O Novo Pindorama: Três jardins de Roberto Burle Marx (1938-1970)

June 20, 2017 | Autor: Hugo F Nogueira | Categoria: Psychoanalysis, Art, Literature, Queer
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PREFÁCIO O Brasil antes do descobrimento era chamado pelos índios de Pindorama, que significa Terra das Palmeiras. O que chamamos de Novo Pindorama são três jardins projetados por Roberto Burle Marx situados no Rio de Janeiro. Os jardins estão na praça Senador Salgado Filho (aeroporto Santos Dumont), parque do Flamengo (avenida Beira-Mar) e avenida Atlântica (Copacabana). Os três jardins foram realizados sobre aterros e sofreram influência de pelo menos um jardim antigo que existia no Rio de Janeiro: o Passeio Público (também construído sobre um aterro). Roberto Burle Marx criou o jardim moderno, isto é o jardim de acordo com os princípios do movimento artístico moderno. Movimento este representado por artistas como Picasso, Matisse, Klee, Modigliani, Arp, Archipenko, que Burle Marx conheceu as obras, durante suas viagens à Europa. Os fatos mais importantes da nossa análise são os próprios jardins, seguindo a orientação de ARGAN (1993): as obras de arte são os fatos dos quais se deve fazer história. Porém mais importante do que a análise é a visita aos jardins, porque a experiência dos jardins só é possível através do passeio. Segundo LEENHARDT (1996) : "O tempo mais essencial no que concerne a experiência do jardim e da paisagem é o do passeante". Esperamos portanto que esta análise oriente uma visita mais produtiva dos jardins. Quanto maior for o conhecimento do público em geral da história dos jardins e do seu criador, mais chance de êxito tem o esforço de preservação dos jardins. As calçadas de Copacabana não são apenas calçadas; são obras de arte. Pelo menos essa herança do Iluminismo precisa ser defendida: as obras de arte merecem o respeito daqueles que delas usufruem e tem o direito de serem preservadas para as futuras gerações. INTRODUÇÃO O Paisagismo para Burle Marx é uma forma de arte. Arte que em um primeiro momento se confunde com a pintura para posteriormente ganhar autonomia. O paisagismo para Burle Marx é uma forma de arte independente porque os fatores: tempo e espaço devem ser apreciados literalmente e não apenas como uma ilusão na tela. Paralelo à essa afirmação do jardim como forma de arte independente, Burle Marx conceitua o jardim como um lugar de respeito pela natureza e pelo outro, pelo diferente. Em sua pintura Burle Marx também expressou a vontade de criar um espaço para o outro. Um bom exemplo disso é o quadro "Fuzileiro Vermelho" de 1936, em que Burle Marx retrata com admiração um homem de outra raça e classe social. Burle Marx se identifica com o outro, com o diferente. O "Fuzileiro

