público à luz do novo marco regulatório do Terceiro Setor, disciplinado na Lei nº 13.019/2014. Palavras-chave: Terceiro setor. Lei nº 13.019/2014. Marco regulatório. Parceria voluntária. Convênio. Lei nº 8.666/1993. Qualificação jurídica. Organização Social. Organização da Sociedade Civil de Interesse Público. Termo de Colaboração. Termo de Fomento. Parcerias inominadas. Contrato de gestão. Termo de Parceria. Sumário: I Introdução – II O Terceiro Setor em uma breve contextualização – III O regime jurídico atual das parcerias entre o Poder Público e o Terceiro Setor – IV A Lei nº 13.019/2014 e a questão das normas gerais – V As restrições à Lei nº 8.666/1993 e aos partícipes dos convênios – VI O novo marco regulatório do Terceiro Setor e os ajustes entre as Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público – Conclusão – Referências

I Introdução Em julho de 2014 foi promulgada a Lei nº 13.019, encarregada de definir o novo marco regulatório das parcerias entre as Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público. Em seus mais de 80 artigos, a lei institui o novo regime de forma ampla e deta­ lhada, o que exigirá severo trabalho interpretativo e esforço de compreensão por parte dos agentes atuantes no setor para se adequarem às novas regras. Nesse contexto, assume grande relevância analisar os modelos de parceria entre as Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público, ao modo no qual disciplinados pelo novo marco, pois serão eles os principais instrumentos que irão ditar as relações jurídicas do Terceiro Setor.

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Há, nessa matéria, novidades e cautelas a serem tomadas, bem como lacunas que precisam ser interpretativamente preenchidas. A propósito delas é que dedico este artigo. Para cumprir esse objetivo, farei breves considerações sobre o atual modelo dos ajustes celebrados entre o Poder Público e o Terceiro Setor e apresentarei a nova Lei nº 13.019/2014, a fim de permitir a compreensão básica de suas linhas gerais, de modo que, a partir daí, seja possível analisar as principais questões gerais sobre a nova lei e, especificamente, sobre o novo arranjo das parcerias jurídicas que estipula.

II O Terceiro Setor em uma breve contextualização Partindo da abordagem que estratifica a sociedade em três grandes setores, o Estado, composto por entidades que exercem atividades de interesse público, é tido como seu Primeiro Setor; e o mercado, integrado por agentes econômicos que nele atuam na busca da realização de interesses privados, é designado como seu Segundo Setor. Por sua vez, o Terceiro Setor pode ser configurado como aquele no qual, hibri­ damente, entidades privadas da sociedade civil, sem fins lucrativos, são criadas para atuar com o propósito de efetivar finalidades de interesse coletivo. Dentre suas notas características, as entidades da sociedade civil integrantes do Terceiro Setor costumam exercer suas atividades por meio de parcerias/convênios, celebrados com o Estado, de uma forma mais direta e menos burocrática, para assim realizarem interesses sociais compartilhados. Dessa maneira é que se vai desen­ volvendo uma relação de proximidade entre as entidades do Primeiro e do Terceiro Setor. Por força dessa relação de proximidade, o crescimento do Terceiro Setor pode ser associado ao fenômeno da Reforma do Estado,1 já que por meio dessas delega­ ções sociais caracterizadas nos ajustes celebrados entre o Estado e o Terceiro Setor, o Poder Público devolve à sociedade civil a execução de atividades de interesse da coletividade, retirando-se de sua execução direta,2 de modo a focar naquilo que não é passível de delegação a particulares. Trata-se de uma expressão do princípio da subsidiariedade que, diante do engran­ decimento excessivo do Estado de Bem-Estar Social, acumulador de muitas funções

Sobre o tema, cf.: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Uma reforma gerencial da Administração Pública no Brasil. In: Revista de Serviço Público, Brasília, ano 49, jan./mar. 1998. 2 Neste sentido, confira-se a colocação de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para quem com essas delegações sociais se busca: “devolver à sociedade organizada as atividades que, não obstante apresentem um definido interesse público, possam dispensar o tratamento político-burocrático e, ordinariamente, o emprego do aparelho coercitivo estatal, o Poder Público retrai-se a uma atuação subsidiária da atividade gestora das entidades privadas, sempre que estas possam apresentar superiores condições de eficiência”. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 549.

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e interesses da coletividade, e colhendo origem em encíclicas papais do século XX, passou a pregar a devolução da tutela de interesses públicos antes à socie­dade civil, deixando-os apenas supletivamente ao Estado.3 Dessa forma, o Estado não se demite da função de efetivar o interesse público, que é sua finalidade última e mesmo justificativa existencial.4 Mas busca, por meio de parcerias consensuais, fazê-lo junto com entidades do Terceiro Setor que tenham sido criadas enfocando certo propósito de interesse público buscado em concreto, e possam, assim, se encarregar de sua execução de uma forma mais participativa e próxima da sociedade civil, melhor refletindo seus anseios. Neste cenário é que se situam os ajustes celebrados entre o Estado e as entidades da sociedade civil integrantes do Terceiro Setor, também conhecido como o espaço público não estatal.

