O OCIDENTE COMO IDEAL, PROPÓSITO E PROGRAMA: A ESG E A GEOPOLÍTICA DO BRASIL DE GOLBERY DO COUTO E SILVA LUIZ HENRIQUE FELÍCIO DO NASCIMENTO

May 23, 2017 | Autor: L. Nascimento | Categoria: Geopolitics
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O OCIDENTE COMO IDEAL, PROPÓSITO E PROGRAMA: A ESG E A GEOPOLÍTICA DO BRASIL DE GOLBERY DO COUTO E SILVA

LUIZ HENRIQUE FELÍCIO DO NASCIMENTO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA II: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS

O OCIDENTE COMO IDEAL, PROPÓSITO E PROGRAMA: A ESG E A GEOPOLÍTICA DO BRASIL DE GOLBERY DO COUTO E SILVA

LUIZ HENRIQUE FELÍCIO DO NASCIMENTO

NATAL/RN – 2016

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes CCHLA Nascimento, Luiz Henrique Felício do. O ocidente como ideal, propósito e programa : a ESG e a geopolítica do Brasil de Golbery do Couto e Silva / Luiz Henrique Felício do Nascimento. - 2016. 202 f.: il. Orientador: Prof. Dr. Renato Amado Peixoto. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em História, 2016.

1. Escola Superior de Guerra (Brasil). 2. Silva, Golbery do Couto e - 1911-1987. 3. Geopolítica - Brasil. I. Peixoto, Renato Amado. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA

CDU 94(81).084

LUIZ HENRIQUE FELÍCIO DO NASCIMENTO

O OCIDENTE COMO IDEAL, PROPÓSITO E PROGRAMA: A ESG E A GEOPOLÍTICA DO BRASIL DE GOLBERY DO COUTO E SILVA

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa II – Cultura, Poder e Representações Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do(a) Prof(a). Dr(a). Renato Amado Peixoto.

NATAL/RN - 2016

LUIZ HENRIQUE FELÍCIO DO NASCIMENTO

O OCIDENTE COMO IDEAL, PROPÓSITO E PROGRAMA: A ESG E A GEOPOLÍTICA DO BRASIL DE GOLBERY DO COUTO E SILVA

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de PósGraduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores:

_________________________________________ Renato Amado Peixoto - Orientador

__________________________________________ Cândido Moreira Rodrigues - Avaliador Externo

________________________________________ Edu Silvestre de Albuquerque - Avaliador Interno

____________________________________________ Henrique Alonso de Albuquerque Rodrigues Pereira - Suplente

Natal, _________de__________________de____________

Às minhas filhas.

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de expressar meu profundo agradecimento ao meu orientador, Prof. Dr. Renato Amado Peixoto, responsável direto pela existência deste trabalho e que acreditou em mim com base apenas na visão que teve do uso da palavra “Geopolítica” em um anterior projeto, este natimorto. Aquilo que nada era, tornou-se esta dissertação. Espero então, que seja ele algo digno da atenção que o senhor me dispensou no decorrer dessa trajetória. Por fim, minha reverência à sua crença e constância na produção do conhecimento, que em muito expressa a beleza do trabalho acadêmico desenvolvido no PPGH – UFRN. Tal reverência é extensiva aos seus demais professores, especialmente ao Prof. Dr. Raimundo Arrais, que como poucos sabe conjugar, em seus ensinamentos, coisas tão díspares quanto razão e sensibilidade. Minha eterna gratidão, portanto. Pela gentileza e honra a mim concedidos de aceitarem participar da banca de defesa desta dissertação, meus agradecimentos ao Prof. Dr. Edu Silvestre de Albuquerque, Prof. Dr. Cândido Moreira Rodrigues e Prof. Dr. Henrique Alonso de Albuquerque Rodrigues Pereira. Agradeço ainda à minha família, aos meus pais, Luiz e Palmira, e à minha amada esposa, Lorenna, por terem acreditado em minha capacidade e força de vontade para chegar à conclusão deste trabalho. A vocês, o meu coração. Gostaria ainda de prestar especial gratidão ao Coronel Elias Leocádio da Silva Júnior e sua família, Janine e Matheus Leocádio, que gentilmente me acolheram durante a minha estadia na Praia Vermelha, Urca, Rio de Janeiro, local onde se respira história militar. Sem tal generosa ajuda teria sido mais difícil o meu trabalho de pesquisa. Meus sinceros agradecimentos, também, aos servidores da Biblioteca General Cordeiro de Farias, na ESG. A vocês, Silvana Batista Piauilin, Yasmim Lemos, Thiago Silva e Jéssica Andrade, pela paciência e disponibilidade com as quais me facultaram o acesso aos arquivos da instituição, meu muito obrigado. Nesse sentido, meu também agradecimento ao Coronel R1 do Exército Brasileiro e colega historiador, Fernando Velôzo Gomes Pedroza, pelos esclarecimentos e explicações a respeito da instituição militar, quando das minhas visitas à Biblioteca 31 de Março, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, ECEME. Finalmente, agradeço àquela que me abriu os olhos para a perspectiva de tentar o Mestrado. A você, Jossefrânia Martins, minha dívida imensa e toda a amizade que possa carinhosamente lhe devotar.

“Não devemos temer senão o próprio medo”. (Franklin Delano Roosevelt)

RESUMO O estudo e compreensão do período denominado República Democrática - ou República Liberal - transcorrido entre 1946 e 1964, coloca em evidência um processo político nacional essencialmente afetado pela dinâmica política externa, a Guerra Fria, que ficou caracterizada pela bipolaridade ideológica com efeitos extensivos a inúmeros outros aspectos, especialmente o militar. No Brasil, seguiu-se a tendência de alinhamento com os EUA e contra o bloco composto pela URSS e seus aliados. Nesse contexto foi fundada, em 1949, a Escola Superior de Guerra (ESG). A instituição encarregou-se da elaboração de uma Doutrina de Segurança Nacional (DSN) e sua atuação no âmbito do Estado no decorrer da década de 1950 a tornou um locus de produção e difusão de estudos geopolíticos. Tal constructo intelectual, sob a forma dos conteúdos dos Cursos Superiores de Guerra, dava sequência a um trabalho de homens e instituições de Estado que tivera início no século XIX e que tinha por base uma lógica que colocava em pauta os interesses e as prioridades estatais, de forma atemporal e independente dos governos estabelecidos. A narrativa sobre a formação do território brasileiro, inerente aos estudos desenvolvidos na Escola, se faria ainda acompanhar da construção de uma historiografia que teceu um discurso que evocava uma tradição “cristã ocidental” e o anticomunismo, ao mesmo tempo em que se elaboravam as diretrizes para a consecução do projeto geopolítico de tornar o Brasil uma nação forte, uma potência. Nesse sentido, o estudo do pensamento político do general Golbery do Couto e Silva – a partir de sua obra “Geopolítica do Brasil” – apresenta-se como elemento indispensável para o entendimento daquele período da história brasileira. Palavras-chave: ESG. Golbery. Geopolítica brasileira.

ABSTRACT The study and understanding of the period called Democratic Republic - or Liberal Republic - elapsed between 1946 and 1964, highlights a national political process primarily affected by a dynamic foreign policy, the Cold War, which was characterized by ideological bipolarity with effects extended to numerous other aspects, especially the military one. In Brazil, it was followed by the alignment trend with the US against the bloc formed by the USSR and its allies. Within this context, the Superior School of War (ESG) was founded in 1949. The institution was responsible for drafting the Homeland Security Doctrine (DSN) and its acting within the State’s scope during the 1950s made it a locus of production and diffusion of Geopolitical studies. Such intellectual construct, in the form of the Superior War School Courses contents, gave sequence to the work of men and state institutions that had begun in the 19th century and which was based on a logic that put in question the interests and state priorities, in a timeless way and independent of established governments. The narrative of the formation of the Brazilian territory, inherent to the studies conducted at the school, would be followed by the making of a historiography that wove a speech that evoked a "Western Christian" tradition and the anticommunism, while outlining the guidelines for accomplishing the geopolitical project of making Brazil a strong nation, a potency. In this sense, the study of general Golbery do Couto e Silva's political thinking – from his work “Geopolitics of Brazil” – is presented as an indispensable element to the understanding of that period in Brazilian history.

Keywords: ESG. Golbery. Brazilian geopolitics.

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ADESG – Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CSG – Curso Superior de Guerra DSN – Doutrina de Segurança Nacional ECEME – Escola de Comando e Estado-Maior do Exército EMFA – Estado-Maior das Forças Armadas ESG – Escola Superior de Guerra EUA – Estados Unidos da América FEB – Força Expedicionária Brasileira IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro IRB – Instituto Rio Branco ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros JOC – Juventude Operária Católica MRE – Ministério das Relações Exteriores NWC – National War College ONPs – Objetivos Nacionais Permanentes ONU – Organização das Nações Unidas OEA – Organização dos Estados Americanos OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte OTASE – Organização do Tratado do Sudeste Asiático PCB – Partido Comunista Brasileiro PIN – Plano de Integração Nacional PPCC – Partidos Comunistas SENE – Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros SNI – Serviço Nacional de Informações TIAR - Tratado Interamericano de Assistência Recíproca ULTAB - União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 12 CAPÍTULO I.................................................................................................................. 34 1

O PROCESSO DE FUNDAÇÃO DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA ESG: ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA ................................................................. 35

1.1 O mundo, o Brasil e a ESG ...................................................................................... 37 1.2 A ‘Era da Angústia’ ................................................................................................ 41 2

A HISTORIOGRAFIA E O PROCESSO DE FUNDAÇÃO DA ESG................... 44

2.1 A maturação do Exército e a fundação da ESG ...................................................... 53 3

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 60

CAPÍTULO II ................................................................................................................ 61 4

A DINÂMICA ESTANDARDIZANTE DO CURSO SUPERIOR DE GUERRA . 62

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OS PRECURSORES DO ESPAÇO – A NARRATIVA HISTÓRICA DA ESG ... 75

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 84

CAPÍTULO III............................................................................................................... 87 7

O CURSO SUPERIOR DE GUERRA E “GEOPOLÍTICA DO BRASIL” .......... 82

7.1 Tasso Fragoso e a Escola Superior de Guerra, 1968 ............................................... 89 8

OS PROGRAMAS E CONTEÚDOS DO CURSO SUPERIOR DE GUERRA .... 96

8.1 O Curso de 1954 ....................................................................................................... 97 8.2 O Curso de 1955 ..................................................................................................... 101 8.3 O Curso de 1956 ..................................................................................................... 102 8.4 O Curso de 1957 ..................................................................................................... 108 9

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 109

CAPÍTULO IV ............................................................................................................. 113 10 ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DO BRASIL ....................................................... 114 11 DE 1952 A 1960, ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DO BRASIL ........................... 117 11.1 A Guerra Fria vista pela ESG.............................................................................. 123 11.2 O Brasil na Guerra Fria ....................................................................................... 125 11.3 "Principais modificações estruturais da Sociedade Brasileira em face da evolução do Ambiente Mundial e, em particular, do Panorama Americano”....................................................................................... 131 11.4 A Igreja e a sociedade .......................................................................................... 136 11.5 O Comunismo ....................................................................................................... 139

11.6 A frutificação perigosa ......................................................................................... 142 12 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 148 CAPÍTULO VI ............................................................................................................. 149 13 EM DEFESA DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL CRISTÃ ................................. 150 13.1 Geopolítica e geoestratégia: o pan-americanismo e os sistemas coletivos de defesa................................................................................................................ 152 13.2 Dois pólos da segurança nacional na América Latina ........................................ 157 13.3 O pan-americanismo ............................................................................................ 161 13.4 As queixas latino-americanas contra os EUA ..................................................... 165 14 SISTEMAS DE DEFESA ........................................................................................ 167 15 A ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA) ............................. 168 15.1A OTAN e o Pacto de Varsóvia............................................................................. 175 16 A TEORIA DOS HEMICICLOS .......................................................................... 177 16.1 O mundo de Além-Mar ........................................................................................ 182 16.2 As ameaças (hemiciclo interior) ........................................................................... 184 16.3 O Mundo Luso-Brasileiro .................................................................................... 186 17 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 190 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 194 ANEXO - ESQUEMA 16 - A AMÉRICA DO SUL E OS HEMICICLOS INTERIOR E EXTERIOR ................................................................................................................ 201

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INTRODUÇÃO A geopolítica tornar-se-ia, em meados do século, a razão de existência de uma instituição, a Escola Superior de Guerra (ESG), constituída para gerenciar a atividade de planejamento do Estado e de coordenação dos esforços militares, políticos e diplomáticos. Depois, durante os anos do Regime Militar, a geopolítica norteou o planejamento e a territorialização do regime, bem como lastreou seus esforços internacionais (PEIXOTO, 2011b, p. 124)

No início de 1958, Juscelino Kubitschek proferiu um discurso na ESG, por ocasião da abertura dos cursos que seriam ministrados naquele ano. A sua fala tratava dos temas comumente abordados nos cursos da Escola, sobre o papel desempenhado pelas elites 1, dos problemas econômicos e sociais e, sobre a questão da Segurança Nacional, enquanto interesse do Estado. Por fim, falou sobre o trabalho desenvolvido pela própria Escola e pelas Forças Armadas, guardiãs dos interesses nacionais, enquanto instituições que deveriam ser por isso valorizadas. Para o então Presidente da República era de se lamentar que o Brasil não dispusesse há mais tempo dos serviços prestados pela Escola ao país, que teria “lucrado” sobremaneira “no sentido de maior integração de suas elites na realidade nacional e mais profunda penetração nos problemas” que o mundo enfrentava àquela época. Kubistchek passava, então, um atestado de reconhecimento àquilo que a ESG se propunha em seus propósitos, enquanto um centro de altos estudos, voltado aos temas da Geopolítica e sua aplicabilidade à realidade nacional. (ESG, 1958, p. 1) Foi exatamente nesse sentido, de reconhecimento do papel desempenhado pela Escola Superior de Guerra para a delineação dos possíveis rumos que poderiam ser adotados pelos mandatários do Estado brasileiro, que foi orientado o meu contato com os documentos

A importância do conceito de “elites” conforme observado no pensamento esguiano é bem demonstrado por Duroselle (1992, pg. 24) no sentido de que existe, dentro dos objetivos declarados nas palestras aos estagiários, a clara ambição de formatação de um sistema de poder decisório em poucos, poder esse, evidentemente focado nas questões objetivas da vida nacional, o que, em se tratando de uma perspectiva geopolítica, englobaria questões relativas à diplomacia estratégica e economias internacionais. Fala-se aqui do aspecto “qualitativo” do exercício do poder por “um pequeno número de homens” que usam do instrumento “cálculo” para o planejamento e consecução dos projetos interligados às concepções de Segurança Nacional. A ação dessas elites, dotada de poder decisório e burilada pela ESG com a função de dar funcionalidade a um projeto de nação – mas não se pretende aqui debater o que se conseguiram – era pautado pelo entendimento das questões estruturais que caracterizavam o cenário nacional de forma que o planejamento viesse a atenuar os eventuais e possíveis problemas conjunturais que o afetassem. 1

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oriundos dos Cursos Superiores de Guerra ali realizados no decorrer da década de 1950, cujos conteúdos avalizam a importância da instituição para a história política brasileira daquele período. Voltando à fala de Juscelino, entendo que ficou explícita a afirmação, perante a ESG, da crença nas práticas desenvolvidas pela Escola em torno dos assuntos nacionais relevantes. Nada do que foi pronunciado por ele era estranho aos currículos esguianos. Dessa forma, percebe-se o reconhecimento daquele governo da importância assumida pela instituição perante a estrutura do Estado Brasileiro, apenas dez anos após a sua fundação, concretizando o projeto levado à frente por um grupo de militares sintonizados com as ideias geopolíticas emanadas do contexto da Guerra Fria recém iniciada. Tal atuação da ESG no âmbito de Estado foi o elemento que a definiu como meu objeto de pesquisa. A Escola Superior de Guerra (ESG), no transcorrer da década de 1950, foi assim investigada, sob a ideia de que esse espaço institucional se tornou um locus de produção e difusão de uma determinada categoria do conhecimento, a Geopolítica. Busquei especialmente focar a investigação e análise da constituição do pensamento esguiano e a formulação da Doutrina de Segurança Nacional, tendo uma atenção especial ao papel desempenhado nesse processo pelo general Golbery do Couto e Silva 2, notadamente a partir da sua produção intelectual entre os anos de 1952 e 1960, que define o recorte temporal deste trabalho. Foi este o período durante o qual Golbery escreveu os textos que formaram o seu livro “Geopolítica do Brasil”, conjunto composto justamente por um homem que foi integrante do corpo permanente daquela instituição militar, a qual, por sua vez, foi parte importante da formação de integrantes das Forças Armadas, de elementos do corpo diplomático e de tantos outros pertencentes aos quadros influentes da sociedade civil, que ali desenvolveram a ascendente trajetória que os levou ao coração do modelo político instalado no poder em 1964.

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A trajetória de Golbery do Couto e Silva, em termos de sua carreira militar e ação política, tem sido objeto da atenção de historiadores, notadamente no que se refere à sua atuação na ESG e nos governos de Ernesto Geisel e João Figueiredo. A obra do jornalista Elio Gaspari sobre o Regime Militar (1964-1985), que deriva do estudo de um acervo documental deixado pelo próprio Golbery e de entrevistas com o próprio general, com o expresidente Geisel e com Heitor Ferreira, “secretário de ambos”, além da análise de vasta bibliografia sobre o período, pode ser considerada um marco no sentido da compreensão da vida do homem que acabaria denominado o “feiticeiro”. Uma sua breve biografia pode ser encontrada no terceiro volume da obra de Gaspari, intitulada “A Ditadura Derrotada”, entre as suas páginas 107 e 117. Recomendo ainda a leitura de Puglia (2012), Peixoto (2000), Mundim (2007) e Assunção (1999), utilizados neste trabalho, que representam solidamente a contribuição recente da Academia para o entendimento da figura de Golbery.

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Não existe aqui a pretensão de se escrever a história da ESG naquele período, a década de 1950, e nem de se tratar da historiografia a ele correspondente, que enfim não constituem objetivos deste trabalho, mas sim de investigar como a instituição construía, por meio do Curso Superior de Guerra, a sua teoria geopolítica, e de como esta era apoiada no vasto uso de dados historiográficos que constituiriam, por intermédio dos textos ali expostos sob a forma de palestras, uma narrativa singular em suas feições, a qual, por sua vez, fazia partes das ideias vinculadas à formulação de uma doutrina de segurança do Estado brasileiro com base no conhecimento da história econômica, social, cultural, política, militar e diplomática. Segundo Kubistchek, o papel a ser desempenhado pelos homens que formavam os quadros da Escola era referenciado em termos de herança e continuidade, com a ressalva de que durante o Império, os postos de comando do país estavam nas mãos de sua própria elite por meio de elementos como “a intuição e as qualidades do bom senso, de comedimento”, além das “virtudes morais” e da “prudência”, que perfaziam as qualidades inerentes àquilo que nominou “naturalmente reduzida” classe dominante. (ESG, 1958, p. 2) A evolução da sociedade brasileira e o advento da modernidade que caracterizava a vida do país naquela segunda metade do século XX definiram os imperativos à modernização da própria elite dirigente, pois a complexidade gerada pela necessidade de elaboração de formas que possibilitassem a concretização dos objetivos nacionais atribuiu naturalmente à Escola a tarefa de “promover não só a formação de elites ativas, mas abrir-lhes as vias de acesso aos postos de comando, e o caminho pelo qual a Nação encontrará seus líderes naturais”3. Entendo que Kubistchek estaria fazendo uma referência ao status que a ESG alcançara dentro das estruturas do Estado brasileiro enquanto espaço privilegiado para a composição de diretrizes orientadoras de políticas focadas na questão do desenvolvimento e da segurança, gerando um corpo qualificado de homens capazes de assumir as tarefas requeridas pelas necessidades da nação. Um dos elementos que servia de amálgama para a constituição desse processo, era justamente a construção de uma identidade esguiana, a partir da identificação dos estagiários com as questões doutrinárias ali desenvolvidas.

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Ibdem, p. 2.

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Sabedor de que o binômio “segurança e desenvolvimento” era o mote para a formalização de uma Doutrina de Segurança Nacional, Kubistchek não se furtou à oportunidade de defender as suas iniciativas no campo econômico. Dizia ele que o processo de evolução econômica se funde no conceito, sobremaneira dinâmico, de segurança nacional. [...] No quadro brasileiro, a segurança nacional condiciona todo o programa de ação que, apesar dos mais variados obstáculos, das mais ingentes dificuldades, estou levando adiante no campo econômico e graças a tal associação, esse programa se reveste de uma generalizada unidade, possui organicidade, alicerces sólidos e, mais do que tudo, autenticidade. Tem condições próprias de vida própria e realizar-se-á porque sua concepção obedeceu a um estudo complexo no qual o conceito de segurança nacional forneceu o sistema de coordenadas, os limites, a direção e a aceleração dos elementos vetoriais representativos do progresso econômico. (ESG, 1958, p. 6)

O Presidente fazia uma referência ao Plano de Metas 4 , deixando claro que sua orientação fora pelas “exigências essenciais da segurança nacional”, atestando então que o modelo teórico desenvolvido na Escola atribuiria naturalmente condições de “exequibilidade” ao seu projeto econômico. Kubistchek chamava atenção, também, para o fato de que a execução do Plano de Metas, pela sua própria ambição em termos de propostas para o desenvolvimento do país, exigiria a sua responsabilidade no que dizia respeito à destinação de recursos oriundos do próprio tesouro. Nesse sentido defendia que a realização do projeto estaria em subordinar parcialmente “a execução das metas a uma entrada substancial de financiamentos ou investimentos diretos estrangeiros”. Era uma clara referência à possibilidade de inclusão do capital estadunidense num momento em que a aliança geopolítica surgida no contexto da Guerra Fria enfrentava uma fragilidade relacional, que acometia o pensamento esguiano sob a forma de críticas à ausência efetiva dos Estados Unidos na facilitação do desenvolvimento da América Latina como um todo e, especialmente, do Brasil, dentro das perspectivas de um crescimento que alçasse o país à condição de líder inconteste no Hemisfério Sul5.

4 O Plano de Metas caracterizou a política econômica do governo Kubitschek que definia como prioridades os investimentos nas áreas de “energia, transportes, alimentação, indústrias de base, educação e a construção de Brasília”, a nova capital federal, conforme Caldeira (2000, p. 294-295). Segundo o autor, o seu ponto fraco era a questão do endividamento externo, motor de grave crise econômica que viria posteriormente. 5 É interessante observar que o binômio “Segurança e Desenvolvimento”, que implica em uma clivagem Leste x Oeste por força das composições das alianças firmadas no contexto da Guerra Fria, acabaria por deflagrar, dentro

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No campo das Relações Internacionais, dizia Kubistchek, “a política brasileira tem por base a manutenção da paz”, obedecida a ideia de “desejo do entendimento entre os povos e o respeito às convicções alheias”, defendendo assim os ideais de liberdade e defesa da soberania nacional. Considerava ele ser “indispensável que as ideias de liberdade e os próprios sentimentos cristãos” pudessem assumir sua própria defesa, que ocorreria, sob as circunstâncias da Guerra Fria, “não apenas como desejos, votos, palavras, mas ainda com outros elementos também convincentes”, numa clara alusão aos sistemas de defesa coletiva que integravam os países do mundo ocidental sob a liderança dos Estados Unidos. Por fim, tecia votos de sucesso à política externa brasileira no sentido de integração dos povos latinoamericanos, exortando-os à união como sinônimo de fortalecimento. (ESG, 1958, p. 11) O discurso de Juscelino Kubitscheck, enfim, oferecia aos homens que compunham os quadros esguianos um resumo do sentido da existência da instituição, cujos fundamentos seriam moldados pelo conhecimento geopolítico e que serão analisados no decorrer deste trabalho. Dois livros diferentes num um só Não podemos de certo afirmar que Golbery do Couto e Silva escreveu um livro, uma obra com este fim específico. O conjunto literário sobre o qual me detenho em termos de análise, foi resultado efetivo, em parte, da junção de textos de palestras proferidas pelo general no decorrer da década de 1950 e no início dos anos 1960 e, de outra – à qual farei ainda uma breve referência – o resultado de outra situação, na medida em que foi elaborado para uma palestra de Golbery na ESG no início da década de 1980, muito depois, portanto, dos textos que integram a outra metade da obra. “Conjuntura Política Nacional: o Poder Executivo e Geopolítica do Brasil”, em sua edição de 1981 e, em parte, objeto deste trabalho 6, apresenta-se como uma análise do cenário brasileiro sob a ótica da Geopolítica, sendo a sua composição o resultado da postura adotada pelo general de, em certa forma, preservar e reafirmar ideias a respeito do conceito de Segurança Nacional que foram reunidas em um livro lançado em 1967 7 (Geopolítica do

das perspectivas brasileiras, uma outra clivagem, esta Norte x Sul – que aqui não me cabe discutir, por fugir à periodização aqui analisada – tendo por base a afirmação de uma posição de destaque do país no Hemisfério Sul, e que acabaria por despertar posições políticas brasileiras independentes dos Estados Unidos, notadamente na década de 1970. 6 Não tive acesso à edição de 1967. Daí o uso da edição de 1981, que guarda a integridade do texto original. 7 A divisão esquemática da edição de 1967 é a seguinte: o livro foi dividido em três partes, cada qual subdividida em palestras proferidas por Golbery nas dependências da ESG. A primeira parte, denominada “Aspectos Geopolíticos do Brasil” é composta por três subdivisões ou capítulos: “Aspectos Geopolíticos do Brasil”, 1952;

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Brasil, que forma a segunda parte da obra de 1981), que foram somadas às suas considerações às variantes políticas, sociais, culturais e econômicas presentes no cenário nacional no início da década de 19808 (Conjuntura Política Nacional: o Poder Executivo, a primeira parte do livro aqui analisado). Foram, portanto, editados em ordem inversa, em termos cronológicos. São duas partes de um todo, mas claramente distintas em termos de temática, sendo resguardadas as diferenças decorrentes entre as épocas em que os textos foram escritos. Na prática, são duas obras que se explicam em função de conjunturas específicas, na medida em que existe um largo espaço temporal de uma parte a outra9. A citada primeira parte reflete a conjuntura política, social e econômica brasileira do início da década de 1980, quando o Regime Militar estava navegando nas águas turbulentas da chamada política de distensão, rumando assim para o processo de abertura política, a redemocratização iniciada pelo presidente Ernesto Geisel ainda nos anos 70 10. Chamo a atenção aqui para aquilo que penso ser uma diferença fundamental de Golbery enquanto vetor de ideias, diferença essa derivada do percurso dele próprio e da ESG em nossa história política entre as décadas de 1950 e 1980. O primeiro homem, aquele que enquanto adjunto da ESG e mesmo após a exoneração em 1955, juntou os textos que iriam compor a edição de 1967 era o intelectual11 que ostensivamente discorria sobre a geopolítica, e que a enxergava no planejamento estatal e na realização do conceito de poder nacional através da consolidação da DSN. Transparece ali um idealista que conspirou12 pela realização de um projeto de poder e que estaria fadado à permanência nos quadros de honra da ESG e na mitologia da caserna

“Aspectos Geopolíticos do Brasil”, 1959; “Aspectos Geopolíticos do Brasil”, 1960. A segunda parte, denominada “Geopolítica e Geoestratégia” foi subdividida em três outras: “Geopolítica e Geoestratégia”, 1959; “Dois Pólos da Segurança Nacional na América Latina”, 1959; “Áreas Internacionais de Entendimento e Áreas de Atrito”, 1959. A terceira e última parte é denominada “O Brasil e a Defesa do Ocidente” e é composta por uma única palestra, de mesmo nome, datada de 1958. Além disso, possui dois anexos que abordam temas e conceitos caros às ideias que Golbery defende no conjunto da obra. 8 “Conjuntura Política Nacional: o Poder Executivo” é um texto composto por cinco tópicos que em conjunto constituíram uma conferência proferida por Golbery na ESG, em 1980. 9 Uma, está ambientada no final do Regime Militar, início da década de 1980; a outra, na República Liberal, abrangendo os anos 1950 e início da década de 1960, antes, portanto, dos governos militares. 10 O projeto de “redemocratização de Geisel-Golbery” é analisado por Skidmore, 1988, p. 315-408. 11 A ideia de “elite”, em se tratando especificamente de Golbery do Couto e Silva, é por mim entendida como a de intelectual de Corporação Militar. Este conceito, por sua vez, tem a sua definição tratada conforme a ótica do historiador britânico John Keegan, em sua obra “Uma História da Guerra”. Sobre isso, ver Peixoto, 2000, p.15. 12 São notórios os casos de envolvimento de Golbery em situações de instabilidade política nos anos 1950 e 1960. Alguns documentos de sua lavra tornaram-se atestados da forma como ele enxergava questões importantes da vida política e militar àquela época. Sobre esses documentos, ver Geopolítica e Poder, p. 501 a 535.

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sob a condição de intelectual responsável pelos estudos que, reunidos na década de 1960 sob a forma de um livro, acabaram por gerar um dos textos mais bem fundamentados dentro da perspectiva do conhecimento teórico geopolítico produzido no Brasil. Já o que se depreende é que o Golbery das palestras de 1980, era o homem que, além do mito consolidado nos meandros do poder, um experimentado nas entranhas do Estado, cioso do momento crítico que o país passava e, consciente de que havia a necessidade de reformulação do sistema político e da sua condução para as já citadas “abertura” e “redemocratização”. Tais diferenças, entre o jovem coronel que ajudou a moldar a ESG nos anos 1950 e o homem das ideias conferidas pela madureza e pela forja do exercício do poder na condição de homem forte do Regime Militar, à sombra apenas do presidente Ernesto Geisel em momentos críticos do regime 13, transparecem nos textos que compuseram a obra publicada em 1981. O porquê de não se trabalhar 1981 Para Antonio Miranda Netto14, em sua análise da conjuntura nacional (1956, p.5), a “sociedade é organismo e processo, isto é, domínio que se transforma em função do tempo”. Ele versou à ESG sobre os “processos estocásticos temporais da sociedade”, tais como os “econômicos, políticos, históricos, ou quaisquer outros em que entrem fatores culturais”. Em resumo, entendemos que tal colocação evidenciava que é no sentido de uma dinâmica histórica, condicionante dos fatos, que devemos analisar os erros e acertos das previsões traçadas pela Geopolítica. Aquilo que foi planejado de forma estanque, categórica, pode se confirmar (afinal, foram feitos estudos dos quais derivou um planejamento). Mas diante da imprevisibilidade dos acontecimentos, que não são passíveis de controle, ideias caem em desuso e convicções são desfeitas. Daí que mudam também os resultados e, portanto, os discursos que embasam os planejamentos. Uso tal colocação para me referir aos conteúdos constantes no livro editado em 1981, que contêm as já citadas duas obras, a do texto de 1980 e o livro de 1967, este reeditado como

A história das relações entre Geisel e Golbery e destes com o Regime Militar aparecem descritos de forma magistral na obra do jornalista Elio Gaspari sobre aquele período. Geisel seria “o sacerdote”; Golbery, “o feiticeiro”. Escrita em cinco volumes, relata a ascensão, crise e queda do Regime Militar, contexto onde se insere a edição de 1981 da obra de Golbery, no penúltimo livro da série, “A Ditadura Encurralada”. Ver Gaspari, 2014. 14 Antônio Garcia de Miranda Netto, Bacharel em Ciências Sociais, fizera o Curso Superior de Guerra. Em 1956, era Catedrático da Universidade do Brasil e Adjunto da Divisão de Assuntos Psico-Sociais da ESG. Sua palestra data de 30/07/56.

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um clássico que constitui. A obra de 1967 é técnica, dada ao jargão clássico dos estudos da Geopolítica, fundamentada na análise das conjunturas nacional e internacional e que desenhava um determinado projeto de país; a de 1980 não traz essa preocupação, de fazer profundos estudos teóricos sobre a geopolítica brasileira daquela época. É uma obra que dedica a sua atenção às transformações políticas que estavam em curso no cenário nacional e expressava cautela quanto a análise do contexto do período, marcado pela redemocratização, com toda a carga de responsabilidade que isso pudesse acarretar ao homem que estava ciente dos novos valores e necessidades que emergiam do seio da sociedade brasileira. Eram, em suma, dois momentos. Um de planejamento e outro, em larga escala, de reflexões sobre o muito do que não se tornara ou não realidade naquilo que fora estudado e planejado. A cada um deles, como afirmei anteriormente, coube a um Golbery diferente. Em 1980 Golbery do Couto e Silva era Chefe da Casa Civil do governo do então presidente, o general João Baptista de Oliveira Figueiredo 15. Penso que Golbery, ao formular o conteúdo que compôs a edição de 1981, teve por objetivo externar ao grande público a sua visão a respeito do delicado momento que o país atravessava àquela época, escolhendo como veículo de expressão sua conferência realizada nas dependências da ESG, espaço notoriamente reservado aos palestrantes e estagiários. Golbery fez então uma análise reflexiva sobre o período transcorrido desde março de 1964, estando ele, naquele momento, na condição de peça fundamental daquele que seria o último governo do Regime Militar. Como poucos, Golbery conhecia os meandros do poder, as disputas intestinas do governo que, àquela altura do próprio Regime, representavam as dinâmicas da reação de setores das Forças Armadas, notadamente os elementos pertencentes aos serviços de informação, especialmente ao SNI16, refratários à ideia de redemocratização e, por extensão, da volta da liberdade de ação política das esquerdas. Acredito que, não à toa, a primeira parte do texto discorra sobre o “dilema” enfrentado pelo Brasil em sua história política, qual fosse a ocorrência, desde o período colonial, de sucessivas fases marcadas pela centralização e descentralização administrativa, as “sístoles e diástoles” do seu relato sobre a nossa formação enquanto nação e Estado (SILVA, 1981a, p.5).

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Golbery exerceu o cargo por dois governos consecutivos. Ele fora também ministro do governo Ernesto Geisel. Segundo Figueiredo (2005, p. 124), o Serviço Nacional de Informações – SNI foi criado pelo projeto de lei 1968/64, tendo sido redigido por Golbery. Possuía apenas “dez artigos”, mas era dotado de “um poder quase infinito”, possuindo inclusive “ligação direta com a Presidência da República”. 16

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É interessante perceber que Golbery, enquanto militar reformado, não se furta à exposição de críticas a certos aspectos da estrutura política da qual era parte, notadamente as de caráter centralista que existiam à época da composição da obra. Ele identificava uma situação hipertrófica do modelo de poder Executivo que ascendera ao comando da nação a partir da ocorrência da “revolução de 1964”, quando em nome de um projeto estatal que se fundamentava em diretrizes do processo de planejamento, o país foi orientado de acordo com as normas que refletiam a ocorrência de uma intensa concentração de poderes em benefício de apenas um deles e em detrimento dos demais, por conta de diversos instrumentos de regulação e controle (SILVA, 1981a, pp.22-23). As palavras que deram início à conferência de 1980 remontaram à crença de Golbery no trabalho desenvolvido por ele e pelos demais homens que constituíram a ESG desde a sua fundação17, naquilo que dizia respeito à formulação da Doutrina de Segurança Nacional – DSN, que iria servir de norte ao Estado brasileiro em sua política externa e no planejamento de ações no âmbito interno 18. A edição de 1981 seria então a reafirmação moral da Doutrina e é justamente nesse sentido, que entendo ser antes de tudo necessário o estudo dos textos utilizados por Golbery para compor a obra de 1967, a ‘Geopolítica do Brasil’, ou seja, investigar como esse conhecimento foi gestado. Tal compreensão, da construção do conhecimento de 1967, seria então a condição necessária para o também entendimento do texto de 1980, pois existe um claro diálogo entre ambos na medida em que o conhecimento geopolítico permeia o lapso de tempo existente entre as duas obras. 1967 mostrou um Brasil e um mundo que deveriam, segundo as perspectivas delineadas nos estudos esguianos, obedecer a determinados parâmetros definidos

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Golbery enumerou uma série de nomes aos quais deveria ter em alta conta dentro dos trabalhos desenvolvidos dentro da ESG, sob diferentes circunstâncias e em diferentes épocas. Foram citados nominalmente próceres como Juarez Távora e Cordeiro de Farias, que constam entre os fundadores da ESG, além de outros militares, como Ernesto Geisel e Jurandir Mamede. Além disso, reporta a “diplomatas”, “técnicos” e outros estagiários, nomes enfim de destaque e representativos dos diferentes elementos de origem militar e civil que perfaziam os quadros da instituição. 18 A nota introdutória à edição de 1967 coube ao jurista Afonso Arinos de Melo Franco. Ele expôs a sua visão de que as teses defendidas por Golbery ressaltam o papel crucial da conjuntura externa no que diz respeito às soluções nacionais. Opinou que a “Revolução” errou na análise da conjuntura externa e daí, portanto, errou na condução de determinadas soluções brasileiras. Em seu entender, a DSN, longe de constituir “um sistema ou uma doutrina”, tornou-se, no entanto, “um poderoso instrumento de ação”, na medida em que “as soluções nacionais são fortemente condicionadas pela conjuntura internacional ou pela sua interpretação”. (SILVA, 1981a, p. xiii).