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Vermelho" iniciou uma série de pinturas de fuzileiros. É uma tela que apresenta um realismo muito interessante, em uma análise fora do contexto histórico poderíamos dizer que é uma espécie de realismo semelhante por exemplo ao do pintor inglês contemporâneo Lucian Freud: é uma pintura que tem carne, fruto de um desejo. Depois dessa primeira pintura Burle Marx pintou um fuzileiro branco, um fuzileiro no porto. Pintou o porto, até que o desejo deixou de ter uma carne e foi ganhando uma representação cada vez mais abstrata e indecifrável. Assim são os jardins de Burle Marx, frutos de uma libido. Segundo o próprio BURLE MARX (1987): o jardim é uma arte altamente elaborada que resulta de uma trama de concepções e conhecimentos, cujo entrelaçamento se faz através da própria vida do artista, com suas dúvidas, suas angústias, seus anseios, erros e acertos. É o objetivo deste trabalho falar dessa trama de concepções e de conhecimento que possibilitou os jardins de Burle Marx, fazendo uma ponte entre a vida de Burle Marx e a sua obra. Existe um pudor muito grande dos críticos da obra de Burle Marx ao relacioná-la com a sua vida. Mesmo a recente biografia escrita por FLEMING (1996) fala mais dos jardins do que dos impulsos da fantasia e do sentimento do artista. A fotobiografia de CALS (1995) mostra um Roberto Burle Marx sempre acompanhado por amigos mas pouco se sabe sobre a sua vida pessoal. Por trás da imagem do anfitrião cercado por amigos parece estar escondida uma grande solidão. O pouco que se sabe e que o próprio Burle Marx autorizou que se soubesse é que no período entre o jardim da praça Salgado Filho e o Parque do Flamengo, a solidão de Roberto o levou a freqüentar a noite da Lapa. Segundo FLEMING (1996): 1947 foi um período de grande solidão para Roberto. À noite ele saía sozinho, para encontrar companhia entre as luzes brilhantes, as luzes vermelhas da Lapa. A Lapa que Burle Marx freqüentou era o território de malandros como Madame Satã. Lapa na época que o malandro Madame Satã reinava, num meio de artistas como Noel Rosa e Assis Valente e travestis. Segundo DURST (1995): Madame Satã foi um dos astros do filme noir tropical que rolava continuamente na velha Lapa. Uma malandragem que não saía nos jornais, não aparecia nos livros nem nos filmes e só era registrada mesmo nos sambas de botequim. Existe portanto uma parte da vida de Burle Marx que não saía nos jornais, não aparecia nos livros nem nos filmes e não estava registrada na música clássica que Burle Marx gostava de cantar e sim nos sambas de Assis Valente. Burle Marx foi por isso um artista preocupado com a liberdade de expressão e com a necessidade de criar espaços públicos de convivência com o outro: os seus jardins. Onde os habitantes do Rio de Janeiro pudessem escapar da contemplação de si mesmo da era moderna, do seu narcisismo. Espaços de inclusão de todos e de suas diferenças. Além dessa proposta social, os jardins de Burle Marx são postulados estéticos. Burle Marx foi o artista capaz de

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criar um jardim de acordo com os princípios de composição da arte moderna (entendida no sentido estrito de correntes artísticas do início do século XX). A arte moderna nesse sentido foi uma tentativa segundo ARGAN (1996) de acompanhar o esforço progressista da civilização industrial através da experimentação de idéias e formas. Burle Marx conheceu a obra dos artistas modernos quando foi morar na Alemanha. Burle Marx conta que nos últimos dias que passou em Berlim, antes de retomar ao Brasil foi a uma galeria e viu um Picasso pela primeira vez. No Brasil a arte moderna teve uma dupla face: ao mesmo tempo que buscava absorver as novidades estéticas da Europa, ela tentava criar uma arte ligada às formas e cores do Brasil. Isso pode ser percebido na pintura de Tarsila do Amaral: ao mesmo tempo que tentava aplicar as lições de Léger, ela tentava retratar tipos e cores extraídos do imaginário brasileiro. Burle Marx realizou essa ponte com sucesso. Em 1929 o arquiteto moderno Le Corbusier introduz no Brasil o conceito de funcionalidade, impondo também aqui o fim da arquitetura do detalhe e da ornamentação. Essa visão de arquitetura que Le Corbusier trouxe para o Brasil exerceu grande influência sobre a obra de Burle Marx. Nos jardins de Burle Marx, forma e função estão casadas de forma radical. Em 1930 Burle Marx realiza o seu ingresso na Escola Nacional de Belas Artes como aluno de pintura. Nessa época o diretor da escola era o arquiteto moderno Lúcio Costa e foi para uma casa projetada por Lúcio Costa que Burle

Marx

desenhou

o

seu

primeiro

jardim

em

1933.