III O regime jurídico atual das parcerias entre o Poder Público e o Terceiro Setor Por força do caráter consensual presente nas relações entre o Poder Público e as entidades do Terceiro Setor, que compartilham a realização de interesses públicos, a natureza jurídica dos ajustes que instrumentalizam essas parcerias se diferencia daquela presente nos contratos. Caracterizados em comparação aos contratos, que ostentam obrigações contra­ postas, na medida em que uma parte espera receber o objeto ou prestação, ao passo que a outra espera receber uma retribuição econômica pelos serviços realizados, os ajustes celebrados entre entidades do Terceiro Setor e do Poder Público, assim como os ajustes celebrados entre duas entidades igualmente públicas,5 assumem a natu­ reza jurídica de convênios,6 justamente em decorrência da convergência de interesses entre seus partícipes.

O princípio da subsidiariedade colhe seus primeiros fundamentos nas encíclicas Quadragesimo Anno (1931), Mater et Magister (1961) e Centesimus Annus (1991). Sobre o tema, cf.: BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2000; TORRES, Silvia Faber. O Princípio da Subsidiariedade no Direito Público Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; WILLEMAN, Marianna Montebello. O princípio da subsidiariedade e a Constituição da República de 1988. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Org.). Os Princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 545-556. 4 Como registra Maria João Estorninho: “é fundamental afirmar, sem deixar margem para dúvidas, que o interesse público é indissociável de toda e qualquer atividade administrativa”. ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da atividade de direito privado da Administração Pública. Almedina: Coimbra, 2009, p. 167. 5 Como anota Marçal Justen Filho: “Os Convênios são manifestações do dever de colaboração entre os entes estatais, entre si ou com a sociedade civil. (...) Convênio é um acordo de vontades, em que pelo menos uma das partes integra a Administração Pública, por meio do qual são conjugados esforços e (ou) recursos, visando disciplinar a atuação harmônica e sem intuito lucrativo das partes, para o desempenho de competências administrativas”. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008, p. 871. 6 Por decorrência de nosso modelo cooperativo de federação, a Constituição incentiva a celebração de convênios entre entes públicos em seu art. 241: Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios 3



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A saber, em um convênio: i) os partícipes buscam realizar um objetivo comum; ii) eventual repasse de recursos ou bens será sempre vinculado à realização deste mesmo objetivo; iii) no caso de haver repasses de recursos, será devida posterior prestação de contas de seu emprego em acordo ao programa de trabalho que orienta a execução do convênio; e iv) os convenentes costumam ter liberdade para desistirem do ajuste celebrado, independentemente de penalidades. Presentes essas características, pouco importa o nome conferido ao ajuste na prática, quando a criatividade entra em cena e sobram termos, convênios e ajustes que devem ser redirecionados à natureza jurídica de convênio, instrumento que, como visto, pode ser utilizado tanto em relações entre duas entidades públicas quanto entre uma entidade pública e uma entidade privada do Terceiro Setor. No mais, como costumam existir entidades da sociedade civil com propósitos de ação semelhante, e igual interesse em celebrar convênios com o Poder Público, além da preocupação de fiscalizar o adequado emprego dos recursos repassados mediante certos convênios, a Lei nº 8.666/1993 se vale de uma formulação aberta para conferir alguns contornos à celebração desses ajustes.

III.1 A disciplina dos convênios e a incidência da Lei nº 8.666/1993 No exercício de sua competência fixada no artigo 22, XXVII, da CRFB, a União editou a Lei nº 8.666/1993 para estabelecer normas gerais sobre licitações e con­ tratos administrativos para as obras, serviços, compras, alienações e locações reali­ zadas pelos entes federados. A disciplina legal dos convênios sempre foi reconduzida ao art. 116 da Lei nº 8.666/1993, que dispõe: Art. 116. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos convê­ nios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração.

Como se trata de uma referência aberta, que não permite afirmar, com segurança, quais disposições da lei se aplicam aos convênios, a primeira indagação gerada está, justamente, em saber se há necessidade de preceder a escolha de uma entidade da sociedade civil por um procedimento licitatório, na hora de celebrar ajustes com o Poder Público. Adiantando a resposta, entendo que não.



disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.

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Isso porque, a propósito, o art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993, ao definir a expressão contrato, estabelece que: (...) considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou enti­ dades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada (grifo posto).

Com isso, e tendo em vista a nota característica dos convênios, que não veiculam obrigações recíprocas e contrapostas, mas esforços convergentes para alcançar um único objetivo, a exigência de procedimento licitatório prévio não se aplica no caso, na medida em que o valor colaboração, buscado neste tipo de parceria, já impede a competição e singulariza o objeto,7 incompatibilizando a realização de licitação prévia.8 A convergência de esforços em torno de um propósito, e um conjunto de ações programadas unicamente para alcançá-lo, faz com que a licitação se torne inexigível na hipótese,9 o que não se confunde, entretanto, com a imunização ao dever de obser­vância aos princípios diretores da Administração Pública, como impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, e à gestão adequada dos recursos públicos envolvidos no ajuste. Desse modo, havendo mais de um parceiro privado capaz e interessado em desenvolver as atividades necessárias à realização de certo objetivo coletivo de inte­ resse social perseguido, em respeito aos princípios da isonomia e da competitividade, vinha-se desenhando uma tendência de realizar procedimentos simplificados, capi­ta­ neada primeiro nos chamados concursos de projetos e, na sequência, em chama­ mentos públicos. Na prática, havia aqui uma liberdade de formas para celebrar ajustes entre entidades do Terceiro Setor e o Poder Público, desde que reconduzissem à essência dos convênios, bem como se notava certa ausência de normas gerais cuidando do regime jurídico do Terceiro Setor, diante da inaplicabilidade de quase toda a Lei nº 8.666/1993 às relações firmadas por seus atores, o que reforçava a descentraliza­ ção federativa do tema, tratada com grande espaço pelos entes federados, com base em sua autonomia afixada no art. 18 da CRFB.