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pela previsibilidade de situações que o planejamento geopolítico acredita ser capaz de concretizar. Ele faz referência ao que afirma ser um pensamento dotado de caráter autóctone, porém em nada diferente daquilo que era formulado por entidades similares à ESG existentes em outros países. É importante também destacar que a ESG não deve ser enxergada como um elemento isolado dentro da estrutura militar brasileira, dentro das perspectivas de formulação de um projeto para o país. Em sua análise a respeito do processo de modernização das Forças Armadas em torno da questão da Segurança Nacional para a realização do sonhado “Brasil Potência”, percebese o grau de envolvimento dos meios militares nacionais na medida em que se elencam as instituições que surgiram no país entre as décadas de 1940 e 1950 voltadas às questões desenvolvimentistas e, portanto, estratégicas19. Era um conjunto agregado ao Estado em torno da consecução de uma ideia do que seria o país ideal. Uma observação se faz necessária ao final dessa análise da Conferência de 1981: esta expõe a visão de Golbery sobre o que teria dado certo e o que teria contrariado as perspectivas esguianas para o país. Suas palavras não eram parte de um exercício de especulação a respeito do que sucedia no Brasil àquela época. Como já afirmei, Golbery falava a um público específico o qual ele conhecia, em essência, como poucos. Ele discursava para a elite das Forças Armadas, para os quadros diplomáticos e técnicos do Estado. Falava à própria sociedade civil em suas diversas frentes, ali admitidas na condição de estagiários. Dentro de uma perspectiva de entendimento da produção intelectual de Golbery e da ESG, e de uma aproximação desses elementos com a histografia e com a história política do período analisado, foi necessário que estivessem todos os elementos observados devidamente imbricados em um processo histórico que neste trabalho é valorado exatamente na obra analisada, que como observamos reuniu textos de dois períodos da história do Brasil. Conforme Duroselle (1992, p.24), para o entendimento de um processo de tal natureza, contam “a evolução, a corrente, indispensável para constatar as continuidades, as criações e a eventual existência de regularidades”.

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Entre 1941 e 1959, foram criadas ou criados a ESG (1949); o CNPq (1951); o Instituto Militar de Tecnologia – a Exército (1941); o Centro Técnico da Aeronáutica (1953); e o Instituto de Pesquisas da Marinha (1959). Além disso, criaram-se cursos de Engenharia dentro das três armas, com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (1950); o Instituto Militar de Engenharia (1959); e cursos de Engenharia Naval mediante convênios com a Escola Politécnica de São Paulo (1955) e UFRJ (1959). Dessa forma, dava-se materialidade ao pensamento positivista que, dentro das Forças Armadas, pregava o desenvolvimento nacional via industrialização do país. (OLIVEIRA, 2007, p.335).

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Compreendo que muitos dos elementos teóricos que foram construídos na ESG no decorrer do período que abrange os textos do livro de 1967, serviram de base ao fortalecimento do papel político das Forças Armadas e estiveram presentes no processo histórico do Regime Militar. Dessa forma, ao discursar à ESG em 1981, Golbery fazia na realidade um apanhado de muitos dos elementos constitutivos do pensamento geopolítico esguiano e de como, em muitos aspectos, os mesmos foram contraditos pela situação montada após a ascensão dos militares ao poder, muito por conta das mudanças nos cenários nacional e internacional. Assim, ao proceder a análise da primeira parte da obra de 1981, “O Poder Executivo”, percebi que seria antes necessário o entendimento da dinâmica que gerou a formação do pensamento esguiano, que em parte foi responsável pela existência do Regime que, no início dos anos 1980, Golbery analisava em seus dilemas e estertores. Dessa maneira, optei por tecer uma análise dos textos de Golbery que compuseram a ‘Geopolítica do Brasil’, de como estes se enquadravam nas perspectivas de formulação da DSN e de que forma ajudaram a tornar a ESG um local por excelência de produção intelectual. Um local voltado à formulação de uma teoria geopolítica que permitiu a ambos, homens e instituição, assumirem posições de destaque no cenário político nacional e de como tais ideias se entranharam nas estruturas do Estado brasileiro. Procurei então entender qual foi o papel desempenhado pela historiografia para a construção das ideias esguianas, que acabaram, por sua vez, se constituindo elas próprias numa narrativa historiográfica dotada do personalismo inerente à Escola e de como ali eram enxergadas as questões inerentes à formação, consolidação, ocupação, projeção e defesa do espaço nacional. Chamou-me enfim a atenção, em uma análise do conjunto de ideias expostas por Golbery, a sua tentativa de conjugar dois elementos aparentemente distintos como forma de fazer funcionar sua teoria geopolítica. O primeiro deles seria a questão de conseguir que prevalecesse o interesse nacional, com base no pragmatismo inerente ao estudo dos assuntos que compunham a base teórica geopolítica para a formulação da DSN; o segundo, consiste no fato de que a sua argumentação como um todo encontrava uma fundamentação moral na ideia de defesa de um modelo civilizatório e de sua herança cultural. Estariam aí encontradas, na produção intelectual de Golbery, a tentativa de conjugar a necessidade prática e o idealismo. A ‘Geopolítica do Brasil’ O livro de 1967 era composto por uma junção de textos que surgiram de forma independente uns aos outros, compostos que foram para estudo de temas específicos em anos diversos. Dessa forma, o livro não foi escrito, mas enformado. É assim considerado uma das

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obras magnas da Geopolítica brasileira, e busca traçar um diagnóstico dos problemas nacionais, em termos internos e externos, preconizando soluções originadas de um planejamento ao qual Golbery devotava toda a credibilidade que pudesse ser devida a algo que tinha por ciência. A obra busca traçar um quadro plausível sobre a importância histórica e prática do conhecimento geopolítico em meio a uma situação que, em escala global era marcada por uma dicotomia política construída sob uma vasta gama de interesses que colocam em oposição as duas superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial. Em contrapartida ao cenário de indeterminismo das fronteiras geradas pela imposição de zonas de influência e das disputas delas derivadas, em plena Guerra Fria, Golbery apresenta o Brasil como um elemento de destaque, um espaço essencialmente ocidental, que por sua posição geográfica no contexto americano, possuiria o dote de ser um potencial integrador de regiões que guardam entre si identidades semelhantes e também dessemelhanças essenciais, mas que se unem, a despeito de eventuais conflitos de interesses, em termos políticos, culturais e econômicos, por fundamentarem-se no conceito de Mundo Cristão Ocidental. Isso transparece claramente na segunda parte da obra, que compreende quatro capítulos. Geopolítica do Brasil, publicado em 196720, tem na sua apresentação um chamado ao cuidado por parte do leitor para que esteja inserido na absorção do texto, mas, também, sintonizado com o período em que seus capítulos foram redigidos. Golbery pedia a compreensão para o fato de que, embora buscasse fundamentação em ideias cujo núcleo trabalhasse com a função de racionalizar a ação política em vista das necessidades do Estadonação, a Geopolítica, seu instrumento argumentativo, é moldada em torno de uma busca pela previsibilidade de situações que possam impactar na dinâmica da segurança de um país, o que não implica, na prática, em uma questão que possa ser definida pelo empirismo 21. (SILVA, 1981b, p.3).

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O livro Geopolítica do Brasil, como destacado na nota introdutória feita por Afonso Arinos de Melo Franco, foi mais um título acrescido à “Coleção Documentos Brasileiros”, iniciada em 1936 pela Livraria José Olympio Editora. A importância da coleção para as mudanças ocorridas na historiografia nacional a partir de então, é analisada na tese de doutorado de Fábio Franzini, USP, 2006. 21 Duroselle (1992, pg. 37) pensa – e isso deve ser aplicado à angústia de Golbery quanto aos possíveis erros de suas teorias geopolíticas e as possíveis críticas daí decorrentes – que a lógica matemática não se aplica ao “qualitativo” presente no elemento humano, por ser este imprevisível. Daí há também imprevisibilidade da geopolítica, derivada de um planejamento suscetível às mudanças bruscas da história.

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A edição de 1967 foi realizada no âmbito do Regime Militar. Mas é uma obra que reproduz os conceitos estudados sobre a geopolítica brasileira em anos anteriores a esse período. Eram conceitos então ainda vigentes e derivados dos trabalhos desenvolvidos por Golbery em função dos estudos desenvolvidos na ESG. Esses textos não tiveram um uso restrito às datas em que foram escritos, como pude constatar por meio da análise dos currículos e conteúdos dos cursos proferidos na Escola no decorrer da década de 1950. Muito pelo contrário, tornaram-se um material didático sistematicamente referenciado e utilizado pelo corpo docente daquela instituição militar. São muitas as indicações dos textos de Golbery como leitura principal ou suplementar nos estudos dirigidos aos estagiários esguianos 22. O que afirmo é que os textos escolhidos por Golbery para compor o livro de 1967, na prática, refletiram um momento da história política brasileira na qual a geopolítica embasava o projeto do governo então no poder. Mas, dentro da essência da própria ESG, o pensamento geopolítico ali gestado poderia ter também valia para qualquer outro governo que se preocupasse essencialmente com os interesses do Estado. No caso dos governos militares, a teoria esguiana casou-se com aquilo que Golbery, enquanto estudioso dos problemas nacionais e das possíveis soluções para os mesmos, percebia como um fator dotado de plausível aplicabilidade, um corpo teórico revestido de argumentos simpáticos às ideias dos que viam para o país um futuro tal e qual enquadrado no projeto de Brasil Potência. A substância para o argumento reside na materialidade da obra. Não falamos aqui sobre algo constante na historiografia que existia àquela época sobre a história do país, da ESG ou mesmo do pensamento de Golbery, mas sim por documentos da sua forja, escritos por ele mesmo, derivados de uma linha de raciocínio que era inerente ao conhecimento gestado e cultivado naquela instituição militar. Quero exatamente expor como este conhecimento, em larga escala, se reproduzia nos conteúdos dos cursos dados na Escola,

A importância atribuída pela ESG aos estudos de Golbery, configurados sob a forma das palestras por ele proferidos nas dependências da Escola, pode ser medida pela constância do seu uso. Mesmo após a sua saída do corpo de adjuntos do Departamento de Estudos da ESG, em novembro de 1955, seus textos continuaram a ser usados como referência para a constituição dos Currículos seguintes, como comprovado pelo uso de “Conjuntura Nacional – Aspectos Geopolíticos”, datado de 1954 (documento C-37-54) e constante no programa de estudos para 1956, como leitura recomendada para os Ciclos I (ESG, 1956a, p. 52) e II (ESG, 1956b, p. 21) e “Planejamento da Segurança Nacional”, também datado de 1954 (documento C-83-54), recomendado para o Ciclo II (ESG, 1956b, p. 19). 22

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padronizando uma linha intelectual que abarcava os ocupantes dos altos escalões das Armas no Brasil. Em resumo, os textos de Golbery, além simplesmente de uma exposição teórica e detalhista dos entendimentos da geopolítica sobre o espaço nacional, colocam em evidência a conexão entre o general e a Escola, em uma relação que teve a utilidade de dar embasamento teórico àquilo que aquela instituição militar acreditava que fosse importante para a condução dos destinos do país. Aquilo que se convencionou chamar o “pensamento da ESG”, na prática apresentavase como resultado de um processo evolutivo, pois, como “centro de altos estudos” se propunha, por meio dos seus cursos e da produção intelectual deles derivada 23, a viabilizar a constituição de um corpo teórico que tinha por objetivo central o planejamento das diretrizes da Segurança Nacional, aquilo que consistiu, em termos finais, em ser um trabalho de elaboração contínua da sua Doutrina. Em 1967, ano em que foi lançado Geopolítica do Brasil, a ESG já estava a quase duas décadas debruçada sobre os problemas nacionais. No decorrer de todo esse tempo, seus integrantes tiveram de lidar com essa temática interna sem que a dinâmica geopolítica externa visse a sofrer uma alteração substancial que se refletisse na necessidade de redirecionamento das temáticas dos cursos. Dessa forma, Golbery e os muitos palestrantes que fizeram suas explanações aos estagiários da ESG chamavam constantemente a atenção para a permanência e influência do “antagonismo entre o Ocidente cristão e o Oriente comunista”, temática que imperava sobre a conjuntura mundial. (SILVA, 1981b, p.4). Tal “estabilidade” no cenário político mundial, no sentido da manutenção das tensões Leste-Oeste e suas implicações no jogo das Relações Internacionais, permitiu que os componentes dos sucessivos comandos da ESG, seu staff, Golbery entre eles, definissem os temas que por sua relevância seriam debatidos nos cursos da Escola, ano a ano, com uma razoável margem de conforto temático. Toda a organização dos cursos, aí incluídos os planos de aulas, conteúdos, palestrantes, visitas e calendários, além de um muito bem planejado esquema organizacional voltado a viabilizar a realização dos cursos, tudo era engendrado e facilitado pela lógica que

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A ESG publicava apostilas que continham especificamente as referências aos trabalhos publicados pelos seus estagiários no decorrer dos seus cursos.

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estruturava a composição do quadro dos temas que ali seriam objeto de estudos, debates e respostas, de acordo com o definido pelo comando. A criação da ESG em 1948, deu abrigo físico à ideia da necessidade de dotar o Estado brasileiro de um local específico de formulação e difusão de conhecimentos focados na resolução das grandes questões nacionais. Nesse sentido, o trabalho desenvolvido na Escola excedia em muito os limites impostos por eventuais políticas de governo, devendo, portanto, ser entendido como a expressão de um trabalho destinado a garantir que se realizassem as aspirações nacionais baseadas num meticuloso planejamento de políticas de Estado. Para entender como se desenvolveu tal dinâmica procurei restabelecer a ordem cronológica dos textos de Geopolítica do Brasil, porque isso me ajudaria a compreender a evolução do pensamento geopolítico de Golbery e, por outro lado, buscar referências entre os seus textos e os cursos ocorridos na Escola entre 1952 e 1960. Outra questão a ser debatida seria a atribuição ou não de autonomia ao pensamento geopolítico por ele elaborado. Dessa forma, visei trabalhar a ESG enquanto locus de produção do conhecimento geopolítico, que refletia uma continuidade de um processo de produção de saberes sobre o espaço nacional que encontra suas raízes nos séculos XVIII e XIX, sob a forma de instituições que, como a ESG, operavam com autonomia no sentido de produzir uma visão de Brasil e de mundo para o Estado. Tal visão compreendia a imediata apreensão da historiografia sobre a geopolítica brasileira, que colocou em relevo a atuação de homens e instituições que se fizeram presentes no processo de construção de uma narrativa sobre a formação do espaço nacional e sobre a projeção internacional do Brasil, tanto para a América quanto para o mundo. Os indivíduos e instituições referenciados nos cursos esguianos possuiriam, como elemento comum, o fato de terem sido de alguma forma ligado ao Estado – inicialmente português, depois brasileiro – atuando, portanto, em prol do Estado-Nação e pautando suas iniciativas no sentido de realização de um trabalho que gerasse um resultado perene e atemporal, fugindo dessa forma da ideia de imediatismo dos objetivos traçados por governos que estivessem no poder. O objetivo seria, então, um projeto de Estado-Nação fomentado pelo planejamento e racionalidade sobre os atributos e usos do espaço nacional, em suas potencialidades e demandas, em uma construção de um saber geopolítico que foi anterior, inclusive, ao advento da própria Geopolítica enquanto campo do conhecimento. Quando tal corpo teórico já se encontrava consolidado, em meados do século XX, seria o elemento catalisador usado pela ESG como instrumento de continuidade do trabalho já há muito iniciado e desenvolvido por

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outros atores, a essa altura já históricos, como Gusmão, Rio Branco, Cortesão ou mesmo o IHGB, a SENE24 e o MRE. Fechou-se assim, no meu entendimento, um circuito de produção. A formulação de uma Doutrina de Segurança Nacional tem por base a realização dos ONPs, ou seja, o desenvolvimento e a integração do território tendo em vista a manutenção de uma ordem interna e suas relações com o cenário internacional. Para isso se casaram, na produção intelectual esguiana, a Geopolítica e a historiografia sobre a formação do espaço nacional e suas relações exteriores, utilizadas para embasamento dos argumentos teóricos geopolíticos, o que resultou inclusive na construção de uma historiografia própria à ESG, usada na composição dos textos que compuseram seus sucessivos currículos. Dessa forma, foi construída uma narrativa que objetivava significar as relações existentes entre a Geopolítica ali gestada e a história política ali tratada e dali derivada. A definição do nosso objeto de estudo deu-se a partir da percepção da importância assumida pela Geopolítica no que diz respeito à sua instrumentalização como elemento teórico capaz de definir as diretrizes do Estado brasileiro. Nesse sentido, os estudos geopolíticos, no nosso entender, foram alçados a um nível até então inédito no Brasil no que diria respeito a uma atuação institucional, no caso da ESG, que obedecendo aos objetivos aos quais de propunha, deu a orientação necessária às estruturas estatais para que se comportassem dentro dos parâmetros traçados por essa modalidade do conhecimento. Este trabalho tem por objetivo principal tentar compreender como o raciocínio em torno da Geopolítica pôde se organizar. Busquei explicar que a ESG funcionou como o espaço dedicado à continuidade da construção de uma teoria geopolítica brasileira, na medida em que a produção intelectual ali realizada extrapolava os limites do conhecimento produzido por autores clássicos, fossem europeus ou norte-americanos. Antes, os utilizava como referências, agregando-os aos temas ali elencados, sob uma abordagem especificamente voltada à realização dos objetivos nacionais. Na ESG a Geopolítica era produzida cotidianamente, curso após curso, ano após ano, tornando-a um locus específico, um local de produção de pensamento ao qual somente pessoas escolhidas pertenciam, dentro de uma lógica que definia, por uma questão de interesses e

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Ver “Enformando a Nação”, Peixoto, 2011, p. 11 a 48.

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prioridades de Estado, que conteúdos seriam ali abordados e trabalhados, tudo dentro da ideia de consecução de um conhecimento que pudesse ser aproveitado pelo Estado brasileiro. Para conseguir tal intento, da compreensão do raciocínio que organizou a geopolítica esguiana, busquei esquematizar a análise empreendida sobre a organização dos programas curriculares da Escola que se enquadraram no período aqui estudado. Busquei identificar como isso era planejado de forma a haver um processo de construção continuada do conhecimento geopolítico, ano após ano. Isso feito, busquei mapear os assuntos estudados na ESG e de como eles se articularam com o pensamento de Golbery, expresso nos textos que compuseram o livro Geopolítica do Brasil, de forma que ficassem claros os paradigmas esguianos e de que forma se agregavam aos cenários nacional e internacional daquela época. Paralelamente, busquei demonstrar como a construção de uma ideia de Segurança Nacional se fez acompanhar de um elaborado argumento historiográfico. Por meio da ESG, o Estado brasileiro se valeu de um conhecimento geopolítico que determinava os liames dos ONPs, que serviam para definir a política interna e pensar a política externa. Ao mesmo tempo se apontava que a formação histórica do Brasil se fez como parte desses liames. São constantemente utilizadas as referências a elementos que considero conjunturais aos pensamentos da ESG e de Golbery, quais fossem o pan-americanismo, a projeção exterior, o combate ao comunismo, o choque de civilizações ou a herança lusitana como elemento de integração nacional, os quais serão abordados no momento oportuno. Nesse sentido, defendo que o pensamento de Golbery dialoga com a produção de outros autores que palestraram na ESG, contemporâneos ao período constante na organização cronológica do livro de 1967, Geopolítica do Brasil. Minha inserção no Programa de Pós-graduação em História da UFRN A linha de pesquisa "Cultura, Poder e Representações Espaciais", à qual foi agregado o presente projeto, se justifica na medida em que entendo a ESG como um espaço (grifo nosso) privilegiado dentro do Exército voltado à produção de conhecimentos (na definição, um centro de altos estudos) que formulou uma estrutura curricular fundada em um conhecimento geopolítico e, portanto espacial e espacializante que foi responsável pela formação intelectual e ideológica das Forças Armadas e de segmentos ditos elitistas do corpo do Estado e da sociedade civil de uma forma geral. O conjunto do conhecimento produzido naquela instituição é por mim entendido sob a ótica das representações dos interesses contidos em um determinado "espaço social", onde os interesses corporativos e sociais se expressam por meio de elementos de diferenciação, os "capitais", valores simbólicos, assim elencados na sociologia de Pierre Bourdieu. Na minha

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análise, a construção da teoria geopolítica foi agregada a elementos ideológicos, morais e culturais que eram comuns aos Estagiários da ESG. Tal junção de fatores está intrinsecamente ligada à dimensão assumida pela Escola perante a estrutura do Estado brasileiro. Entendo que o domínio sobre o conhecimento teórico produzido na Escola e a partilha dos valores culturais, sociais e políticos ali correntes, implicavam diretamente na possibilidade de progressão funcional de algumas das maiores instituições do Estado, cujos integrantes se incorporavam à ESG no decorrer de um ano de duração do Curso Superior de Guerra. Tal premissa pode ser aplicada, como veremos, ao Exército e ao MRE, instituições que recebiam da Escola homens formatados por um trabalho intelectual que tinha por base o conhecimento de políticas de Estado, acima de quaisquer objetivos de governos. A metodologia de pesquisa que adotei teve por premissa a análise documental que fundamentasse a percepção das estruturas esguianas dentro de uma perspectiva de caracterização de um determinado “espaço social” enquanto cenário de disputas configuradas pela ideia de legitimização e prevalência de uma visão específica de mundo, sendo as estruturas intelectuais dispostas como estratégias em variados campos onde poderes e recursos se manifestaram em meio à disputa pelo poder. No que diz respeito às fontes, parti da obra composta por Golbery do Couto e Silva, Geopolítica do Brasil, de 1967. Grande parte do que foi pensado por ele, exposto nos textos que compõem a obra, resultou na constituição de saberes que serviram de base para os cursos ministrados e palestras proferidas na ESG e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME)25. No tocante aos cursos, realizei pesquisas nos arquivos da própria ESG, no Rio de Janeiro, de forma que tive a possibilidade de copiar e trazer para consulta apostilas de Cursos Superiores de Guerra ocorridos na Escola entre 1951 e 1958, além de outros documentos oriundos da Escola, mas extemporâneos a esse período26 e que me foram fundamentais para a composição do entendimento a respeito do funcionamento da instituição, da organização dos cursos, da evolução do raciocínio geopolítico e da expressão dos elementos constantes no pensamento de Golbery e de outros que contribuíram com seu trabalho a partir da grade curricular que caracterizou a constituição teórica dos referidos cursos.

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A história da ECEME e das suas relações com a história do Exército foi reconstituída por meio de publicação comemorativa do seu centenário de fundação. Sobre isso, ver ECEME, 2005. 26 Foram eles a conferência proferida nas dependências da Escola pelo seu então Comandante, Ge. Augusto Fragoso, em 12 de março de 1968, e os Fundamentos da Doutrina, publicados pela ESG em 1981.

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A historiografia sobre o período será apenas referenciada, no sentido de dar suporte às consultas sobre o período histórico no qual se inclui o material que serviu de base para esse estudo. Não houve, pois, a pretensão de se recorrer ao debate historiográfico ou discorrer sobre a ambientação histórica que alocou a ESG e seu pensamento no período aqui abordado. O conceito de Geopolítica (grifo nosso), elemento fundamental na composição do trabalho, foi estudado com base nas obras de Shiguenoli Miyamoto, "Geopolítica e Poder no Brasil"; Leonel Itaussu A Mello, "Quem tem medo da Geopolítica?"; e Golbery do Couto e Silva, "Geopolítica do Brasil". Tendo o meu estudo por objeto o pensamento de Golbery, fazse necessária a compreensão do desenvolvimento dos conceitos agregados à ciência geopolítica, bem como as suas implicações no que tange à formação da doutrina que caracterizou a ESG, a sua atuação política e a sua influência nas concepções desenvolvidas sobre o papel político do Brasil no cenário mundial no contexto da Guerra Fria. Os elementos relacionados à Geopolítica serão referenciados a partir das perspectivas traçadas pela análise da sua história, por meio da bibliografia adotada. Nesse sentido, a minha postura passa pela perspectiva de entender o pensamento geopolítico construído por Golbery e pela ESG sob um enfoque inerente ao objetivismo normalmente característico do discurso derivado da Geopolítica Clássica 27. Buscamos dessa forma mapear como se deu a articulação do pensamento esguiano a partir da identificação dos discursos, práticas e representações que constituíram o espectro teórico da instituição e do seu mais respeitado ideólogo, Golbery, um dos maiores responsáveis pela construção de uma identidade e de uma cultura associadas à proteção das estruturas e interesses do Estado a partir da ótica militar e elitista. A tarefa compreendeu também a percepção da importância que a historiografia a respeito da construção do espaço brasileiro ganhou na formulação da produção intelectual esguiana, a ponto de gerar uma historiografia própria, orientadora dos estudos constantes nos currículos ali desenvolvidos. Dessa forma, buscamos entender a ESG como um espaço dotado de uma identidade definida por padrões institucionais e ideológicos bem delimitados e significados e que foi responsável pela construção de um discurso que procurava definir e também significar, dentro dos parâmetros geopolíticos ali gestados, o Brasil no mundo da Guerra Fria. Assim, me será de fundamental utilidade a investigação das práticas desenvolvidas na ESG dentro das perspectivas traçadas por Renato Amado Peixoto, que preconiza que se deva

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Sobre os conceitos, ver Albuquerque, 2011, p. 15 a 23.

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partir da investigação das performances do Estado, das instituições ou dos organismos e grupos que lhe estão vinculados a estudar o que diz respeito à construção e a operação do espaço, ou seja, as práticas espaciais, materiais e representacionais operadas a partir do Estado ou sob sua influência". (PEIXOTO, 2011a, p. 146-147).

Ele também defende28 a possibilidade de que a geopolítica seja trabalhada a partir da história. Ao colocar em evidência essa perspectiva, Peixoto argumenta que a constituição de uma “história dos espaços” demandaria a análise das produções que abordam “a expansão do Estado e de seus meios” e que fossem observados os elementos que permitem o registro “de suas espacialidades e territorialidades”. Dentro ainda dessa busca do entendimento da história da geopolítica sob suas diversas perspectivas, me apropriei de uma construção do mesmo autor - originalmente aplicada à cartografia - mas que se adequou aos nossos propósitos ao se estabelecer uma análise crítica a respeito da construção dos discursos geopolíticos. Segundo Peixoto defende, pode-se efetivar uma investigação "a partir de relações culturais, sociais, políticas e intelectuais que devem ser compreendidas em seu confluxo e na cena do debate que daí é instruída". (PEIXOTO, 2014, p. 187). O recorte temporal relacionado ao nosso objeto de estudo está situado entre 1952 e 1960, em uma fase historicamente anterior aos governos militares e determinante, em termos circunstanciais, para a ocorrência destes, que tiveram amplos aspectos do seu corpo intelectual e político criados e desenvolvidos nas dependências da ESG, configurando o que se convencionou chamar a “Sorbonne” 29. Tal delimitação foi definida levando-se em conta a datação dos textos que compuseram “Geopolítica do Brasil”, a obra aqui analisada. É um período histórico que tem início logo após a fundação da ESG e que tem seu fim poucos anos antes da ocorrência do golpe militar que encerrou a fase política conhecida como "República Liberal" ou "República Populista". Exatamente durante a época acima apontada, houve a adoção pelo Estado brasileiro de uma política de alinhamento com o bloco ocidental, sendo este capitaneado pelos EUA em oposição ao bloco socialista, composto por países liderados pela URSS. Nesse contexto bipolar, as Forças Armadas brasileiras exerceram

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Ibdem, p. 119. Segundo Mundim (2007, p. 44), à "ESG, foi atribuída a alcunha de “Sorbonne”, convencionando-se, até, designá-la como 'laboratório ideológico' das Forças Armadas". Tais denominações tiveram relação direta com a função de centro de altos estudos desempenhado pela instituição. 29

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um papel de destaque para a definição, em maior ou menor escala, da atuação brasileira no cenário da Guerra Fria, culminando com a deposição do presidente João Goulart em 1964. Entendo que a ESG teve um papel fundamental para a formulação de elementos doutrinários, os quais foram atuantes na formação de uma elite na corporação militar, e resultaram na concepção de um projeto específico de nação que acabaria por se contrapor ao modelo defendido pelo ISEB30, esposado pelo governo Jango. Grande parte dessa doutrina foi exposta no pensamento político do general Golbery, construído no decorrer do período, na medida em que, a partir do efetivo momento da sua criação, em 1949, a ESG tornou-se um espaço privilegiado de produção do conhecimento agregado à estrutura das Forças Armadas, dedicando-se a um bem coordenado projeto que se desenvolveu em torno da abordagem de temáticas então consideradas relevantes 31 e, que resultou na elaboração de uma teoria geopolítica dotada de especificidades, inclusive em termos ideológicos, no concernente à realidade brasileira e que trabalhava a perspectiva da inserção do Brasil em um concerto de nações espacialmente enquadradas, no conceito de "Mundo Ocidental Cristão"32. O trabalho é dividido em duas partes. Na primeira, que abrange os capítulos 1, 2 e 3, abordo a formação da ESG e o curso superior de guerra. Na segunda parte, que compreende os capítulos 4 e 5, detive-me nas formas como Golbery e demais palestrantes da ESG enxergavam o Brasil e o mundo na Guerra Fria e de como as suas ideias acabaram por compor uma visão de mundo e uma historiografia esguianas. Partindo para a apresentação capítulo a capítulo, a estrutura do trabalho é disposta em cinco deles, expostos a seguir. No primeiro, trabalhamos o processo de fundação da ESG,

Conforme Fernandes (2009, p. 842), o ISEB fazia parte do conjunto de instituições – entre elas, a ESG – que a partir dos anos 1940 se dedicavam a pensar o Brasil e a tecer projeções sobre seu futuro. Criado como “centro de estudos” no ano de 1955, pelo então presidente João Café Filho, tinha por foco as questões que se relacionavam ao conceito de desenvolvimentismo. Já José Murilo de Carvalho definiu o ISEB como “o principal formulador e propagandista do credo nacionalista”. Ver Carvalho, 2002, p.88. 31 A estrutura dos cursos proferidos na ESG nos anos 1950, as temáticas abordadas e os problemas ali discutidos serão elementos abordados em um capítulo específico do nosso trabalho, que se debruçará sobre as características da teoria Geopolítica ali desenvolvida. 32 A noção de Representação será trabalhada a partir da ótica de Roger Chartier. Visamos identificar as implicações culturais resultantes do pensamento doutrinário da ESG e de que formas foram utilizados os símbolos e visões de mundo presentes na obra de Golbery. A inserção do Brasil no conceito de "Mundo Ocidental Cristão" pode assim ser trabalhada no sentido de que existe uma construção histórica de padrões, códigos e sentidos e que ela deriva dos interesses dos grupos sociais e das relações que envolvem a disputa pelo poder. Deve ser também entendida como resultado do diálogo com a cultura do povo, a base formadora da sociedade brasileira. As representações são expressas pelos discursos, conforme Chartier, e daí a importância do conceito para o entendimento da obra de Golbery do Couto e Silva e da doutrina da ESG, elementos pautados pelo conservadorismo. 30

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traçando um quadro geral das condições históricas e versões concorrentes sobre o seu processo de formação, destacando o papel desempenhado pelo general Golbery do Couto e Silva nessa trajetória. O segundo capítulo aborda como a ESG, por meio do Curso Superior de Guerra, se adequava ao entendimento da existência de um trabalho de construção de uma narrativa de formação do território brasileiro que, na prática, estava associada aos interesses do Estado e possuía antecedentes históricos sob as formas de homens e instituições que trabalharam nesse sentido desde períodos muito anteriores à existência da própria Escola. O terceiro capítulo está focado na análise do Curso Superior de Guerra, das estruturas curriculares da instituição e de que forma foi conduzido o processo intelectual que resultou na formalização da teoria geopolítica que sintetizava a visão de mundo de Golbery e da ESG, em um claro processo de continuidade na elaboração dos Cursos. A Escola foi observada enquanto instituição educacional e percebida em sua condição de espaço privilegiado dentro das estruturas militares e do próprio Estado brasileiro no que se refere à formação e doutrinação de toda uma elite que absorveu a sua ideologia, formulou a Doutrina de Segurança Nacional e a transformou em um projeto de poder dentro de uma dinâmica de tensões que explicitavam diferentes visões de mundo em processo de colisão. Aos quarto e quinto capítulos foram destinadas as construções historiográficas que embasaram os textos utilizados nos Cursos Superiores de Guerra ocorridos no período aqui estudado. O quarto capítulo está relacionado à análise dos textos de Golbery que compõem a 1ª Parte de Geopolítica do Brasil. Os referidos textos, todos nomeados ‘Aspectos Geopolíticos do Brasil’, são datados de 1952, 1959 e 1960. Neles buscarei entender as implicações da questão ideológica expressa no posicionamento no contexto da Guerra Fria, trabalhando essencialmente a postura implícita na ideia de uma geopolítica brasileira e a sua integração a uma postura pautada pela luta contra a expansão comunista, essencialmente, de caráter conservador e associada à aliança com os Estados Unidos. O quinto capítulo ambienta a 2ª e 3ª Partes de Geopolítica do Brasil, sendo composta por textos escritos entre 1958 e 1959, e está diretamente ligado ao desenvolvimento das ideias que se aplicavam ao comportamento da política externa brasileira naquele período e de como isso era trabalhado na Escola. O ideal do Pan-Americanismo, os sistemas coletivos de defesa, a Teoria dos Hemiciclos e a defesa "Mundo Cristão Ocidental" são os elementos centrais. Nessa distribuição de conteúdos, parti da premissa de que se fez necessário entender a ESG como instituição, antes de interpretar o discurso que ela formulou, disseminou e para

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o qual teoricamente teria sido forjada. Busquei investigar a sua gênese a partir da análise das diferentes ideias e perspectivas que a nortearam e que, em suas especificidades, se aproximavam ou se distanciavam dos interesses colocados em voga pelos atores que se digladiavam nos campos econômico, social, militar e – essencialmente – político, tanto no âmbito de Brasil quanto no contexto mundial, ambos conturbados e marcados por profundas rivalidades ideológicas, como veremos adiante. Problematizarei não apenas a sua produção intelectual, característica que a mantêm ainda como uma instituição atuante dentro do âmbito do Estado brasileiro – embora sem o relevo anteriormente possuído – mas também a Corporação Militar 33, a sua gênese, o seu processo constitutivo, o que a tornou um espaço qualificado dentro do dispositivo de poder militar, as Forças Armadas e que por isso ocupa um lugar de relevo na narrativa historiográfica relativa ao período histórico anterior ao Regime Militar (1964-1985) e preparador do caminho que possibilitaria a ocorrência deste.

33 A ideia de Corporação Militar será por mim trabalhada de acordo com a compreensão de Peixoto (2000, p. 11), no sentido de entidade possuidora de um tipo de coesão e organização que lhe confere um caráter exclusivista. No dizer do autor, “um mundo praticamente à parte, com seus próprios costumes, relações e cognição”, sendo assim, justamente por ser dotada dessas características, portadora de um discurso que lhe é muito próprio, específico e representativo.