PRAÇA SENADOR SALGADO FILHO (1938) O Rio de Janeiro é uma cidade que cresceu sobre aterros. Desde a fundação em 1565 até hoje foi tomada do mar uma área equivalente a 50 quilômetros quadrados, segundo o Centro de Informações e Dados do Rio de Janeiro. Do aterro da lagoa do Boqueirão da Ajuda, que deu origem ao Passeio Público, até as obras do aterro do Flamengo. Hoje grande parte dessas áreas é valorizada. O valor médio é de R$ 1, 3 mil. Esses dados são relevantes para entender o caminho que possibilitou o aparecimento dos jardins analisados nesta monografia. Pode-se perguntar por que a área criada pelos aterros é hoje tão valorizada. É simples: foram áreas criadas como parte de um processo de melhoramento da cidade. Melhoramento esse que encoberta a discriminação da população mais pobre. No caso do Passeio da população escrava que fazia uso da lagoa do Boqueirão da Ajuda. Os jardins de Burle Marx são uma reação à essa discriminação. Uma forma de humanizar o processo de crescimento da cidade. A prática de aterrar foi herdada dos portugueses que não contornavam. Aterravam e passavam a rua por cima. Era o desejo de marcar a paisagem. O material para o aterro do aeroporto Santos Dumont veio da demolição do Morro do Castelo. Antes do jardim da praça Salgado Filho, outro jardim já havia sido feito sobre um aterro: o Passeio Público. O jardim criado por Mestre Valentim e reformado por

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Glaziou, segundo o próprio Burle Marx foi um dos únicos jardins brasileiros que o influenciaram. Em seu jardim Mestre Valentim já antecipava a fusão entre forma e função que Burle Marx radicalizou. A grande diferença entre o jardim de Mestre Valentim e o de Burle Marx é que o jardim criado por Valentim só permitia uma inclusão imaginária de todos, como promessa do Éden, porque poucos podiam entrar, ao passo que o jardim de Burle Marx é realmente público: aberto a todos. Do ponto de vista estético o jardim de Burle Marx não é um jardim de detalhes como o Passeio Público (com suas estátuas e chafarizes preciosos). Para Burle Marx a natureza já cuida dos detalhes por si só, o seu trabalho era a composição. Uma planta pode ser apresentada sozinha para que possam ser apreciadas suas qualidades escultóricas mas são os grupos de plantas que criam ambientes harmônicos. Plantada sozinha na grama uma planta tem um valor; em um grupo entre pedras, entre folhas de diferentes texturas tem outro. A praça Salgado Filho é a praça do primeiro aeroporto do Rio de Janeiro e é um dos primeiros jardins de Burle Marx (1938). É um jardim louvável no contexto da obra de Burle Marx porque apresenta em um estágio tão primitivo dessa obra, as suas principais características. A obra de Burle Marx, como prova esse trabalho, é coerente. Burle Marx foi um artista urbano, o que é típico do artista moderno. Segundo ARGAN (1996): os arquitetos modernos consideram a cidade o local da vida e cabe à arte torná-la agradável, elegante, moderna e alegre. É por isso que Burle Marx aceita fazer o jardim de um aeroporto. Mas não é por isso que Burle Marx é um artista moderno. O jardim moderno é uma construção de acordo com os princípios da arte moderna. Podemos perguntar: de que forma foi feita essa construção? Para desenvolver a composição paisagística moderna, Burle Marx usou os princípios do abstracionismo em pintura. A partir de Cézanne a pintura começou a procurar uma forma de representar a natureza cada vez mais abstrata. É célebre a frase de Cézanne de que a natureza deve ser representada através de formas geométricas. Como o fuzileiro de Burle Marx foi perdendo a carne, tornando-se um vulto em um porto, tornando-se um porto, tornando-se uma abstração indecifrável, as árvores de Mondrian foram perdendo a cor, perdendo a forma, até chegar à pura forma, à uma natureza paralela. Acreditamos que é porque Burle Marx usou os princípios da pintura moderna em seus jardins que MAURICIO (1956) pôde afirmar que os jardins de Burle Marx são: "composições de notável integração com o mondrianismo das novas concepções arquiteturais". Foi isso que possibilitou a combinação estética entre os jardins de Burle Marx e os edifícios modernos. Tradicionalmente o jardim é uma sucessão de pontos de vista privilegiados mas devido à influência do cubismo, o jardim de Burle Marx não impõe pontos de vista. Segundo FLEMING (1996) os jardins de Burle Marx fluem ao redor das pessoas; não há pontos de vista fixos; o jardim não começa e