Neste sentido, cf.: SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo das Concessões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 437. 8 Trata-se de hipótese de fato que se amolda ao disposto no art. 25 da Lei nº 8.666/1993: Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: (...) 9 Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “Enquanto os contratos abrangidos pela Lei nº 8.666 são necessariamente precedidos de licitação – com as ressalvas legais – no convênio não se cogita de licitação, pois não há viabilidade de competição quando se trata de mútua colaboração, sob variadas formas, como repasse de verbas, uso de equipamentos, de recursos humanos, de imóveis, de “know-how”. Não se cogita de preços ou de remuneração que admita competição”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Temas polêmicos sobre licitações e contratos. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 216. 7

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III.2 As qualificações jurídicas específicas para o Terceiro Setor A fim de realizar uma triagem prévia das sociedades civis com quem poderiam celebrar ajustes com natureza jurídica de convênio, dentro de regimes especiais, os entes federados passaram a legalmente estabelecer requisitos que, uma vez preen­ chidos pela entidade do Terceiro Setor, lhe conferem qualificação jurídica específica e habilitam a celebrar tais ajustes. Dessa maneira, as denominações de Organização Social (OS) e Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) foram estabelecidas como qualifica­ ções jurídicas no âmbito da União, respectivamente, pelas Leis nº 9.637/1998 e nº 9.790/1999.10 Isto posto, a entidade do Terceiro Setor qualificada como OS adquire a facul­dade de celebrar Contratos de Gestão11 com a União, ao passo que a entidade qualifi­­cada como OSCIP fica apta a celebrar Termos de Parceria,12 além de se beneficiarem, con­for­me seus regimes próprios, de vantagens tributárias e administrativas a elas limitadas. Justamente por terem sua natureza jurídica cingida à de convênios, é que tanto a denominação de Contrato de Gestão quanto a denominação de Termo de Parceria sempre receberam críticas. O primeiro deles, por não se tratar de contrato na hipótese, mas ajuste de colaboração, e o segundo, porque a expressão ‘parceria’ era utilizada pelo Código Civil de 1916 para designar parcerias privadas agrícolas e pecuárias (artigos 1.410 a 1.425). Ainda que o advento do Código Civil de 2002 tenha tirado a razão de ser da segunda crítica, o importante no ponto é perceber, novamente, que pouco importa o nome conferido ao ajuste. Preenchidas as características de um convênio em sua essên­cia, será sempre esta a sua natureza. Sinteticamente contextualizada a lógica e o espaço de atuação do Terceiro Setor, bem como situados os tipos de ajuste celebrados entre as sociedades civis que atuam nesse espaço público não estatal e o Poder Público, considerando os con­ tornos gerais recebidos da Lei nº 8.666/1993, da Lei das OS e da Lei das OSCIPS, passo então à análise do novo regime jurídico das parcerias voluntárias celebradas

Outros entes federados seguiram a tendência e fizeram o mesmo, editando leis específicas em suas esferas de atuação. 11 Cf. art. 5º da Lei das OS: “Art. 5º Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1º”. 12 Cf. art. 9º, da Lei das OSCIP: “Art. 9º Fica instituído o Termo de Parceria, assim considerado o instrumento passível de ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, destinado à formação de vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público previstas no art. 3º desta Lei”. 10

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entre Organizações da Sociedade Civil e entidades do Poder Público, diante do novo marco regulatório do Terceiro Setor, apresentado pela Lei nº 13.019/2014.

IV A Lei nº 13.019/2014 e a questão das normas gerais A Lei nº 13.019 foi promulgada em 31.07.2014 para estabelecer o regime jurídico das parcerias voluntárias, envolvendo ou não transferências de recursos financeiros,13 entre a Administração Pública e as Organizações da Sociedade Civil – OSC,14 em regi­ me de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público. Rompendo com a falta de um marco regulatório exclusivamente dedicado a dis­ ciplinar as parcerias entre o Poder Público e o Terceiro Setor, sua principal pretensão é a de instituir normas gerais para as parcerias voluntárias, de modo a se aplicarem a todos os entes federados e pessoas jurídicas que os integrem. A fim de cumprir seus objetivos conferindo alguma segurança jurídica aos ajustes em vigor, e às disciplinas específicas envolvendo OS e OSCIP,15 a lei estabeleceu regras de transição para parcerias existentes quando de sua promulgação (artigos 83 e 84)16 e ressalvou de sua incidência os regimes específicos das transferências de recursos homologadas pelo Congresso Nacional ou autorizadas pelo Senado Fede­ral, e as transferências voluntárias regidas por lei específica, naquilo em que confli­tarem, ou houver disposição expressa em contrário, bem como os contratos de

Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se: (...) III - parceria: qualquer modalidade de parceria prevista nesta Lei, que envolva ou não transferências voluntárias de recursos financeiros, entre administração pública e organizações da sociedade civil para ações de interesse recíproco em regime de mútua cooperação. 14 Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se: I - organização da sociedade civil: pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos que não distribui, entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores, eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplica integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva; 15 Neste sentido, cf.: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. O novo marco regulatório das parcerias entre a Administração e as organizações da sociedade civil: aspectos relevantes da Lei nº 13.019/2014. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, n. 46, p. 9-32, jul./set. 2014. 16 Art. 83. As parcerias existentes no momento da entrada em vigor desta Lei permanecerão regidas pela legislação vigente ao tempo de sua celebração, sem prejuízo da aplicação subsidiária desta Lei, naquilo em que for cabível, desde que em benefício do alcance do objeto da parceria. §1º A exceção de que trata o caput não se aplica às prorrogações de parcerias firmadas após a entrada em vigor desta Lei, exceto no caso de prorrogação de ofício prevista em lei ou regulamento, exclusivamente para a hipótese de atraso na liberação de recursos por parte da administração pública. §2º Para qualquer parceria referida no caput eventualmente firmada por prazo indeterminado antes da promulgação desta Lei, a administração pública promoverá, em prazo não superior a 1 (um) ano, sob pena de responsabilização, a repactuação para adaptação de seus termos a esta Lei ou a respectiva rescisão. Art. 84. Salvo nos casos expressamente previstos, não se aplica às relações de fomento e de colaboração regidas por esta Lei o disposto na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e na legislação referente a convênios, que ficarão restritos a parcerias firmadas entre os entes federados. Parágrafo único. Os convênios e acordos congêneres vigentes entre as organizações da sociedade civil e a administração pública na data de entrada em vigor desta Lei serão executados até o término de seu prazo de vigência, observado o disposto no art. 83. 13

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gestão celebrados pelas OS (art. 3º),17 aplicando-se ainda, apenas no que couber, aos Termos de Parceria celebrados pelas OSCIP.18 Em uma aproximação panorâmica, a estrutura da Lei nº 13.019/2014 parece se aproximar, em muitos momentos, àquela da Lei nº 8.666/1993, especialmente nas partes procedimentais, quando recorre a uma detalhada disciplina para cuidar de chamamentos públicos, obrigatórios e prévios à celebração da parceria, como regra, excepcionando-os, no entanto, por meio de hipóteses de dispensa e inexigibilidade (artigos 23 a 32). Em suma, é como se o legislador tivesse abandonado a fórmula “no que couber”, do art. 116 anteriormente apresentado, para agora definir um regime próprio não de “licitações e contratos administrativos”, mas de “chamamentos públicos e convênios administrativos”. Diante das detalhadas exigências e do extenso tratamento normativo confe­ rido ao tema, há aqui, certamente, um novo exemplo de legislação brasileira mais preocupado com o controle do que com a gestão de seus meios e objetivos propria­ mente considerados,19 de modo que é preciso cuidado para não adotar essa lógica excessivamente controladora na aplicação do novo regime jurídico do Terceiro Setor, deixando que a burocratização prejudique o desenvolvimento das parcerias e a forma de realização mais flexível de interesses públicos sociais que, justamente, por meio delas se busca. Pois bem. O fundamento constitucional no qual o legislador pareceu colher com­ pe­tência para editar a Lei nº 13.019/2014, ainda que não haja menção expressa, provavelmente remonta ao art. 22, XXVII,20 fazendo com que, a reboque, inevitavelmente surja a questão de sua constitucionalidade.

Art. 3º Não se aplicam as exigências desta Lei: I - às transferências de recursos homologadas pelo Congresso Nacional ou autorizadas pelo Senado Federal naquilo em que as disposições dos tratados, acordos e convenções internacionais específicas conflitarem com esta Lei, quando os recursos envolvidos forem integralmente oriundos de fonte externa de financiamento; II - às transferências voluntárias regidas por lei específica, naquilo em que houver disposição expressa em contrário; III - aos contratos de gestão celebrados com organizações sociais, na forma estabelecida pela Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998. 18 Art. 4º Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, às relações da administração pública com entidades qualificadas como organizações da sociedade civil de interesse público, de que trata a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, regidas por termos de parceria. 19 Em artigo de opinião, Carlos Ari Sundfeld registra essa patologia de Direito Administrativo nacional: “Nossos problemas na máquina pública não vêm de simples imperfeições técnicas nas leis ou nas pessoas. Vêm de algo mais profundo: da preferência jurídica pelo máximo de rigidez e controle, mesmo comprometendo a gestão pública. Boa gestão pode e deve conviver com limites e controles, mas não com esse maximalismo. Sem inverter a prioridade, não há reforma administrativa capaz de destravar a máquina. O novo lema tem de ser: mais sim, menos não; mais ação, menos pressão. Aqui vão quatro ideias interessantes a respeito”. SUNDFELD, Carlos Ari. Chega de axé no Direito Administrativo. Disponível em: . Acesso em: 22.06.2015. 20 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXVII – Normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, §1º, III. 17