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CAPÍTULO I

O processo de fundação da ESG: análise historiográfica “O findar da Segunda Guerra criou o clima propício, contribuindo para que se fundasse definitivamente um centro aglutinador da elite das Forças Armadas”. (MIYAMOTO, 1995, p. 79)

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1 O PROCESSO DE FUNDAÇÃO DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA - ESG: ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA Por ocasião do lançamento do livro Geopolítica do Brasil, em 1967, foram expostas as linhas gerais de um pensamento que tinha por objetivo definir os rumos que o Estado brasileiro deveria assumir de forma que fossem colocadas em prática as políticas que, em torno dos conceitos de segurança e desenvolvimento, permitissem, internamente, a integração do “espaço brasileiro”,34além de projetá-lo externamente tendo em vista a afirmação de sua importância para o Ocidente. Tais conceitos foram trabalhados por ele em parte da década de 1950, quando foi parte integrante do quadro permanente da ESG, e viriam a dar os subsídios teóricos necessários à justificativa da DSN, que ali foi gestada. A obra de Golbery do Couto e Silva encontra grande parte de sua fundamentação teórica no pensamento geopolítico gestado no Brasil durante as décadas de 1920 e 1930. A evolução desse conhecimento que apregoava um claro teor expansionista é trabalhada por Shiguenoli Miyamoto em ‘Geopolítica e Poder no Brasil’ (MIYAMOTO, 1995, p. 43-64), que explica que por intermédio de autores como Elyseo de Carvalho, Everardo Backheuser, Mário Travassos e Delgado de Carvalho, foram defendidas ideias como a ocupação do território brasileiro e a afirmação do país no contexto político sul-americano via estabelecimento da influência Atlântico-Pacífico, visando a formação de uma potência em âmbito mundial. A ideia de “Ocidente”, presente nos textos de Golbery e no pensamento esguiano, é por mim entendido a partir da conjunção de dois elementos conceituais: o primeiro deles é derivado das concepções geopolíticas presentes na teoria do inglês Halford John Mackinder, apresentada na Royal Geographical Society, em 1904, teoria essa explicada por Leonel Itaussu Almeida Mello em sua obra ‘Quem tem medo da Geopolítica’ 35. Mello ressalta a importância da oposição entre oceanismo e continentalismo para Mackinder, e de que forma tal conflito, em suas variações, se fez continuar a partir de 1947 com o início da Guerra Fria e a consequente formação das alianças militares na Bipolaridade

A ideia de “espaço” brasileiro será por nós tratada, doravante, dentro das perspectivas postas pela geopolítica que viriam a influenciar a obra de Golbery do Couto e Silva. Ele faz uma descrição apurada das características físicas e demográficas do território brasileiro ao escrever sobre “As Categorias Geopolíticas Fundamentais e a Realidade Brasileira” (SILVA, 1981, pp. 38-47), destacando a ocupação territorial e a expansão da influência brasileira na América do Sul, fazendo, ao final, a prescrição de "uma manobra geopolítica para integração do território Nacional". 35 Ver Mello, 1999, p. 27 a 69. 34

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de poder, o Ocidente representado pela OTAN (1949) e o Oriente, pelo Pacto de Varsóvia (1955). Mello (1999, p. 69), destaca ainda que Mackinder e sua teoria foram capazes de "antecipar a paisagem geoestratégica

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do segundo pós-guerra", estabelecendo uma

vinculação histórica entre o mundo ocidental e a Tradição Cristã Católica 37 , um processo desenvolvido desde a Antiguidade e que possui na Igreja Católica um dos seus elementos basilares, isso enquanto formatadora dos elementos centrais ao conceito de ‘Civilização Ocidental’. Faz-se necessária, nesse ponto, uma observação sobre a importância da geopolítica enquanto campo de concepção de um conhecimento específico naquilo que diz respeito ao nosso objeto de estudo. Em ‘Geopolítica e Poder no Brasil’, Miyamoto (1995, p. 23) trabalha as diversas definições dadas ao termo Geopolítica, destacando ser uma área de estudos surgida em fins do século XIX a partir do sueco Rudolf Kjellén. Dentre os vários autores citados, ele expõe o conceito defendido por Jorge Atencio em sua obra ‘Que es la geopolitica’, a qual classifica como "ampla e completa" e que é expresso sob o entendimento de que constitui uma Ciência que estuda a influência dos fatores geográficos na vida e evolução dos Estados, a fim de extrair conclusões de caráter político. A geopolítica guia o estadista na condução da política interna e externa do Estado e orienta o militar na preparação da defesa nacional e na consideração da relativa permanência da realidade geográfica, e lhes permite deduzir a forma concordante com esta realidade em que se podem alcançar os objetivos e, em consequência, as medidas de condução política ou estratégica convenientes.

No sentido daquilo que pretendo expor, de uma instituição voltada à realização dos objetivos do Estado brasileiro, observadas as nuances da narrativa histórica sobre a formação do seu território, o conceito seria por si suficiente. Já Silva (1981b, p. 33) coloca "ser a Geopolítica sobretudo uma arte-arte que se filia à política e, em particular, à Estratégia ou Política de Segurança Nacional, buscando orientá-las à luz da geografia dos espaços politicamente organizados e diferenciados pelo homem."

Peixoto (2000, p. 108) nos explica que Geoestratégia “é a conjugação entre a Estratégia e a Geopolítica”. Golbery, por sua vez, coloca que "Como a Estratégia (Política de Segurança Nacional) é setor da Política dominada pelo fator 'segurança', a Geoestratégia é a parte da Geopolítica que fundamenta a Estratégia." (SILVA, 1981, p. 259). 37 A respeito de matrizes teóricas do conservadorismo católico, ver Rodrigues, 2005, p. 23 a 72.

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Entendo assim que a ideia da proteção do território a partir da adoção de políticas estatais demandou um planejamento que valorava os elementos potenciais do espaço nacional e apontava a melhor forma de prover a sua integração. Por esses exemplos, pode-se perceber o grau de importância que os estudos geopolíticos chegaram a adquirir para os militares brasileiros, uma vez que o país era visto por estes enquanto dotado de um vasto território, extensas fronteiras e imensurável quantidade de recursos naturais, mas que ainda não haviam sido bem desenvolvidas as estratégias para a sua exploração, integração e defesa. Por consequência, compreende-se que as condições teóricas e técnicas voltadas à resolução dos problemas acima expostos, seriam formuladas a partir do trabalho desenvolvido pelo corpo intelectual agregado à Escola Superior de Guerra (ESG) a partir da sua fundação e que seria integrado ao conteúdo programático desenvolvido pela escola no decorrer dos seus cursos. Sabendo da condição assumida pela ESG, de instituição produtora de uma carga de conhecimentos que impactou, de forma relevante, as ações estatais desenvolvidas em fins dos anos 1960 e primeira metade da década seguinte, adotei antes a postura de tecer uma análise a respeito das origens da instituição em si, de como esta foi concebida e de como sua concepção foi percebida por diferentes abordagens construídas por historiadores ou cientistas sociais. 1.1 O mundo, o Brasil e a ESG Busquei entender como a ESG se constituiu numa entidade receptora e condutora das ideias de Golbery e, como ele mesmo se instituiu enquanto produtor e portador de um discurso contido na construção da Doutrina de Segurança Nacional – DSN38, que colocou em evidência os interesses e estratégias do país diante da dinâmica gerada pela Guerra Fria, inclusive em termos de afirmação de sua própria ‘espacialização’39, que por sua vez também professava

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Segundo Miyamoto (1995, p. 80) a DSN foi composta por uma série de elementos amalgamados, destacandose as ideias de Alberto Torres, Oliveira Vianna e Góes Monteiro e traços do “positivismo comtiano”, tradicionalmente presentes no pensamento militar do Brasil. 39 A questão da espacialização será discutida de forma que se conjuguem os conceitos tratados por Silva (1981, p. 33) e Ferraz (1997, p. 36-37), de forma que o território possa ser percebido como extensão da soberania estatal, a partir da sua organização mediante políticas que permitam a sua integração, exploração, desenvolvimento e defesa.

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outro discurso, este de natureza cultural, que contém uma representação de Brasil inserido numa determinada ‘espacialidade’40, o “Mundo Ocidental Cristão”. Seria, no meu entender, como expresso na concepção de Ferraz (1997, p. 36-37), uma "extensão do conceito de defesa, puramente militar, para a garantia dos valores da Nação", que se tornou representativo da expressão intelectual, não só de Golbery, mas dos demais responsáveis pela formulação do conhecimento que era constante dos currículos da ESG. Tal processo teve a sua gênese situada no contexto formado após o fim da Segunda Guerra Mundial, mais exatamente no período transcorrido entre 1946 e 1964, comumente denominado como ‘República Democrática’ ou ‘República Liberal’, que ficou caracterizado pela adoção, pelo Estado brasileiro, de uma postura de alinhamento com o bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos (EUA) e em oposição ao bloco socialista, liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Em consequência dessa posição adotada diante da bipolaridade ideológica que dividia o mundo à época, já no governo Dutra (1946-1951) elementos e instituições de alguma maneira associados ao projeto político esquerdista sofreram os efeitos de uma política de Estado claramente hostil à sua atuação. Tal situação foi reflexo da conjuntura nacional que se formou após o fim do Estado Novo. Em setembro de 1946, a Assembleia Constituinte aprovou a Carta Magna que iria reger os destinos do Brasil redemocratizado. No entanto, atritos partidários e a organização de focos de oposição a Dutra acirraram os ânimos. O historiador Thomas Skidmore (1979, p. 9293) nos aponta que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) era o responsável pela mais aguerrida oposição ao governo, inclusive em decorrência da existência de elementos de teor neoliberal presentes na Constituição e pela adoção de políticas econômicas que buscavam atrair o capital externo. A partir de 1947, em meio ao agravamento da crise econômica e diante do crescimento eleitoral do PCB, que havia se fortalecido pela rápida disseminação de sua estratégica política nos meios sindicais, formou-se a situação que levou Dutra à adoção de medidas extremas. Skidmore (1979, p. 93), comentando a dinâmica assumida pela política brasileira na época, escreveu que o governo Dutra partiu para o confronto com as forças de

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Nesse sentido, trabalharemos em concordância com o trabalho desenvolvido por Peixoto (2014, p. 186), no sentido de se cuidar da produção e disseminação de conhecimentos sobre o espaço, em termos, concentrados na disciplina Geopolítica brasileira. Partimos da ideia da produção da história do espaço brasileiro por meio da Geopolítica e da explicação da ESG, enquanto espaço responsável pela produção desse conhecimento, traçado em torno do planejamento do território nacional e da sua atuação no cenário da Guerra Fria.

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esquerda, com a inclusão, no texto constitucional de 1946, de um dispositivo que limitava a ação política dos partidos tidos como “antidemocráticos”. Tal instrumento foi utilizado pelos Procuradores do governo de forma que o PCB fosse colocado à margem da legalidade, em decisão datada de 1947. De acordo com ele, tal decisão Foi apoiada, sem causar surpresa, pelo Exército, que havia sido um bastião da ideologia anticomunista oficial desde a revolução comunista, em novembro de 1935. Também havia sido apoiada pela maioria dos constitucionalistas liberais que acompanharam os padrões de 1935 a 37 e engoliram as suas dúvidas quanto a privar os "antidemocratas" dos seus direitos democráticos. Eles concordaram claramente com os "de dentro" 41, que a militância dos comunistas, combinada com o alarmante crescimento dos seus poderes eleitorais, poderia ser uma força realmente dissolvente. A supressão oficial do Partido Comunista coincidiu também com o início da Guerra Fria. Os anticomunistas brasileiros podiam, portanto, encontrar no exterior uma pronta justificativa para os seus atos (SKIDMORE, 1979, p. 93-94)

Naquele mesmo ano o Brasil rompeu relações diplomáticas com a URSS e nesse contexto foi fundada, em 1949, a ESG. A instituição encarregou-se da reelaboração da Doutrina de Segurança Nacional, embasada em questões geopolíticas e, ao mesmo tempo, de acordo com o pensamento de um dos seus mais influentes integrantes, Golbery, buscando alinhavar a presença e a atuação do Brasil no concerto das nações alinhadas ideologicamente com os EUA. Tal posicionamento, na concepção de Golbery, seria de grande valia para o Brasil, na medida em que a nossa localização geográfica seria um dos elementos centrais da estratégia estadunidense no Atlântico Sul. Ele afirmava que tal circunstância territorial daria ao Brasil condições para o estabelecimento de uma aliança que expressasse “o reconhecimento da real estatura do Brasil nesta parte do Atlântico”. (SILVA, 1981, p. 51). Esse pensamento foi absorvido e praticado pela ESG, pautando uma parte importante do conteúdo constante nos cursos da Escola. É este, inclusive, um dos argumentos que nos permite perceber a própria ESG enquanto locus concebido para articular e disseminar as

41 Ao descrever a situação política brasileira por volta da metade do ano de 1945, Skidmore (1979, p. 80) chama a atenção para o uso dos termos que se aplicavam a duas vertentes políticas que se destacavam à época. Eram os "de dentro" e os "de fora", respectivamente aqueles que prestaram apoio implícito no decorrer do período do Estado Novo e aqueles que foram alijados das estruturas de poder a partir de 1937, "especialmente os constitucionalistas liberais".

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concepções geopolíticas, aqui identificadas como discurso e prática, ou seja, como um conhecimento fabricado que versa e age sobre territórios, identidades e que, por isso, desencadeia o tratamento dos sentidos espacializantes. Estes, por sua vez e em termos de interesses de Estado, são também extensivos às relações firmadas no âmbito internacional. Outro aspecto a ser observado é que a ESG, dentro de suas condições enquanto centro de estudos geopolíticos, tornou-se uma instituição onde era defendido outro elemento, este de caráter cultural, que evocava uma “tradição cristã ocidental”, portanto um discurso que exaltava o pertencimento do Brasil a um espaço mítico. Tal fator cultural era constantemente lembrado nos textos esguianos e alinhavados às formulações que se voltavam à consecução de um espaço mentalmente e institucionalmente projetado a partir de concepções geopolíticas, qual fosse a visão do Brasil como uma nação forte, um país potência, valorado por seu poder interno – derivado de extensa territorialidade, abundância de recursos naturais e grande contingente humano – e atuação no cenário internacional, possuindo papel de destaque devido ao seu estratégico posicionamento no cenário geopolítico do Atlântico Sul. Deve-se notar que a ideia de “tradição” na obra de Golbery do Couto e Silva abrange dois elementos fundamentais: a questão religiosa, associada à herança cultural católica, e a questão militar, referenciada pelo papel de destaque obtido pelo Exército Brasileiro nas questões políticas nacionais e nos conflitos externos aos quais a sua presença foi exigida 42. São temas que, embora não sejam pivôs deste trabalho, aparecem invariavelmente como acessórios aos argumentos desenvolvidos pelos esguianos. Mas ao mesmo momento em que evidenciava os elementos geográficos favoráveis ao Brasil em termos de consecução dos seus objetivos geopolíticos, Golbery enfatizava em contraponto aquilo que entendia ser nossa fraqueza, a dificuldade no combate às ideias comunistas na América Latina. Tal construção, se por um lado colocava o Brasil como um elemento vital na defesa do Ocidente, por outro lado evocava a necessidade de ajuda dos EUA à nação latino-americana mais importante.

Trabalhamos com a perspectiva de “tradição inventada”, conforme a ótica de Eric Hobsbawm, na medida em que ambos os elementos acima citados refletiram, cada qual ao seu modo e no seu tempo, um forte processo de institucionalização. Hobsbawm (1984, p. 9) afirma que, pelo conceito de “tradição inventada" entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado."

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1.2 A ‘Era da Angústia’ Em um artigo intitulado ‘A Era da Angústia’ 43 , Howard Temperley e Malcolm Bradbury fizeram referências às muitas e profundas transformações ocorridas nos EUA entre os anos 1940 e 1950, quando se sucederam o fim da crise econômica, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria 44 , transformações essas que mexeram com o âmago da nação, inclusive em termos ideológicos e prepararam o que chamaram "consciência americana" para os papéis que o país teria que assumir com o fim da Segunda Grande Guerra. A esse respeito, escreveram que fora

uma transição fundamental e abrupta, prevista por muitos poucos. Os Estados Unidos começaram os anos 1940 como uma nação voltada para dentro, preocupada com temores econômicos, desemprego, a necessidade de sanar a divisão ideológica interna e afirmar os valores da identidade americana. Uma década mais tarde, quase todas as questões mudaram e as vozes que falavam pela Nação e suas questões passaram a falar uma linguagem diferente. Agora, os Estados Unidos eram uma superpotência global, aquela que saíra completamente vitoriosa da Segunda Guerra Mundial, funcionando com responsabilidades internacionais numa arena internacional, sua sorte afetada pelos acontecimentos mundiais, seu problema de definir suas intenções para o mundo. As angústias que a preocupavam não eram mais econômicas e sim atômicas: havia começado uma nova era de política de poder. (BRADBURY; TEMPERLEY, 1981, p. 304-305)

A mudança de postura pelos Estados Unidos logo se fez premente diante da nova configuração do jogo de poder desenhado em escala global após a derrota das forças do Eixo. A URSS, até então aliada, tornou-se o inimigo a ser batido, militarmente ou, como a sequência dos fatos veio a provar, no campo das ideias, em uma acirrada disputa ideológica que se refletia, em termos geopolíticos, no estabelecimento de zonas de influência política,

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O título foi buscado em um poema do mesmo nome do poeta britânico W.H. Auden, publicado em 1947, nos EUA. 44 Convencionou-se chamar "Guerra Fria" o período de cinco décadas posteriores ao fim da 2a Guerra Mundial que ficou caracterizado pelo não confronto direto entre as superpotências, mas sim por um desgastante processo marcado pela formalização de alianças militares e políticas que visavam o estabelecimento de zonas de influência que tiveram influência direta nos conflitos de diferentes origens ocorridos em distintas partes do mundo, tendo por pano de fundo a rivalidade ideológica e as corridas espacial e nuclear. Popularmente, "Guerra Fria" implicaria exatamente na não adoção do uso das armas nucleares, por excelência armas de destruição de massa. A Guerra Fria foi declarada oficialmente encerrada em dezembro de 1989, em um encontro de cúpula realizado em Malta, por meio de uma declaração conjunta emitida pelos presidentes dos EUA e da URSS, respectivamente George Bush e Mikhail Gorbatchev.

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econômica e militar que visavam legitimar os objetivos das duas superpotências que emergiram da Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria abriu, dessa forma, a necessidade do estabelecimento de alianças em várias frentes. O processo teve início com a formalização da Doutrina Truman, em 1947, quando os Estados Unidos tomaram para si a responsabilidade de auxílio aos governos da Turquia e da Grécia, países então ameaçados pelas ações de guerrilhas comunistas. No mesmo ano foi criado o Plano Marshall, que estabelecia a injeção de ajuda econômica e técnica aos países da Europa Ocidental objetivando a sua reconstrução e impedindo que se tornassem sujeitos às influências do socialismo, daí evoluindo para a criação de uma aliança militar antissoviética, em 1949, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Magalhães Filho (1977, p. 448) esclarece que essa forte atuação dos Estados Unidos no cenário político internacional estava ancorada na sua privilegiada situação financeira, que permitiu àquele país “utilizar-se da ajuda externa, tanto militar quanto econômica, como instrumento diplomático”. Nesse sentido, a supremacia do dólar norte-americano45, que desde os Acordos de Bretton Woods, firmados em 1944, lastreava o sistema financeiro internacional, foi fundamental para o reerguimento do sistema capitalista e para a ação política estadunidense naqueles momentos iniciais da Guerra Fria, especialmente na Europa ocidental. É importante ressaltar que dentre esses países europeus figuravam as grandes potências coloniais, que a partir do impacto causado pela Segunda Grande Guerra e em decorrência da Guerra Fria, passaram a assistir seu poderio e dominação contestados pelo surgimento ou recrudescimento dos movimentos de libertação dos países afro-asiáticos. A despeito da formação de uma corrente que advogava a adoção da postura de neutralidade frente às superpotências, como defendido pelas nações que participaram da Conferência de Bandung, em 1955, na prática esses dois continentes viram o surgimento de uma série de nações independentes que acabaram sofrendo o impacto direto da situação global pós Segunda Guerra. Se por um lado, alguns se alinharam ao bloco capitaneado pelos EUA, por outro lado muitos se alinharam com a URSS, em um processo que se estendeu ao último quartel do século XX. Não demorou para que a situação viesse a refletir na dinâmica política da América Latina. Já em 1947 foi criado o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), que

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Conforme Magalhães Filho, o dólar norte-americano estava lastreado em reservas de ouro que correspondiam a um volume maior que as reservas de todos os demais países do mundo juntos (1977, p. 448)

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era voltado para o estabelecimento de laços de solidariedade militar entre os Estados americanos e que na prática se configurava como um meio para o estabelecimento da influência estadunidense sobre a região, na medida em que abria caminho para as assessorias de caráter militar estabelecidas por meio de acordos bilaterais. Com a assinatura da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1948, ficou estabelecido perante os países signatários que eles estariam comprometidos com a defesa dos países do continente, sendo observadas as melhores condições para o estímulo ao seu desenvolvimento. Foi então que, no ano de 1949, foi fundada a ESG, que teve por um dos seus idealizadores o general Golbery do Couto e Silva. Segundo Peixoto (2000, p.146), a ESG "foi criada sob uma visão estratégica bastante ampla", estando voltada para a consecução de atividades destinadas, a partir dos estudos ali desenvolvidos, ao "planejamento da segurança nacional46". Nesse sentido, na década seguinte Golbery dedicou-se à elaboração de uma obra voltada aos estudos geopolíticos e consequentemente à formalização de um corpo teórico que teve na ESG seu campo de difusão mais efetivo. Na realidade, as ideias que expressavam os objetivos geopolíticos de Golbery e da própria ESG coadunavam com as perspectivas estadunidenses a respeito de como se deveria enxergar a dinâmica política mundial perante a ameaça do poderio soviético e de como deveriam ser estabelecidos os meios diplomáticos e militares de forma a se contrapor ou mesmo anular a expansão do comunismo na América do Sul. Essa dinâmica, como já apontei, não passou despercebida a Golbery que enfatizou em seus escritos a privilegiada posição geográfica brasileira no contexto da América Latina e frente ao potencial teatro de operações do Atlântico Sul. É relevante ressaltar que a obra de Golbery, assim como a produção geopolítica brasileira entre as décadas de 1950 e 1960 foi fortemente influenciada pelo pensamento do norte-americano John Nicolas Spykman, que segundo Peixoto (2000, p. 124) "embasou a construção de uma geoestratégia conjugada ao conceito de segurança nacional". Foi ele, ainda segundo Peixoto (2000, p.125), um dos maiores defensores da anteriormente citada mudança de postura da política externa dos EUA, do isolacionismo para um ativo intervencionismo. Golbery, justamente comentando a teoria geopolítica de Spykman que levava à necessidade de uma "estratégia de espaços periféricos" (que contemplava a atenção militar estadunidense às raias da Europa e da Ásia) advogou a adoção de uma postura que estendesse

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Trecho do art. 3o da Lei 785 de 20/08/49, que criou a ESG, citado por Peixoto (2000, p. 146)

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a força militar daquela potência para o Atlântico Sul (SILVA, 1981, p. 49). Sobre a dinâmica geopolítica da região, ele coloca que é essencial a manutenção de fortes bases marítimas e aéreas na projeção oriental do Brasil. Essas bases não podem ser mantidas exclusivamente pelo Brasil, porque esse país não é um arsenal. Os brasileiros têm de ser, portanto, apoiados pelos Estados Unidos. Como não há comunicações terrestres com o Brasil, a defesa estratégica de todo o continente sul-americano do lado do Atlântico depende das comunicações marítimas. (SILVA, 1981, p. 50)

Colocava-se assim em relevo outro elemento importante nos textos esguianos, qual fosse a aspiração brasileira a um papel de destaque e liderança dentro da América do Sul. É interessante notar como tal ideia ganhou corpo enquanto o Brasil atravessava um momento conturbado, o que implica dizer que o argumento foi desenvolvido e mantido em circunstâncias históricas marcadas pela instabilidade política e econômica no âmbito interno, que se caracterizou por uma sequência de crises nos governos da época. Nesse sentido, ressalto que o período transcorrido entre agosto de 1954 e março de 1964 se apresenta à análise histórica como um dos mais dramáticos da história do Brasil e foi marcado pela sucessão no cargo de Presidente de uma rápida sequência de cinco mandatários entre o suicídio de Getúlio Vargas e a deposição de João Goulart: João Café Filho, Carlos Luz, Nereu Ramos, Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros. De todos, apenas Kubitschek conseguiu completar um mandato derivado de um processo eleitoral. Café Filho, vice de Getúlio, afastou-se por motivo de saúde; Carlos Luz, presidente da Câmara, exerceu um mandato por três dias, tendo sido afastado por força militar; Nereu Ramos, vice-presidente do Senado que assumiu diante do impedimento dos dois anteriores e que passou o poder a Kubitschek, sucedido por Jânio Quadros, que não chegou a completar o primeiro ano de mandato, tendo renunciado em agosto de 1961. Chega-se afinal à percepção de que a República Liberal, também conhecida como “República Populista47”, passava por um progressivo processo de deterioração, que não era despercebido dos homens que faziam a Escola. Isso nos remete ao papel desempenhado pela ESG, pelos seus integrantes e pelos que possuíam afinidades com as ideias ali debatidas e formuladas, homens que mantiveram ativa uma rede intelectual responsável pela construção de um saber geopolítico e que este corpo de conhecimento desempenharia um papel

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Sobre o “Populismo” naquele período ver Skidmore, 1979, p. 94-96.

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fundamental na composição política gerada pela solução à crise dada pelos quartéis. Seria ele em parte responsável pelo ordenamento das estruturas mandatárias que conduziram o Estado brasileiro durante os vinte e um anos que seguiram ao Movimento Militar de 196448. 2 A HISTORIOGRAFIA E O PROCESSO DE FUNDAÇÃO DA ESG O estabelecimento de uma abordagem a respeito da historiografia sobre a fundação da Escola Superior de Guerra nos levou à adoção de uma postura reflexiva, que possibilitasse o entendimento da vasta gama de elementos existentes no entorno desse espaço institucional, pois entendemos a ESG como um espaço contido em um outro espaço, também de caráter institucional, o Exército brasileiro. Indo-se além, a ESG deve ser vista também como uma resultante das suas relações com um espaço social 49 que a praticou e deu margem à formação de um espaço também simbólico, configurado por práticas e representações. A percepção das variantes que podem ser problematizadas decorre da apreensão das inúmeras possibilidades que foram operadas por trabalhos que buscaram entender a atuação, em maior ou menor escala, dessas mesmas variantes. Buscamos então analisar diferentes visões a respeito das origens da ESG, tais como foram tratadas, não apenas por trabalhos acadêmicos que recentemente se debruçaram sobre a ela ou sobre elementos historicamente a ela vinculados, as Forças Armadas ou seus integrantes, especialmente o oficialato que atuou sobre o processo aqui estudado, mas também por obras reconhecidas no campo editorial construído sobre o assunto militar do período aqui estudado. Já descrevemos as circunstâncias históricas que envolveram a fundação da ESG em 1949. Para a compreensão da análise historiográfica que aqui empreendemos, importa observar que a ESG pode ser entendida além de sua localidade geográfica, instituição vinculada aos meios militares, mas também como elemento constituído de espacialidades imateriais, configurados pelo discurso e projeto geopolítico de construção de um Brasil potência, pleno e atuante no cenário político interno e externo.

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Sobre o assunto, ver Skidmore, 1979, p. 355-366; Gaspari, 2014a, p. 47-126. A sociologia praticada por Bourdieu pode ser concebida como uma ciência das posições no mundo social. Nesse sentido, o social é interpretado como um espaço multidimensional, cujas dimensões são os princípios de diferenciação, os ‘capitais’. Em se tratando de instituições militares, o Exército e a ESG têm em comum o fato de que seus integrantes, vivenciando a proximidade pautada pelo espaço social que integram, refletem isso por meio do intercâmbio das práticas e referências, valores imateriais condicionantes do posicionamento que adotam e defendem. (BOURDIEU, 1996, p. 19)

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Neste sentido, explicitar o espaço nacional enquanto um projeto geopoliticamente conformado seria o objeto do pensamento geopolítico gestado na ESG, que por sua vez se faria justamente acompanhar pelo enquadramento do Brasil naquilo que seriam consideradas as fileiras ocidentais anticomunistas e defensoras dos valores cristãos, ou seja, a inserção da nação brasileira nas estruturas culturais derivadas de uma antiga ancestralidade, uma tradição dotada de fortes conotações culturais religiosas 50. Buscamos assim, caracterizar a ESG a partir da premissa de que foi, à época anteriormente citada, um espaço essencialmente regido pelas ideias e ações pautadas pelas perspectivas51 de uma determinada coletividade fortemente corporativa. Tais argumentos não se sustentam apenas militarmente – no que tange à percepção da ESG e das Forças Armadas como elementos incumbidos da defesa do Estado brasileiro e da integridade do seu território, sua missão histórica – mas também dentro de uma ótica que abrange um imaginário político e social que se expressou sob a forma de uma composição intelectual de elementos vinculados a essas instituições àquela época. Acredito que a ESG se configura, assim, como um espaço social que espelhou, segundo a ótica construída por Bourdieu (2001, p. 24), uma lógica de campo pautada por suas distinções e meios relacionais. Nesse sentido, importa apontar que a instituição militar constitui um corpo que cultiva uma ideia de autoperpetuação contra as ameaças de fora a ela, corporação, e de auto-identificação enquanto corpo preparado para assumir o poder. Dessa forma, os militares, que desde o primeiro instante absorveram a ideia da ESG nos moldes como foi pensada e conduzida, tendo em vista viabilizar um projeto político que a identifica no alinhamento com os EUA, anticomunista, nacionalista, elitista e fundamentado nas diretrizes curriculares geopolíticas que configuraram a DSN – estiveram agregados, portanto, a uma lógica pautada na organização das práticas e representações dos seus agentes, reunidos em torno de uma ‘identidade esguiana’.

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Tais valores éticos e morais constituem elemento importante na constituição do raciocínio de Golbery, constantemente vindo à tona em seus trabalhos como fundamentos do aspecto cultural religioso neles presentes. Nesse sentido, buscaremos identificar as matrizes do pensamento de caráter político-religioso presente no discurso de Golbery, de acordo com o trabalho de Rodrigues (2005, p.21). Procederemos também a análise do processo de espacialização decorrente do pensamento geopolítico a partir da conjugação de elementos de “História Política e História das Religiões”, conforme o trabalho de Peixoto (2015a, p.80-104). 51 Na sua palestra pronunciada em 18 de maio de 1949 na Escola de Estado-Maior do Exército, intitulada Razões que levaram o Governo a pensar na Organização da Escola Superior de Guerra, o Marechal Oswaldo Cordeiro de Farias citou os "serviços" prestados pelos membros da ESG à "segurança nacional, isto é, em nome da educação do nosso povo e de sua saúde, do fortalecimento de sua economia, de sua dignidade política e moral, tudo base indispensável de uma eficiente organização militar." Ver Miyamoto (1995, p. 229).

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Cabe aqui apresentar como a própria historiografia se encarregou de dar contornos ideológicos à questão que envolve a fundação da ESG. Se a instituição em si carrega a marca do posicionamento de uma fração do Exército, parcela esta dotada de uma bem definida visão de mundo e relevante exatamente por ser aquela esposada pelos detentores dos postos de comando, portanto politicamente mais influente, disso derivou a adoção de posturas pelo Exército frente os rumos da política nacional e internacional. Como contraponto, a crítica oriunda da esquerda destacou elementos que enfatizam uma visão a respeito tanto do alinhamento com os Estados Unidos quanto à forma como se organizou a ESG dentro da situação sócio-política à época da sua fundação. Não se pode desconsiderar, em minha opinião, que as críticas imbuídas de referências negativas à forma como foi fundada a ESG e o constante condicionamento da instituição à forma de representante dos interesses de uma determinada parcela da sociedade e também dos interesses estadunidenses (neste caso em uma relação de subalternidade a interesses políticos e corporativos) refletem em si a visão dos que, em meio às disputas entre campos ideologicamente distintos, foram derrotados na disputa pelo controle do Estado. Esta visão é naturalmente contraposta por outras que afirmam a independência das posturas esguianas, mesmo frente aos interesses que a levaram ao alinhamento contra o comunismo, inimigo comum assim identificado pelos militares latino-americanos de forma quase uniforme. Disso resultou que acabaram impondo sua visão de mundo por meio do estabelecimento de ditaduras entre as décadas de 1960 e 1980, como opção ao estabelecimento de ditaduras socialistas. A dinâmica ideológica (de confronto) presente no contexto da época de fundação da ESG perpassou aquela extensão temporal e ainda se faz presente nos nossos dias, inclusive na opção adotada por historiadores nas análises que fizeram daquele processo histórico. Em nosso entendimento, tanto a postura dos indivíduos agregados aos processos históricos quanto daqueles que se encarregam de estudá-lo, derivam da reprodução das relações inerentes às posições tomadas com base naquilo que Bourdieu (2001, p. 21) definiu como “uma afinidade de estilo”. Essa afinidade, derivada da questão do habitus, denota a adoção das posições políticas (no nosso estudo, na adoção do posicionamento políticoideológico definido pela opção entre “a esquerda e a direita”), de forma “relacional”. Se o habitus funciona como elemento de institucionalização – pois se são diferenciados também agem como diferenciadores (Bourdieu, 2001, p. 22) – os espaços que se traduzem em posições sociais podem aqui ser referenciados, por exemplo, pela ESG e pelos próprios discursos que a historiografia construiu sobre a instituição.

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Tomemos por exemplo Assunção (1999, p. 24), que, no tocante ao primeiro elemento, argumentou ser a questão do alinhamento uma decorrência natural de ser a “classe dominante brasileira” um mero “agente da dominação externa”. A isso, segundo a autora, somou-se o surgimento e consolidação da URSS, dotada de um regime que se contrapunha àquilo que ela classificou como “capitalismo cristão ocidental” (interessante notar a associação feita entre capitalismo e cristianismo feito por ela, como valores ligados ao conservadorismo). No meu entendimento, nessa perspectiva o alinhamento político aos EUA ou à URSS deveria ser percebido como um confronto de modelos acabados a partir de uma extensão da teoria da luta de classes 52 , esta levada a transcender quaisquer outros elementos ali presentes. Cabe nesse ponto destacar a caracterização da ESG no trabalho de Assunção (apud Oliveira, 1988, p. 237) como “instrumento de relação orgânica entre setores militares e grupos de classes dominantes, entre grupos militares e outros setores do aparelho de Estado” com vistas ao desenvolvimento do modelo capitalista, gerido pelas elites, ideologicamente orientado pela Segurança Nacional, alinhada ao “Mundo Ocidental” e sob a supremacia estadunidense. Fechando seu raciocínio, Assunção (1999, p. 29) argumentou que a questão do alinhamento era derivado da percepção, pelo “pensamento conservador”, de sua incapacidade de superar seus próprios interesses para colocar acima deles um projeto de nação. A ideia constante do discurso de esquerda de um Brasil submisso ao “imperialismo ianque” imprime dessa maneira a sua marca ideológica em uma instituição que, nos dizeres de Golbery e outros oficiais do Exército – e muito pelo contrário – buscava afirmar como elemento essencial de sua identidade a condução do país em termos de paridade com “a grande nação irmã do norte” no que diz respeito à já por nós comentada visão de Golbery sobre a importância do Brasil frente os interesses e necessidades dos EUA na América do Sul. A adoção de “uma doutrina multilateral de segurança coletiva” por meio da percepção “de que a união voluntária e a paz continentais são pré-requisitos indispensáveis a planos muito mais altos e [...] inadiáveis (SILVA, 1981b, p. 50)” que levavam, em condição de

Duroselle (1992, pg. 27 a 29) classificou como um “pseudocírculo vicioso” os caminhos adotados pelo marxismo em busca de uma espécie de aproximação acadêmica enquanto uma verdade dominante de explicação da história. Encontraríamos, assim, verdades absolutas que não o são. Um exemplo claro disso é a sua visão a respeito do conceito de luta de classes, um dos “fantasmas” por ele apresentados como uma das “atitudes condenáveis” que, em nome da política, relega as ciências humanas a um quadro de estagnação.

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igualdade, a uma luta contra a ameaça comunista, seriam os atestados, segundo Golbery, da independência brasileira frente os EUA. No que diria respeito à organização política do Brasil, Assunção (1999, p. 31) buscou referências em Oliveira Vianna para buscar entender a linha de pensamento que teria influenciado Golbery53 e, em decorrência disso, a própria organização da ESG. Nessa lógica, ela enfatizou as perspectivas da elite brasileira “na defesa dos valores aristocráticos da tradição” e, paralelamente, “na pregação por um Estado forte e centralizado”. Seu trabalho expõe o argumento de que as elites se colocavam na condição de tutoras dos destinos nacionais a partir do instante em que compreendiam o país ainda inacabado em termos de projeto nacional e ainda dotado de classes populares ignaras. É importante colocar que a visão de Oliveira Vianna acima exposta se fazia acompanhar de uma percepção, pelos próprios segmentos de elite, do seu despreparo perante as demandas que a tarefa de gerir a nação impunha. Dentro dessa mesma lógica, Assunção (1999, p. 34) expôs também as ideias desenvolvidas por Alberto Torres, outro teórico que influenciaria o pensamento de Golbery, que da mesma forma ressaltou o egoísmo e o despreparo das elites para o exercício da “direção política” e o “despreparo das massas” no tocante ao envolvimento nas questões políticas nacionais. Daí o entendimento de que a criação da ESG esteve vinculada à ideia de torná-la uma instituição capaz de preencher uma lacuna necessária ao desenvolvimento do país, qual fosse a formação de um grupo de elite militar e civil ideologicamente formatado pelo conservadorismo e capacitado para assumir os destinos de um projeto de nação orientado por um corpo de conhecimentos dotado, essencialmente, de planejamento, a DSN. Em termos, entrariam em pauta diretrizes derivadas de conceitos geopolíticos, o meio racional para a realização do projeto exposto por Golbery em sua obra. Faz-se necessário perceber que a ESG foi o resultado de um longo processo de maturação da instituição militar, o Exército especialmente, que no decorrer da história da República foi desenvolvendo as suas próprias ideias a respeito das deficiências do Brasil em vários âmbitos. Isso incluía um Estado acometido por uma espécie de flagelo, a existência de uma parte da elite civil – como exposto acima – detentora do poder político e incapaz de enxergar maiores propósitos ao exercício desse poder além dos seus próprios interesses.

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Segundo Assunção (1999, p. 28), Golbery referia-se a Oliveira Vianna como “o Mestre”.