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termina em lugares específicos. A pessoa pode parar em qualquer lugar e o jardim continua com as suas curvas, cores e texturas, tudo em relação. O jardim da praça Salgado Filho é a porta de entrada do Novo Pindorama, mas uma vez dentro desse jardim não se quer mais sair. É que o jardim cresce em volta de uma piscina (que atualmente está vazia), o que induz a um movimento circular. O jardim que Burle Marx criou tem um movimento próprio que encontra a sua justificativa em si mesmo, esse é um espaço que não é uma derivação de um movimento, o jardim é um espaço em si e é desse espaço em si que surge um movimento. A ausência de um ponto de vista privilegiado contribui para este movimento circular da praça Salgado Filho. Burle Marx para criar o jardim moderno não abriu mão dos princípios paisagísticos tradicionais (ele conhecia os jardins ingleses e franceses); apenas introduziu os princípios plásticos da arte moderna, como a ausência de um ponto de vista privilegiado. A grande novidade de Burle Marx portanto é estética, formal e não técnica. O grande mérito de Burle Marx é justamente aliar uma técnica perfeita de base tradicional à novidade estética da arte moderna. Além disso a intenção de Burle Marx era criar um espaço de acolhimento, o que conseguiu. Visto por esse ângulo a afirmação visual da praça Salgado Filho demonstra uma adequação a uma declaração social de acolhimento. Declaração presente em todos os jardins analisados nesta monografia. A sombra generosa da praça Salgado Filho resulta dessa conciliação na escolha das árvores dos aspectos estético e social (no sentido de acolhimento e de valorização da flora nacional). Burle Marx realizou a sua composição a partir da planta. A planta para Burle Marx é um elemento de composição. Sua distribuição procura atender às necessidades estéticas, levando em conta volume, associações naturais, floração, forma, em resumo, as características peculiares a cada espécie. Burle Marx tinha um grande respeito pela individualidade da planta. Segundo Burle Marx: uma planta é uma forma, uma cor, uma textura, uma essência, um ser vivo com necessidades e preferências, com uma personalidade própria. Uma pessoa pode pensar uma planta como uma pincelada mas não pode nunca esquecer que é um indivíduo e deve-se representá-la como tal (citado por FLEMING (1996)). É por causa desse respeito que Burle Marx lutou pela preservação do nosso patrimônio vegetal, utilizando espécies brasileiras ou adaptadas ao nosso clima como a palmeira imperial. Burle Marx observou a predominância de palmeiras na paisagem brasileira e passou a utilizálas nos seus jardins, construindo um Novo Pindorama. As palmeiras são uma espécie de curinga no vocabulário de Burle Marx estão sempre presentes como uma assinatura do artista. Assim como as pedras. Na praça Salgado Filho, as pedras são as esculturas. Burle Marx nisso sofreu influência de Arp. São esculturas que surgem da própria eleição do material, sem intervenção da vontade, como originada na soberania do acaso. Também sofreu influência de