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Em primeiro lugar, porque é duvidoso entender que a expressão “normas gerais de licitações e contratos” contemple também a competência para legislar sobre convê­ nios, diante das fundas diferenças existentes entre contratos e convênios, conforme afirmadas anteriormente. E, em segundo lugar, porque a disciplina legal dos convênios, constitucionalmente referidos no art. 24121 como mecanismos de cooperação entre os entes federados, deve ser elaborada no exercício da competência do art. 23, parágrafo único,22 que exige lei complementar para tanto. Argumentação semelhante, aliás, foi desenvolvida por ocasião da edição da Lei nº 11.107/2005, que, a pretexto de disciplinar os consórcios públicos referidos no mesmo art. 241 da CRFB, se valeu do mesmo art. 22, XXVII, para cuidar do tema me­diante lei ordinária.23 Não fosse isso o suficiente, há ainda grande dificuldade em definir o que deve ser tema de normas gerais24 e o que deve ser reservado à autonomia política e orga­ nizacional dos entes federados (art. 18, CRFB) e à sua competência para legis­lar sobre temas específicos que não lhe tenham sido vedados, no caso dos Estados (art. 25, §1º, CRFB), ou sejam de interesse local, no caso dos Municípios (art. 30, V, CRFB). Em matéria de licitações e contratos, por exemplo, Jessé Torres Pereira Jr., em seus Comentários à Lei nº 8.666/1993, inclusive se dedica a classificar como geral ou específico cada dispositivo legal antes de começar a investigá-lo, colaborando para a interpretação desse microssistema.25 Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. 22 Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. 23 Alice Gonzalez Borges cuidou do tema em hipótese, identificando como um dos problemas técnicos da Lei dos Consórcios Públicos: “A indissociabilidade da matéria do art. 241 com a previsão constitucional do parágrafo único do art. 23 segundo o qual ‘Lei Complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional’. Tratando-se de cooperação entre entes federados e de gestão associada de serviços públicos, e tendo sido sempre os convênios e consórcios, na melhor doutrina e segundo a tradição de nosso direito, a forma predileta de instrumentalização dessa cooperação, pensamos que o assunto estaria melhor disciplinado por lei complementar, integrativa da Constituição e de hierarquia superior à ordinária”. BORGES, Alice Gonzalez. Os consórcios públicos na sua legislação reguladora. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 7, set./nov. 2006. 24 A questão é, de fato, tortuosa. Sobre o tema, cf.: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência concorrente limitada: o problema da conceituação das normas gerais. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 25, p. 127-162, out./dez. 1988; ATALIBA, Geraldo. Normas Gerais de Direito Financeiro e Tributário e Autonomia dos Estados e Municípios. In: Revista de Direito Público – RDP, São Paulo, n. 10, p. 45-80, out./ dez. 1969; BORGES, Alice Gonzalez. Aplicabilidade de normas gerais de lei federal dos Estados. In: Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, n. 194, p. 97-106, out./dez. 1993; FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Competências administrativas dos Estados e Municípios. In: Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, n. 207, p. 1-19, jan./mar. 1997; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conceito de normas gerais no direito constitucional brasileiro. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, n. 66, mar./abr. 2011. 25 PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei das licitações e contratações da administração pública. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 21

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E o Supremo Tribunal Federal, a respeito do tema, em sede de medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 927/RS, conferiu interpretação conforme dispositivos do artigo 17 da Lei nº 8.666/1993, que cuidam da alienação de bens públicos (doação de bem imóvel e permuta de bem móvel), “para esclarecer que a vedação tem aplicação no âmbito da União Federal, apenas”. Tudo com base no argu­ mento de que tais dispositivos não poderiam ser considerados normas gerais, sob pena de violarem a autonomia de Estados e Municípios. De toda sorte, até que surjam questionamentos de sua constitucionalidade, por força da presunção de constitucionalidade que lhe é inerente, a Lei nº 13.019/2014 seguirá operando seus efeitos,26 tão logo seja ultrapassada sua estendida vacatio legis (art. 88).

V As restrições à Lei nº 8.666/1993 e aos partícipes dos convênios Como visto anteriormente, até o advento da Lei nº 13.019/2014 não havia um maior detalhamento quanto aos ajustes que as entidades do Terceiro Setor pode­riam celebrar com o Poder Público. Os convênios, enquanto gênero, eram basicamente referidos no art. 116 da Lei nº 8.666/1993, e apenas segundo uma fórmula aberta e residual, que indicava a inci­dência daquele diploma legal, no que coubesse. Com a Lei nº 13.019/2014, e ainda que não tenha sido explicitamente revogado o art. 116 da Lei nº 8.666/1993, o regime geral de licitações e contratos passa a incidir sobre as relações de fomento e de colaboração, celebradas entre o Terceiro Setor e o Poder Público, apenas em casos previstos expressamente. O art. 84 da nova lei afirma neste sentido, sem parar por aí, no entanto. Fixa também que os convênios, a partir de sua vigência, “ficarão restritos a parcerias firmadas entre os entes federados”.27 O que significa, na prática, interditar que as entidades do Terceiro Setor celebrem convênios com o Poder Público? Em princípio, não muito. Mas, no pouco que importa, importa apenas para pior. E explico o porquê. Em Direito, os institutos, ajustes e relações valem muito mais por sua essência do que por sua designação, de modo que os contornos conferidos ao ajuste celebrado