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Por sua vez, Ferraz (1997, p. 27), nos aponta o que denominou "velhos rancores dos soldados contra as elites brasileiras", como a sua futilidade, egoísmo, desorganização e falta de patriotismo. Eram exatamente os interesses elitistas acima citados, normalmente de caráter local e regional, e o impacto negativo disso no desenvolvimento do próprio país, incluindo aí o que seria um retorno dado pelo próprio Estado às suas estruturas defensivas sob a forma de investimentos na modernização das Forças Armadas. O próprio Golbery fez constantes referências à questão da necessidade de um poder político centralizado, o qual julgava importante. Ele fez uma análise da história do Brasil, desde a Colônia, no sentido de identificar os períodos historicamente marcados pela centralização ou pela descentralização e colocou que o processo de descentralização seria impulsionado pela "formidável ação dispersiva dos fatores geográficos". O processo de unidade política, a seu ver necessário, teria um formidável obstáculo na figura da "tendência regionalista e desagregadora, oriunda da extrema latitude de base geográfica em que se assenta a população" (SILVA, 1981a, p. 7). Finalmente, o mesmo Golbery chamou a atenção para a conjunção de fatores políticos e geográficos que concorreram para a ocorrência de processos de descentralização: a grande extensão geográfica, a dispersão populacional e os interesses políticos locais. O conhecimento geopolítico seria o viabilizador da almejada unidade. Para Ferraz, a instituição teve o seu corpo discente formado por oficiais oriundos das três Armas e por elementos da sociedade civil, adquirindo o papel de entidade formadora de quadros de excelência. Além de simbolizar a existência das Forças Armadas, inclusive por meio da constante lembrança e exaltação da atuação destas no decorrer da história brasileira, foi ainda erguida em um determinado local que consiste de uma importante referência histórica e geográfica do Período Colonial, quando da consolidação da presença portuguesa na região da atual cidade do Rio de Janeiro. A sua sede se localiza na área da Fortaleza de São João, no bairro da Urca, Rio de Janeiro, e é datada de 1565, com construção ordenada por Estácio de Sá. É um marco da fundação da cidade do Rio de Janeiro e da consolidação da conquista portuguesa da região da Baía da Guanabara54. À sua existência, dentro de um espaço que constitui um patrimônio

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Ver Vainfas, 2000, p. 212.

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histórico material55, juntou-se um discurso que buscou suas bases justamente em um outro referencial histórico, também trazido pelos portugueses e constituído por uma sólida base imaterial, o Cristianismo 56. A respeito das origens da ESG, Carmo (2011, p. 12-13) esclarece a existência de uma “primeira” Escola, esta “limitada ao ambiente do Exército”, que surgiu no final do século XIX. Esta teve a sua fundação a 9 de março de 1889 por fora do Decreto 10.203, derivada, de uma reestruturação do ensino militar, tendo sido dividida em duas escolas distintas: a “Escola Militar da Corte, com o Curso Preparatório e de Infantaria e Cavalaria e a Escola Superior de Guerra (grifo nosso), com o Curso de Artilharia e de Estado-Maior e de Engenharia Militar”. Tal estrutura teve curta duração, no entanto. Em 1897, por força de lei, foi transformada a Escola Militar da Corte em Escola Militar do Brasil. A Escola Superior de Guerra foi então extinta, ato sacramentado por Decreto datado de abril de 1898. O mesmo autor nos esclarece que a segunda ESG, a atual, teve seu “embrião” no Decreto-Lei 4.130, datado de 26 de fevereiro de 1942, “disciplinador do Ensino Militar do Exército”. Aponta-se o fato de que a instituição, da forma como determinada em seu estatuto, orientava a criação de um centro de altos estudos “restrito apenas a coronéis e generais do Exército” e tornou-se uma realidade apenas em 1948, quando o Decreto 25.705, datado de setembro daquele ano, “estendeu o Curso de Alto Comando aos oficiais da Marinha, do Exército e da Aeronáutica”. O acima referido Decreto também foi citado por Ferraz (1997). Ele afirma que a ESG foi “regulamentada [...] através do Decreto nº 25.705, de 22 de outubro de 1948. Pelo artigo 1º do Decreto, a escola deveria ser responsável pelo curso de Alto Comando das Forças Armadas, reunindo o oficialato superior do Exército, Marinha e Aeronáutica". Já em sua palestra à ESG em março de 1957, Secco57 (1957, p.2) citou a criação da ESG por força da Lei 785, de 20 de agosto de 1949, pelo governo Dutra, derivada de inspiração do Marechal Salvador César Obino no modelo do National War College, dos EUA. Ele também fez referência a documento redigido pelo Almirante William F. Halsey, da Marinha dos EUA, a respeito das “razões”58 que levaram a criação do National War College. Essas

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Sobre o assunto, o portão e as muralhas da Fortaleza de São João são patrimônios tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde o ano de 1938. Disponível em < http://fortalezas.org/?ct=fortaleza&id_fortaleza=302&muda_idioma=ES >. Acesso em 23 jul. 2016. 56 Sobre o assunto, ver Hill, 2008. “História do Cristianismo”. 57 Em 1957, o Major-Brigadeiro Vasco Alves Secco era Comandante da Escola Superior de Guerra. 58 Seriam elas: a necessidade de homens dotados de cultura e instrução para que ministrassem a Política Nacional; que conhecessem as motivações das guerras, os objetivos e ideais da nação e as formas como se inter-

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mesmas razões seriam as que dariam origem à ESG, que se inspirava, segundo ele, na instituição militar estadunidense (1957, p.6). A abordagem a respeito das origens da ESG e da definição de algumas das suas singularidades foram também trabalhadas pelo General de Exército Augusto Fragoso. Ele traçou um resumo histórico da ESG, que apontou os seguintes elementos, para ele relevantes para o entendimento da instituição: a) O primeiro ato oficial relativo à ESG, decreto por Dutra, em fins de Outubro de 1948. (25. 705, 22/10/48), "determinando ao então Estado-Maior Geral", que se organizasse a Escola com o objetivo de ministrar a oficiais das três armas o Curso de Alto Comando. Inicialmente, exclusivamente militar. A partir de 1950, a ESG fica acantonada nas dependências da Escola de Artilharia de Costa, na Fortaleza de São João. b) Lei 785, 20/08/49, instituiu a ESG. "Instituto de altos estudos, voltado para o planejamento e a direção da Segurança Nacional ". Manutenção do nome ESG, por influência da NWC e para "não perder as dotações orçamentárias de 48 e 49 consignadas à ESG antes intentada". Deveria funcionar "como centro permanente de estudos e pesquisas". c) Estrutura geral: direção, departamentos de estudos e de administração. Junta Consultiva, "constituída de 'eminentes personalidades civis e militares', com a tarefa de colaborar com a direção 59.

relacionavam política nacional e política internacional, comércio e finanças, além do poder militar; que fossem civis proeminentes que tenham servido às Forças Armadas e destacados militares com domínio do conhecimento do aspecto civil do governo nacional e as suas relações exteriores. (SECCO, 1957, p.6) 59 Um exemplo claro disso consta na observação que pode ser feita a respeito da palestra proferida pelo então Secretário Geral das Relações Interiores, o Ministro Vasco Tristão Leitão da Cunha, cujo tema foi O Planejamento da Política Externa, e decorre da exposição das equipes que formularam os estudos que serviram de base para a constituição do texto aqui analisado. Constata-se, diante dos nomes citados, o alto nível dos integrantes das comissões de estudos voltadas ao preparo do material didático que seria disponibilizado aos estagiários da ESG, sendo apontados alguns dos nomes mais proeminentes da sociedade brasileira àquela época, voltados à formulação de conceitos relativos às suas respectivas áreas. Dessa forma, foram citados, além do seu próprio, os seguintes nomes em seus respectivos grupos de trabalho: equipe da ESG: Ministro Jorge Emílio de Sousa Freitas, Tenente-Coronel Heitor Almeida Herrera e Tenente-Coronel Golbery do Couto e Silva (grifo nosso); Equipe do Relatório da Comissão de Estudo e Elaboração Final do Projeto de Reforma do Ministério das Relações Exteriores: General Oswaldo Cordeiro de Farias (Comandante da ESG), Arízio de Vianna (Diretor Geral do DASP), Francisco Clementino de San Tiago Dantas (Professor de Direito), Hermes Lima (Professor de Direito), Rômulo Almeida (Assistente da Presidência da República), Roberto de Oliveira Campos (Banco de Desenvolvimento Econômico e Comissão Mista Brasil-Estados Unidos) e Antônio Francisco Azeredo da Silveira (Departamento de Administração do Ministério das Relações Exteriores) (CUNHA, 1954, p. 3).

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d) A Lei de 49 abriu os quadros da ESG "a civis de todas as procedências [... ] desde que de notável competência e de atuação relevante na orientação e execução da política nacional". e) A Junta Consultiva: "eminentes personalidades", militares ou civis, oriundos "do ensino superior" ou "de notável projeção na vida pública do país ". (FRAGOSO, 1969, p. 9-10) Já as especificidades que pautariam a construção do pensamento esguiano foram traçadas por Peixoto (2000, p. 146), que descreveu a amplitude da “visão estratégica” da Escola contidos já na documentação que orientou a sua constituição. Ele destacou que o direcionamento do processo de fundação da entidade no Estado Maior das Forças Armadas (EMFA) já visava à produção de saberes e à organização de conhecimentos voltados às “funções de direção e para o planejamento da segurança nacional”, naturalmente questões nacionais de ordem geopolítica. Isso foi feito em torno do desenvolvimento de uma política geoestratégica que teve como elemento de fundo a composição de uma linha de pensamento de caráter elitista e centralista. Nesse sentido, Miyamoto (1995, p. 18) buscou demonstrar que a ESG esteve voltada desde a sua fundação para a consolidação do país como uma “potência”, para destacar “as potencialidades econômicas e geográficas” do território nacional. Evidenciou também, enquanto objetivo geopolítico – e concordando com a perspectiva traçada de um país potência – o estabelecimento de um papel hegemônico do Brasil em termos regionais, temática muito cara ao pensamento desenvolvido por Golbery do Couto e Silva no decorrer dos anos 1950/1960 e que se tornaria um dos pontos fundamentais do pensamento desenvolvido na ESG. Na concepção de Peixoto (2000, p. 104), as bases para o surgimento da ideia de “Brasil Potência” possuem relação com a ascensão do pensamento geopolítico tecido por Mackinder que apregoava as “vantagens provenientes da extensão territorial” e sua conjugação com os pensadores geopolíticos brasileiros, como Mário Travassos, que também entendiam isto como inerente ao estudo da geopolítica brasileira. Peixoto também destacou as considerações do general Meira Mattos – recorrendo ao pensamento geopolítico de Kjellén – para quem “o Brasil possuiria as condições [...] determinantes para o conceito de Potência Mundial”. Seriam “amplitude de espaço, liberdade de movimento e coesão interna”, esta última remetendo à “Segurança Nacional e a organização das elites” (PEIXOTO, 2000, p. 176).

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2.1 A maturação do Exército e a fundação da ESG O processo de maturação antes citado foi determinante, evidentemente, para a formação das concepções dos homens que a integrariam, especialmente os formuladores do pensamento que a pautou, o que implicaria em afirmar a tradição de envolvimento dos militares em prementes questões políticas nacionais, refletir o conservadorismo religioso de uma elite militar a partir da colocação do Brasil no rol dos defensores da Civilização Cristã Ocidental e preparar a inserção do país no quadro das grandes potências a partir da consecução das diretrizes traçadas por uma Doutrina de Segurança Nacional. Forjado nas lutas pela independência, o Exército brasileiro ganhou configuração de corpo dotado de consciência política no decorrer das campanhas platinas, notadamente na Guerra do Paraguai, quando integrou a Tríplice Aliança e teve grande parte do seu oficialato como aderente às ideias republicanas e abolicionistas. Foi elemento ativo na derrocada do 2º Império, quando ocorreu a chamada Questão Militar, que contribuiu para a queda de D. Pedro II. Já na República, traços da força militar enquanto elemento politicamente atuante, são encontrados nos governos de Deodoro e Floriano, nas crises de Canudos e do Contestado, além dos movimentos revoltosos que caracterizaram a década de 1920, por meio do Tenentismo. Ressalte-se também o papel crucial desempenhado pela Arma no decorrer de movimentos havidos na Era Vargas, inclusive em termos internacionais, quando da participação brasileira no teatro de operações europeu na 2ª Guerra Mundial 60. Nesse sentido, de afirmar-se a memória de participação militar em eventos chave da história política brasileira, percebe-se que os principais elementos por trás da formação da ESG, como os oficiais Cordeiro de Farias, Idálio Sardenberg, Jurandir Mamede, os irmãos Orlando e Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, foram participantes ativos dos movimentos acima citados. Eles eram, no dizer de Ferraz, todos destacados oficiais de Estado-Maior, possuíam sólidas ligações com estabelecimentos militares norte-americanos e convicções políticas e estratégicas semelhantes sobre o futuro do país e de sua defesa. Representavam o grupo melhor organizado, mais coeso e de melhor integração com o público externo aos quartéis. Possuíam, portanto, em termos de experiência e capacidade organizativa, as qualidades intelectuais e políticas para nortearem as dimensões políticas e estratégicas da Escola

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Sobre a participação brasileira naquele conflito, ver Barone, 2013.

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Superior de Guerra em criação. Em termos gramscianos, eram aqueles que se destacavam por possuírem melhores condições de desempenhar o papel de “intelectuais orgânicos” da corporação. (1997, p. 23-24)

O nome de Góes Monteiro é outro que deve ser evidenciado. Assunção (1999, p. 35) expôs o papel desempenhado por ele na dinâmica acima citada. Monteiro foi um dos mais influentes oficiais do Exército e exerceu uma grande influência no processo de fundação e condução da ESG. A autora discorre sobre a recorrência, no seu pensamento, da ideia de se “estabelecer e justificar o papel tutelar das Forças Armadas” observado o estado precário das instituições brasileiras. Fazia-se premente, então, a remodelação e modernização das Forças Armadas tendo em vista a manutenção da ordem e da unidade do país e a já preocupação com a defesa da nação frente às ameaças externas. Importa-nos observar que a autora destaca que Góes Monteiro preconizou a ordem interna e a defesa externa como elementos essenciais ao desenvolvimento de uma nação, antecipando, em sua obra, ‘A Revolução de 30 e a Finalidade Política do Exército’, livro publicado em 1937, de pautas que seriam recorrentes no período da Guerra Fria e que determinaram, naquele contexto, a organização doutrinária das Forças Armadas. Nesse sentido, Miyamoto (1995, pp. 78-79) enfatiza que o General foi o artífice do retorno dos estudos de Geografia aos currículos do Exército, elemento embrionário da Segurança Nacional e, portanto, da “doutrina elaborada pela ESG na década de 1950”. A questão da modernização das Forças Armadas é também um importante elemento discernido por Peixoto (2000, p.69). Ele discorre sobre como, nas décadas de 1910 e 1920, existiam setores da Marinha e do Exército que defendiam a ocorrência de "reformas" e propunham, inclusive, a vinda de uma Missão Alemã. Exatamente naquele período, como ele bem descreve, houve a ocorrência de duas experiências militares europeias com as quais o Exército brasileiro seria levado à apreensão das dinâmicas de treinamento e equipagem daqueles países. As presenças de estagiários brasileiros no Exército alemão e a presença da Missão Francesa, cada qual com as suas especificidades, abriram caminho para o processo de modernização do Exército que culminaria na década de 1940 com os contatos com as Forças Armadas dos EUA, por via da Segunda Guerra Mundial. Miyamoto (1995, p. 78) aponta para a importância que a Missão Francesa de 1919 adquiriu para os interesses do Estado brasileiro na medida em que foi a responsável por incutir

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novos valores e senso de profissionalização às Forças Armadas 61 . Nesse sentido, Peixoto (2000, p. 96) argumentou que a Missão Francesa implantou uma cultura de rigor na formação e aprovação do corpo de oficiais do Exército, trazendo por consequência a formação de uma “doutrina de Estado-Maior” que não possuía antecedentes e que, por sua vez, antecedeu a Doutrina de Guerra gerada pela Missão Americana. Segundo Peixoto, uma segunda herança do estabelecimento da Missão Francesa Brasil seria de fundamental importância para a futura ESG e suas atribuições. Trata-se da adoção de conceitos geopolíticos derivados da própria escola francesa. Por outro lado, Peixoto argumentou que a chegada dos militares da Missão Francesa ao Brasil trouxe, além da introdução de novos conceitos de operacionalidade à Arma, também uma redefinição do papel geoestratégico do Exército, que passou a ser distribuído pelo território de acordo com as necessidades de defesa e de participação no processo político (2000, p. 98). Em suma, ele expõe que houve uma racionalização da distribuição espacial do Exército brasileiro, que até o momento em que a Missão Francesa chegou ao Brasil se encontrava dividido em pequenas unidades dispersas, compatíveis com o papel de polícia. Depois de sua chegada, aquele seria redistribuído e atuaria no espaço brasileiro em função de um conceito estratégico de defesa territorial implementado através da ‘ocupação’ do território e da concentração em alguns centros de decisão política e na região considerada como a mais sujeita a agressão externa, o Rio Grande do Sul (PEIXOTO, 2000, p. 98).

Tal dinâmica ocorreu paralelamente a importantes acontecimentos de caráter revoltoso ou revolucionário ocorridos no Brasil, como as ações tenentistas da década de 1920, a Revolução de 1930, os movimentos de 1932, 1935, 1937, 1938 e 194562, já na Era Vargas, que implicaram em uma forte atuação política das instituições armadas e na forja dos homens que fundariam a ESG. O final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e o subsequente início da Guerra Fria servem como delimitadores temporais de nosso estudo sobre as origens da ESG. Nesse sentido, os autores são unânimes na avaliação da participação da FEB nos combates

61 A mudança de mentalidade a partir da profissionalização refletiu diretamente na postura contestatória característica dos movimentos ocorridos nos anos 1920, conhecidos como “tenentistas”, que questionavam as oligarquias e os oficiais superiores a elas vinculados, além de ter gerado a geração que chegou ao poder com a Revolução de 30. (MIYAMOTO, 1995, p. 78) 62 Na sequência: 1932, a Revolução Constitucionalista de SP; 1935, a Intentona Comunista; 1937, o Golpe do Estado Novo; 1938, a Intentona Integralista; e, em 1945, a deposição de Getúlio Vargas.

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acontecidos na Itália, quando as forças brasileiras estiveram no teatro de operações na condição de "uma divisão comandada pelo Exército norte-americano", no dizer de Mundim (2007, p. 40), que enfatiza o fato de que, a partir disto, o Exército brasileiro teria se aproximado dos conceitos estadunidenses sobre a segurança nacional. Foi uma consequência natural dentro das possibilidades alavancadas pela incorporação das tropas da FEB ao 5º. Exército, a apreensão desses conceitos militares. Esse autor aponta para a "influência e contribuição direta dos EUA" a partir da "missão militar americana vinda do National War College (NWC). Outra questão relevante, esta apontada por Miyamoto (1995, p. 64-65), versa sobre a efervescência da produção intelectual sobre os temas da Geopolítica brasileira a partir do impacto causado pela Segunda Guerra. Segundo ele, a produção geopolítica acabou por formular "propostas concretas sobre os problemas nacionais", temas que seriam caros aos cursos oferecidos pela ESG após a sua fundação. A respeito dos fatos ocorridos nesse contexto, Peixoto (2000, p. 119) alerta para o momento crucial despertado para os interesses norte-americanos após o fim da Segunda Grande Guerra, ressaltando as iniciativas tomadas no âmbito das relações exteriores voltadas para a América Latina. Para ele, a ação do NWC estava compreendida nos objetivos do War Department, dentro daquilo que foi definido por "Solidariedade Hemisférica" e que, por sua vez, estava também agregada a objetivos econômicos, além das questões geopolíticas já aqui levantadas. Nesse sentido, Peixoto trabalha com a ideia de "estandardização", qual seria a preparação de "elites corporativas" nos exércitos dos países que seriam colocados sob a influência estadunidense, facultada pela ação de missões militares oriundas daquele país e que ainda levaria à padronização da equipagem bélica desses exércitos com material proveniente dos imensos estoques de armas existentes no War Department após o fim do conflito. É importante observar que, sob essas condições, os EUA manteriam uma espécie de controle sobre o poderio dos exércitos latino-americanos e ainda evitariam que a região sofresse o assédio dos interesses militares e econômicos dos países europeus. Para o Exército brasileiro a situação gerada pelo fim da Segunda Guerra e pelo novo cenário global definido pela Guerra Fria veio bem a calhar. O seu rearmamento o colocaria em condições favoráveis no que dizia respeito às relações de força com outros países vizinhos, a Argentina especialmente. Além disso, como afirma Peixoto (2000. p.123), houve a possibilidade de se desenvolver uma Doutrina Militar Brasileira a partir justamente do intercâmbio proporcionado

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pela ida de oficiais da FEB aos EUA ainda durante o conflito. Ele aponta para a importância dessa ida aos EUA pelos oficiais da FEB para que eles formalizassem seus próprios conceitos voltados à realidade brasileira. Assim, ocorreu que "o contato com a cultura e o modelo americano", com a percepção da "grande potência democrática e industrial" abriram as perspectivas do oficialato brasileiro. As opiniões acima descritas são do próprio Golbery do Couto e Silva, que foi integrante dessas viagens aos Estados Unidos. Dessa forma, Peixoto (2000, p. 134) arremata a ideia de que a adaptação do "pensamento militar norte-americano à realidade brasileira" formatou os princípios sobre os quais se montou a doutrina militar nacional e, a partir dela, a ESG. A ideia de uma instituição voltada ao atendimento das demandas derivadas da situação nacional é um indicativo de uma busca da criação de uma identidade entre a ESG e o Brasil, na medida em que houve o surgimento de instituições semelhantes a ela "em outros países, na mesma época, embora nem sempre com finalidades análogas", como apontado por Ferraz (1997, p. 15). Assim, além da ESG, no Brasil, foram criadas a Academia de Guerra, no Chile; a Escola Nacional de Guerra, no Paraguai; a Escola Superior de Guerra, na Colômbia; e a Escola de Altos Estudos Militares, na Bolívia. (FERNANDES, 2009, p. 836). No entanto, a questão que envolve a indiscutível influência dos EUA no processo que resultou na fundação da ESG não se restringe à aceitação de que foi meramente uma cópia, a instituição brasileira, de sua congênere estadunidense, a NWC. Mundim (2007, p. 41) atenta para o fato de que os militares brasileiros deram uma ênfase nacionalista às suas motivações, de forma que o modelo adotado no Brasil apresentasse uma "organização institucional diferenciada". Visando fortalecer esse argumento, ele reproduz trecho de um depoimento do primeiro comandante da ESG, o general Cordeiro de Farias, à cientista política Aspásia Camargo, onde o militar reconhece a paternidade da NWC, com "orgulho", inclusive, mas arremata afirmando que "não existe nada mais diferente do War College do que a Escola Superior de Guerra". Não escapava ao general, segundo Mundim (2007, p. 42) a percepção de que as diferenças entre a ESG e a NWC eram advindas também das diferentes situações estruturais e econômicas existentes entre o Brasil e os Estados Unidos. O National War College foi criado em julho de 1946, segundo Peixoto (2000, p.132), tendo o objetivo de preparar quadros habilitados "em assuntos de planejamento e política" e seria integrada a outras duas escolas sob direção do Estado Maior Conjunto, a Army War College e a Army Industrial College, tendo ainda recebido a contribuição de elementos do

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corpo diplomático. Ao comentar as singularidades que em janeiro de 1949 levaram à criação de uma Comissão militar encarregada de elaborar o que seria um "anteprojeto de regulamento para a ESG", ele explica que, além do NWC, a ESG se espelharia também em uma instituição militar francesa, datada de 1936, e que possuía por característica a reserva de um terço das suas vagas a elementos oriundos da iniciativa privada. Miyamoto (1995, p. 108), por sua vez, associa a criação da ESG já a um objetivo que se mostraria relevante no que diz respeito aos fatos que ocorreriam no Brasil entre as décadas de 1950 e 1960, qual fosse a formação de uma elite política e administrativa, que segundo as palavras do general Cordeiro de Farias, citando as finalidades da ESG, teria condições de fazer funcionais uma gama de conhecimentos relacionados ao exercício de cargos de direção ou de planejamento da segurança nacional. Por buscar referências para a montagem de suas estruturas em duas instituições militares distintas de países também diferentes é que, segundo Cordeiro de Farias, "a futura ESG seria o híbrido de dois institutos estrangeiros", que tiveram as suas características adaptadas às necessidades do Brasil, em um processo sob o controle do EMFA. Importa frisar que, se a ESG, apesar de inspirada em modelos estrangeiros, especialmente a NWC, teve por mérito a busca do desenvolvimento de um modelo que, se não autóctone, seria autônomo. Prova disso foi a dispensa da Comissão Militar Americana, em setembro de 1948, pedida pelo Brasil em 1947, visando a montagem da ESG. Peixoto (2000, p. 144) afirma que a dispensa da Comissão vinda dos EUA, permitiu aos oficiais brasileiros direcionar a comissão por eles montada tendo em vistas a análise de outros modelos além do estadunidense. De uma maneira geral, a fundação da ESG, segundo a colocação de Miyamoto (1995, p. 84) acarretou a ampliação do conceito de Segurança Nacional. A instituição passou a deliberar sobre desenvolvimento econômico nacional, proteção de valores culturais e espirituais da nação contra o “perigo comunista”, extrapolando as suas atribuições militares, mas usando-as como meio para a consecução de suas diretrizes.

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após este exame, observamos que na maioria dos trabalhos a ESG foi apontada como resultado de uma proposta de tutela sobre os destinos políticos do Brasil com base em um ideário elitista e conservador, tendo por elemento fundamental uma ativa participação de um corpo militar e civil que se orientava por uma doutrina de segurança nacional que os levou, efetivamente, ao controle do Estado brasileiro em 1964. Contudo, entendemos que a ESG não foi constituída meramente como a extensão paradigmática de instituições militares correlatas, na medida em que se organizou em função da resolução dos problemas inerentes à realidade brasileira. A partir da fundação da Escola e do subsequente desenvolvimento dos estudos geopolíticos em seu ambiente, estabeleceu-se uma atuação política e um pensamento anticomunista num espaço privilegiado dentro das próprias estruturas de comando das Forças Armadas que, entre as décadas de 1950 e 1960, funcionou como elaborador e emissor de um discurso que esteve no cerne de um modelo institucional que perdurou durante o Regime Militar e que se caracterizaria pela quase completa exclusão de parcelas significativas da sociedade brasileira dos processos decisórios mais elementares. No entanto, cabe reportar à afirmação de Miyamoto que deixa em aberto um campo de estudos a respeito da atuação da ESG durante o período do Regime Militar. Ele lembra que a “[...] influência dos esguianos, não é constante e vai oscilar conforme cada governo que assume o poder.” (1995, p. 109). Tal dinâmica seria fundamental para o desenvolvimento da história do período e, inclusive, para a formação da conjuntura que levaria ao seu final, em 1985.

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CAPÍTULO II

O Curso Superior de Guerra e a narrativa sobre a formação do espaço nacional “O que faz a união de indivíduos ou comunidades que formam uma nação é a vida em comum em um determinado espaço” (DUROSELLE, 1992, p.77)

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4 A DINÂMICA ESTANDARDIZANTE DO CURSO SUPERIOR DE GUERRA A análise da história da ESG no decorrer da década de 1950 mediante o estudo da estrutura dos seus cursos, nos permite a apreensão da forma como foi construído um saber geopolítico sistematizado de forma que assumisse uma função político-pedagógica bem definida63 e centrada na perspectiva de dotar o Estado de dispositivos capazes de levá-lo ao enfrentamento dos grandes problemas nacionais 64. Tal iniciativa passava pelo processo de padronização das ideias, desde a identificação dos temas e problemas até a sua resolução, sendo assim necessária uma dinâmica estandardizante 65 , integradora do pensamento dos elementos militares e civis que cursaram a instituição. Tal estandardização foi possível a partir do condicionamento gerado pela partilha de valores comuns, por exemplo, aos indivíduos talhados sob a ótica de respeito a esses valores, essencialmente castrenses, mas extensivos aos demais setores da sociedade em suas linhas gerais, por sua possibilidade de incutir valores como civismo e nacionalismo 66 . Havia também, em termos institucionais, a histórica presença do Exército junto às estruturas políticas

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No preâmbulo de sua explanação à ESG, em fins de 1951, o general Álvaro Fiúza de Castro enfatizava a vocação daquela Escola enquanto “cenáculo de apuração de nossas elites intelectuais e governamentais”. Estava implícito em seu discurso a função principal da instituição, qual fosse o “burilamento de nossos chefes” com o objetivo específico de habilitá-los à resolução dos problemas inerentes à Segurança Nacional. (CASTRO, 1951, p. s/n) Edu Albuquerque (2011, p. 11) definiu a figura do Estado como “uma construção histórica com origem e desenvolvimento bem definidos” e que “representa um projeto em permanente construção”. Podemos dessa afirmação depreender a finalidade última da Geopolítica aplicada à construção de uma Doutrina de Segurança Nacional. Os estudos conduzidos por Golbery do Couto e Silva e outros no decorrer da década de 1950, tinham por finalidade exatamente dotar o Estado brasileiro de um instrumento que lhe concedesse o máximo de autonomia suficiente para a resolução dos seus problemas, o que fosse uma “visão geopolítica com potencial geoestratégico” fosse sobre o âmbito interno, ou no tocante ao cenário internacional. 65 O conceito de estandardização foi citado por Peixoto (2000, p. 118) ao descrever o processo de padronização das forças armadas latino-americanas no pós-Segunda Guerra Mundial sob uma perspectiva dos interesses dos Estados Unidos. Tal ideia foi trabalhada pelo autor fazendo referências à questão da estruturação armamentista dos países das América Latina com equipamento norte-americano e também no que diz respeito à formação profissional e ideológica de "elites corporativas". É neste segundo sentido que pretendo trabalhá-la. A estandardização, nesse caso, será relacionada à teoria sociológica de Bourdieu, com base na percepção de que os habitus implicam em práticas, saberes e disposições dos indivíduos e que eles foram fundamentais para que se adotassem determinadas posições que se refletiram na formação ideológica e cultural de instituições de cunho estatal, com destaque dado para a ESG, enquanto um locus, um local de produção de saberes, e seu qualificado corpo de teóricos (entre eles, especialmente, Golbery), e outras que partilharam dos conceitos e objetivos traçados ali traçados visando a realização de um projeto de nação. O entendimento do papel desempenhado por essas disposições e práticas para a composição do espaço teórico onde as diferenças sociais se expressam em um jogo pautado pela demarcação de posições, uma disputa pelo poder estabelecida na teoria dos “campos” e da formatação dos “espaços sociais” a eles relacionados. 66 Especialmente durante a Era Vargas (1930-1945), período durante o qual os valores cívicos e o nacionalismo foram intensamente cultivados. 64

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que conduziram o Estado brasileiro, notadamente no cumprimento formal de suas funções constitucionais ou, como em inúmeras crises, como elemento intervencionista decisivo para a definição dos rumos tomados politicamente pelo próprio Estado, em uma atitude de caráter claramente salvacionista67. De uma forma umbilical, essa dinâmica está essencialmente agregada ao processo de modernização e fortalecimento do Exército, transcorrido na primeira metade do século XX, culminando com o envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial e, consequentemente, com o estabelecimento de ligações do oficialato brasileiro com as Forças Armadas dos EUA 68. Entendo que não foi de uma hora para outra que os militares assumiram a proposta de, por meio de uma instituição como a ESG, pensar o Estado brasileiro. Tal fato remontaria em grande parte ao processo de profissionalização do Exército, ocorrido no início do século XX69, e que, naquilo que diz respeito à Escola, ganhou consistência com a formulação de determinados princípios, fato ocorrido na década de 1930, durante a Era Vargas, principalmente no período do Estado Novo70. Nesse sentido, Dulci (2013, p. 199 a 201), aponta para os seguintes principais pontos que formataram a mentalidade do Exército naquele período, determinando, em larga escala a mentalidade que imperou na instituição e, por extensão, na própria ESG: a) Primeiro, a forte simbologia presente nas reformas empreendidas por José Pessoa Cavalcante de Albuquerque, que na condição de Comandante da Escola Militar de Realengo infundiu no ânimo da Arma a necessidade de se reforçar uma visão de Exército como símbolo de “unidade, firmeza e estabilidade do país”; b) A ascendência ao oficialato e, portanto, aos postos de comando, do grupo militar que se orientou pelas perspectivas traçadas pelos positivistas, corrente surgida

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O conceito tem sua origem no processo eleitoral que marcou a disputa entre Rui Barbosa (civilista) e Hermes da Fonseca, em 1910. A vitória de Hermes se fez seguir pela adoção de uma prática intervencionista e militar que visava apear do poder as oligarquias estaduais que apoiaram a candidatura de Rui à presidência. Foi a prática das Salvações, cujo termo salvacionismo, dela derivada, que se perpetuou no jargão da política brasileira como sinônimo de intervenção do Exército em assuntos políticos e de Estado. 68 A modernização do Exército durante o período abrangido pelas décadas de 1910 a 1940 é tratada em profundidade por obras que lidam com a reconstituição da história militar no Brasil àquela época. No que diz respeito especialmente à linha de pensamento seguida em nosso trabalho, optamos pelo uso referencial da dissertação de mestrado de Renato Amado Peixoto (PEIXOTO, 2000). 69 Sobre o assunto, ver PEIXOTO (2000), Terra Sólida. 70 Svartman escreveu que, àquela época, houve um reforço do poder político detido pelas Forças Armadas, tendo sido então elas o elemento de suporte ao regime varguista. Lembra o autor que foram as Armas as responsáveis pela queda do próprio Vargas e pela ascensão de Dutra ao cargo de Presidente da República, por via eleitoral. O Exército teve uma atuação de destaque nesse processo. (2006, p. 149)

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ainda no século XIX, e que ganhou força com o movimento Tenentista, na década de 1920; c) A afirmação da “Doutrina de Góes Monteiro” 71 , que estimulou nas Forças Armadas o sentido da busca de uma presença maior dos militares nas instituições de Estado além caserna, que teria gerado o consenso da “institucionalização da identidade do Exército em paralelo à do Estado, o que acabou gerando um novo modelo de intervenção política” das Forças Armadas. d) A ocorrência de um processo de “homogeneização ideológica” que acarretou um alinhamento dos altos escalões das Forças Armadas com uma posição de combate a quaisquer corpos doutrinários estranhos ao meio castrense, especialmente o comunismo. A conjunção dos fatores acima elencados no decorrer da década de 1940 iriam repercutir diretamente na criação da ESG e na formação de sua mentalidade, voltada essencialmente à formulação de uma Doutrina de Segurança Nacional 72 . Outro ponto importante a ser observado diz respeito às concepções do general César Obino, que foram expressas no anteprojeto que previa a criação da Escola. O documento não ficou restrito aos meios militares, tendo extrapolado o conhecimento apenas pelos ministros das Forças Armadas, pois foi também encaminhado ao Itamaraty. Isso, segundo Dulci (2013, p. 205), demonstrou que “os assuntos de política externa constavam como uma das suas maiores preocupações; por isso a necessidade de se articular com o MRE a fundação da nova escola.” Esses fatos ocorreram paralelamente ao surgimento de uma geração de estudiosos de uma geopolítica essencialmente voltada aos temas nacionais. Tais estudos 73 , muitos deles anteriores ou contemporâneos à fundação da ESG, resultaram na construção de uma sólida gama de conhecimentos que foram apropriados pela própria instituição e também por outras

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Sobre o assunto, ver Svartman (2006, p. 150 a 159) Segundo Horta (1955, p.6), a DSN é composta por princípios e normas de agir, isto é, uma doutrina, permitindo que sejam alcançados os Objetivos Nacionais. “A doutrina tem de evoluir”, sendo atualizada e modificada de acordo com as circunstâncias do momento. Daí depreende-se o papel crucial da ESG, estudando os fatores mutáveis que condicionam a doutrina, nos campos interno e internacional.