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Archipenko que usava todo tipo de material. As pedras têm um simbolismo transparente, elas transmitem a idéia de estabilidade. As pedras, como aliás, as águas e as plantas nunca foram objeto de cultos mas aparecem em muitas religiões como sinais de uma força superior que nelas atua. As pedras são objetos que marcam um lugar sagrado e dão testemunho de que ali aconteceu uma teofania porque elas permanecem. Segundo PIAZZA (1983): as pedras marcam os lugares de culto nos lugares abertos, os altares e também os sepulcros, talvez com a finalidade de aí fixar as almas dos mortos. As pedras marcam os limites das possessões para torná-las invioláveis. As pedras-esculturas de Burle Marx evocam tudo isso. Os bancos que Burle Marx criou para a Praça são assim como as palmeiras e as pedras traços característicos da sua obra. Os bancos atendem aos requisitos tradicionais de mobiliário urbano: são úteis; a cor é determinada pelo material; o tamanho e a escala estão corretos. A novidade é que os bancos foram construídos de forma que acompanham o desenho orgânico e abstrato da Praça. Podemos destacar também o pavimento, o desenho livre da piscina e a combinação das diversas árvores e arbustos, escolhidos em função das suas formas e volumes. O PARQUE DO FLAMENGO (1961) "É impossível fazer um parque à prova de pecado" Burle Marx sobre o Parque do Flamengo (citado por FLEMING (1996)). A história do parque do Flamengo começa com o aterro que criou a avenida Beira-Mar. Com a abolição da escravidão a cidade necessitava de uma nova imagem. É o tempo de Machado de Assis e João do Rio. Chega o cinema e Chiquinha Gonzaga compõe a primeira música de carnaval: "Ó abre alas". Há um grande crescimento da cidade e inicia-se o processo de industrialização ou seriação. No Rio de Janeiro o governador Rodrigues Alves e o prefeito Pereira Passos executam uma política portuária; de saneamento com a colaboração de Oswaldo Cruz; de transportes; abertura de avenidas (entre elas as avenidas Central, atual Rio Branco e Beira Mar) e de embelezamento da cidade. Novamente o crescimento é determinado pela discriminação de grupos e territórios. Por um lado com o chamado Bota Abaixo que expulsou os pobres do Centro (identificados com o antigo) e por outro com a instituição de um imposto para a criação de um teatro (o Teatro Municipal, símbolo do anseio de modernidade da época). A cidade outrora colonial passa a lembrar as capitais européias inspiradas na Paris de Haussmann. Nas palavras de Le Corbusier: "Sem o prefeito Pereira Passos a cidade do Rio de Janeiro permaneceria uma agradável cidade de colônia. Com Passos ingressou no rol das grandes capitais do mundo; Rio, paisagem admirável transformou-se em Rio, grande cidade" (citado por SANTOS (1981)). A delimitação dos espaços em mais urbano e menos rural estava apenas começando. Para construir a avenida Beira-Mar o prefeito Pereira Passos aterrou as praias de Santa Luzia (onde está a igreja de Santa Luzia), da Lapa e da Glória. Esta