Neste sentido, cf.: CARVALHO FILHO, José dos Santos. O novo regime jurídico das parcerias voluntárias. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, n. 155, p. 21-31, nov. 2014. 27 Art. 84. Salvo nos casos expressamente previstos, não se aplica às relações de fomento e de colaboração regidas por esta Lei o disposto na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e na legislação referente a convênios, que ficarão restritos a parcerias firmadas entre os entes federados. Parágrafo único. Os convênios e acordos congêneres vigentes entre as organizações da sociedade civil e a administração pública na data de entrada em vigor desta Lei serão executados até o término de seu prazo de vigência, observado o disposto no art. 83. 26

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entre uma entidade do Terceiro Setor e o Poder Público é que delimitarão sua natu­ reza jurídica. Como mencionado, aliás, sempre foi praxe denominar ajustes dotados com as características típicas de convênios por outros nomes, como Termo de Colaboração, Protocolo de Intenções, Termos de Cooperação etc. Em matéria de nomes, a criativi­ dade do administrador público nunca foi problema. Sendo assim, aproximando-se o ajuste às características típicas de um convênio, já indicadas anteriormente, pouco importará o nome adotado: terá o instrumento jurí­ dico a natureza do que se vem denominando até aqui por convênio, e não de contrato.28 No fim do dia, no entanto, reservar a nomenclatura ‘convênio’ para designar apenas relações de parceria entre dois entes federados acaba representando um des­ serviço ao conhecimento construído, porque joga incerteza sobre o emprego de uma designação consagrada e amplamente utilizada para instrumentalizar parcerias entre o Terceiro Setor e a Administração Pública. De maneira que há, diante disso, uma observação importante por fazer: segundo o art. 41 da Lei nº 13.019/2014, “é vedada a criação de outras modalidades de parceria ou a combinação das previstas nesta Lei”, ressalvados apenas os Contratos de Gestão e Termos de Parceria das Leis das OS e das OSCIP, respectivamente.29 30 Ora, se os convênios foram restringidos à instrumentalização das relações entre dois entes federados e, diante do novo marco regulatório do Terceiro Setor, a criati­ vidade do administrador público em inventar novas denominações a ajustes com natu­ reza de convênio foi podada, é preciso mapear quais passam a ser as moda­lidades de parceria disponíveis para formalizar a relação entre Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público.

Alexandre Santos de Aragão discorre neste sentido: “Muitas vezes os convênios são formalmente denominados por outros termos. A expressão “Termo de Cooperação”, por exemplo, não corresponde a uma natureza jurídica própria, a um instituto jurídico específico do Direito Administrativo. Trata-se de mais uma expressão, entre as muitas análogas que têm sido adotadas na práxis administrativa (“Termo de Cooperação Técnica”, “Termo de Cooperação Institucional”, “Acordo de Programa”, “Protocolo de Intenções”, “Ajuste de Desenvolvimento de Projetos” etc.), que vai corresponder a uma das duas modalidades básicas de negócios jurídicos travados pela Administração Pública: o contrato administrativo ou o convênio administrativo”. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 336. No mesmo sentido, cf.: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. O novo marco regulatório das parcerias entre a Administração e as organizações da sociedade civil: aspectos relevantes da Lei nº 13.019/2014. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, n. 46, p. 9-32, jul./set. 2014. 29 Art. 41. É vedada a criação de outras modalidades de parceria ou a combinação das previstas nesta Lei. Parágrafo único. A hipótese do caput não traz prejuízos aos contratos de gestão e termos de parceria regidos, respectivamente, pelas Leis nº 9.637, de 15 de maio de 1998, e nº 9.790, de 23 de março de 1999. 30 A vedação à criação de novas modalidades, ou de sua combinação, segue a mesma lógica da Lei nº 8.666/1993, comprovando a aproximação de estruturas do novo marco regulatório do Terceiro Setor. Confirase a redação do art. 22, §8º, da Lei nº 8.666/1993: “Art. 22. São modalidades de licitação: I - concorrência; II - tomada de preços; III - convite; IV - concurso; V - leilão. §8º É vedada a criação de outras modalidades de licitação ou a combinação das referidas neste artigo”. 28