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73 A obra de Golbery do Couto e Silva encontra grande parte de sua fundamentação teórica no pensamento geopolítico gestado no Brasil durante as décadas de 1920 e 1930. Por intermédio de autores como Elyseo de Carvalho, Everardo Backheuser e Delgado de Carvalho, foram defendidas idéias como a ocupação do território brasileiro, afirmação do país no contexto político sul americano via estabelecimento de influência AtlânticoPacífico e formação de uma potência em âmbito mundial. A evolução desse processo teórico no período acima citado é tratada por Miyamoto (1995, p. 43-64)

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que se ocupavam de assuntos de interesse estatal. A contribuição desses estudiosos dos problemas nacionais passou pela formalização de uma narrativa histórico-geográfica que inclusive discorreu sobre a formação do território brasileiro, o que em muitos aspectos veio a influenciar a teoria geopolítica trabalhada por Golbery em seus cursos, na medida em que expressavam diretrizes que deveriam ser adotadas pelo Estado de forma à realização de uma série de objetivos. Esses conhecimentos impactaram de forma relevante ações dos governos militares, entre a segunda metade dos anos 1960 e o início da década de 1970, como exemplificado pela adoção de preceitos geopolíticos para a definição dos rumos da política externa brasileira no governo Castelo Branco, conforme Peixoto (2000, pg. 4). Ou ainda, por meio da implementação de um projeto que estabelecia uma série de metas visando a integração do território nacional por meio da construção de obras públicas de grande porte, como as rodovias Transamazônica e Cuibá-Santarém, conforme estabelecido no Artigo 2º. do Decreto-Lei nº 1.106/1970 (BRASIL, 1970), que instituiu o primeiro Plano de Integração Nacional - PIN, no governo Médici. Nesse sentido, percebemos a ESG e a sua produção intelectual enquanto contidas em um campo cultural bem delimitado e formatado em conformidade com visões de Brasil – enquanto projeto de nação – e de mundo. Essas visões são, por sua vez, analisadas em suas perspectivas e soluções para os problemas identificados, que devem ser superados por via do desenvolvimento de uma Doutrina de Segurança Nacional e, por extensão, pela adoção de medidas de planejamento74 de caráter estatal. O objetivo seria a inserção do país, da melhor forma possível, dentro do quadro de possibilidades derivadas das tensões e disputas (mesmo simbólicas) que caracterizavam os cenários nacional e mundial àquela época. Os trabalhos desenvolvidos por Golbery e outros geopolíticos na ESG colocaram em evidência perante o corpo de oficiais das armas e civis que acompanhavam os cursos ali

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Especialmente diante da contingência de um efetivo planejamento das políticas estatais frente os problemas nacionais e o cenário internacional, Juarez Távora referiu-se à existência da ESG como uma questão de necessidade para o Brasil. O Curso Superior de Guerra, segundo colocou, teria um papel fundamental para a capacitação das elites nacionais frente os desafios impostos pelas conjunturas nacional e internacional, traçando uma “avaliação estratégica” dessas conjunturas e definindo as linhas de ação política voltadas à concretização dos Objetivos Nacionais. Em resumo, preconizava para o Curso do ano de 1954, “o estabelecimento de uma doutrina de Segurança Nacional; a formulação objetiva de uma política de Segurança Nacional; e a elaboração de uma técnica adequada ao consequente planejamento dos altos escalões governamentais”. (1954, p.24-26)

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ministrados75 suas concepções voltadas à definição das diretrizes que deveriam ser assumidas pelo Estado no que dizia respeito à consecução dos objetivos delineados em torno dos conceitos de “segurança e desenvolvimento”76. As questões geopolíticas que visavam a integração do território nacional, do “espaço brasileiro” 77 , que tornariam possível a realização do projeto de “Brasil Potência” e que destacava temas como o nacionalismo, o estímulo ao desenvolvimento da economia 78 , a integração a um conceito de “Ocidente” 79 dotado de especificidade cultural religiosa e a inserção das massas ao corpo de elementos voltados à construção da nação brasileira. Estes elementos80 foram abarcados numa estrutura teórica fundamentada nas concepções sobre o poder do Estado e a Segurança Nacional. Miyamoto (1995, p. 98) relacionou a ideia de Segurança Nacional presente na geopolítica traçada por Golbery à concepção de uma estratégia "que abrangesse todo o território, protegendo-o, ao mesmo tempo em que se ocupa o espaço vazio". O espaço brasileiro, entendido sob os parâmetros geopolíticos, pode assim ser compreendido como um meio derivado de uma racionalidade sumariamente premeditada pelo estadismo. E em toda a sua obra, Golbery discorre exatamente sobre a importância da adoção de políticas estatais que, no âmbito interno, valorizem os elementos integrantes do espaço

O lançamento do livro Geopolítica do Brasil, em 1967, expôs à sociedade brasileira parte do pensamento desenvolvido por Golbery nas dependências da ESG no decorrer dos anos durante os quais integrou o seu quadro de instrutores. 76 De acordo com o expresso nos Fundamentos da Doutrina da ESG, esses dois fatores seriam “intimamente interligados”, em uma relação que pode variar de intensidade de acordo com o traçado com vistas à obtenção e manutenção dos Objetivo Nacionais. (ESG, 1981, p. 81) 77 A ideia de espaço brasileiro será por nós tratada, doravante, dentro das perspectivas postas pela geopolítica que viriam a influenciar a obra de Golbery do Couto e Silva. Ele faz uma descrição apurada das características físicas e demográficas do território brasileiro ao escrever sobre As Categorias Geopolíticas Fundamentais e a Realidade Brasileira (Couto e Silva, 1981, pp. 38-47), destacando a ocupação territorial e a expansão da influência brasileira na América do Sul, fazendo, ao final, a prescrição de "uma manobra geopolítica para integração do território Nacional". 78 A importância do progresso e da prosperidade para a ordem interna refletia diretamente no prestígio exterior de uma nação (FREITAS, 1955, p. 3) 75

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O conceito de Ocidente presente na obra de Golbery e no pensamento esguiano é por nós entendido a partir da conjunção de dois elementos: o primeiro, derivado das concepções geopolíticas presentes na teoria do inglês Halford John Mackinder, exposta na Real Sociedade Geográfica de Londres, em 1904. Em sua obra Quem tem medo da Geopolítica, Leonel Itaussu Almeida Mello discorre sobre o pensamento de Mackinder. A exposição deste, que ocupa todo o segundo capítulo, termina focando a importância da teoria que ressalta a oposição entre oceanismo e continentalismo e de que forma tal conflito, em suas variações, se fez continuar a partir de 1947 com o início da Guerra Fria e a consequente formação das alianças militares, o Ocidente representada pela OTAN (1949) e o Oriente, pelo Pacto de Varsóvia (1955). Mello (1999, pg. 69),destaca que Mackinder e sua teoria foram capazes de "antecipar a paisagem geoestratégica do segundo pós-guerra"; o segundo é derivado da tradição formada desde fins da Antiguidade e que coloca a Igreja Católica como guardiã da cultura ocidental. 80 Foram citados por Afonso Arinos de Melo Franco na nota introdutória à 2a edição, de junho de 1967.

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nacional e, externamente – além de concorrentemente – busque soluções para problemas que envolvem questões de segurança e de defesa. Ele teorizava, a respeito do “espaço” enquanto elemento alvo da análise geopolítica, que o importante seria "o espaço político em toda a sua plenitude" (SILVA, 1981, p. 34), expondo sob essa ótica, portanto, uma vasta gama de elementos81 agregados ao território que passaria a ser alvo do seu estudo. Seria a questão de, metaforicamente falando, se arrumar a casa a partir de necessidades decorrentes da realidade nacional. E a publicação da obra, composta por uma seleção de textos que serviram de base a uma série de palestras proferidas por Golbery, pode ser entendida como a exposição de todo um aparato teórico-discursivo que teve como elemento agenciador e propagador a ESG. 5 A AFINIDADE ENTRE A ESG E O IRB O trabalho realizado na ESG em torno da formulação de uma Doutrina de Segurança Nacional determinou a definição da Escola como o centro brasileiro por excelência de estudos geopolíticos. Tal situação dotou a ESG de um grau de importância inerente ao conhecimento ali desenvolvido, por si mesmo histórico, no sentido de que se entregava a determinados setores da sociedade brasileira, notadamente aos mais próximos ao centro decisório, o acesso àquilo que melhor se poderia desenvolver em função do estudo dos problemas nacionais e do apontamento de suas possíveis soluções. A ESG foi responsável pela lapidação de uma cultura política dotada de uma propriedade única, que alcançou destaque dentro do cenário político nacional justamente por mostrar-se aplicável a todo e qualquer governo que assumisse a condução do país, independentemente de questões partidárias ou ideológicas. Entendo que, em se tratando da formulação de ações político-administrativas, um planejamento dotado do amparo de prescrições formuladas a partir da análise metódica e exaustiva dos problemas e deficiências nacionais facilitava a tomada de decisões e sua aplicação, inclusive em termos de melhor aproveitamento dos potenciais recursos que o território oferecia, apontados nos cursos.

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Golbery elencou extensão, contextura, valor, base física dividida em regiões e sub-regiões, ocupação humana em maior ou menor escala, integração por tramas de comunicações, limites e fronteiras (SILVA, 1981, P. 34)

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Se podemos encontrar na obra de Golbery traços implícitos de um processo de personalização do conhecimento geopolítico, presente, por exemplo, no seu estilo prolixo, eivado de referências a elementos consagrados na literatura filosófica e histórica, política e militar, por outro lado não se pode desconsiderar que a sua produção intelectual levava a marca das diretrizes traçadas pela direção da Escola sobre a definição dos temas que pautariam os currículos dos cursos. Havia então um jogo de duplo fluxo, que se realimentava na medida em que os estudos por ele elaborados não deixavam de ser referência para a organização didática dos cursos ali desenvolvidos. Em contrapartida, em função das demandas geradas pelas mudanças ocorridas nos cenários nacional e internacional, Golbery procedia as necessárias alterações ou correções nos seus estudos geopolíticos. Tal dinâmica se faz presente também na forma como ocorria a construção do discurso esguiano por outros palestrantes e conferencistas, de uma forma concatenada ao ideal de construção da Doutrina e que se expressava nos conteúdos que compunham os currículos, observadas sempre as finalidades institucionais, pois trata-se de uma instituição de ensino agregada à estrutura estatal, geradora portanto de um discurso formulado em defesa dos interesses do Estado. Outro elemento importante nessa construção de uma intelectualidade essencialmente esguiana, reside no fato de que esse processo não foge a uma dinâmica derivada da herança política lusitana, que privilegia o centralismo político em detrimento de quaisquer outras soluções possíveis, como as derivadas do regionalismo, por exemplo. Isso se identifica fortemente com a própria origem da instituição, militar, regrada pela ideia de respeito à hierarquia, centralista, portanto. Este processo se identifica também com a narrativa aplicada à explicação dos antecedentes históricos dos assuntos ali estudados, normalmente enaltecedora dos homens de Estado e das instituições aos quais se atribuem ações em prol da formação e integração do território, da definição de suas fronteiras e do estabelecimento dos posicionamentos nacionais no tangente à política exterior. A ESG é uma instituição cravada dentro do Exército, o que possibilitou que suas dependências se tornassem um local específico, um “locus” de produção das ideias que refletiriam ou desenhariam as políticas de Estado. Associado a isso, a própria composição do corpo de Estagiários na ESG, em termos de integração às estruturas do Estado e aos segmentos mais influentes da sociedade civil, faculta-nos o entendimento da importância que tais estudos adquiriam frente às demandas de uma Doutrina de Segurança Nacional.

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Os Cursos ali ministrados, além de definirem aquelas políticas, eram também responsáveis pela formação de homens, militares ou civis, concatenados com as ideias desenvolvidas na ESG. O sucesso nesses Cursos servia de parâmetro para se determinar quem ascenderia aos postos superiores do oficialato, no caso dos militares, e aos postos mais elevados da carreira diplomática, no caso do Itamaraty82. Notadamente, um jogo de benefícios recíprocos, no sentido de que a conclusão dos tais cursos também permitia aos Estagiários adquirir um grau de capacitação que o habilitava à ascensão funcional e ao exercício de tarefas das mais complexas dentro das estruturas de poder do Estado. Percebendo o conjunto dos estagiários da ESG em suas categorias profissionais de origem, podemos nos apropriar do constructo teórico de Duroselle (1992, p. 83-85), que classifica os grupos dentro dos quais se alocam os indivíduos, por suas áreas de interesse, trabalho, afinidades, dentre outras. Um dos grupos, definido como “de organogramas”, compreende “aqueles nos quais o agrupamento não é ação dos membros, mas de uma autoridade ou regra preestabelecida”, como seria o caso de militares, diplomatas, empresários e quaisquer outros que, por exemplo, viessem a se tornar membros do Corpo de Estagiários, do Curso Superior de Guerra. A ESG, então, contribuiria para tornar esses homens componentes daquilo que Duroselle denomina “grupos reais”, onde se encontram, justamente, os indivíduos preparados para o efetivo exercício do poder, fossem a “nível dos líderes de Estado”, a “nível dos notáveis”, e mesmo “do cidadão comum”, mas todos essencialmente criadores de tendências e essencialmente conscientes da existência de um projeto de nação e alinhados com o ideal de sua consecução mediante dos elementos elencados na DSN. Mas não era tarefa das mais simples conseguir tal padronização dentro de parâmetros de excelência pretendidos. Para ilustrar tal situação, recorri a Peixoto (2000, p. 178-179), que nos contemplou com a ideia de que a “geopolítica não impressionou muito os diplomatas”, mesmo que a disciplina constasse do curso “de preparação à carreira de Diplomata [...] até pelo menos 1958”, a ponto de apenas uma minoria dos diplomatas constantes nos quantitativos do MRE, até 1971, terem cursado a ESG83. Por outro lado, ele aponta a frequência dessa

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Peixoto (2000, p. 179) relaciona os ministros das Relações Exteriores, que cursaram a ESG após 1964, como indício de que os Governos Militares “privilegiaram essa formação”. 83 Esse problema não passava despercebido à ESG. O texto apresentado em 1955 pelo Ministro Jorge Emílio de Sousa Freitas, então assistente do MRE junto ao Comando da Escola. Ele expôs o que entendia ser as deficiências que compreendia possuir o serviço diplomático brasileiro. Para ele, o Brasil ainda não atingira um nível organizacional que permitisse o desenvolvimento de “um trabalho metódico e coordenado, dentro do Itamaraty e em correlação com os demais campos da atividade governamental (econômico, psico-social e militar)”, de

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minoria ao Curso da ESG como realizadora de um processo de excelência que definiu “a maioria dos diplomatas que exerceram o cargo de ministro efetivo ou interino das relações exteriores após 1964”. Embora o meu trabalho esteja focado nas dependências da ESG, as eventuais referências ao MRE são necessárias. Isso decorre do fato de que elementos curriculares expostos aos Estagiários da ESG abrangiam um público que incluía elementos pertencentes aos quadros diplomáticos brasileiros. Existem referências, inclusive, ao fato de que uma mesma palestra dada nas dependências da ESG era também proferida no curso de formação de diplomatas do IRB. Para Cheibub (1985, p.127) que explanou sobre o Instituto Rio Branco, ficou muito claro “que os idealizadores do IRB viam-no cumprindo um papel semelhante ao que cumpre a ESG para os militares, ao mesmo tempo em que teria, também, as funções mais profissionais das Academias Militares e Escolas de Comando”. Ele destaca que tal estrutura assumida pelo IRB lhe deu “o monopólio da tarefa de selecionar e formar os diplomatas brasileiros”, mantendo “sob o controle dos diplomatas a seleção dos novos membros da carreira”. Isso acarretou uma homogeneidade e articulação dos diplomatas comparável, somente, às dos militares84. Segundo esse autor, tanto o IRB quanto as Instituições Militares “conseguem socializar seus membros dentro de sistemas articulados e coerentes, onde existe uma grande ênfase no papel que militares e diplomatas desempenham no cenário nacional”. Tal homogeneidade aparece, portanto, na sintonia demonstrada por integrantes dessas duas categorias que conjuntamente fizeram suas palestras nos Cursos Superiores de Guerra. Cheibub ainda nos aponta que “as carreiras diplomática e militar possuem diversos traços em comum” sendo, portanto, facilitado, para os militares, o reconhecimento nos diplomatas de “algumas das características positivas que veem em si próprios”. Tal condição

forma que fosse possível o estabelecimento de posições voltadas à realização “dos objetivos nacionais na esfera internacional”. Para ele, sem que houvesse a definição precisa de como realizar esses demais campos, não seria possível o planejamento eficiente da política exterior, fato este agravado, em termos de melhor solução, por escapar “à alçada do Itamaraty, situando-se em outras jurisdições e no mais alto nível do governo”. Apontava-se aí a necessidade do estudo da Geopolítica. (FREITAS, 1955, p. 24) 84

Freitas apontava que tal como seria com as carreiras militares, com as quais tem acentuado paralelismo, por lidar de perto com problemas relacionados com a Segurança Nacional e pelo seu espírito de hierarquia e de disciplina, a carreira diplomática tem que necessariamente ser reservada aos que para ela recebem a devida formação. (1955, p. 26)

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deriva, claramente, “de ambas as carreiras terem tido um desenvolvimento bastante similar no Brasil”. (Ibdem, 1985, p.129) Uma declaração indicativa dessa conexão entre as carreiras e os conteúdos discutidos na ESG e no IRB, pode ser encontrada na palestra feita em 27 de maio de 1956 pelo jornalista João Baptista Barreto Leite Filho, então professor de Política Internacional do Instituto Rio Branco. Apresentando sua visão sobre o cenário mundial daquele ano, afirmou ter sido distinguido “com o encargo de discutir as mesmas questões no Curso de Aperfeiçoamento do Instituto Rio Branco” (FILHO, 1956, p. 5), ou seja, um conteúdo comum a duas instituições diferentes. Entendo assim que o período aqui estudado a partir dos textos de Geopolítica do Brasil, de Golbery, foi um dos mais fecundos para as instituições que partilhavam seus conhecimentos dentro da ESG, fossem as Armas, o IRB ou qualquer outra que ali se fizesse representar. Mas entendo que isso se refletiu mais fortemente nos Estagiários oriundos das Armas e da Diplomacia, na medida em que pertenciam a instituições cujas relações com os assuntos de interesse do Estado eram aproximadas, senão as mesmas, na maioria das vezes. Tal situação acabou por determinar a possibilidade de convivência mútua nos Cursos Superiores de Guerra e, portanto, nas formas como poderiam ganhar destaque dentro daquelas mesmas instituições a partir da diplomação na ESG, aproveitando-se o fato de que, em si, as carreiras de Estado já se anunciavam como sinal de prestígio profissional e social. Não à toa, Dulci (2013, p. 166) fez uma referência à década de 1950 como “os anos dourados” para os militares, a partir do fato de que “desfrutavam de enorme destaque entre os civis, tanto na alta sociedade quanto nos outros segmentos sociais”. Segundo ela, para os diplomatas não teria sido diferente a visão sobre aquele período, por ter sido justamente aquele em que houvera um “processo de racionalização e burocratização do Itamaraty”, tornando-se o concurso de admissão ao IRB, fundado em 1945, “um dos mais disputados entre as carreiras públicas do país”. Essa questão institucional tem que ser frisada para o entendimento do que aqui está sendo exposto. Dentro de uma base relacional entre os conceitos de espaço e poder para a História, defendo que sejam percebidas as condições específicas que tornaram a ESG e o IRB algo diferenciado de outras instituições, no âmbito das relações entre elas, outras instituições e, o Estado brasileiro. Isto ocorria na medida em que possuíam uma macrovisão da conjuntura

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nacional e se ocupavam de todas as possibilidades em termos de problemas e possíveis soluções para eles85. Importa relembrar que entre a ESG e o MRE existia uma variedade de elementos que os aproximavam, e que se expressavam sob as formas: a) Das áreas de interesse constantes nos seus cursos; b) Do desenvolvimento de políticas de Estado dotadas de perenidade; c) Das similaridades entre as carreiras militar e diplomática. Dessa forma, a conexão nas palestras entre a ESG e o IRB, inclusive com o trabalho de membros do IRB na própria ESG, consistia de uma ação coordenada de um grupo de elite voltado à formatação de novos integrantes dessas elites, no caso da ESG e ECEME, o alto oficialato, no caso do IRB, os novos diplomatas. Assim, a questão do desenvolvimento de trabalhos essencialmente voltados à definição de políticas de Estado no Brasil encontrou no binômio ESG/IRB uma de suas melhores soluções, conforme Freitas (1955, p. 14). O Curso de Aperfeiçoamento de Diplomatas 86, que funcionou regularmente a partir de 1953, estava entrelaçado ao Curso Superior de Guerra ofertado pela ESG, dentro dos limites estabelecidos pelo currículo, o que seria dizer dentro do “ciclo da doutrina de Segurança Nacional”87. A ligação existente entre a ESG e o MRE incluía a manutenção de dois funcionários do Itamaraty no Corpo Permanente da Escola, um deles exercendo a função de Assistente do Comando e o outro vinculado à Divisão de Assuntos Políticos, além, evidentemente, dos que ali passavam anualmente na condição de estagiários do Curso Superior de Guerra.

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Duroselle afirma que as ligações entre militares e diplomatas têm relação direta com a condução da política externa, tal a natureza e estreiteza dos laços existentes entre eles. Em termos, ele expõe o grau de importância da ação dos “grupos reais” junto à cúpula. “Se eles reúnem militares diplomatas importantes, unidos por uma mesma finalidade, eles têm chances de fazer pender a política externa do país na direção que desejam”. (1992, p. 103105). 86 Era ministrado aos diplomatas tidos como Cônsules de 3ª classe, antes de sua primeira designação para o serviço no exterior. É importante a conexão desse processo de formação dos jovens diplomatas com as ideias desenvolvidas na ESG, especificamente em se tratando do binômio segurança e desenvolvimento como bases para uma doutrina de Segurança Nacional. Nessa perspectiva, ficava patente a importância do currículo da ESG, no tangível à orientação sobre aspectos sociais e econômicos, na medida em que estariam os integrantes do Instituto Rio Branco se habilitando, como futuros diplomatas, a incorporar o espírito de “escritório de negócios de alto nível” atribuído por Freitas ao MRE, na medida em que a “economia e as finanças incorporaram-se definitivamente à política”. (Freitas, 1955, p. 14-15) 87 “O planejamento da política externa está em íntima correlação com o da Segurança Nacional. Ambos têm que ser harmônicos com os planos estratégicos militares”. Daí a necessidade da existência de dois planos de política externa, um focado na paz e outro para a eventualidade da guerra. (FREITAS, 1955, p. 8)

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Dulci (2013, p. 162) atentou para o conceito de “espírito de corpo 88” que acabava por determinar a identificação de semelhanças entre as carreiras militar e diplomática. Fazendo sua leitura a partir do texto de Alexandre Barros89 a respeito da relação entre elites e Estado no Brasil, ela vai buscar a posição por ele apontada de que seriam então, esse grupos, aqueles dotados de mais homogeneidade e articulação, capacidades que lhes conferiria plena consciência do que seriam os caminhos mais racionais em termos de projeto para a construção e condução do Estado brasileiro, consciência essa, por sua vez surgida da também consciência social sobre a importância da participação política. Portanto, o trabalho desenvolvido na ESG, no sentido da conjugação de esforços entre militares e diplomatas, não se fez sem uma base social e institucional forte. Por exemplo, Cheibub (1985, p. 114) comentou a noção de autonomia que os diplomatas tendiam a assumir, e que isso lhes era possibilitado pelo fato de estarem vinculados a uma instituição dotada de conceitos e iniciativas muito particulares a respeito da condução das políticas de Estado quanto às relações exteriores. Existia uma questão de permanência no sentido de que havia a força dos princípios que orientavam o MRE e que transcendiam as mudanças “bruscas e indesejadas” derivadas das prováveis alterações sofridas pelo cenário político nacional. Continuava-se, a despeito de quaisquer percalços, com uma política exterior focada nos interesses do Estado – nação, antes de considerados os objetivos de eventuais governos ou grupos políticos dominantes. Nesse sentido, é fácil de entender a afinidade existente entre esses elementos no que diria respeito ao estudo de todo um conhecimento teórico de base geopolítica, por sua própria natureza derivado de uma cultura voltada à formulação de conceitos associados aos interesses estatais. O fato de que a ESG os congregava em seu espaço de produção intelectual, juntamente, claro, com indivíduos derivados de outras instâncias de Estado ou mesmo da área civil, apontava para uma espécie de consenso que apontava para o prestígio que poderia ser auferido ao se integrar, como Estagiários ou mesmo palestrantes, ao círculo esguiano. A ESG era o espaço que projetava o meio – a Geopolítica – pelo qual se desenhavam as diretrizes que tinham por objetivo, em última instância, o fortalecimento do Estado nacional por meio de seu desenvolvimento e, por extensão, segurança. Isso se refletia na constância

Para a autora, tal característica seria decorrente do fato de que militares e diplomatas seriam derivados “de um processo de formação e socialização bastante similar”, sendo também categorias que estavam em lide direta com assuntos relativos à política externa da nação, pela negociação ou dissuasão. 89 Ver BARROS, ASC. “A Formação das Elites e a constituição do Estado nacional brasileiro”. Dados. Rio de Janeiro: 1977. N 15, p. 102

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como os homens que ali se faziam presentes, fazerem referências a si como “elite” ou dessa forma serem referenciados pelos que por ali passavam como palestrantes. Gerava-se assim, por meio das palestras coordenadas entre as duas instituições, um corpo dirigente educado em torno da ideia de consecução dos objetivos estatais, estes vinculados à Segurança Nacional e, por extensão, às Relações Exteriores. Agregados a esse conhecimento de cunho geopolítico, que em termos teóricos embasaram os ONPs desenvolvidos em torno do binômio desenvolvimento e segurança, estavam aqueles que seriam os elementos conjunturais ou acessórios. A conjunção dos trabalhos entre a ESG e o IRB não fugia à realidade geopolítica existente com o início da Guerra Fria. De acordo com Albuquerque (2011, p. 68), o Itamaraty viera a criar o IRB em 1945, visando a formação de uma “elite dirigente”, dotada de especialização em assuntos de política externa. Com essa mentalidade e nesse contexto histórico foi fundada também a ESG, cujo trabalho intelectual possuía como fator determinante a formulação de uma doutrina que tinha em vistas o estudo dos problemas relativos ao desenvolvimento da economia brasileira e da ocupação racional do espaço, por vias “de uma política de segurança nacional contra os movimentos subversivos de esquerda, articulada a uma visão de segurança hemisférica baseada na orientação estadunidense de contenção ao comunismo soviético”. Assim, o pan-americanismo, a projeção exterior, o combate ao comunismo, o choque de civilizações e a herança lusitana, assuntos englobados pelo conceito de Guerra Fria e referenciados por uma recorrência constante à historiografia política, acabaram por se tornar elementos presentes na formulação de uma identidade esguiana. Nesse sentido, pode ser identificado um claro diálogo entre o pensamento de Golbery e a produção de outros autores que palestraram na ESG àquela época. Pretensamente ou não, eles assumiam a condução de uma chama que estivera nas mãos de Gusmão, dos homens que conduziram o IHGB e do Barão do Rio Branco, que em momentos distintos dotaram seu constructo intelectual de um racionalismo que levou a importância do planejamento das políticas de Estado até a última instância da excelência, proporcionando aos governantes, de forma atemporal, a possibilidade de contar com instrumento que facultaria a realização dos seus objetivos em torno das questões inerentes ao seu desenvolvimento interno e fortalecimento externo. Aos homens de Estado acima citados, colocados em posição de justo relevo e reconhecimento nos textos dos cursos esguianos, entendo que poderia se juntar Golbery do Couto e Silva, na medida em que, por conta de sua contribuição ao trabalho intelectual

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desenvolvido na ESG, houve a possibilidade de aproveitamento efetivo dos conhecimentos ali gestados em prol do Estado brasileiro. 5 OS PRECURSORES DO ESPAÇO – A NARRATIVA HISTÓRICA DA ESG Entendo que o fundamental para a compreensão do trabalho teórico desenvolvido na ESG tenha sido a racionalização do debate a respeito da construção de um corpo de ideias que, observados os elementos em torno do conceito de Poder Nacional, resultaram na formulação da Doutrina. Nesse sentido, defendo a ideia de que a construção da teoria sobre uma geopolítica brasileira na ESG e, por extensão, na obra de Golbery, se fez acompanhar de uma narrativa a respeito da produção da história do espaço nacional por meio da ação de indivíduos e instituições que se integraram em um trabalho voltado à consecução dos interesses do Estado, em diferentes épocas. O trabalho esguiano, na prática seria uma continuidade de outros desenvolvidos anteriormente, em períodos distintos da história do Brasil. Dessa forma, a história da Geopolítica brasileira encontrou nos estudos de Golbery um dos seus elementos fundamentais, agregado que foram tanto a teoria por ele construída quanto a existência da Escola, enquanto centro de altos estudos, essencialmente voltada para os temas relativos à área. Entendo que a existência de uma instituição dotada de uma estrutura física localizada em um ambiente histórico, com um objetivo consoante com o pensamento que vigorava nas Forças Armadas e com apoio estatal, veio a literalmente reforçar o sentido e a força do trabalho ali desenvolvido, inclusive permitindo com que homens como Golbery dedicassem o seu tempo à produção de conhecimentos que tinham por finalidade dotar o Estado de um meio racionalizado de pensar a sua organização interna, sua defesa e a sua política externa. Dentro de um contexto pautado pela Guerra Fria, a ESG ressaltou por meio de suas palestras uma historiografia que voltava seus argumentos para a validação das teses geopolíticas – aquilo que Renato Amado Peixoto denominou “um saber acerca do espaço90” – que incluíam a definição dos Objetivos Nacionais Permanentes em torno de temas como o Pan-Americanismo, o anticomunismo e a defesa do Mundo Ocidental Cristão, além da

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Ver Peixoto, 2014, p. 185-186.

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herança portuguesa, presente em elementos culturais e nas referências à excelência dos aparelhos de Estado voltados à Diplomacia, em Portugal e no Brasil. Com a criação da ESG, a Geopolítica brasileira ganhou ares de produção acadêmica a ponto de se tornar um elemento visível às estruturas educacionais das Forças Armadas, gerando um conhecimento construído de forma epistemológica que seria usado na própria ESG, no MRE91 (aplicado à formação de diplomatas) e nos cursos da ECEME, onde tinha a função de atuar como elemento de formação dos indivíduos que ascenderiam aos mais altos postos de comando do Exército, ou mesmo nas demais escolas militares, na medida em que o conhecimento produzido na Escola estava destinado a determinar um processo de estandardização do pensamento castrense. Podemos entender que os estudos geopolíticos desenvolvidos na ESG obedeciam a uma lógica que remontava ao fim do período colonial. Se a Geopolítica será o conhecimento aplicado ao território nacional em termos de seus potenciais e problemas, visando a ocupação e integração dos espaços, na prática isso constituiria uma continuidade do trabalho desenvolvido muito tempo antes da fundação da Escola e que compreendia em diversas fases da história nacional, estratégias e políticas colocadas em prática por homens e instituições de Estado, tendo em vista as melhores soluções para os interesses nacionais. Tal dinâmica pode ser identificada sob diferentes aspectos, que foram assim definidos pelas demandas políticas e econômicas que surgiram à medida que evoluía o processo de formação do território brasileiro e de definição das suas fronteiras. Nesse ínterim, já se colocavam em prática as ideias desenvolvidas em torno do conceito de projeção externa do país, temas recorrentes nas referências à historiografia utilizadas para formulação dos conceitos estudados na ESG. Aquilo que denominarei como uma historiografia esguiana veio a tratar, portanto, de diversos procedimentos políticos relativos a épocas distintas, feitos dessa forma por homens e instituições diferentes, mas que, em suma, se agrupavam no sentido de que vieram a pavimentar os diferentes estágios de um trabalho que, no seu conjunto, tinha por objetivo sobrepor o interesse do Estado-nação a todo e qualquer interesse pessoal ou governamental, muitas vezes pontual em sua essência e não necessariamente de acordo com os interesses nacionais.

Compreendido como uma “instituição de ensino superior voltada para a pesquisa, para a formação continuada de diplomatas e também para a instrução de outros funcionários públicos” (PEIXOTO, 2014, p. 188) 91

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A Escola seria então “Cena92 de produção historiográfica”, na medida em que a ESG, enquanto locus de produção de um conhecimento específico, a geopolítica brasileira, era responsável direta pela disseminação de um conhecimento que tinha por fim a formação de uma classe dirigente capaz de agir em duas frentes, quais fossem a condução da política nacional, e por outro lado, a condução da política externa, sendo observados os interesses do Estado, resguardados por um criterioso planejamento das ações que visavam a sua realização. E essa produção intelectual centrada na Geopolítica era responsável pela também produção de uma historiografia a ela agregada e que a explicava e justificava. Essa narrativa historiográfica desenvolvida na ESG visava pontuar as referências históricas que modelavam os argumentos que serviam aos estudos dos Estagiários da instituição. É uma narrativa que pode ser inclusive abordada e relacionada à recente produção historiográfica que tem lançado luzes sobre a construção de uma narrativa voltada às práticas que tinham por interesse a formação e consolidação do espaço nacional. Nesse sentido, podemos apontar inicialmente as tratativas que resultaram na firmação do Tratado de Madrid, em 1750, que mobilizou a diplomacia portuguesa sob a condução de Alexandre de Gusmão em negociações com a Espanha, e que resultou na delimitação das novas fronteiras entre as Américas portuguesa e espanhola. O assunto ganhou relevo e passou a ser referenciado em termos de importância histórica a partir da ocorrência de um trabalho de produção de uma narrativa sobre a construção do espaço brasileiro ocorrido no século XIX. Por obra de José Feliciano Fernandes Pinheiro, Visconde de São Leopoldo, foi defendida perante o Imperador D. Pedro II “a transcendência do tratado de 1750 para o Brasil”, argumento que se fez acompanhar, segundo Peixoto (2005, p. 215), do lançamento das bases do “mito de Alexandre de Gusmão”. Peixoto enfatizou a importância das iniciativas de Pinheiro para a historiografia nacional, na medida em que, no seu afã de exaltar a figura de Gusmão e a sua importância histórica frente o processo de formação territorial do Brasil, se fez responsável pela publicação da primeira biografia do homem que fora responsável direto pelos termos fixados no Tratado de Madrid, pelo qual, inclusive, “caíra em desgraça perante os olhos do Estado português”. Após Gusmão, coloco em pauta o contexto histórico que caracterizou a transição do Brasil Colônia para a independência, que ficou marcada pela atuação do corpo diplomático

O conceito de “Cena” nos é oferecido por Peixoto a partir de um processo de uma aproximação entre a história e as ideias derridianas e foi aplicado para a construção do seu texto “A Flecha e o Alvo”, onde trata do curso de História da Cartografia conduzido por Jaime Cortesão no MRE. Ver Peixoto, 2014, p. 185. 92

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trazido pela família real portuguesa, em 1808, em torno das questões da política europeia à época, e que, após 1822, agregou-se ao serviço de reconhecimento e consolidação da independência brasileira frente as nações europeias e americanas. O trabalho diplomático despendido pelo Brasil junto “às potências explicando a sua situação face a Portugal”, inclusive mediante o envio de representantes a determinados países em busca de apoio à sua autonomia, seria fundamental não apenas para a independência política em si, mas também para “a manutenção da unidade territorial”, conforme apontou Cheibub (1985, p. 14). Nessa dinâmica de construção de uma rede de endosso ao nascente Estado brasileiro, ganhou destaque a afinidade logo desenvolvida pela diplomacia brasileira com os Estados Unidos, parceiro privilegiado no rol das relações internacionais do Brasil a partir de então. É importante colocar em pauta essa afinidade diplomática quase que imediata entre os dois países e sacramentada pelo fato de que os Estados Unidos seriam o primeiro país a reconhecer a independência brasileira, em 1824. Isso seria fundamental para o surgimento de uma ideia de solidariedade continental que se tornaria pauta dos currículos esguianos mais de um século depois93. Por outro lado, a situação das relações do Brasil com seus vizinhos sul-americanos colocou-se desde cedo como problemática. O discurso feito na ESG quanto ao isolamento do Brasil frente às demais nações da América Latina no início da sua trajetória como Estado independente, encontra em Cheibub (1985, p.115) uma explicação derivada da personalidade assumida pelo próprio Estado brasileiro, imperial, frente às demais nações da região, republicanas. Em primeiro lugar, ele destacou a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil como um fato que dotou o país de uma prematura estrutura diplomática. Este corpo diplomático, inclusive, não retornou a Portugal em 1821, com a volta de Dom João VI ao seu país. O Brasil

O jogo de interesses políticos entre o Brasil e os Estados Unidos, no tocante aos fatos ocorridos na esfera política continental na década de 1820, envolveram uma questão de reciprocidade e pioneirismo. O Brasil foi reconhecido independente pelos EUA, em 1824. Em contrapartida, foi o primeiro país a reconhecer a Doutrina Monroe, de 1823. Peixoto (2015, p.17) classifica a isso como “preservação da integridade territorial através da inserção continental”, e entendo que tal dinâmica poderia ser usada para explicar as pretensões brasileiras quanto ao reconhecimento dos Estados Unidos de sua importância no cenário latino-americano e em maior extensão, no cenário mundial da Guerra Fria, enquanto que o Brasil covalidaria as alianças político-militares propostas pelos estadunidenses, conforme o defendido por Golbery. O desenho Norte-Sul é determinante a partir da Guerra Fria.