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nova via de acesso ao Centro que tirou 33 metros do espelho d'água da Baía de Guanabara percorria toda a orla, terminando com três pistas na praia de Botafogo: duas para carro e uma de terra para os cavalos. Estava preparado o caminho para a criação do aterro do Flamengo. O primeiro que pensou em aterrar aquela área foi um engenheiro chamado Sabino Pessoa ainda no século XIX. Nos anos 30, outro engenheiro, Alfred Agache, também fez um projeto de aterro. Em 1937, José de Oliveira Reis, engenheiro chefe da Comissão de Planejamento da Prefeitura cria um projeto inspirado no Riverside Park (parque inglês). Mas foi o desenho do arquiteto Afonso Reidy que tomou forma. As obras começaram em 1954. Dois anos depois, por falta de verba elas pararam só recomeçando no governo de Carlos Lacerda. Segundo Burle Marx devido à amizade entre Carlos Lacerda e Carlota Macedo Soares. No aterro foram utilizados mais de 10 milhões de metros cúbicos, para roubar mais de 1,2 milhão de metros quadrados do mar. Inaugurado em 1965, o aterro do Flamengo foi o último grande aterro da cidade. A terra usada no aterro veio do Morro de Santo Antônio e do Morro do Senado. A composição do Parque levou em consideração que ele deveria atender a diversas atividades. Do traçado resultaram locais isolados que mereceram tratamentos paisagísticos específicos, em função dos equipamentos e construções neles existentes. Hoje o parque do Flamengo é um espaço que inclui: 1650 metros de orla, uma ciclovia de 4 km, 8 campos de futebol society, 5 campos de futebol de areia, 4 quadras de basquete, 4 de futsal, 2 de tênis, 1 teatro de arena, coreto, teatro de fantoches, a Cidade das Crianças com 35 mil metros quadrados de espaço e briquedos. Dentro do Parque estão o Museu de Arte Moderna, o Monumento aos Mortos da Segunda Guerra, o Museu Carmem Miranda, o Monumento a Estácio de Sá (fundador do Rio de Janeiro). Além disso o parque inclui quadras de ping-pong, quadras de ginástica, restaurante, bicicletário, Monumento a Chuautemoc, quadras de voleibol, pista de dança, Fundação Parques e Jardins, Rio Luz, estação climatológica, Comlurb, Marina da Glória, área de aeromodelismo e Navio Museu. Segundo Burle Marx: Lota, Carlota Macedo Soares disse ao Carlos Lacerda que só faria o parque do Flamengo se ele (Burle Marx) fizesse os jardins. Burle Marx fez o projeto em parceria com Reidy e auxiliado por uma equipe que incluía o botânico Luiz Emygdio e Berta Leitchik. Foram utilizadas centenas de espécies da flora nacional. Os grupos de plantas foram responsáveis pela criação de pequenos abrigos dentro do grande abrigo que é o Parque. As massas de vegetação estabelecem um jogo importante na subdivisão dos espaços e no dimensionamento do volume arquitetônico. O jogo de volumes criou um labirinto e o labirinto segundo Burle Marx foi o prenúncio dos motéis. A experiência que o Parque suscita é libidinal, de encontro com o outro e com a natureza. Segundo Lélia Coelho Frota: Burle Marx falou a vida inteira do jardim como lugar da descoberta da

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natureza, do encontro do outro e o Aterro do Flamengo é o exemplo mais forte no Brasil, do acerto dessa proposta democrática. Atualmente discute-se uma maneira de expulsar a violência, os mendigos, prostitutas e travestis do Parque. Mas o Parque que Burle Marx criou é um lugar de inclusão. Segundo FROTA (1993): os grandes parques públicos de Roberto Burle Marx inseridos dentro da trama urbana são um campo de identidade simbólico e ao mesmo tempo concreto, ao alcance do cidadão, à medida que a vegetação brasileira das suas composições remete à realidade física da natureza de um país tropical como o nosso. A inserção do Parque na cidade renova as possibilidades de troca entre o externo e interno, hoje ameaçados de uma dissolução em uma massa sem limites. A importância da criação de um espaço vivo como o Parque do Flamengo é justamente essa tentativa de impedir esse processo de dissolução do externo no interno. Porque os espaços públicos mortos são os principais responsáveis por esse processo de dissolução. Segundo SENNET (1993): o espaço público morto é uma das razões, e a mais concreta delas, pelas quais as pessoas procurarão um terreno íntimo que em território alheio lhes é negado. À medida que alguém sente que deve se proteger da vigilância dos outros no âmbito público, por meio de um isolamento silencioso compensa isso se expondo para aqueles com quem quer fazer contato. Foi a geração nascida após a Segunda Guerra Mundial que se voltou para dentro de si ao se libertar das repressões sexuais. Estes sinais gritantes de uma vida pessoal desmedida e de uma vida pública esvaziada são resultantes de uma nova cultura urbana, secular e capitalista. Burle Marx nasceu no início do século XX (1904) e pôde acompanhar todo esse processo de dissolução do externo no interno e da conseqüente produção de uma vida pessoal desmedida e de uma vida pública esvaziada. Não é à toa que Burle Marx lutou com tanto empenho, construindo inúmeros espaços públicos vivos, levando uma vida pública ativa e uma vida pessoal reservada, nadando contra a corrente. Na obra de Burle Marx predomina uma visão da natureza como amiga, acolhedora e assim é o seu Parque: amigo, benigno e acolhedor. Burle Marx usa as plantas para dar privacidade, para criar barreiras visuais, para acolher. Dentro do Parque a integração mais marcante entre prédio e terreno se encontra no Museu de Arte Moderna (para o qual Burle Marx desenhou o jardim sem cobrar nada. Nesse conjunto Burle Marx com o jardim e Reidy com o edifício conseguiram criar um todo coerente assinalando com justeza uma das teses mais especuladas pela arquitetura moderna do Brasil. Segundo Burle Marx é fundamental que arquitetos e estudantes de arquitetura troquem ideias com pessoas que falem da natureza a fim de que consigam adequar os seus prédios aos terrenos, à flora, à paisagem onde vão inserir os seus prédios. As pedras-esculturas aparecem novamente, em grupos e combinadas com monólitos de granito, criando um contraste com o terreno. O grupo