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VI O novo marco regulatório do Terceiro Setor e os ajustes entre as Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público Enquanto interditava a criatividade do administrador público para a nomina­ção de ajustes com natureza de convênio (art. 41, Lei nº 13.019/2014), o legislador assu­mia, ele próprio, esse protagonismo criativo ao definir novos tipos de ajustes que poderão ser celebrados entre o Poder Público e as Organizações da Sociedade Civil. Adiante-se, nem sempre norteado por um critério tão útil assim. Com efeito, o novo marco regulatório do Terceiro Setor trouxe à tona dois novos tipos de ajuste: o Termo de Colaboração e o Termo de Fomento. E esses ajustes serão, a partir da vigência da lei, as modalidades por excelência utilizadas para instrumen­ talizar a relação entre entidades do Terceiro Setor e o Poder Público. O Termo de Colaboração tem seu emprego indicado para os casos de transfe­ rências voluntárias de recursos públicos para a consecução de planos de trabalho propostos pela Administração Pública, em regime de mútua cooperação com Organi­ zações da Sociedade Civil, selecionadas por meio de chamamento público, ressalvadas as exceções legais (art. 16).31 De outro giro, o Termo de Fomento tem seu emprego indicado para os casos de trans­ferências voluntárias de recursos públicos para consecução de planos de tra­ba­lho propostos pelas Organizações da Sociedade Civil, em regime de mútua coo­ peração com a administração pública, selecionadas por meio de chamamento público, ressalvadas as exceções legais (art. 17).32 Ora, se ambos os ajustes se aplicam a casos em que há: i) transferências de recursos envolvidas; ii) mútua cooperação; e iii) seleção mediante chamamento público, excepcionados os casos em que é dispensado, a única nota distintiva entre o Termo de Colaboração e o Termo de Fomento está na definição de quem propôs o plano de trabalho: se a Administração Pública, ou se a Organização da Sociedade Civil, respectivamente. Ocorre que o critério subjetivo, segundo o qual o ajuste receberá uma ou outra designação, a depender de quem inicialmente propôs o plano de trabalho, não

Art. 16. O termo de colaboração deve ser adotado pela administração pública em caso de transferências voluntárias de recursos para consecução de planos de trabalho propostos pela administração pública, em regime de mútua cooperação com organizações da sociedade civil, selecionadas por meio de chamamento público, ressalvadas as exceções previstas nesta Lei. Parágrafo único. Os conselhos de políticas públicas poderão apresentar propostas à administração pública para celebração de termo de colaboração com organizações da sociedade civil. 32 Art. 17. O termo de fomento deve ser adotado pela administração pública em caso de transferências voluntárias de recursos para consecução de planos de trabalho propostos pelas organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação com a administração pública, selecionadas por meio de chamamento público, ressalvadas as exceções previstas nesta Lei. 31

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apresenta qualquer utilidade prática, já que o regime é de parceria voluntária com repasse de recursos – convênio! –, e ambas as partes convergirão para a efetivação de interesses comuns, portanto. De fora a isso, a questão que se põe, no entanto, é a seguinte: i) se a Lei nº 13.019/2014 abrange parcerias voluntárias envolvendo ou não repasse de recursos;33 ii) novas modalidades de parceria não podem ser criadas; iii) os convênios foram res­ tritos a relações interfederativas; e iv) os Termos de Colaboração e de Fomento envol­ vem repasses de recursos: então qual modalidade será empregada para represen­tar parcerias voluntárias nas quais não haja repasse de recursos? O regime jurídico dessas parcerias será idêntico ao das demais? O novo marco regulatório é lacunoso e não fornece uma resposta segura às questões. Mas fato é que, sendo a parceria voluntária, e sem repasse de recursos, uma das hipóteses concretas de relação entre Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público,34 não será a ausência de uma modalidade explícita na Lei nº 13.019/2014 que a impedirá de ocorrer, tampouco o regime jurídico das parcerias envolvendo repasses de recursos se aplicará integralmente à hipótese. Desse modo, entendo que: i) ao lado dos convênios entre entes federados, e dos Termos de Colaboração e de Fomento, haverá também uma outra forma de parceria, ainda que inominada, para instrumentalizar planos de trabalho que não envolvam repasses de recursos; e ii) o regime jurídico desta parceria se distanciará do regime das parcerias com repasses de recursos nos pontos que tocarem a esse fator distintivo. Por exemplo, do plano de trabalho não precisará constar plano de apli­cação dos recursos a serem desembolsados pela administração pública;35 não incidirá cláusula de inalienabilidade sobre os bens adquiridos no curso da parceria;36 e as contratações de bens e serviços pelas Organizações da Sociedade Civil não preci­sarão observar, rigidamente, os princípios apontados pelo art. 43 da Lei nº 13.019/2014, nem

Observe-se que a Lei nº 13.019/2014 se diz abranger também as parcerias voluntárias que não envolvam repasses de recursos: Art. 1º Esta Lei institui normas gerais para as parcerias voluntárias, envolvendo ou não transferências de recursos financeiros, estabelecidas pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios e respectivas autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviço público, e suas subsidiárias, com organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público; define diretrizes para a política de fomento e de colaboração com as organizações da sociedade civil; e institui o termo de colaboração e o termo de fomento. 34 Ao modo em que prevista na própria Lei nº 13.019/2014: “Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se: III parceria: qualquer modalidade de parceria prevista nesta Lei, que envolva ou não transferências voluntárias de recursos financeiros, entre administração pública e organizações da sociedade civil para ações de interesse recíproco em regime de mútua cooperação;”. 35 Conforme o artigo 22, VI, exige: Art. 22. Deverá constar do plano de trabalho, sem prejuízo da modalidade de parceria adotada: VI - plano de aplicação dos recursos a serem desembolsados pela administração pública; 36 Como determina o artigo 35, §5º: Art. 35. A celebração e a formalização do termo de colaboração e do termo de fomento dependerão da adoção das seguintes providências pela administração pública: §5º Caso a organização da sociedade civil adquira equipamentos e materiais permanentes com recursos provenientes da celebração da parceria, o bem será gravado com cláusula de inalienabilidade, e ela deverá formalizar promessa de transferência da propriedade à administração pública, na hipótese de sua extinção. 33