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ganhou com isso uma estrutura já dotada de pessoal qualificado para as atribuições de política externa do Estado que estava em seu nascedouro. Outro elemento discutido como primordial para formação do perfil da política de relações exteriores se assenta justamente no caráter monárquico do Estado fundado no Brasil. Tal condição facilitou o trânsito da diplomacia brasileira na Europa, onde predominava tal forma de governo, enquanto o modelo republicano orientava a organização políticas das demais jovens nações Latino-Americanas. Nota-se que, ao mesmo tempo em que adotava uma postura de maior distanciamento quanto aos países latino-americanos, a diplomacia brasileira reservava aos Estados Unidos um grau de aproximação comparável ao estabelecido em suas relações com as monarquias europeias. O desenho Norte-Sul, que se tornaria um traço marcante das relações exteriores brasileiras, já estava definido, pois, desde o século XIX. Assim, naquilo que diz respeito ao meu estudo sobre as condições que envolveram a construção do conhecimento geopolítico brasileiro por Golbery e pela ESG na década de 1950, importa lembrar que, em meio à preocupação pan-americana frente à ameaça soviética, na medida em que estipulava a ação de Moscou visando a expansão do comunismo à América Latina, não era a primeira vez que os Estados Unidos enfrentavam problemas com interesses russos no continente. E não seria, portanto, a primeira vez que o Brasil se alinharia aos EUA em questões diplomáticas relevantes. Nesse sentido, Athayde (1956, p. 5) esclarece que, no século XIX, especificamente em 1821, ocorrera a decretação, pelo então Czar Alexandre I, de um “protetorado russo” que cobriria parte do território “da costa noroeste da América”, fato que ocasionara fortes protestos do presidente dos EUA, John Quincy Adams, que assumira o cargo em 1825, contra o inadmissível “projeto russo de formar grandes estabelecimentos coloniais na América”. O Brasil demonstrou então a sua afinidade diplomática com os EUA, na medida em que usou da ação política de José Bonifácio, que teceu as diretrizes da nossa política externa no sentido da adesão do Estado brasileiro às diretrizes da Doutrina Monroe, também no sentido de fazer frente às pretensões da Santa Aliança 94 . O Estado brasileiro, então reconhecido e consolidado, passava a atuar também no sentido de se fazer presente no cenário

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Termo pelo qual ficou conhecido o pacto assinado entre os monarcas das grandes potências absolutistas que lutaram contra Napoleão Bonaparte, em 1815. Dessa forma, Rússia, Áustria e Prússia se comprometiam, em nome da “Santíssima Trindade”, combater os movimentos nacionalistas e liberais que pudessem se manifestar àquela época, na Europa ou nas colônias. Ver Azevedo, 1999, p. 408.

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político internacional. Dessa forma, dentro do entendimento inerente à Geopolítica, estava se antecipando, naquele século XIX, a ideia de fortalecimento interno e projeção externa, que seria defendida na ESG por meio da Doutrina ali desenvolvida. Como já expus, a criação da ESG como um centro de altos estudos fundamentados na Geopolítica não deve ser entendida como um fato isolado, conjuntural, decorrente apenas da conjugação de esforços de uma determinada geração de altos oficiais do Exército. Entendo que, antes disso, a Escola seria um instrumento de continuidade de uma lógica que começara a ser montada ainda durante o Período Joanino, quando indivíduos ligados ao ainda Estado português no Brasil davam formato intelectual às primeiras concepções a respeito da produção e consolidação do espaço nacional, observadas as dinâmicas de raciocínio que podem ser já entendidas como de natureza geopolítica. Ao tratar da questão dos “insumos da produção do espaço” naquele século XIX, Peixoto (2011, p. 24 e 25) destacou os debates ocorridos em instituições como o Parlamento e o Conselho de Estado, já no Império, que enxergavam o Brasil além de si mesmo, de sua dinâmica interna. Esta deveria estar necessariamente atrelada à percepção dos interesses nacionais frente o cenário político internacional. As Relações Exteriores deveriam então ser tratadas como prioridade e por instituições comprometidas com os interesses de Estado, permanentes, portanto desvinculados do imediatismo dos interesses político partidários. Exatamente nesse sentido, do comprometimento com a construção de um modelo racionalizado de espaço, é que se enquadra aquele que foi considerado por Peixoto (2011, p.26 e 27) como “o primeiro grande texto de geopolítica do Brasil”, o documento intitulado “Memória acerca dos limites naturais”95, obra de José Feliciano Fernandes Pinheiro, Visconde de São Leopoldo, que viria a ser o líder do ‘Primeiro Conselho de Estado’ e que preconizava o ideal de uma “ligação permanente do Estado” com um tipo de pensamento que visava à fundamentação de uma política já preocupada com a ocupação, integração, desenvolvimento e segurança da nação96.

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O documento foi oferecido por Fernandes Pinheiro ao imperador D. Pedro I, em 1827, enfatizando a sua preocupação com o constructo de “uma ligação permanente do Estado com o modelo de espaço” que fora delineado em uma outra obra sua, os ‘Anais da Província de São Pedro’. Este, datado de algo entre 1819 e 1822, foi onde se discorreu sobre ‘uma narrativa territorial, um modelo de espaço onde um indivíduo plural, o brasileiro, era o ator principal’, conjugando em uma narrativa histórica da formação do território brasileiro os elementos ‘Nação e Identidade’. “Memória” seria um primeiro documento dotado do objetivo geopolítico de nortear as ações do Estado brasileiro, de forma atemporal, e que em tese deveria ser lido por todos os monarcas que chegassem ao poder. (PEIXOTO, 2011, p. 26) 96 Sobre os argumentos de Fernandes Pinheiro, ver Peixoto, 2011, p. 27. e

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Pinheiro teve também participação ativa nos debates que giraram em torno das demandas geradas pelas questões que envolviam a formação territorial brasileira e a definição das fronteiras nacionais, ainda naquele século XIX, mediante a construção de uma narrativa histórica que lhes justificasse a existência e importância, como no caso que envolveu o IHGB e a SENE, assim denominados “lugares de produção”97. O problema ali colocado centrava-se na ideia de “como se poderia pensar a relação mesma entre a produção do espaço na SENE com a produção de um projeto histórico no IHGB?” A resposta, segundo Peixoto (2011, p. 15-16) estaria na própria origem do IHGB como entidade ligada ao Estado, que tratava da constituição de um projeto historiográfico sobre a formação do país e da importância dos elementos cartográficos para a representação da historiografia ali construída. Trazendo a discussão para o contexto dos anos 1950, para os textos de Golbery e outros palestrantes na ESG, podemos atribuir à ESG a mesma essência da preocupação devotada aos interesses nacionais encontrada no discurso de Fernandes Pinheiro. Os “insumos”, no contexto da Guerra Fria, estariam exatamente descritos em Geopolítica do Brasil, de 1967 e podem ser identificados, em termos de “privilegiamento de espaço” e de “relação diferenciada com o espaço” – termos aplicados por Peixoto (2011, p. 25) a elementos inerentes às discussões sobre o espaço brasileiro e suas relações externas no século XIX – aos problemas levantados nos sucessivos Cursos Superiores de Guerra do período aqui estudados. O espaço privilegiado seria o Brasil, o Estado-nação, objeto dos estudos que visavam a realização dos Objetivos Nacionais Permanentes assim definidos na Doutrina da Escola; as ‘relações diferenciadas’ seriam evidenciadas com as posições defendidas na Escola a respeito das relações com os Estados Unidos e com a América Latina, o pan-americanismo como molde para um sistema de defesa integrada do continente, a defesa do Mundo Ocidental contra a ameaça comunista e a afirmação de uma sólida herança cultural lusitana como base para a nossa formação cultural e política. Na primeira metade do século XX, ganhou relevo a atuação de Rio Branco frente o MRE, quando da definição de uma posição brasileira frente à questão do Monroísmo e da efetiva aproximação do Brasil com os Estados Unidos, e a atuação de Jaime Cortesão que consolidou a narrativa histórica em torno da formação do território nacional e a integrou às políticas estudadas e desenvolvidas no âmbito do MRE.

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Todo o processo é descrito por Peixoto em “Enformando a Nação” (2011, p. 11 a 48)

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O caso de Rio Branco pode ser exposto de forma simplificada por meio de uma situação histórica que ficou conhecida como “O Caso Panther”. O episódio Conforme Peixoto (2011, p. 44) tratou-se de um incidente diplomático que envolveu o Brasil, os Estados Unidos e a Alemanha, a partir da suposta ocorrência de rapto de um cidadão alemão que residia em Itajaí, SC, interpretado como sinal de intervenção arbitrária germânica em solo brasileiro, que ocasionou intenso debate que envolveu Rio Branco e os interesses dos Estados Unidos no Brasil. O autor fez uma análise dos motivos que levaram Rio branco a escrever o documento intitulado “o Brasil, os Estados Unidos e o Monroísmo”, argumentando que o diplomata utilizara da antiguidade e tradicional proximidade entre o Brasil e os Estados Unidos contra o ponto de vista dos seus críticos na questão do caso Panther. Neste sentido, Rio Branco fizera uma seleção de “documentos que demonstrariam a antiguidade da amizade entre os dois países, demonstrando assim que a sua condução da política externa brasileira naquele início de século XX, em nada contradizia a política externa Imperial, que funcionara no século anterior98. O episódio foi um exemplo da aproximação do Brasil em relação aos Estados Unidos, configurando elementos da “aliança não escrita” no plano regional e no hemisfério 99 , demostrando interesses convergentes no âmbito da Doutrina Monroe 100. Importa observar que não estava em jogo apenas a questão da antiguidade das relações com os Estados Unidos. O contexto das relações internacionais brasileiras àquela época, que além do caso Panther incluía dissensões com a Argentina e o Peru, serviram de justificativa à aliança com os Estados Unidos. Naquilo que nos importa, o fato é relevante na medida em que de certa forma se mantinha viva uma linha argumentativa que faria ligação com as ideias de Golbery no contexto da Guerra Fria, que também defendia uma necessária aliança com os Estados Unidos, tendo por base, inclusive, a força da tradição das relações entre os dois países que decorriam fortemente desde o período imperial e que tiveram continuidade após o estabelecimento da república no Brasil.

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Ver Peixoto, 2011, p. 61. Ibdem, p.47. 100 Nesse sentido, Peixoto faz uma referência à opinião de Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira, que em Presença dos Estados Unidos do Brasil, obra de 1972 reeditada em 1978, fez uma outra leitura do Caso Panther, chegando à conclusão de que essa convergência, além da efetiva aproximação com os Estados Unidos, visava “a transformação do Continente numa espécie de condomínio em que o Brasil ficava com as mãos livres para exercer a sua hegemonia na América do Sul”. (BANDEIRA APUD PEIXOTO, 2011, p. 53). 99

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O segundo caso diz respeito ao trabalho de construção de uma narrativa que destacasse a ação de homens de Estado para a formação territorial do país, que teve por destaque as palestras e cursos lecionados pelo português Jaime Cortesão no início da década de 1940, nas dependências do Instituto Rio Branco 101. Se os cursos da ESG viriam a oferecer aos seus Estagiários, nos anos 1950, a visão da construção do espaço nacional a partir da ação de determinadas figuras agregadas ao Estado, o trabalho de Cortesão pode ser apontado como justamente um marco por ter afirmado o papel desempenhado por Alexandre de Gusmão 102, apontado em sua obra como “o primeiro diplomata do Brasil” e “precursor do panamericanismo”, em uma obra que Peixoto (2014, p. 196) definiu como de discernimento a respeito do fato de houvera uma visão geopolítica como orientadora do processo de “formação do território brasileiro” ainda durante o período colonial. Cortesão defendia que o trabalho de fixação das fronteiras nacionais, iniciado por Alexandre de Gusmão por meio da aplicação do princípio de uti possidetis juris ao Tratado de Madrid, em 1750, foi completado por Rio Branco 103 e seus sucessores, que se empenharam em resolver as divergências menores que ainda surgiram, inevitavelmente, na nossa extensíssima linha de fronteiras. Na condição de professor de História da Formação Territorial do Brasil para o Itamaraty, Cortesão foi um dos responsáveis diretos pela construção de uma narrativa sobre a formação do território brasileiro, destacando a ação de homens de Estado – militares e diplomatas – que teve ainda o mérito de se fazer representar sob a forma de um conteúdo cartográfico, importante ao projeto de construção de uma Nação ligada a um espaço efetivamente identificado como seu. A ideia de “Ilha Brasil” aponta assim para o uso da cartografia como para a construção do conceito de “unidade do espaço brasileiro”, conforme definido por Peixoto

101 Sobre o trabalho desenvolvido por Cortesão no MRE, ver Renato Amado Peixoto, “O Modelo e o Retrato” e “A Máscara da Medusa”. 102 Segundo Peixoto (Ibdem, p. 194) Alexandre de Gusmão foi referenciado por Cortesão, em 1942, como “precursor de James Monroe, [...] pai da diplomacia nacional e como o precursor da geopolítica brasileira”, definindo em larga escala a importância histórica do diplomata do século XVIII, que dessa forma seria visto dentro das estruturas do IRB, fundado em 1945, e na ESG, fundada em 1949. A mesma projeção seria conferida à figura de Rio Branco, tido por Cortesão como “continuador da obra pan-americana de Gusmão e “finalizador” da formação territorial do Brasil (Ibdem, p. 203). Nessa segunda instituição o ideal do “monroísmo” seria moeda corrente nos conteúdos dos cursos ocorridos no decorrer da década de 1950, especialmente aqueles que defendiam a perenidade das relações entre o Brasil e os Estados Unidos e sua continuidade como esteio para uma aliança em tempos de Guerra Fria. 103 A questão da continuidade do trabalho de Gusmão, em seus “princípios”, por Rio Branco foi afirmada por Cortesão como lição àqueles que dedicariam suas vidas à Diplomacia. (PEIXOTO, 2015, p. 51)

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(2005, p. 72), a partir de uma projeção territorial que se estenderia da bacia do Prata à do Amazonas, em uma dinâmica de expansão que ocorreu continuamente desde o século XVI. O autor nos aponta que o século XVIII, a tarefa de superação dos limites impostos por Tordesilhas em 1494, estaria quase completada. “Unidade territorial” e “espaço nacional” seriam elementos passíveis de discussão a partir da noção de que existia uma Nação e que ela tornara real um espaço antes apenas “idealizado, desejado e possuído” 104. A ideia de “Ilha Brasil”, enfim, é reportada como base para a argumentação desenvolvida por Mário Travassos, que seria reconhecido como idealizador de um Brasil como potência regional ainda na década de 1930, proposta fundamentada na ideia da existência de uma oposição geográfica entre as partes continentais sul-americanas que se voltavam para os oceanos Pacífico e Atlântico, separadas então pela cadeia de montanhas dos Andes105. Enquanto possuidor de um território que se espraia rumo às regiões amazônicas e de um litoral que estende sua face sobre o Atlântico Sul, desde o Amazonas até o Prata, o Brasil ocupa uma posição geopoliticamente privilegiada, que lhe permitiria estabelecer suas perspectivas de projeção de influência e poder sobre a América do Sul, posição que seria reivindicada nos argumentos esguianos. Deve-se considerar, no rol da produção intelectual voltada aos conhecimentos geopolíticos, que tais ideias perfaziam um arcabouço teórico que se fez presente no meio acadêmico, no meio militar e no meio diplomático, como se pode perceber nos trabalhos desenvolvidos na década de 1950 na própria ESG, caso de Golbery, e no IRB, onde atuaram figuras como Jaime Cortesão, Everardo Backheuser e Delgado de Carvalho 106. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A formulação de uma Geopolítica do Brasil mediante o trabalho desenvolvido na ESG refletia as exigências do cenário internacional daquela época, que evidenciava, perante os homens das Armas, da Diplomacia e de outras áreas estratégicas ao desenvolvimento e segurança do país, que o Brasil deveria investir nos caminhos apontados pelos estudos desenvolvidos na Escola, que era a responsável pela condução de um projeto pedagógico

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Ver Peixoto, 2005, p. 95. Ibdem, p. 111. 106 Ibdem, p. 111. 105

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voltado à formação de uma elite dirigente já ciente dos problemas nacionais e das possibilidades que se abriam para a sua resolução embasadas na adoção das diretrizes delineadas pelos estudos geopolíticos. Àquela época, que compreendeu o período durante os quais foram construídos os textos que integraram o livro Geopolítica do Brasil, tal didática se identificava também com o ideal de projeção internacional do Brasil e do seu fortalecimento no processo de consolidação do ideal do pan-americanismo e da atuação do país em escala mundial, conforme a ‘Teoria dos Hemiciclos’ apontada por Golbery. Ao identificamos uma narrativa historiográfica esguiana voltada à fundamentação da teoria geopolítica, não se deve deixar de anotar que tal trabalho não ocorria de forma isolada, entendida assim como a narrativa construída e utilizada em torno das perspectivas de interesses de Estado. Outra instituição, o MRE, desenvolvia seus próprios cursos107 que possuíam relações diretas com os interesses correntes à época, associando-os à própria história da formação territorial do Brasil. Nessa perspectiva, podemos entender que tal processo refletiu o instável e complicado contexto das relações no cenário panamericano e internacional antes e depois da Guerra Fria, bem como as convulsões e mutações da política interna e serviu, simultaneamente, à recomposição da agenda do Brasil nas relações internacionais e ao resgate do papel dos diplomatas na sociedade, por meio da reativação de sua participação na invenção da Nação e na organização do Estado. (PEIXOTO, 2015, p. 50) Se partirmos da premissa do entendimento de como a ESG funcionava em termos pedagógicos, um ponto fundamental seria o entendimento da educação geopolítica ali desenvolvida, com uma ênfase elevada na questão das Relações Exteriores que colocava a Escola em um forte processo de conexão com o MRE. Tal dinâmica, no entanto, estava distante de ser uma novidade histórica. O que ela conseguia demonstrar era que o que se fazia nessas instituições tinha muito a ver com algo que já vinha sendo produzido desde os séculos XVIII e XIX. A prática apontava desde aquela época para a ação de homens e instituições dentro do Estado, operando com certa autonomia e tentando produzir uma visão de Brasil e de mundo para o Estado. O que a historiografia esguiana aponta é que os ONPs discutidos e definidos

Peixoto aponta os cursos de História da Cartografia e o de História da Formação Territorial, ambos por Jaime Cortesão, no MRE, nos anos 1940. 107

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pela ESG já vinham sendo tratados, na prática, desde a década de 1820, pelo Visconde de São Leopoldo, antes mesmo da fundação do IHGB e com fundamento em processos ocorridos ainda na metade do século anterior, por meio da atuação de Alexandre de Gusmão durante a feitura do Tratado de Madrid. Tudo isso se articula em uma lógica que aponta ser a ESG apenas uma das etapas de um longo processo histórico onde a Escola e outras instituições pensaram o Brasil e de como usaram o conhecimento nelas produzido em seu favor e em favor do Estado. Percebidos assim dessa forma, os ONPs da ESG ganham outro sentido, permitindo separar Estado (algo permanente) de Governos (passageiros). Era uma tradição do Estado brasileiro, que remonta ao século XIX, que nesse momento está sendo incorporado em um outro formato, que é a ESG, dentro das características dos cursos de guerra. Nesse sentido, entendo ser equivocada a ideia de que a ESG se propunha a apenas formular e organizar um pensamento ideologicamente identificado com uma tendência de direita. Ela se propunha, sim, a organizar os ONPs, bases de uma doutrina de Estado fundamentada em determinados paradigmas, tal como também era defendido em suas congêneres, como o NWC, dos Estados Unidos. A ESG se filiou, então, a um legado, identificado nas figuras de Alexandre de Gusmão e do Barão do Rio Branco108, em que o interesse de Estado lastreia as instituições e os homens que as compunham, princípio que se materializou na forma dos currículos e conteúdos que nortearam os cursos e as palestras proferidas na ESG, no MRE e na ECEME.

Leopoldo e Rio Branco figuram como pares no panteão do IHGB como “Presidentes Perpétuos”. O primeiro, inclusive, foi o fundador do Instituto. (PEIXOTO, 2005, p. 399)

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CAPÍTULO III

Os conteúdos do Curso Superior de Guerra e o livro Geopolítica do Brasil “Os valores são uma das grandes forças que agem sobre as comunidades humanas. São ideias, ou sistemas de ideias pelos quais [...] o homem está pronto para sacrificar seu interesse pessoal. ” (DUROSELLE, 1992, p. 178)

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7 O CURSO SUPERIOR DE GUERRA E “GEOPOLÍTICA DO BRASIL” Um trabalho que tente entender a ESG a partir dos seus currículos e da forma como seus conteúdos eram apresentados aos estagiários que ali frequentaram seus cursos, deve partir da premissa de que era grande e pretensioso o desafio ao qual se lançaram os homens que construíram a Escola e o conhecimento que dela resultou. Tal premissa decorre da noção de que uma efetiva preparação de um país para possíveis conflitos armados deveria ser precedida de uma preparação que transcendesse a mera mobilização de efetivos em que não houvesse uma planificação que mobilizasse os recursos nacionais. Nesse sentido, acredito que o processo de profissionalização do Exército por meio da qualificação dos seus quadros tenha encontrado na fundação da ESG a sua resposta mais bem elaborada, em se levando em conta a dinâmica iniciada em princípios do século XX, que ficou marcada pela Missão Francesa”, da qual decorreu as mudanças no Exército. Anos depois, o engajamento do Brasil no bloco dos Aliados na Segunda Guerra Mundial seria a pedra angular da transformação de paradigmas do pensamento militar no tocante à questão da preparação do alto oficialato das Forças Armadas. A ligação efetiva dos comandantes dos efetivos militares nacionais com seus equivalentes estadunidenses propiciou as mudanças que efetivamente direcionaram a formação profissional militar para outro nível, qual fosse a ligação entre essa formação e a necessidade de moldá-la em perspectivas curriculares. Estas deveriam apontar para o uso de conceitos e práticas que sintetizassem a construção de uma Doutrina de Segurança Nacional, a partir da existência da ESG e do que ela preconizava como elementos necessários à aplicação efetiva dos conteúdos constantes em seus currículos. Não se pretende entrar aqui em uma discussão teórica a respeito das definições existentes a respeito dos currículos, sua elaboração e efetivas formas de realizar aquilo que eles dispõem como objetivos. Antes, apenas utilizar elementos constantes do currículo esguiano como referência para que se perceba a conexão entre eles e o pensamento desenvolvido por Golbery e, de como isso se traduzia efetivamente em instrumento para a formação teórica e adequação de todo um aparato profissional, militar e civil, em torno das possíveis soluções para as demandas nacionais ali identificadas a partir das discussões oferecidas à análise do corpo da Escola, professores e estagiários. Ferraz (1997, p. 31) explica que nos primórdios da ESG a diferenciação entre “conferencistas e estagiários” era mínima, não existindo sequer aulas, naquilo que o termo pode designar, mas antes palestras e conferências. Segundo ele, cabia ao Corpo Permanente,

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que era formado pelo Comandante da Escola, um corpo de assessoramento formado por oficiais das Forças Armadas e um representante do MRE, que se encarregava de definir os programas curriculares e de que forma estes seriam conduzidos para os estagiários. O problema ao qual esse capítulo se propõe a debater diz respeito, então, ao alinhamento do conhecimento produzido pela ESG às teorias defendidas por Golbery em seu livro “Geopolítica do Brasil”, com vistas à resolução das demandas identificadas a partir dos pressupostos estabelecidos pelos estudos, que se iniciavam, dentro de um planejamento prévio de um determinado ano letivo com vistas ao ano seguinte, sempre levando-se em consideração a abordagem de todos os elementos necessários à realização plena do Poder Nacional e de sua efetiva aplicação nos âmbitos interno e externo dos interesses do Estado. Chamo a atenção, por fim, de que os temas aqui abordados, devem ser entendidos numa perspectiva de análise nos dois capítulos a seguir, no sentido de constarem como motrizes da construção de um conhecimento geopolítico justificado por uma historiografia desenvolvida pelos responsáveis pela construção do saber esguiano. A Escola, então, se constituiria como ponto de difusão de toda uma retórica que se apropriava da capacidade discursiva dos seus membros e da instituição em si, em prol da concretização dos ideais traçados na Doutrina. 7.1 Tasso fragoso e a Escola Superior de Guerra, 1968 Em sua conferência à ESG em março de 1968, o seu então comandante, o General de Exército Augusto Fragoso fez um apanhado da história da Escola entre os anos de 1949 a 1967, traçando as linhas gerais de sua evolução institucional, descrevendo os cursos ali ministrados àquela época e as diretrizes para aquele ano específico. O espaço de tempo decorrido compreende um período que abrange desde a fundação da ESG até a data em que foi editado o livro Geopolítica do Brasil. Nesse meio tempo, a Escola possuiu quatro Regulamentos, que entraram em vigor nos anos de 1949, 1954, 1961 e 1963, todos voltados à manutenção do “espírito da Escola”, o que fosse a manutenção do foco “nos estudos e pesquisas de feição doutrinária relacionados com a Segurança”, conforme definiu Fragoso (1969, p. 11). Segundo ele, os regulamentos da ESG até 1967, foram: 1 – O Regulamento de 49 (General Obino), aprovado pelo Dec. 27.264, de 28 de setembro de 1949, assinado pelo Gen. Salvador César Obino, Chefe do EMFA. Aprovado no

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Governo Dutra, determinava que a Escola obtivesse “uma convergência de esforços no estudo e solução dos problemas de segurança nacional”, por meio de: a) “um método de análise e interpretação dos fatores políticos, econômicos, diplomáticos e militares que condicionam o conceito estratégico”; b) “um ambiente de ampla compreensão” entre os integrantes da Escola “de forma a desenvolver o hábito de trabalho em conjunto e de colaboração departamental”; c) “um conceito amplo e objetivo de segurança nacional” que servisse de base à coordenação de ações de todos os órgãos, civis e militares, responsáveis “pelo desenvolvimento e pela segurança”, “pelo desenvolvimento do potencial e pela segurança do país”; 2 – O Regulamento de 54 (General Fiuza) aprovado pelo Dec. 35.187, de 11 de março de 1954, assinado pelo Gen. Fiuza de Castro, Chefe interino do EMFA. Aprovado no Governo Vargas, dos quatro aqui relacionados foi aquele de maior vigência. Recomendava, então: a) “a sistematização da análise e interpretação dos fatores políticos, econômicos, psicossociais e militares que condicionam a formulação de uma política de segurança nacional”; b) “o desenvolvimento do hábito do trabalho em conjunto visando à efetiva colaboração entre os diferentes setores ligados aos problemas de segurança nacional”; c) “a difusão de um conceito amplo e objetivo de segurança nacional, que servisse de base à coordenação das ações de todos os elementos, civis e militares, responsáveis pela formulação e execução da política de segurança nacional”. 3 – O Regulamento de 61 (General Cordeiro) aprovado pelo Dec. 50.352, de 17 de março de 1961, assinado pelo Gen. Oswaldo Cordeiro de Farias, Chefe do EMFA. Aprovado no Governo Jânio Quadros, foi dos quatro aquele de menor vigência, entre março de 61 e dezembro de 63. Determinava, reafirmados “os princípios da democracia brasileira”, que se viessem à: a) “discutir e difundir conceitos amplos e objetivos sobre aspectos doutrinários da Segurança Nacional”; b) “promover e realizar estudos e pesquisas sobre assuntos de interesse para a Segurança, tanto doutrinários como conjunturais”; c) “estudar e ensaiar a metodologia de formulação e desenvolvimento de uma Política de Segurança Nacional, inclusive a respectiva técnica de planejamento”

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4 – O Regulamento de 63 (General Motta), aprovado pelo Dec. 53.080, de 4 de dezembro de 1963, assinado pelo Gen. Oswaldo de Araújo Motta, Chefe do EMFA. Aprovado no Governo João Goulart, repetia integralmente “o artigo do regulamento anterior que fixou a orientação geral da Escola e enumerou suas tarefas específicas”. Nele se determinou que a Escola fosse tornada órgão da Presidência da República, embora diretamente subordinada ao EMFA, como ocorria desde 1949. (FRAGOSO, 1969, p. 13-14) É necessário expor uma noção dos regulamentos da Escola na medida em que estes definiam as linhas gerais dos objetivos que iriam nortear a condução do processo letivo. Um elemento, no entanto, se destaca dentro do rol de possibilidades que poderiam orientar ou reorientar os estudos ali desenvolvidos. Fragoso determinava que a “Evolução da Escola”, quanto à finalidade geral, conforme fixado na Lei de 49, seria o “desenvolvimento e consolidação de conhecimentos necessários ao exercício de funções de direção e planejamento da segurança nacional” (1969, p. 12), o que naturalmente a ligava ao campo da Doutrina. Já a finalidade da ESG quanto à sua estrutura geral, importante para o funcionamento da instituição em torno dos fins aos quais de propunha, mantinha dois elementos imutáveis no decorrer dos primeiros vinte anos de sua existência. Seriam eles: a) “a existência do Departamento de Estudos”, como “órgão centralizador da execução de todos os estudos a cargo da Escola”; b) “a participação, na direção geral dos estudos, dos três Ministérios Militares e do Ministério das Relações Exteriores”, denominados por Fragoso como “os quatro Condôminos da Casa”, que designavam Assistentes ao Comandante da Escola, “um Oficial-General de cada Força e um funcionário do Itamaraty, de categoria equivalente”. (FRAGOSO, 1969, p. 12) Isto posto, entendo a continuidade dos conteúdos dispostos nos cursos da ESG dentro do princípio de manutenção dos estudos geopolíticos como a base para os fins ali delineados. Não me foi difícil rastrear algo nesse sentido, pois são comuns trechos de documentos emitidos pela Escola que se aplicam à ideia de formatação do modelo esguiano de pensamento e que funcionariam como norteadores dos trabalhos ali desenvolvidos. Nesse sentido, aponto o General Augusto Fragoso, que declarou a questão da continuidade do trabalho de formulação do conhecimento ocorrido naquela instituição de ensino. Dizia ele do “papel da Escola no meio brasileiro”, conformada para a construção de um saber configurado na doutrina a partir da premissa de uma sequência “coerente e lógica

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[...] mantidos, em cada estágio alcançado, liames racionais de conformidade com o estágio anterior” (1969, p. 8) Ao comentar os cursos que eram ministrados na ESG, ele chamou a atenção para o artigo 4º da Lei que criou a Escola. Estava ali disposto que “o encargo de fixar os cursos” da instituição caberia ao Poder Executivo, que os definiria de acordo com as necessidades do Estado. Entre 1949 e 1958, foram criados quatro cursos, todos “abertos indistintamente a civis e militares”, exceto o Curso de Estado-Maior e Comando das Forças Armadas, específico dos militares. Os cursos e suas respectivas datas de criação foram: a) O Curso Superior de Guerra, datado de 1949109; b) O Curso de Estado-Maior e Comando das Forças Armadas, datado de 1953; c) O Curso de Mobilização Nacional, datado de 1957110; d) O Curso de Informações, datado de 1958111. O Curso Superior de Guerra, o qual será objeto da minha análise, foi instituído em 1949, e tinha como currículo em sua fase inicial os assuntos constantes no Curso de Alto Comando para Oficiais das Forças Armadas, havendo os estagiários que frequentar a Escola por um prazo máximo de doze meses. Em 1954, com o novo Regulamento, o período letivo foi fixado em um prazo de 10 meses, tendo sido estabelecido que o Curso objetivaria 112: a) “o estabelecimento de uma Doutrina de Segurança Nacional”; b) “a formulação de uma Política de Segurança Nacional”; c) “a elaboração de uma Técnica de Planejamento para a Segurança Nacional”; Na sequência das atribuições regulamentares, foi determinado que os estudos do Curso Superior de Guerra (CSG) incluíam em seu currículo os denominados “Estudos doutrinários” e os “Estudos conjunturais”, que incluem a conjuntura interna 113 e externa, especialmente sob os aspectos que são relacionados à segurança nacional.

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Entre 1950 e 1967, ano da publicação de Geopolítica do Brasil, o Curso Superior de Guerra diplomou 646 civis e 630 militares, de acordo com Fragoso (1969, p. 18) 110 Funcionou somente em 1958 e 1959, tendo sido suspenso em outubro de 1959, pela própria ESG. Ibdem, 1969, p. 18. 111 Teve seu funcionamento suspenso pela ESG em 1960. Voltou a funcionar em 1966. Ibidem, 1969, p. 18. 112 Tal redação seria utilizada até 1961, quando foi criado novo Regulamento. Ibidem, 1969, p. 19. 113 Incluía uma análise da situação nacional no que dizia respeito “aos diversos setores da Administração Federal”, nos aspectos do seu planejamento e englobando aspectos políticos, econômicos, sociais e militares. Além disso, as atividades desenvolvidas pela iniciativa privada. Ibdem, p. 27

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A rigidez quase absoluta em termos de atribuições e regulamentos, acredito eu, foi um elemento fundamental para que se firmasse uma certa noção de continuidade do trabalho de formação intelectual dos estagiários da ESG, além do Curso Superior de Guerra. Isto pode ser conferido na palestra inaugural do Estágio de Revisão para os Diplomados do Curso Superior de Guerra de 1954, proferido pelo então presidente da ADESG, Major Brigadeiro Antônio Guedes Muniz, a uma audiência que incluía os mais altos postos das Forças Armadas à época. O objetivo do referido estágio, segundo Muniz, seria o de cooperar na atualização dos conhecimentos de diplomados pela ESG em anos anteriores. A revisão, dessa forma, obedecia ao artigo 48 do Regulamento da ESG e, naquele ano de 1954, abrangia os formados das turmas de 1950, 1951 e 1952, abrangendo 75 diplomados, “dentre os quais se destacavam um Ministro de Estado, o chefe do Gabinete Militar da Presidência da República, Generais de terra, mar e ar, Ministros e outros expoentes de várias carreiras civis e militares do Brasil”. A ideia de se realizar o estágio de revisão se enquadrava na “necessidade pedagógica decorrente da rápida evolução das doutrinas que se prendem à segurança e aos interesses nacionais”, sendo parte importante, dessa forma, do processo de formação que acometia os Estagiários da ESG, que tinham no evento a possibilidade de periodicamente obter interação com as atualizações dos temas que estudaram e que incorporaram às suas práticas profissionais, especialmente aqueles que ocupavam postos importantes na estrutura do Estado brasileiro. A programação do Estágio de 1954, a encargo do Corpo Permanente da ESG, definiu como tema, então, “a evolução dos conceitos de Segurança Nacional, de Poder Nacional e da técnica de planejamento”, possibilitando que se chegasse a “nova formulação para o Conceito Estratégico Nacional”, conforme realizado em 1953. Para Muniz (1954, p. 3), as conclusões dos estudos e debates entre os estagiários deveriam ser entregues ao 1º secretário da ADESG

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para que se fosse formulado um documento que tivesse valia para o

aperfeiçoamento dos futuros estágios na Escola.

A importância da ADESG para o processo de ramificação do pensamento esguiano de forma a ocupar espaço relevante na “cultura política brasileira” é trabalhado por Ferraz. A respeito disso, o autor faz a seguinte colocação: “As atividades da ESG, compostas de conferências, palestras, debates, demonstrações e trabalhos de equipe propiciaram, segundo seus membros, o sistema ideal para a elaboração e tomada de decisões na área das políticas públicas e privadas. Era com essa crença que foi organizada, ao final de 1951, a Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, a ADESG. Entidade privada, com personalidade jurídica própria, a ADESG visava manter o contato entre os ex-estagiários, bem como assegurar o estímulo aos hábitos de 114

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Essa noção de continuidade dos trabalhos realizados na ESG, ano após ano, também pode ser atestada na abertura do Programa Geral dos Trabalhos do ano de 1955, onde se encontra como objetivo a declaração de que o “Curso Superior de Guerra, prosseguindo, em 1955, na tarefa de consolidação dos ensinamentos resultantes dos estudos e trabalhos realizados na ESG em anos anteriores” (grifo nosso). Colocava-se ainda a ideia de que o “Desenvolvimento Geral” do curso de 1955 se daria enfatizando-se o “estudo e experimentação de uma técnica de Planejamento da Segurança Nacional”, de acordo com o realizado em 1954, ano anterior (grifo nosso). No sentido de manutenção das estruturas doutrinárias, uma terceira fonte se oferece para esclarecer um caráter de quase imutabilidade das ideias esguianas. O documento denominado “Métodos de Trabalho” relativo ao ano de 1956115, trazia apontamentos a respeito dos métodos de raciocínio para a resolução de problemas apresentados aos Estagiários no decorrer dos Cursos, enfatizando elementos como a discussão em equipe proveitosa a partir da preparação pessoal, geral e do dirigente do processo. No entanto, uma espécie de ressalva é feita, no sentido de orientador de uma unidade de pensamento. Afirmava-se que na ESG nada é imposto, todas as ideias devem ser discutidas, cada um deve ajuizar por si mesmo. É lícito divergir, embora certas noções, especialmente as de caráter doutrinário já assentadas pela ESG, devam ser consideradas como aceitas, para que os trabalhos possam desenvolver-se com unidade de pensamento e ação. (ESG, 1956b, p. 2)

Assim colocada a imutabilidade da doutrina em construção, ideia já sacramentada, os métodos de trabalho apontavam então para os meios que viessem a facilitar a “compreensão de um conceito amplo e objetivo de segurança nacional”, por meio de uma efetiva difusão dos saberes inerentes “ao exercício das funções de direção e de planejamento da Segurança Nacional, sistematizando-se, para tal fim os meios para o estudo e compreensão “dos fatores que condicionam o Conceito Estratégico Nacional” (ESG, 1956b, p. 2). A conferência proferida na Escola, segundo exposto nos ‘Métodos de Trabalho’ para 1956, representaria “apenas a opinião do autor”, não necessariamente expressando a opinião

cooperação entre civis e militares exercitados durante a permanência na ESG, além de estabelecer um sistema de cursos por todo o país e uma rede de cooperação nacional.” (1997, p. 32) 115 Ver ESG D – 02 – 56.