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escultórico com monólitos graníticos associados à vegetação evoca a paisagem característica dos arredores do Rio de Janeiro. Também evocam as hermas, pedras protetoras com forma fálica, símbolos da fecundidade da natureza e teofanias de Hermes, o inventor da flauta e da lira, protetor dos ladrões, que guiava os viajantes. As palmeiras e os bancos que apareceram na praça Salgado Filho também estão presentes. Segundo MOTTA (1984): Burle Marx no parque do Flamengo situa os bancos com plasticidade rigorosa. O Parque cumpre plenamente a natureza de uma praça pública, que é a de mesclar pessoas e diversificar atividades. Burle Marx ensinou através da construção de um parque tão grande do qual seria impossível acompanhar todo o desenvolvimento das plantas que a beleza da planta está no seu desenvolvimento, que cada estágio do ciclo vital encerra qualidades capazes de despertar nossa emoção. AVENIDA ATLÂNTICA (1970) No século XIX não era elegante morar perto da praia. Nessa época Copacabana era apenas uma praia deserta com faixa de areia estreita. A sua ocupação começou pelas ruas internas. O aterro que deu origem à avenida Atlântica data de 1904. O material para o aterro veio do desmonte do mesmo morro que possibilitou a obra da Avenida Beira-Mar, o Morro do Senado (onde está atualmente a praça Cruz Vermelha) e entulhos de demolições. Através desse aterro é que surgiu a avenida Atlântica com a construção de uma via de quatro metros de largura que avançava sobre a água. Em 1911, um trecho da Avenida Atlântica foi alargado em 15 metros e em 1918, em apenas seis meses, o prefeito Paulo de Frontin criou uma pista larga de 19 metros que não durou muito, um ano depois uma grande ressaca destruiu a obra. Seu sucessor Carlos Sampaio acusou Frontin de ter usado uma estrutura frágil de madeira e refez a obra em concreto. A Atlântica ganhou as condições de hoje em 1968, quando o governador Negrão de Lima duplicou a pista, fez as calçadas de pedra portuguesa e aumentou a faixa de areia. As calçadas portuguesas segundo Burle Marx vem de Cuminharza dos mosaicos romanos. Foi a partir dessa tradição que Burle Marx produziu o que passou a ser o símbolo da cidade do Rio de Janeiro. Em 1970 Burle Marx era um artista consagrado internacionalmente. Segundo BEUTTENMÜLLER (1989) a vida artística de Burle Marx culminou com a sala especial na XXXV Bienal de Veneza em 1970. Nesta sala individual do Brasil Burle Marx expôs sua pintura e seus jardins inclusive o da Avenida Atlântica. Segundo CALS (1995) esta foi a primeira vez que um jardim foi exposto como obra de arte. 1970 é também o ano em que Burle Marx foi chamado para o Conselho Superior do então Estado da Guanabara. Neste momento quando Burle Marx fez as calçadas da Avenida Atlântica tinha atingido o domínio pleno da grade cubista. A calçada unida às garagens dos edifícios é dominada por uma força centrípeta, a calçada é uma espécie de guardiã do Novo Pindorama, a calçada o protege dos edifícios, i. e., da cidade. Delimitando