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demandarão a aprovação prévia de um procedimento de compras da Organização da Sociedade Civil pela administração pública.37 Pois bem. Não havendo um nome específico para a hipótese, não há de se falar aqui em restrição à criação de nova modalidade, pois disso não se trata. A hipótese será, apenas, a de conferir denominação a uma relação que não inova, eis que conhe­ cida e travada com frequência não só entre entes federados, como também entre Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público, e da qual o novo marco regulatório não se encarregou de nomear expressamente, mas previu existir quando conceituou a expressão “parceria voluntária”. Dessa feita, como a lei não fala em modalidade de parceria voluntária sem repasse de recursos, há de se entender que a vedação a novas modalidades incidirá apenas para parcerias voluntárias envolvendo repasses de recursos públicos. Por fim, não é demais especular que a vedação à criação de novas modalidades de parceria voluntária entre Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público, pelos Estados e Municípios, possa ressuscitar o debate acerca desse tipo de dispositivo ostentar, ou não, a condição de norma geral, da mesma forma como ocorrido quando a União federal criou uma nova modalidade de licitação, o pregão.38 Assim, caso se entenda não se tratar de matéria de norma geral, isso poderá desaguar na criação de novas modalidades por Estados e Municípios.

Conclusão À luz do novo marco regulatório do Terceiro Setor, e diante das ponderações anteriormente desenvolvidas, identifico os seguintes ajustes que poderão ser cele­ bra­dos entre Organizações da Sociedade Civil e entidades públicas, todos eles carac­ terizados, em sua essência, pela natureza jurídica de convênios administrativos: i) Termo de Colaboração, nos casos envolvendo transferências voluntárias de recursos públicos e planos de trabalho propostos pela Administração Pública, me­ diante chamamento público, ressalvadas as exceções legais; ii) Termo de Fomento, nos casos envolvendo transferências voluntárias de recursos públicos e planos de trabalho propostos pela entidade do Terceiro Setor, mediante chamamento público, ressalvadas as exceções legais;

Art. 43. As contratações de bens e serviços pelas organizações da sociedade civil, feitas com o uso de recursos transferidos pela administração pública, deverão observar os princípios da legalidade, da moralidade, da boa-fé, da probidade, da impessoalidade, da economicidade, da eficiência, da isonomia, da publicidade, da razoabilidade e do julgamento objetivo e a busca permanente de qualidade e durabilidade, de acordo com o regulamento de compras e contratações aprovado para a consecução do objeto da parceria. 38 A respeito, cf.: FILHO, Marçal Justen. Pregão: comentário à legislação do pregão comum e eletrônico. São Paulo: Dialética, 2013, p. 23-25; e MALUF, Pedro Tavares. Pregão: suas características e a competência de cada pessoa política para legislar sobre licitações e contratos. In: Boletim de Licitações e Contratos, São Paulo: NDJ, v. 19, n. 8, p. 751-752, 2006. 37

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iii) Para os casos que não envolvam transferência de recursos, não será mais possível celebrar convênios, já que a nomenclatura restou reservada a instrumenta­ lizar relações jurídicas entre entes federados. É certo, no entanto, que ajustes com esse mesmo conteúdo e natureza jurídica seguem sendo possíveis e, tendo a Lei nº 13.019/2014 deixado esta modalidade de parceria inominada, denominações não taxativas poderão ser empregadas nos casos em concreto, sem que isso importe em criar nova modalidade de arranjo, como é vedado na lei. Além disso, o regime jurídico desta parceria se distanciará do regime das parcerias com repasses de recursos nos pontos que tocarem a esse fator distintivo; iv) Termo de Parceria, mediante a qualificação jurídica prévia de OSCIP, que em âmbito federal segue regida pela Lei nº 9.790/1999, aplicando-se o novo marco regulatório apenas no que couber; v) Contrato de Gestão, mediante a qualificação jurídica de Organização Social, disciplinada no plano federal integralmente pela Lei nº 9.637/1998, e sem a incidên­ cia supletiva do novo marco regulatório; e, por fim vi) Diante dos possíveis debates envolvendo a competência da União para legislar sobre normas gerais de parcerias voluntárias, e o próprio conceito de normas gerais, é possível que Estados e Municípios adotem medidas para afastar a aplicabilidade do novo marco regulatório do Terceiro Setor em suas relações com as Organizações da Sociedade Civil, bem como que pretendam resistir a disposições específicas da lei, sob o argumento de não cuidarem de matéria de norma geral, o que poderá levar ao surgimento de novos modelos de parceria.

Abstract: This article seeks to investigate the discipline of partnerships between civil society organizations and the state under the third sector new regulatory framework disciplined in Law nº 13.019 /2014. Keywords: Third Sector. Law nº 13.019/2014. Regulatory framework. Volunteer partnership. Agreement. Law nº 8.666/1993. Legal qualification. Social organization. Civil society organization of public interest. Terms of collaboration. Terms of furtherance. Inominated partnerships. Management agreement. Partnership agreement.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): RIBEIRO, Leonardo Coelho. O novo marco regulatório do Terceiro Setor e a disciplina das parcerias entre Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 13, n. 50, p. 95-110, jul./set. 2015.

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