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da ESG, mesmo que o sumário fosse por ela estabelecido. A ressalva seria quanto “à exposição de pontos doutrinários já aceitos” (ESG, 1956b, p. 7). Enfim, o próprio Golbery reforçou a ideia de padronização e continuidade nos seus escritos. O texto Planejamento do Fortalecimento do Poder Nacional fora uma palestra proferida na ESG no dia 4 de maio de 1956, quando, como expôs, não mais pertencia “ao Corpo Permanente da ESG116”. Em suas considerações iniciais, o então coronel deixava claro que a ESG funcionava a partir do encadeamento de um trabalho de construção intelectual feito ano após ano, na sucessão dos Cursos de Guerra. A palestra aqui referida e o roteiro para ela estabelecido, segundo ele, “em nada” diferiam de palestra feita cerca de dois anos antes. Nesse sentido, percebe-se a manutenção de um padrão de pensamento essencialmente esguiano. A respeito dos cursos da ESG, Dulci (2006, p. 206) nos esclarece que eles “reuniam quadros muito qualificados, que ocupavam postos de comando não só no aparelho estatal, mas também na iniciativa privada”, em um regime de aulas que submetia o alunato a um regime de “dedicação exclusiva durante” o período de um ano, durante os quais se submetiam a uma rotina pré-estabelecida num esquema que distribuía palestras, trabalhos em grupo, visitas de campo e outras atividades, direcionando o foco pedagógico para o estudo de assuntos relacionados às questões nacionais e internacionais que estivessem em evidência e cujo impacto sobre a questão da Segurança Nacional fosse relevante. Já Puglia, por sua vez, explica que esse empirismo, apontado como “uma longa tradição positivista do Exército brasileiro”, tornou-se uma regra que orientava os trabalhos desenvolvidos na ESG. Para ele, muito além que um capricho, era na realidade “uma norma da própria instituição”, que se refletia na forma como se organizavam as conferências e demais trabalhos que eram propostos aos estagiários dos Cursos Superiores de Guerra. Comentando a maneira como se dispunham os currículos que continham os conhecimentos a ser estudados, o autor explica que o que se vê é um exaustivo levantamento de dados sobre o tema a ser tratado. Vê-se um conjunto de gráficos e tabelas, além dos mais variados números que buscam dissecar uma devida situação e consequentemente, apresentar as devidas soluções para os problemas. (PUGLIA, 2014, p. 153)

O Corpo Permanente, ao qual Golbery pertenceu, era composto por “civis e militares designados, em comissão, para os cargos da Direção da Escola e dos Departamentos de Estudos e de Administração”, tendo sido introduzido pelo Regulamento de 1954, em seu artigo 34 (FRAGOSO, 1969, p. 14). 116

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Evidentemente, os estudos de aspectos da sociedade e da economia nacionais demandariam o levantamento de dados sob tal natureza organizacional. Os elementos do Poder Nacional como, fatores econômicos, sociais e mesmo os militares, não poderiam ser entendidos sem estudos fundamentados na quantificação e qualificação dos dados. Já os estudos nas áreas política, alvo do nosso trabalho na medida em que são apresentados por meio de uma construção historiográfica, eram dispostos de uma forma diferente daqueles temas dados às tabulações e descrições técnicas ou científicas. 8 OS PROGRAMAS E CONTEÚDOS DO CURSO SUPERIOR DE GUERRA Naquilo que me foi possível acessar nos arquivos da Biblioteca da ESG, quando de minha pesquisa, obtive a descrição das estruturas de alguns currículos de anos letivos decorridos no período abrangido pelos textos que compuseram “Geopolítica do Brasil”. Embora o material não compreenda algum ano letivo além de 1957 – o livro de Golbery possui um texto datado de 1961 – estabeleci uma ponte com o discurso do General Tasso Fragoso, de forma a suprimir essa lacuna. Compreendo que foi assim mantido o raciocínio, de tentar identificar conexões e soluções de continuidade entre os textos de Golbery e os textos de palestras realizadas na Escola. Albuquerque (2011, p. 68 e 69) comenta a importância permanente do trabalho desenvolvido na ESG. Segundo expõe, a Escola ocupava-se dos temas tradicionais ao debate geopolítico nacional, em uma perspectiva que girava em torno de “três linhas principais de raciocínio”, quais fossem a integração do território, a “defesa das fronteiras terrestres” e a questão estratégica do Atlântico Sul. No entanto, deixa bastante claro que esse trabalho teórico derivou para a tomada de consciência, por parte dos condutores da política nacional, de que a Geopolítica efetivamente abria espaço para um leque de problemas que mostravam inerentes aos interesses do Estado brasileiro de forma atemporal, gerando “uma vigorosa agenda de políticas públicas orientadas para a dimensão interna e externa” que orientou sucessivos governos, civis e militares, chegando assim “aos tempos presentes”. A análise do currículo do Curso Superior de Guerra, em qualquer ano aqui elencado, nos coloca frente a uma vasta gama de assuntos, enquadrados nas mais diversas áreas que merecessem à atenção da ESG, no sentido de formulação de um quadro geral da situação interna e externa que serviria, em última instância, ao Estado brasileiro, para que se tivesse um norte para suas políticas nessas áreas. No sentido de que a Escola tinha por fundamento uma questão pedagógica voltada à formação de uma elite dirigente, não deixa de ser

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esclarecedor o pensamento de Duroselle, que coloca, respaldando a lógica acima, que aquele que “tem poder de decisão deve estar informado sobre a estrutura e a conjuntura interna de seu próprio país”. (1992, p.117). Daí a complexa gama de informações tratadas nos cursos da escola. A elaboração das diretrizes voltadas à realização dos objetivos traçados em nome da Segurança Nacional obedecia ao grande volume de informações, classificadas e aquilatadas por critérios qualitativos, quantitativos e técnicos. Nesse sentido, exponho a partir deste ponto de nosso trabalho, os principais elementos identificados em currículos e outros documentos ligados à organização e planejamento dos Cursos Superiores de Guerra nos anos abaixo identificados. Embora seja um apanhado que não constitui uma sequência perfeita, ano após ano, é possível confrontá-los com os escritos de ‘Geopolítica do Brasil’, com os textos das palestras e discursos proferidos na ESG e também com a descrição feita por Augusto Fragoso no já citado documento de 1969. 8.1 O Curso de 1954 O Currículo do Curso Superior de Guerra para o ano de 1954 traçava como objetivo para o seu 1º Período, de “feição doutrinária, o estudo dos fundamentos da segurança nacional e da técnica de formulação de um Conceito Estratégico Nacional 117”, tendo sido dividido em três ciclos distintos: o primeiro, de introdução ao Curso Superior de Guerra; o segundo, focado na Doutrina de Segurança Nacional; e o terceiro, que tratava da Técnica de Planejamento para a Segurança Nacional. (ESG, 1954a, p.3) Usando o currículo do ano de 1954 como parâmetro para o entendimento de como funcionava o Curso Superior de Guerra, no seu 1º Período, chegamos aos seguintes estágios, aqui denominados “ciclos”: a) O I Ciclo, Introdução ao Curso Superior de Guerra, tinha por finalidade “fornecer aos Estagiários os conhecimentos básicos indispensáveis à compreensão do trabalho da Escola e de seu Curso Superior de Guerra”, disponibilizando informações sobre o funcionamento da ESG e o desenvolvimento de suas atividades para aquele ano, bem para orientar como funcionaria o Departamento de Estudos e os métodos de trabalho

Tida por Golbery como a “diretriz fundamental” norteadora da estratégia nacional tendo por foco a realização dos Objetivos Nacionais (SILVA, 1981b, p. 251).

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inerentes ao Curso Superior de Guerra, expostos em conferências constantes no cronograma (ESG, 1954a, p.5-6). b) O II Ciclo, Doutrina de Segurança Nacional, tinha por objetivo dar “aos Estagiários os conhecimentos doutrinários básicos, indispensáveis ao estudo dos problemas de Segurança Nacional”, possibilitando assim que compreendessem o conceito de Segurança Nacional então vigente e de sua significação para a vida da Nação. Além disso, visava fornecer os meios necessários ao entendimento dos aspectos inerentes ao conceito de Poder Nacional, ao conceito de Guerra Total – inclusive a “Guerra Fria” – e seus princípios estratégicos, além do problema da mobilização nacional, em seus distintos aspectos (ESG, 1954a, p.11-12). c) O III Ciclo, Técnica de Planejamento para a Segurança Nacional, tinha por finalidade dar aos Estagiários “o conhecimento da técnica de formulação de uma política de segurança nacional”, permitindo que absorvam a “ideia do planejamento governamental, o domínio do Conceito Estratégico Nacional” e de como seria formulado. Além desses, também o conhecimento dos meios de concepção das “Diretrizes Governamentais e o estudo de noções fundamentais sobre Áreas Estratégicas e os estudos estratégicos de áreas, por meio de conferências e um debate especial” (ESG, 1954a, p.51-52). Para o seu 2º Período, denominado “Análise da Conjuntura: Introdução e Conjuntura Internacional”, o Curso Superior de Guerra de 1954 determinava, para o seu IV Ciclo, “atualizar e sistematizar, do ponto de vista da Segurança Nacional, os conhecimentos dos Estagiários sobre a Conjuntura (Internacional e Nacional)”, capacitando-os, inclusive, à realização de reajustes ao “Conceito Estratégico Nacional formulado em 1953” (ESG, 1954b, p.1). O Ciclo IV do 2º Período do ano de 1954, exposto por meio de debates e conferências, compreendia: d) A “formulação dos Objetivos Permanentes, à luz dos quais deverá ser feita toda a análise da Conjuntura”; e) O entendimento da Conjuntura Internacional, compreendendo a análise “dos panoramas mundial, continental e sul-americano da atualidade”; f) O entendimento da Conjuntura Nacional, mediante a apreciação dos seus aspectos “geográficos, psicossociais, econômicos, políticos e militares”. (ESG, 1954b, p.1-2)

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Os pontos a debater inerentes ao Ciclo IV eram explicitados em uma longa relação de elementos que se pretendiam resumir em um único tópico denominado “aspirações e interesses nacionais (Objetivos Permanentes do Brasil)”, os quais se voltavam para o entendimento da “formação de uma consciência nacional, através da evolução histórica do povo brasileiro”. Os assuntos ali expostos eram:

O reconhecimento e a afirmação progressiva de aspirações e interesses de ordem interna e externa – o sentimento da unidade nacional, as tendências desagregadoras do regionalismo118, as reações centralizadoras e o equilíbrio da fórmula federativa; o nativismo, o espírito de independência política e o ideal de independência econômica; as ideias republicanas e o liberalismo econômico, a cooperação entre classes, o paternalismo estatal e o bem-estar social, o dirigismo econômico; a consciência da soberania nacional e a tese da igualdade jurídica dos Estados no concerto mundial; o dever da manutenção da integridade territorial e a tradição da solução pacífica dos conflitos internacionais; a projeção continental do Brasil e os interesses nacionais nas bacias do Amazonas e do Prata; o pan-americanismo e a compreensão das afinidades entre o Brasil e os EUA; a projeção mundial do Brasil – posição no âmbito das organizações internacionais e em face de conflitos mundiais; os destinos atlânticos do Brasil, ressaltando, em particular, a expressão desses interesses e aspirações através das Cartas Constitucionais brasileiras e da definição de atitudes ou compromissos assumidos no campo internacional (ESG, 1954b, p.7-8).

Além desses pontos, o Ciclo IV propunha-se a debater os Objetivos Permanentes e, sua ordem interna e externa. Indo para a análise da Conjuntura Internacional, dentro da perspectiva de um “Panorama Mundial da Atualidade”, os pontos que seriam alvos de debate: a) “O antagonismo entre o Ocidente e o Oriente”, percebido diante do “processo de polarização” entre os EUA e a Rússia; “os blocos ocidental e oriental, seus componentes, elementos de força e vulnerabilidade, dissensões internas; perspectivas de evolução”. b) “O sistema mundial de segurança coletiva (ONU), em suas características, significação e realizações efetivas; e a atitude dos países sul-americanos, em particular o Brasil”;

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Assunto sobre o qual Golbery voltaria a tratar na conferência ã ESG de 1981, sob o título de Sístoles e Diástoles da vida dos Estados (SILVA, 1981a, p. 5)

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c) Uma “síntese das principais tendências e aspectos políticos e econômicos” mundiais àquela época, inclusive em termos de “repercussões quanto ao equilíbrio de forças entre o Oriente e o Ocidente, particularmente, quanto aos interesses brasileiros”. (ESG, 1954b, p.13) A parte do 2º Período, IV Ciclo, em seu Anexo 2B, denominado “Análise da Conjuntura: Análise da Conjuntura Nacional – Fatores Geográficos e Fatores Psicossociais”, do Curso Superior de Guerra de 1954, determinava o estudo dos fatores fisiográficos do espaço brasileiro, buscando avaliar os pontos positivos e negativos do território em termos de extensão, forma e posição, compreendendo ainda o papel desempenhado pelas fronteiras terrestres e marítimas. Buscava-se, ainda, realizar uma “apreciação geral dos fatores geográficos enquanto elementos favoráveis e desfavoráveis à integração do território nacional”. (ESG, 1954c, p.4) O mesmo documento, no que dizia respeito aos “Fatores Psicossociais”, que seriam abordados em quatro conferências, se dispunha a debater: a) A “estrutura e dinâmica sociais do povo brasileiro” em função dos seus “grupos sociais (classes e estamentos)”, as “tensões existentes” e a “mobilidade social; as populações marginais; atitudes sociais das elites e das massas; formação e desenvolvimento da classe média”; b) “Raças. O preconceito racial; relações entre os grupos raciais; miscigenação”. c) “Línguas. Quistos étnicos; assimilação”. d) “Religiões. Influências sociais e psicológicas. Atitudes de seitas religiosas ante a defesa nacional”; e) “Populações urbanas e rurais. Diversificação psicossocial; grau de urbanização e de retardo cultural nas zonas rurais”. f) “Características psicológicas” (ESG, 1954c, p.9). Os pontos debatidos representavam a visão global da sociedade brasileira dentro das perspectivas traçadas pelos estudos geopolíticos. Os problemas e tensões derivados do nosso processo de formação histórica estavam assim presentes nos debates realizados na Escola. Dentro das perspectivas lançadas pelos choques entre as correntes políticas dominantes àquela época, a ESG buscava o entendimento mais aprofundado possível sobre a dinâmica que moveria a sociedade e de como ela estaria suscetível à infiltração de ideias consideradas subversivas.

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8.2 O Curso de 1955 O documento intitulado Programa Geral dos Trabalhos Para 1955 119, tinha em vista, essencialmente: a) “Rever e completar os conhecimentos necessários ao estabelecimento de uma Doutrina de Segurança nacional; b) Apresentar e desenvolver a técnica adotada para formulação de uma Política de Segurança Nacional; c) Rever e completar os conhecimentos necessários à elaboração de uma técnica adequada ao planejamento nos altos escalões governamentais, aperfeiçoando-a através de uma aplicação objetiva; d) Estudar, em suas linhas mestras, os diferentes aspectos do problema da Mobilização Nacional” (ESG, 1955a, p.1). Programa Geral dos Trabalhos amparava o Currículo para 1955, que em seu 2º Período elencava as seguintes questões a serem abordadas no tocante ao “Problema da Recuperação Moral do País: a família; a escola. Os meios estudantis”; eram ainda observados “os ambientes de trabalho e os círculos de recreação; os meios industriais, financeiros e comerciais; a administração pública; a Justiça”; na sequência, foi estabelecida a análise do “sistema policial; os costumes políticos; os meios militares; os meios de difusão e propaganda; as instituições religiosas”. (ESG, 1955b, p.81) É interessante observamos que as questões inerentes a esse 2º Período seriam objeto de uma análise feita por elementos do clero e, analisadas, especialmente, as questões familiares, econômicas, sociais e trabalhistas.

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Ver ESG D – 03 – 55.

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8.3 O Curso de 1956 O documento impresso pela ESG para o Curso Superior de Guerra de 1956 com o título “Informações Gerais” 120 tinha por objetivo a descrição da estrutura física da Escola e a estrutura organizacional dos seus cursos. O documento que passo a expor nesse momento elencava os seguintes elementos: a) A Escola Superior de Guerra, em termos de finalidade, organização, descrição do Departamento de Estudos e Cursos ali desenvolvidos; b) O Curso Superior de Guerra, em termos de finalidade, estagiários diplomados, evolução de Currículo, Currículo de 1956, métodos de Trabalho e Constituição; c) O Curso de Estado-Maior e Comando das Forças Armadas, avaliados os mesmos elementos acima descritos para o Curso Superior de Guerra; d) A vida escolar, assim classificados elementos como horário, quadro de trabalho, frequência, interrupção do Curso, diplomação, locais de trabalho, reuniões, uniforme e traje, salão de estar; e) Documentação, com seus indicativos121, distribuição, biblioteca, mapoteca, seção de periódicos e seção de sigilosos; f) Sigilo das informações, considerados a classificação dos documentos, reclassificação e salvaguarda de informações; g) A ADESG122; h) Assuntos administrativos; i) Anexos. Ele apontava em sua introdução “o planejamento para a Segurança Nacional” como sendo o “principal dever de um Estado”, sendo este dever, portanto, a função à qual a ESG se propunha em todos os seus fins. O momento pelo qual passava o mundo do pós-Segunda Guerra Mundial, marcado por “enormes dificuldades nas relações internacionais” derivadas

Ver ESG D – 01 – 56. Os “Indicativos” eram uma das principais características dos documentos da ESG, sendo caracterizados por 3 elementos: uma letra; um número de ordem na série; o ano da publicação (ESG, 1956a, p. 13). 122 A Associação dos Diplomados da ESG (ADESG) tinha por finalidades assegurar uma ligação permanente dos diplomados com a Escola e mantê-los “coesos no propósito de manter unidade de doutrina no estudo dos problemas relacionados com a segurança e o desenvolvimento do Brasil”, abarcando tanto os Estagiários do CSG quanto os do CEMCFA, tornados efetivos após a diplomação (ESG, 1956a, p.18 e 19). 120

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da aparentemente inconciliável divisão em dois campos oponentes levava então à plena ciência das questões referentes à soberania 123 e, em termos mais dramáticos, à luta pela sobrevivência. Daí a ênfase nas questões de Segurança e Desenvolvimento nacionais, decorrentes de todo um planejamento, literalmente imperativo, traçado nas dependências da Escola (ESG, 1956a, p. 1). A tarefa de organização da defesa nacional, enquanto “incumbência exclusiva das Forças Armadas”, estaria superado, conforme a nova ótica defendida na Escola, por um novo conceito que atribuiria “a todas as forças vivas da nação” tal responsabilidade. Segundo o que se defendia nas informações para o Curso Superior de Guerra de 1956, a questão da Segurança Nacional diz respeito à totalidade da Nação, que precisa, pelos seus dirigentes, pela sua elite e pela sua massa, compreender seu papel permanente, no conjunto de esforços de toda natureza, e imbuir-se da responsabilidade que lhe cabe, para que o país possa resolver, no caso de um conflito, os problemas relativos à sua própria sobrevivência. E não se pode perder de vista que a Nação, organizando-se para a guerra, está também se preparando para proporcionar vida melhor e maior bem-estar a seu povo. (ESG, 1956a, p. 2)

Naquilo que nos interessa, dois elementos se sobressaem nessa nova perspectiva sobre a Segurança Nacional: primeiro, que a ESG se colocava legitimamente como meio para a preparação da Doutrina, assumindo perante a Nação a responsabilidade sobre a condução de um o papel declaradamente extensivo a todo e qualquer elemento da sociedade brasileira. Segundo, a percepção de que, mesmo com quase uma década de funcionamento, a ESG ainda precisava reforçar seu trabalho no sentido de mobilizar o conjunto da elite nacional, civis e fardados incluídos, na missão de entender esse novo conceito como sendo aquele que deveria ser discutido e realizado. Essa tarefa se fazia urgente na medida em que esse conceito de “Segurança” agora defendido não seria ainda “compreendido pela maioria de nossa gente, no seio da qual predomina, ainda, a primitiva concepção’. (ESG, 1956a, p. 2)

“Oficialmente, não existe soberania superior à do Estado. Quaisquer que sejam suas particularidades, suas dimensões, sua posição geográfica e seu regime, todo Estado afirma a sua soberania” (DUROSELLE, 1992, p.92). 123

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De acordo com as Informações Gerais para 1956, a Escola seria “um instituto nacional de altos estudos, destinado ao desenvolvimento e consolidação de conhecimentos relativos ao exercício de funções de direção e ao planejamento da Segurança Nacional, buscando assim a obtenção de “convergência de esforços no estudo e equacionamento dos problemas” relativa a esse tema. Dessa forma, a ESG (1956a, p. 3) apontava que os meios para a consecução de tal ideia consistiriam: a) Da “sistematização da análise e interpretação dos fatores geográficos, políticos, econômicos, psicossociais e militares”, elementos condicionadores da construção da política de segurança nacional; b) O estímulo ao “desenvolvimento do hábito de trabalho em equipe”, de forma a possibilitar a criação de um ambiente pautado pela integração e colaboração “entre os diversos setores ligados aos problemas da Segurança Nacional”; c) A “difusão de um conceito amplo e objetivo de segurança nacional que sirva de base à coordenação das ações de todos os elementos”, fossem eles civis ou militares, integrados aos projeto de “formulação e execução da política de segurança nacional”. Dentre os órgãos que perfaziam a Escola, o Departamento de Estudos seria um elemento de destaque na medida em que centralizaria “todos os estudos e pesquisas” da instituição, com sua atuação essencialmente pautada pela busca do melhor aproveitamento possível no concernente aos resultados dos cursos ali ofertados. Esse Departamento seria responsável pela articulação dos trabalhos desenvolvidos por todos os integrantes do Corpo Permanente, militares e civis, que estivessem diretamente vinculados com “os estudos, ensaios e pesquisas da Escola”, no sentido de melhor prover os Cursos Superiores de Guerra e de Estado-Maior e Comando das Forças Armadas (CEMCFA)124, ali ministrados, “dos elementos necessários ao desenvolvimento dos respectivos currículos e velar pelo seu entrosamento e pela unidade de doutrina no âmbito da ESG”. (ESG, 1956a, p. 3) Como a minha proposta consiste de estabelecer as conexões do livro Geopolítica do Brasil de Golbery, com os Cursos Superiores de Guerra ministrados na ESG no decorrer da década de 1950, passaremos a focar a nossa atenção nesse sentido, embora fique claro que a

O CEMCFA tinha por finalidade a habilitação dos oficiais das Três Armas “para o Exercício de funções de comando, chefia e estado-maior de organizações e forças combinadas e aliadas”, além do estabelecimento de cooperação para a “experimentação, desenvolvimento e divulgação da doutrina brasileira de comando e estadomaior combinado” (ESG, 1956a, p. 8). 124

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atuação de palestrantes da ESG estaria direcionada a participantes dos dois distintos cursos, anteriormente citados. O Curso Superior de Guerra, então, tinha por finalidade declarada reunir civis e militares, agregados em torno do conceito de “elites”, em torno do objetivo de desenvolver os estudos associados aos problemas identificados com a Segurança Nacional, observados os interesses nacionais e visando: a) “Ao estabelecimento de uma doutrina de segurança nacional; b) À formulação de uma política de segurança nacional; c) À elaboração de uma técnica de planejamento para a segurança nacional nos altos escalões governamentais” (ESG, 1956a, p. 4). Até 1956, o Curso Superior de Guerra – que iniciara suas atividades em 1949 – diplomara seis turmas, totalizando 368 estagiários contados a partir de 1950, que vinham de procedências diversas que foram mapeadas entre membros de diversas instituições e órgãos do Estado brasileiro 125. Chama-nos a atenção o fato de que, além de uma natural maioria de estagiários oriundos das Forças Armadas, os civis agregados à carreira diplomática, como Ministros e Secretários, constituíam a segunda maior leva de integrantes 126 no decorrer desses anos. No período acima apontado o Currículo esguiano sofreu mudanças no sentido evolutivo, mas sempre com o objetivo central da própria Escola como força motriz. As turmas que ocorreram nesse espaço de tempo desenvolveram suas atividades de acordo com uma sucessiva definição de temáticas, assim elencadas: a) “1950: tomada de contato com a realidade brasileira; b) Em 1951: formulação, para efeitos didáticos, de um Conceito Estratégico Nacional, resultante dos estudos feitos sobre a nossa Conjuntura;

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Especificamente, membros do Congresso Nacional (20); Magistratura Federal (4); Oficiais Generais e Oficiais Superiores das Forças Armadas (199); Ministros e Secretários de Carreira Diplomática (29); representantes dos Governos dos Estados (2); demais Ministérios Civis (52); Prefeitura do Distrito Federal (2); autarquias e órgãos subordinados diretamente à Presidência da República (19); associações de classes, inclusive de comércio e indústria (20); organizações culturais (15); e avulsos (6) (ESG, 1956a, p. 5). 126 Na realidade a terceira turma conta com 29 integrantes do MRE contra 52 elementos dos “demais Ministérios Civis”. No entanto, considerei o fato de que os membros da carreira diplomática estão todos agregados a uma única instituição, o MRE. Sozinho, portanto, ele possuía mais da metade dos estagiários pertencentes a outros ministérios civis.

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c) Em 1952: esboço das políticas a serem seguidas nos diferentes setores da atividade brasileira, como decorrência do Conceito Estratégico Nacional formulado; d) Em 1953: elaboração de uma Doutrina de Segurança Nacional e de uma técnica de Planejamento para a Segurança Nacional, com aplicação num ensaio de Planejamento para o Fortalecimento do Potencial Nacional; e) Em 1954: estabelecimento de uma Doutrina de Segurança Nacional e de uma Técnica de Planejamento para essa Segurança, e ensaio de Planejamento de uma Hipótese de Guerra; f) Em 1955: atualização dos conhecimentos necessários ao estabelecimento de uma doutrina de Segurança Nacional e de uma técnica de planejamento para essa segurança, e ensaio de planejamento para o fortalecimento do Potencial Nacional; exame, em suas linhas mestras, do problema da Mobilização Nacional127” (ESG, 1956a, p. 5 e 6). O Currículo para 1956128 por sua vez, organizado em três períodos distribuídos em um total de 40 semanas, era organizado da seguinte forma: a) 1º Período, com introdução “ao Curso e estudo teórico das bases de uma Doutrina de Segurança Nacional e da Técnica de Planejamento para a Segurança Nacional; b) 2º. Período, constando da “análise das Conjunturas Internacional e Nacional (fatores geográficos, políticos, econômicos, psicossociais e militares), estudo de Aspectos Particulares da Conjuntura Nacional (cooperação da ADESG), Estudos Militares Especiais (Art. 28 do Regulamento da ESG) e Visitas e Viagens de Estudo; c) 3º Período, como preparação “das bases e realização de um ensaio de Planejamento para uma Hipótese de Guerra continental.” (ESG, 1956a, p. 6) Um detalhe que chama a atenção na documentação daquele ano é existência de uma lista dos números de telefones disponíveis para os integrantes da ESG, que constavam nas Informações Gerais para 1956, e que trazia como singularidade o número para contato com a Missão Militar Norte-Americana, que estava disposto em meio a uma série de outros números, sendo todos eles de setores específicos da própria Escola. Tal fato é um indicativo da

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Seriam as ações que poderiam ser utilizadas pelo Estado como meio de superação de ameaças à Segurança Nacional. (FERRAZ, 1997, p. 93). 128 Ver ESG D – 03 – 56.

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frequência dos contatos entre a ESG e os militares estadunidenses instalados no Brasil em torno dos assuntos discutidos na Escola e inerentes aos entendimentos em torno do alinhamento brasileiro à ideia de uma aliança político-militar que envolvia os dois países129 (ESG, 1956a, p. 21). Voltando à questão curricular, o documento do Curso Superior de Guerra para 1956, apresentado em sua estrutura geral e objetivos traçados para seus diferentes períodos e respectivos ciclos, trazia, para seu 1º Período, de feição doutrinária, a seguinte divisão (1956, p. 1 e 2): a) O I Ciclo, que introduzia o as diretrizes do Curso, apresentava a ESG “no quadro da organização da Segurança Nacional e seus métodos de trabalho”; b) O II Ciclo abordava a Doutrina de Segurança Nacional e estava voltado para à sua compreensão e abordagem dos principais problemas vinculados ao estudo do conceito de Segurança Nacional, destacando-se os conhecimentos gerais a respeito do tema, o Poder Nacional em seus fundamentos geográficos, políticos, psicossociais, econômicos, militares, seus tipos de estruturas130 e suas limitações de ordem interna e externa, além do estudo da ação estratégica131; c) O III Ciclo, que abordava a Técnica de Planejamento para a Segurança Nacional, a partir dos “altos escalões governamentais”, discutindo especialmente “a metodologia para a formulação duma política de Segurança Nacional.” Observamos a ênfase, dada na estruturação do currículo, ao papel desempenhado pela ESG no processo de organização da Segurança Nacional e a síntese dos estudos até então ali efetivados e dos objetivos até então alcançados dentro da perspectiva do que fora proposto nos currículos dos anos anteriores. Os conceitos fundamentais a respeito das características

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Lucas Figueiredo ao escrever sobre a história dos serviços de Inteligência no Brasil, explicou que durante mais de uma década houve a permanência de uma equipe das Forças Armadas estadunidenses de forma a “ajudar na fixação da escola’. Afirma ainda que durante “duas décadas” houve a “manutenção de um oficial americano dentro de sua sede, na Fortaleza de São João, na Praia Vermelha” (FIGUEIREDO, 2005, p. 56). 130 Eram avaliados os conceitos de Estrutura (política, militar, econômica e social) vinculados à própria estrutura do Estado. Buscava-se também a compreensão dos conceitos de Totalitarismo (de direita e de esquerda), liberalismo e formas intermediárias, enquanto resultantes de processos de concentração e centralização do poder político (ESG, 1956, p. 28). 131 Compreendia os estudos das estratégias que deveriam ser aplicadas para a consecução das ações nos campos militar, econômico, político e psicossocial, sendo também observadas, por meio de conferências complementares, a organização militar e estrutura das forças armadas, brasileiras e estrangeiras (ESG, 1956, p. 5).

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essenciais do Estado-Nação, as implicações disso para a compreensão do Poder Nacional e sua importância nas relações internacionais e a “moderna concepção de guerra e a evolução do conceito de Defesa Nacional para o de Segurança Nacional” (ESG, 1956, p. 12). Quanto ao Poder Nacional e as suas ligações com os temas de Relações Internacionais em 1956, o Currículo do 1º Período (ESG, 1956, p. 14) destacava: a) “Os interesses e aspirações nacionais: sua cristalização na consciência nacional” frente os objetivos nacionais permanentes; b) “Os fundamentos do Poder Nacional”, avaliados o poder e o potencial de uma nação; c) O sistema das Relações Internacionais à época, avaliados em termos de realismo e idealismo políticos; d) Os antagonismos, avaliando-se as nações potencialmente agressoras e agredidas; e) Os “períodos de introversão e extroversão no comportamento das Nações” frente os Objetivos Nacionais Atuais. O papel desempenhado pelas doutrinas políticas sobre os interesses relacionados com a temática da Segurança Nacional, eram, assim, avaliados desde as suas raízes históricas, passando pela percepção do seu papel como “fator de estabilidade interna e de ação nas relações internacionais” e de sua influência sobre “os fundamentos do Poder Nacional”. Entendo que a ideia, naquele contexto da Guerra Fria, seria possibilitar a compreensão de como tais doutrinas enxergavam e se propunham a contribuir ou a solapar os elementos fundamentais à constituição plena do Poder Nacional e, por extensão, da Doutrina de Segurança Nacional voltada à sua realização. Assim, conceitos como “democracia, socialismo, sindicalismo, nacional-socialismo, corporativismo, comunismo e Welfare State” eram apresentados aos debates desenvolvidos na Escola. (ESG,1956, p. 19) 8.4 O curso de 1957 Em 1957 a ESG oferecia três cursos: o Curso Superior de Guerra (CSG); o Curso de Estado-Maior e Comando das Forças Armadas (CEMCFA); e o Curso de Mobilização

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Nacional (CMN), estando ainda em fase de gestação um quarto curso, de Informações Estratégicas132. Naquilo que me interessa analisar, especificamente o Curso Superior de Guerra, de onde foram extraídos os textos das palestras de Golbery que compuseram o livro ‘Geopolítica do Brasil’, o regulamento da ESG vigente naquele ano, em seus artigos 23 e 24, versava o seguinte: que seria ele o “curso de nível mais alto ministrado” naquela Escola, voltado ao desenvolvimento e consolidação dos “conhecimentos relativos ao exercício de funções de direção e ao planejamento da Segurança nacional, nos altos escalões governamentais”, tendo os assuntos ali versados, como objeto de estudos, “o estabelecimento de uma doutrina de Segurança Nacional, a formulação de uma política de Segurança Nacional e a elaboração de uma técnica de planejamento para a Segurança Nacional” (SECCO, 1957, p.3). 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de produção da espacialização entrevisto nos Cursos faculta a associação da ESG à ideia de um lugar onde se desenvolveu uma teoria voltada à estruturação do Estado com vistas à sua organização interna e a sua projeção externa. Vejamos: a “Geopolítica do Brasil”, na obra de Golbery e a geopolítica brasileira nos conteúdos dos currículos, foram organizadas sob uma didática que permitiu que a discussão e formulação continuada do conhecimento esguiano; sob a forma de uma bem estruturada organização e planificação dos temas; que derivasse para a melhor forma de ensino; que permitisse o planejamento do território nacional; que fosse finalmente definido a partir dos ONP’s.

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Essas nomenclaturas já não existem mais. O Curso Superior de Guerra é o atual Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE). Além do CAEPE, existem os seguintes cursos: Curso de Logística e Mobilização Nacional; Curso Avançado de Defesa Sul-Americano; Curso de Estado-Maior Conjunto; Curso de Gestão de Recursos de Defesa; Curso Superior de Defesa, o qual está inserido no CAEPE; Curso Superior de Inteligência Estratégica; Curso de Direito Internacional dos Conflitos Armados; Curso Superior de Política e Estratégia; e o Curso de Diplomacia de Defesa (De acordo com o Coronel Elias Leocádio da Silva Júnior, estagiário da ESG em 2015 e formado pelo CAEPE naquele ano, hoje Sub-Chefe do Estado-Maior do Comando Militar do Oeste Consulta feita em 10 de abril de 2016).

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A exposição de tal elenco de componentes curriculares e elementos normativos é o ponto de partida para que possamos fazer uma comparação entre estes, os escritos de Golbery e os textos preparados por outros palestrantes na Escola. Meu objetivo é a detecção de alguma mudança profunda no padrão temático dos assuntos por ele tratados e, quanto aos Cursos, determinar seu processo sua produção no decorrer dos anos e, estes em comparação aos textos de Golbery. É interessante levar em consideração a análise feita por Fragoso (1969, p.15-16) a respeito da evolução da conjuntura nacional e internacional decorrida entre os anos de 1948 e 1967. Compreende esse período, como já exposto, os primeiros vinte anos de existência da ESG, coincidindo a data final exatamente com o ano de publicação de Geopolítica do Brasil, por Golbery. No cenário político mundial, ele deu destaque aos seguintes elementos: a) “a permanência do antagonismo ideológico entre o Ocidente e o Oriente (o Mundo Livre e o Mundo Comunista)”, determinando os rumos das relações internacionais a despeito das modificações ocorridas nas áreas de influência das superpotências, da ocorrência da “coexistência pacífica” por força da intimidação nuclear e da eclosão de guerras revolucionárias que ameaçavam, “talvez, a própria sobrevivência do Mundo Livre”; b) O “desnível econômico” gritante entre as nações mais ricas e mais pobres do planeta, derivando para a definição dada pela Encíclica Populorum Progressio da coexistência imoral entre “os povos da opulência e os povos da fome”; c) A divisão do mundo entre países com e sem poderio nuclear armamentista; d) O nascimento de nações derivadas do processo de descolonização afro-asiático, “alvo prioritário da ação comunista internacional”; e) A ocorrência de um grande desenvolvimento “das técnicas modernas dos meios de comunicação social”, que propiciaram uma rápida difusão de informações, com fortes consequências “nos campos político e psicossocial”; f) A posição assumida pela Igreja Católica a partir dos pontificados de João XXIII e Paulo VI, da qual o Concílio Vaticano II seria o maior reflexo; g) O grande crescimento demográfico mundial; h) “a relativa inoperância da ONU e da OEA”, tidas por muitos analistas como instituições “alienadas e acadêmicas”;

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i) As diferenças tecnológicas que ocorriam entre as nações desenvolvidas da Europa Ocidental e os EUA, em desfavor dos europeus; j) A existência do regime comunista em Cuba, responsável pelo estímulo à revolta e subversão armada nos países da América Latina; k) A ocorrência da crise dos mísseis soviéticos, que quase resultou na deflagração de um conflito nuclear entre os EUA e a URSS; l) A situação política instável que ocorria em alguns países latino-americanos; m) Os problemas internos que os EUA enfrentavam, que exerciam forte influência “na política externa do país líder do Bloco Ocidental”. No que dizia respeito ao cenário nacional, Augusto Fragoso fez um resumo da conturbada situação política que marcaria a história do período conhecido como a República Liberal e que resultariam na “Revolução de 64”133, fazendo rápidas referências à sucessão de governos, à adoção do parlamentarismo, em 1961, e à derrubada de João Goulart. Chamo à atenção ao fato de que, enquanto todos os assuntos relativos à conjuntura internacional citados por ele estiveram na pauta das palestras dos Cursos Superiores de Guerra, aqueles que se relacionavam à conjuntura interna, especialmente na área política e que se referiam ao período de crise acima citado, não constam dos currículos esguianos aqui estudados. Entendo que isso, longe de ser uma omissão dos homens da ESG quanto aos assuntos de relevância para o país, mostrava que aqueles que faziam a Escola não consideravam a abordagem, em seus Cursos, das disputas e problemas inerentes ao cenário político nacional a eles contemporâneo, possivelmente como forma de manter a instituição afastada da emissão de posicionamentos ou opiniões dos cenários das crises, embora eu note que estivam conscientes da importância destes. Como existe um vasto acervo de “Documentos Sigilosos 134 ” que se encontram guardados no setor específico da Biblioteca da ESG e o acesso ainda é proibido aos pesquisadores, entendo que a sua revelação poderá, um dia, preencher essa lacuna sobre o que pensavam os formadores de opinião da Escola a respeito do que ocorria na política do Brasil àquela época.