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o que é obra de arte e o que é o ambiente. O canteiro central tem vários caminhos. É um jardim ao mesmo tempo real (de árvores) e virtual (de mosaicos, que dependem da visão para ganhar corpo). Os caminhos virtuais do canteiro central têm grande força centrífuga, orientando o olhar em sua maioria, para fora, i. e., para a calçada dos edifícios ou para o calçadão. Afirmam a condição do canteiro de área de passagem, zona de transição. O canteiro central é um fragmento provocando a percepção do que está ao redor. O calçadão junto à praia com o mosaico português especificado é a duplicação do desenho das ondas na areia e emenda com a areia branca, o verde do mar, o azul do céu, a moldura dos morros e do Forte de Copacabana. Na avenida Atlântica as cores das pedras foram trabalhadas como em uma pintura moderna, fauvista, as cores puras e estendidas em grandes campos fundamentais para a organização da composição. Nas palavras de Burle Marx: "as cores que utilizamos são o branco, o preto e o vermelho (...) naturalmente há nuances, mas na verdade é um material plasticamente lindíssimo" (citado por CALS (1995)). O mosaico português além de atender a uma função estética é uma velha técnica adequada à dilatação. Novamente aparecem as palmeiras que segundo o próprio BURLE MARX (1994) são plantas que se adaptaram a viver na areia e desenvolveram mecanismos de retenção da água das chuvas que embora abundante, escoa-se rapidamente por causa da eficiente drenagem do material arenoso. Essas plantas estão preparadas para suportar a salinidade da atmosfera. Burle Marx também utilizou as palmeiras e outras árvores de grande porte por uma razão estética: as árvores grandes em ambientes densamente construídos dão ênfase visual ou contraste. Especialmente onde árvores pequenas estariam fora de escala. Novamente aparecem os bancos e é também importante destacar na avenida Atlântica as jardineiras porque as uniões entre as plantas e os pisos são fundamentais. Para que as plantas se adaptassem ao desenho do gigantesco painel de 4, 5 km, os pontos de união entre as plantas e o piso tiveram que ser trabalhados de modo que as plantas pertencessem ao mosaico. Bule Marx deu às jardineiras formas geométricas para criar um contraste com as formas livres do mosaico, criando uma harmonia. Foi na Atlântica que a preocupação humanitária, social de Burle Marx encontrou o seu melhor resultado capaz inclusive de diminuir a distância entre ricos e pobres, brancos e negros. Segundo BURLE MARX (1987): "Nesta época em que o homem da cidade está cada vez mais espremido e sufocado em sua moradia, onde a regra é 'o mínimo standard' há necessidade de criar jardins com expressão própria, como obra de arte, mas que, simultaneamente, satisfaçam toda a necessidade de contato com a natureza, cada vez mais insatisfeita pela vida que leva o homem da civilização tecnológica". O jardim ordenado, nos espaços urbanos de hoje é um convite ao

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convívio, à recuperação do tempo real das coisas, em oposição, à velocidade ilusória do consumo. A Avenida Atlântica é esse convite na sua melhor expressão. CONCLUSÃO A história dos jardins de Burle Marx faz parte da história do Rio de Janeiro no século XX. O processo de melhoramento e crescimento da cidade encobertou um processo de discriminação de parte da população. Burle Marx foi um artista que através da sua obra conseguiu humanizar esse processo de melhoramento. Justamente porque Burle Marx não separava a necessidade estética das necessidades sociais. Os seus jardins são produtos tanto dos seus interesses estéticos quanto dos seus interesses sociais. Os jardins formam a parte mais conhecida da obra de Burle Marx, mas ele também deixou pinturas, joias, cerâmicas, tapetes e todo um pensamento ecológico registrado no livro “Arte e paisagem”. BIBLIOGRAFIA ARGAN

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