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Definição dada pelo próprio Augusto Fragoso. Ver FRAGOSO, 1969, p.16. Classificados dentro de três categorias que obedeciam, em termos nominais, às denominações de “secreto, confidencial e reservado”, via de regra estavam atrelados à ideia de perigosos à Segurança Nacional ou de possíveis causadores de prejuízos às figuras da Nação, de governos ou mesmo de pessoas, conforme a descrição e destinação dada a eles (ESG, 1956a, p. 15-16).

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Todos os temas elencados por Augusto Fragoso em seu discurso de 1968 eram então aqueles que foram motivo das palestras proferidas por Golbery e demais instrutores que atuaram nas dependências da ESG entre 1951 e 1960, direta ou indiretamente. Esses temas na realidade seriam aqueles que foram organizados e estudados, em grande parte, com base numa argumentação que recorreu à historiografia sobre a política e suas implicações sobre a formação dos espaços, nacional e internacional. Adaptados ao conhecimento geopolítico gerado na ESG, acabariam tornados também temas de uma produção historiográfica própria à Escola. Estaria assim formalizada uma historiografia esguiana, no sentido de que a produção geopolítica possui como prática e discurso a abordagem sobre territórios e identidades. Esta produção historiográfica desencadearia o tratamento dos sentidos espaciais locais e também daqueles inerentes às relações internacionais lastreados numa argumentação que recorria à historiografia enquanto construía a sua própria visão dos fatos. A ESG, enquanto lugar institucional que foi elaborado para articular e disseminar determinado discurso mostrava-se assim também um locus de produção historiográfica e da espacialização.

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CAPÍTULO IV

A historiografia esguiana: a Geopolítica do Brasil e a Guerra Fria “de maneira menos doutrinária, (...) o interesse nacional é o que mais se aproxima do interesse da maioria, pois se opõe à vasta gama de interesses locais”. Duroselle (1992, p. 134)

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10 ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DO BRASIL A 1ª parte de Geopolítica do Brasil é composta por três textos denominados “Aspectos Geopolíticos do Brasil”, datados de 1952, 1959 e 1960. É uma fração da obra essencialmente dedicada ao estudo do núcleo duro da geopolítica, cujas ideias Golbery projetou sobre o território brasileiro. Nesses textos ele procede a meticulosa análise das características do espaço nacional, enquadrando-o em termos de perspectivas quanto às formas de como proceder para que houvesse o seu melhor aproveitamento em termos de realização dos ONPs. A partir deste capítulo procederei a uma exposição temática dos textos de Golbery. Isso me permitirá organizar o desenvolvimento do pensamento dele de modo a esclarecer os implementos de outros autores cujos trabalhos constaram dos CSG. O que defendo é que esses trabalhos não estavam isolados uns dos outros, mas ,havia uma conexão conceitual que levava, via de regra, à formalização de um raciocínio padronizado, exatamente o pensamento esguiano. Dentro do quadro geral da produção geopolítica nacional, Golbery é tido ainda como um pensador privilegiado que formulou um conhecimento no circuito de produção que teve a ESG como pivô e, que manteve diálogo com outras instituições do Estado, como nos casos da ECEME, ainda no meio militar, e do MRE, no âmbito civil, observados sempre os interesses estatais. Visto dessa forma, seu trabalho não deve ser enquadrado em uma perspectiva de pioneirismo. Antes, defendo que Golbery colocava em pauta um modelo de ação que já fora praticado por outros indivíduos relacionados a determinadas instituições de Estado e, que estes possuíam a noção e até mesmo a convicção de que seu trabalho intelectual daria suporte ao trabalho desenvolvido nelas. O CSG era organizado de forma que todo o plano de funcionamento, desde os currículos aos palestrantes responsáveis pela introdução e exposição dos assuntos pudessem se articular de forma metódica. Tal processo, como já exposto, era coordenado pelo Comando da ESG em articulação com oficiais das Forças Armadas e um representante do MRE. Os temas eram então expostos de acordo com a relevância que possuíam frente os problemas mapeados para a composição do Curso, ano após ano, em um claro processo de encadeamento de ideias. A proposta, após a análise da organização da Escola e da composição dos componentes curriculares gira então em torno da ideia de que é possível estabelecer uma relação direta da Geopolítica com a História na medida em que posso afirmar que a historiografia pelos estudos geopolíticos gerada me permite compreender a história política.

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Para tal empresa, relacionei os textos de Golbery que compõem Geopolítica do Brasil com os textos produzidos para as palestras proferidas na ESG à mesma época. O objetivo foi o de identificar uma padronização de pensamento que se refletiu na narrativa historiográfica construída como esteio para os conhecimentos geopolíticos trabalhados nos Cursos. Golbery e a ESG, na prática, se complementavam em torno da produção geopolítica, davam respaldo um ao outro tendo em vistas a formatação de um determinado saber sobre o espaço nacional135. Nesse sentido, foi possível estabelecer um esquema para a apresentação dos problemas inerentes à Geopolítica do Brasil, que assim compreenderia, em uma ordem progressiva, uma perspectiva de projeção geopolítica do Brasil, tendo como pano de fundo a Guerra Fria: a) A Geopolítica do Brasil, analisada na perspectiva de segurança e desenvolvimento mediante a formulação de uma DSN frente à ameaça comunista; b) O Pan-Americanismo e os sistemas de segurança coletiva, colocando em pauta a importância do Brasil em um contexto de Américas, vista a partir da ideia de projeção continental; c) A Teoria dos Hemiciclos, que situa a importância do Brasil em escala mundial, assim percebidas as suas relações com a África, a Ásia e a Europa. É importante ressaltar que a teoria geopolítica da ESG e de Golbery apontava para a relevância do conceito de Pan-Americanismo e se ancorava numa perspectiva da formação histórica do Brasil por motivação do Estado. Como já foi exposto, estava em pauta um conhecimento que já vinha sendo construído desde o século XIX nas dependências de instituições como o IHGB, conhecimento esse que em larga escala foi derivado das contribuições da “pátria-mãe”, Portugal, que será referenciada na produção esguiana. Golbery, então, adotou uma perspectiva narrativa que recebeu a influência do trabalho de Jaime

Mundim (2013, p. 182) apresentou a ESG como um “projeto teórico-político dos militares brasileiros”, essencialmente voltada à concepção de um determinado modelo organizacional para o Estado brasileiro. Afirmava ele que o trabalho intelectual desenvolvido na Escola, tornava os elementos ali atuantes, dentro de uma perspectiva valorativa, membros de uma “intelligentsia civil-militar”, tomando por base para tal construção o pensamento de Karl Mannheim, que atribuiu a determinados indivíduos a condição de responsáveis “pela criação de valores”, reduzindo-os à visão estratificada de produtores e divulgadores de uma visão de mundo com base nos interesses de uma determinada classe social. 135

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Cortesão, que era um dos mais importantes defensores de uma formação histórica do Brasil a partir daquilo que era entendido como Pan-Americanismo. Aplicado à Teoria dos Hemiciclos que foi defendida por Golbery, Cortesão pôde ser referenciado na ideia de um “Mundo Atlântico”, que se somava à necessidade de se pensar o espaço brasileiro em relação ao “Mundo Cristão Ocidental”, num contexto de Guerra Fria. O Brasil seria o herdeiro de uma concepção de mundo que fora heroicamente construída por Portugal durante as Grandes Navegações. Não existia, portanto, o problema de ter que se inventar uma justificativa cultural para o pensamento desenvolvido na Escola e, isso acabou por imprimir no conhecimento geopolítico ali trabalhado o conteúdo civilizatório, espiritual e humanista português136. Para que se tenha uma noção do impacto desse raciocínio sobre as concepções defendidas na ESG, basta reportar à importância do fator “segurança” para o Brasil e para o mundo do Ocidente, fator esse que foi pincelado Golbery em tons dramáticos no que dizia respeito aos possíveis destinos tomados pelo mundo caso a “loucura da guerra” viesse a aniquilar a civilização então existente no Hemisfério Norte. Destacando o poder atômico e sua capacidade de aniquilação como possível causa para tal acontecimento, ele desenhava a perspectiva de que houvesse a “transladação dos centros dominantes de cultura e poder, das paisagens originais para as zonas periféricas”. Caso o Brasil subsistisse ao hecatombe 137 , poderia assumir, por assim dizer, a responsabilidade de ser o guardião dos valores da civilização (SILVA, 1953, p.54).

Sobre a produção intelectual de Cortesão, ver “O Modelo e o Retrato”, Peixoto, 2015. “A confecção da bomba atômica reforçou consideravelmente a ameaça defensiva e enfraqueceu enormemente à ameaça ofensiva”. De certa forma, ambos os lados do conflito ideológico poderiam se sentir relativamente seguros, a despeito das possíveis crises diplomáticas, atritos e conflitos ocorridos em zonas disputadas como áreas de influência, como ocorrido, por exemplo, nas guerras de independência coloniais na África e na Ásia. (DUROSELLE, 1992, p. 147) 136

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11 DE 1952 A 1960, ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DO BRASIL Ao discorrer sobre A Geopolítica, a Estratégia e a Política138, Golbery expôs a angústia que o afligia no que diz respeito à situação do mundo sob os ventos turbulentos da Guerra Fria. Ele entendia que jamais será por demais repetir, por certo – e principalmente ao abordar tema ainda tão aberto às discussões filosóficas e ao entrechocar de ideias e de paixões – que vivemos, nos dias que passam, uma hora dramática da humanidade, com a transmutação radical e repentina de todos os valores e conceitos tradicionais (SILVA, 1981b, p.19).

Em síntese, ele traçava em poucas linhas a forma como enxergava o perigoso avanço das ideias que ameaçavam os valores por ele cultivados. Esse avanço, no seu entendimento, deveria ser combatido pela efetiva elaboração de diretrizes voltadas à anulação de tão nefasto inimigo, considerado assim uma ameaça a todos e à nação 139. Golbery demonstra a sua orientação teórica em termos geopolíticos fazendo uma dissertação apreciativa da corrente da “Geopolítica-Política”, fazendo os apontamentos das ideias centrais aos principais nomes da Geopolítica Clássica 140. Deixa claro, porém, que tais atributos inerentes aos estudos geopolíticos só terão validade, se forem conjugados à Estratégia e embasados em Objetivos Permanentes que “traduzam as aspirações e os anseios da consciência nacional”. Como tal, os Estagiários da ESG possuíam a tarefa de construir um conhecimento fundamentado numa consciência de nação que tinha por mérito objetivar a construção de um futuro embasado no planejamento sobre o melhor proveito a ser dado aos recursos materiais e humanos disponíveis, portanto, menos propenso aos desacertos do improviso. Nesse sentido, Castro (1951, p.1-3) destaca os potenciais elementos que configuram a força de uma nação, quais fossem os potenciais diplomático, econômico e militar.

Este texto de 1952 viria a ser integralmente reproduzido na palestra intitulada “Conjuntura Nacional: Aspectos Geopolíticos”, código C-37-54, datada de 26/05/1954, inclusive com os mapas e esquemas formulados por Golbery, então Tenente-Coronel. 139 Uma das maiores tragédias que caracterizariam a ação dos comunistas sobre um povo, seria a sua desnacionalização, resultado de uma tática que consistiria da substituição dos valores pátrios pelas ideias advindas da doutrinação ideológica de esquerda (GOMES, 1954, p.7) 138

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Os autores da Geopolítica Clássica são discutidos por Itaussu Mello, “Quem tem medo da Geopolítica?”.

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Comentando os pesos dos potenciais dentro de um contexto de guerra, discorreu sobre a importância do fator material enquanto “parcela primordial para a manutenção do equilíbrio moral e consequente atuação em proveito da vitória ou da derrota”. No entanto, “o fator humano” é o ponto fundamental da sua fala, pois “sem o valor e a vontade dos homens, a sua cultura e a sua perseverança e demais predicados físicos e morais que lhe são inerentes, jamais conseguiremos o material para a guerra141”. A preparação para a guerra deriva de um planejamento específico 142 , para uma hipótese específica. Essa seria a moeda corrente na ESG, a preparação da força militar da Nação mediante o acionamento de “todos os potenciais de forças nacionais”. Entendo que, àquela época, a “hipótese específica” se configurava claramente como a Guerra Fria e suas possíveis consequências para o Brasil caso se precipitasse um conflito convencional, aberto, entre os dois blocos contendores. Castro (1951, p.5) defendia então que as Forças Armadas brasileiras deveriam ter seu planejamento voltado à eventualidade de uma guerra e mantida a observância das contingências ditadas por três instâncias espaciais: seriam a civil, a interamericano e a extracontinental, sendo antes acordadas as ações diplomáticas e administrativas, estas especialmente relativas à área econômica. Acresceu-se ao planejamento das operações militares voltadas à defesa do território nacional, àquela época, um novo conceito, o de “Zonas de Defesa”, para o qual Castro (1951, p.7-8) alertava para a ainda pouca familiaridade dos militares com os elementos que o compunham. A despeito disso, trabalha com a necessidade de se trabalhar com vistas à “defesa total”, o que implicaria na inclusão de toda a extensão do território nacional frente a duas ameaças distintas: a externa, possibilitada pelo potencial militar de um inimigo estrangeiro; e a interna, essa caracterizada pela ação guerrilheira, pela sabotagem, propaganda adversa, enfim, a subversão por meio da ação da denominada “quinta-coluna”143. A ESG viria então a tentar resolver um problema para o qual vários pensadores já haviam alertado, no sentido da falta de consciência e de mobilização coletiva em torno dos

A avaliação feita por Horta (1955, p.18-19) das condições do contingente das Forças Armadas brasileiras em uma perspectiva de capacitação frente às características da guerra moderna colocava em evidência a necessidade de qualificação técnica e as dificuldades geradas pelas deficiências educacionais das tropas – “baixo nível cultural e o analfabetismo” – evidenciando, mais uma vez, o impacto dos problemas sociais e econômicos e do subdesenvolvimento para a concretização dos objetivos traçados na Escola. 142 O planejamento governamental compreenderia, dentro da doutrina adotada na Escola, os planejamentos políticos nos campos interno e externo, o psicossocial, o econômico e o militar (FREITAS, 1955, p. 3). 143 Termo que teve origem nas palavras de Franco, como forma de designar aqueles que, “infiltrados em Madri, apoiaram as quatro colunas do exército franquista” na tomada da capital da Espanha, em 1939. (AZEVEDO, 1999, p. 378-379) 141

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interesses nacionais 144. Oliveira Vianna (1999, p. 327) afirmou que “ao povo brasileiro sempre faltou uma consciência nacional, um sentimento consciente e profundo de sua finalidade histórica, de seu destino como povo”. A isso, a ESG apresentava como resposta a formatação de uma elite dirigente afinada com propósitos nacionais e conscientes da necessidade de se estender tal pensamento à sociedade como um todo. Fazia-se então um rigoroso estudo a respeito de uma série de elementos por meio dos quais os estudos geopolíticos realizam a aproximação entre o contexto político nacional e o contexto político internacional, relação essa que será tratada dentro das perspectivas existentes nos cursos da ESG. Na realidade consiste de se fazer entender como o Brasil se enquadrava nas diferentes situações que implicavam na formalização de satisfatórias relações políticas, econômicas, culturais, militares e quaisquer outras possíveis no universo das relações internacionais. Assim posto, aparecem em evidência dois conceitos fundamentais no pensamento desenvolvido por Golbery: primeiro, a análise do espaço, que seria a aplicação da Geopolítica ao campo interno, nacional; segundo, a estratégia de posição, que diz respeito às relações externas, especificamente na ótica militar, aplicada às questões inerentes à guerra, à defesa ou ao ataque145. (SILVA, 1981b, p.35) O estudo feito por Golbery das singularidades do espaço brasileiro, território “que nossos avós nos legaram” 146, traz uma descrição apurada das suas características físicas e demográficas. Tal estudo tem a finalidade de facilitar a prescrição de uma “manobra geopolítica para integração do território nacional”. Nesse processo, esclarece as relações entre

Era senso comum e argumento constantemente reafirmado aos estagiários do Curso Superior de Guerra, a ideia de que a criação da ESG derivara de uma necessidade. Secco (1957, p.1 e 10), afirmava tal contingência da criação de um centro de altos estudos que, integrando civis e militares, os levasse ao entendimento de que seus setores deveriam estar capacitados à “mobilização total para a guerra ou” para a “realização das aspirações sociais, políticas e econômicas do país”. Ele explicava que a necessidade “de habilitar uma elite civil e militar” visando a formulação de uma política de Segurança nacional decorria das próprias deficiências do país frente à sua extensão territorial e aos seus problemas sociais, econômicos e estruturais, que nos deixariam vulneráveis “tanto no campo interno como no internacional”. Era esse o impacto direto do “contraste existente entre nossa grande potencialidade e o fraco Poder Nacional”. Ver C1-06-57. 145 Horta define “Doutrina de Guerra como sendo o conjunto de princípios imutáveis das normas transitórias que servem de base à condução e à aplicação de todos os instrumentos de ação de uma Nação”, com o objetivo de realizar Objetivos Nacionais específicos, diante de oposições que se façam à sua realização. Dentre os fatores condicionantes à aplicação de uma doutrina militar, ele aponta os de ordem externa e interna. De ordem externa, se apresentam os “compromissos internacionais assumidos em função da política adotada” e “a interdependência crescente” entre as nações, fruto do desenvolvimento técnico; “a situação geográfica”, que muitas vezes determina a política adotada frente os vizinhos. De ordem interna, os fatores “geográficos, políticos, psicosociais, econômicos e militares”. (1955, p.8 a 14) 146 Ibidem, p. 38.

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conceitos aplicados ao estudo do território, como o “ecúmeno” (área habitada), com destaque para o triângulo Rio de Janeiro – São Paulo – Belo Horizonte, e o “Brasil marginal”, o “domínio”, a grande parte do país ainda desabitada, àquela época algo em torno de 2/3 do território, com baixíssima densidade demográfica. A sua incorporação e integração à nação seria o grande desafio. As referências à historiografia a respeito do processo de formação territorial do Brasil apontavam para a importância da manutenção de uma unidade territorial mínima, inicialmente demarcada pelo “minguado cárcere do meridiano de Tordesilhas”, passando à superação deste pela força da ação dos colonizadores e pelos argumentos da diplomacia. Nesse sentido, em Geopolítica do Brasil, Golbery (SILVA, 1981b, p. 68) aponta para a culminância desse processo justamente a “magistral obra política de Alexandre de Gusmão”, que encontraria eco posterior em Rio Branco, vetor “de uma intransigente, mas sempre hábil defesa do princípio do uti possidetis”, em um claro atestado de continuidade de uma ação focada em interesses de Estado, em épocas díspares da história nacional. A “manobra geopolítica para integração do território nacional” assim elaborada por Golbery, consistia: a) Da articulação da “base ecumênica” da projeção continental brasileira, estabelecendo a ligação entre as regiões Nordeste e Sul com o Centro-Oeste do país. Nesse caso, Golbery alertava para a necessidade de se “garantir a inviolabilidade da vasta extensão despovoada do interior pelo tamponamento eficaz das possíveis vias de penetração”; b) De se estimular a colonização rumo ao noroeste, “de modo a integrar a península centro-oeste no todo ecumênico brasileiro”; c) De se “inundar de civilização a Hiléia amazônica”, seguindo-se o Amazonas e seus afluentes e, daí rumar às zonas fronteiriças. De forma a conseguir-se a realização desse empreendimento, chamava ele a atenção à necessidade de se deter o fluxo de pessoas das zonas interioranas para as cidades, prendendo o homem ao solo por meio do estímulo ao desenvolvimento econômico, peça motriz, no seu entender, para a redução do “retardo cultural” que opunha “o sertão à cidade”. (SILVA, 1981b, p. 46-47)

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Também na linha de construção de argumentos historicamente fundamentados que embasassem os estudos da ESG, Mário Travassos147 (1953, p.5-7), teceu suas considerações a respeito do processo de ocupação do território nacional desde o período colonial até a República. Discorrendo sobre as características físicas do espaço brasileiro, em suas variantes morfológicas e climáticas, avaliou o impacto das diversas variantes econômicas nos ciclos de ocupação do território, a ação dos diversos tipos humanos que interagiram no decorrer das várias épocas por ele mencionadas e, em linhas gerais, quais foram as tendências políticas que sobressaíram em diversos momentos da história nacional. Tal análise, na verdade um esboço das “contingências geográficas” brasileiras, como a denominou, se prestaria ao esclarecimento do “verdadeiro sentido da posição geográfica do Brasil, as causas reais da pobreza demográfica do interior em relação ao litoral e o gigantesco desafio da Amazônia”. No seu entendimento, em termos práticos aos estudos desenvolvidos na Escola, teria por finalidade levar à conclusão de “como seria conveniente articular as peças geoeconômicas e políticas do Brasil, à procura de sua integração no âmbito continental e no quadro das ações extracontinentais”. Fazendo suas considerações a respeito da formação do povo brasileiro, Travassos (1953, p.13) ressaltava que a força da mestiçagem no decorrer da nossa formação histórica, nos recomendaria “fortemente para a vida moderna, especificamente do ponto de vista político, social e psicológico 148”. Deixava, no entanto, uma ressalva. Segundo ele, deixamos que a mestiçagem brasileira fosse levada à conta, exclusivamente, da miscigenação entre brancos e negros. Para os povos das Américas e do resto do mundo somos um povo apenas de mulatos, o que não corresponde à realidade do processo da colonização portuguesa e sua subsequente evolução através de variadas interferências étnicas, deram ao Brasil um homem por assim dizer plural, consoante a pluralidade morfológica e climática da terra.

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Em 1953, Mário Travassos era General de Exército. Nesse sentido, o então Presidente da Associação Brasileira de Educação, professor de sociologia da Fundação Getúlio Vargas e da Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio de Janeiro, professor Marcos Almir Madeira, destacou aquilo que considerava historicamente “manifestações positivas e negativas” da índole do povo brasileiro, analisado em sua psicologia e em “face do problema da segurança nacional”. No que diria respeito “aos aspectos positivos”, elencou um “espírito de unidade”, que existia a despeito da variedade de elementos regionais; a “tendência à junção e mesmo à conciliação de valores”; a existência de um “espírito rural”, que levaria à moderação das atitudes; a “constância na atitude cristã”; a disposição ao aprendizado e experimentação; a posição de resistência “à ideia de opressão e desespiritualização da vida”; e “a sensibilidade às forças da inteligência vitoriosa”. A desorganização e o individualismo seriam os pontos negativos a destacar (MADEIRA, 1956, p. 21-22). 148

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Não deixou de fazer referência, porém, ao que denominou “ângulo americanista”, que dava relevo à força do elemento indígena no quadro antropológico brasileiro. Nesse sentido, citava Pedro Calmon, que escrevera que, “ao invés de europeizar-se o indígena, foi o branco que se indianizou”. Com influências sobre os elementos socioculturais de todos os quadrantes do diversificado regionalismo brasileiro, o índio seria a pedra basilar da nossa sociedade. Segundo o próprio Travassos coloca (1953, p.14), a “universalidade da gente brasileira assenta na etnia cabocla, ou melhor, luso-indígena”. A importância do ponto de vista geopolítico fundamentado no conhecimento histórico foi ressaltado por Golbery ao comentar as dificuldades inerentes à ocupação do “simples espaço bruto, virgem das pegadas do homem político”. Seria necessário o “olhar penetrante do historiador” como meio de se realizar a ocupação do território. Usou então do diagnóstico do estudioso português Jaime Cortesão, para a compreensão deste “espaço rarefeitamente humanizado, incivilizado, selvagem e, portanto, verdadeiro vazio geopolítico”, para o qual, em termos dos interesses traçados pela geopolítica, como meio de se prospectar as “faixas ou centro formadores de fronteira”. Segundo ele, Cortesão, melhor que ninguém vem de expor as fases iniciais decisivas desse processo [...] no ensaio que dedicou à figura excepcional e tão discutida desse bandeirante português, Antônio Raposo Tavares, e onde o mito político da Ilha-Brasil – o de um Estado perfeitamente delimitado a leste pelo oceano Atlântico, desde o delta amazônico ao estuário platino, e, a oeste, por dois grandes rios nascidos, em oposição, de um mesmo lago imenso do interior – ganharia foros de ideia-força poderosa, expansionista e agressiva, a inspirar muitos dos desmesurados feitos do bandeirismo aventureiro e audaz e a sempre presente ação política, realista, objetiva, incansável e por vezes maquiavélica, da metrópole portuguesa. (SILVA, 1981b, p. 68)

Atestava-se, com o recurso recorrido da historiografia à respeito da ocupação dos espaços, a formatação de uma dinâmica didática cujo entendimento seria então aprofundado pela geopolítica, em uma clara clivagem entre duas áreas do conhecimento que assim embasavam os conteúdos expostos aos alunos da ESG, por Golbery, como vimos, e por outros tantos responsáveis pelos conteúdos integrantes dos currículos apresentados pela Escola.

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É necessário apontar que argumentação de Golbery sobre o que identificou como as “principais linhas tradicionais, geopolíticas ou simplesmente elementos geistóricos 149 , um apanhado de ideias que delinearam as “diretrizes à ação política brasileira no campo interno e na frente internacional”, eram expressas pelo linguajar inerente aos estudos geopolíticos e, acompanhadas da referência à identificação com a identidade cristã ocidental, sob a forma do “sentimento de uma genuína identidade cultural com o mundo latino e católico de além-mar” e com “o espírito do pan-americanismo 150”. 11.1 A Guerra Fria vista pela ESG A temática da Guerra Fria permeava todos os debates na ESG. Em sua palestra datada de maio de 1954, Gomes (1954, p.1-2) teceu uma análise a respeito do cenário mundial conforme estava configurado àquela época. O elemento de partida foi a identificação das “principais causas da fricção entre os dois blocos de nações” em que o mundo se encontrava dividido, sob a liderança ou influência dos EUA e da URSS 151. No sentido de encontrar um ponto de partida para o problema, ele afirmava que por mais complexa que se apresentasse a compreensão das causas das divergências entre o Ocidente e o Oriente, não se poderia “deixar de reconhecer que elas têm origem, principalmente na power politics, a política do poder ou da força, e na política ideológica”.

O termo “Geistória” é explicado por Golbery como uma tentativa de atribuir a Geopolítica uma nova denominação. Isso seria em decorrência das “gravíssimas suspeições” que lhe eram imputadas pela associação que se fazia desse ramo do conhecimento com “imperialismos megalomaníacos”, em uma clara referência ao nazismo (SILVA, 1981b, p. 64). 150 Ibidem, p. 70 151 Não deixa de ser interessante a distinção feita por Rodrigues a respeito da composição das alianças políticomilitares que envolviam as superpotências. Os alinhados com os EUA eram definidos como “aliados”; já com os soviéticos, eram denominados “satélites” 151 . Tais definições, entendo, traziam embutidas as ideias de liberdade, relativa ao mundo Ocidental, e de imposição, no tocante ao mundo comunista. Justamente à época da sua palestra na ESG, estava em curso a reunião que daria origem ao Pacto de Varsóvia. Ele destacou que o bloco liderado pela URSS colocaria em prática “medidas tendentes à reorganização de suas forças armadas e dos respectivos comandos, bem como o aumento de seu potencial defensivo”, em uma nítida resposta à inclusão da Alemanha Ocidental na OTAN. (1955, p.17 e 19). Naquele contexto, a opinião de Austregésilo de Athayde sobre a Rússia, é de que seria ela portadora de uma falsa mensagem de paz. O imperialismo soviético, cuja face mais visível era a Cortina de Ferro, era o inimigo em “compasso de espera”, enquanto avaliava a hora ideal de atacar o Ocidente. (ATHAYDE, 1955, p.23) 149

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O que se expunha era aquilo que ele denominou “absoluto antagonismo 152” entre as ideologias que orientavam os blocos contendores da Guerra Fria 153. Evidentemente, a sua fala correu no sentido de destacar as supostas vantagens da ideologia que sustentava o mundo ocidental frente àquela que servia de norte para o bloco dito oriental154. Destacava a “doutrina democrática” estar assentada em duas bases, o individualismo e o Estado personificado na Nação. Tal construção valorizaria “a autonomia e a dignidade do homem-indivíduo, como ente racional, legitimamente portador, portanto de direitos naturais”. Valores como a “autodeterminação, liberdade, igualdade e participação comum na criação do poder político” eram ressaltados como “conquistas multisseculares da civilização ocidental cristã”, sendo portanto não passíveis de restrições por quaisquer motivos. O marxismo-leninismo, diferentemente, seria um conjunto doutrinário dotado do poder de restringir “a autonomia e a liberdade de consciência crítica, despersonalizando o ser humano e reduzindo-o a simples peça, de utilidade puramente material no complexo mecanismo social”155. Nesse sentido, a descrição feita da União Soviética e seu poderio pelo diplomata Oswaldo Aranha foi carregado por tons sombrios, que bem expressaram o temor que o poderio do mundo comunista representava para o Brasil e o mundo ocidental. Para ele, aquilo que se poderia denominar como “mundo soviético”, estaria “entre as realidades mundiais que melhor fora nunca tivéssemos que conhecer e enfrentar”. Aranha afirmava que qualquer tentativa de

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Ver Gomes, 1954, p. 4 e 5. Athayde (1955, p.1-3) comparou a Guerra Fria, em termos de conjuntura político-militar, às Guerras Púnicas, os conflitos entre Roma e Cartago pela posse do Mediterrâneo ocidental, um “choque entre duas culturas”. Tal analogia aparecia, dentro da realidade contemporânea, na situação mundial demarcada pela existência “de dois centros de força, competindo pelo predomínio e servindo-se para realizar seus objetivos, de alianças ditadas pela geografia e pelo interesse”. 154 Na prática, a definição dos elementos presentes no processo da guerra fria, não era diferente do modelo que pautou a identificação do estrangeiro, amigo ou inimigo, nos contextos históricos de períodos anteriores. Falase aqui da definição dada pelo geógrafo Jean Gottmann aos “sistemas de imagens, de valores que distanciam uns dos outros e criam a diferença”, que seriam então as “iconografias”, aplicadas, inclusive, a Estados e coletividades. (GOTTMANN Apud DUROSELLE, 1992, p. 50-51) 155 Para Duroselle, em “um país totalitário, onde existe uma única propaganda, a do Estado, do partido único, ela é a tradução da psicologia de um sistema de constrangimento”, exatamente contra o que lutava o mundo ocidental, conforme o pensamento construído e partilhado por Golbery e pela ESG, ocidente este aberto ao pluralismo de ideias, base de uma democracia que abrigava e dava liberdade de expressão, inclusive, às ideias que tentavam lhe sabotar e extinguir. (1992, p. 202) 153

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“ignorar ou mascarar esta realidade” seria o maior dos erros156. Concluiu assim, sua fala, dizendo: O mundo soviético existe, reúne quase a metade da população mundial e é um novo poder agressivo, técnico, científico, econômico, político e militar que intervirá, queiramos ou não, na vida de todos os povos, seja a da guerra ou a da paz. A ignorância deste fenômeno de nossa parte será não só um erro, como fonte de insegurança para o nosso país. Todos quantos o quiseram ignorar, como os próprios Estados Unidos, estão pagando caro por essa atitude e mais caro pagarão os que entendem que esse novo mundo se renderá ao velho sem lutas, capazes de ameaçar e até subverter a ordem ocidental (ARANHA, 1955, p. 2).

11.2 O Brasil na Guerra Fria

Uma abordagem da temática da Guerra Fria necessariamente seria acompanhada por um delineamento das perspectivas esguianas quanto à situação do Brasil naquele contexto. Observa-se, dentro da construção do argumento, que tal abordagem naturalmente derivava para a defesa da aproximação do Brasil aos Estados Unidos – com algumas queixas – que se fazia acompanhar de objetivos traçados em torno de uma projeção de poder brasileiro na América do Sul e do apoio ao modelo de aliança baseado nos sistemas coletivos de defesa. Nessa linha, em sua fala sobre a bipolarização mundial em torno de EUA e URSS, Juarez Távora (1954, p.15) argumentava que, “para as nações de formação cristã”, em termos políticos, não haveria meio termo, não haveria espaço para a neutralidade ou divergência em torno do sentido paradigmático da defesa de um mundo ocidental regido pelos princípios vigentes na ONU e capitaneado pelos Estados Unidos da América do Norte. Qualquer argumento contrário implicaria na guerra e domínio mundial pelo totalitarismo soviético. Cabe observar que, além da questão política acima explicitada, ele enxergava a adoção, em termos sociais e econômicos, dos pressupostos da chamada Doutrina Social da Igreja Católica,

Duroselle afirma ser comum a alienação de largas parcelas da sociedade no que diz respeito aos assuntos de política externa, salvo quando trazem reflexos sobre o cenário interno. Daí a relevância dos denominados agentes de decisão e dos “executores”, ou, em outras denominações, “os estratégicos e os táticos”. Aos estratégicos, cabe o poder de fixar “os objetivos, os meios e os riscos”. Os executores ou táticos, têm os objetivos traçados então para que ajam. Ele distingue então, algumas das “categorias fundamentas de executores”, com destaque para os diplomatas, chefes militares, financistas, homens de negócios e propagandistas ou homens da mídia em geral. Em linhas gerais, tais categorias se faziam presentes no perfil dos homens que compunham a ESG, como palestrantes ou estagiários, formando o quadro daquilo que se identificava como um corpo de elite. (1992, p. 101-102). 156

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derivada das Encíclicas “De rerum novarum” e “Quadragesimo anno”, respectivamente publicadas pelos papas Leão XIII e Pio XI157. Seria o “meio termo entre o Capitalismo e o Comunismo, que concilia, humanamente, o lado bom dos dois sistemas”. Chamava a atenção assim para o peso político da Igreja católica perante a questão maior do confronto entre Ocidente e Oriente. A composição e o comportamento da ONU dentro das perspectivas traçadas pelas posições políticas, sociais, econômicas e ideológicas das diversas nações e especialmente pelo Brasil, foram também objeto do currículo da Escola. Bastian Pinto (1956, p. 32-38) fez as seguintes observações: a) Dentro do grupo de nações latino-americanas, considerado por ele “o mais compacto e sólido bloco dentro da ONU” (juntamente com o bloco comunista), o Brasil aparecia como o principal país, exercendo o papel de leader, tendo destaque, portanto, no concerto de nações politicamente identificadas como “democracias”158; b) Nas questões sociais, o confronto entre os “países socialmente avançados”, como os EUA e a Grã-Bretanha, e os países do bloco comunista, que encontravam na ONU “um campo fértil para sua propaganda demagógica”; c) No que diz respeito às “questões coloniais”, uma nítida divisão entre as potências que possuíam territórios em outros continentes, “e os chamados anticolonialistas, que compreendem os

latino-americanos

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e os árabe-asiáticos”,

países que

compreendiam “a maioria na Assembleia Geral”; d) O Brasil, “um país-chave na organização”, assim considerado “por seu peso intrínseco, sua situação de potência média, estrategicamente importante e pela acuidade política, noção de responsabilidade e equilíbrio de sua representação”. Se as circunstâncias geopolíticas geradas pela Guerra Fria reforçavam os argumentos traçados por Golbery em sua obra – e as palestras proferidas na ESG – a respeito da importância do estabelecimento de uma sólida relação diplomática entre Brasil e Estados Unidos, fundada na observância das necessidades e vantagens mútuas que tal processo poderia

Sobre as Encíclicas, ver Rutten, “A Doutrina Social da Igreja segundo as Encíclicas Rerum Novarum et Quadragesimo Anno”. 158 Assim definidas pelas “questões de caráter político”. Além das “democracias”, existiam os países comunistas e neutros. (PINTO, 1956, p. 32) 159 Nesse quesito, Bastian Pinto afirmava a luta do Brasil, “de forma realista em favor do progresso e eventual independência dos povos não-autônomos, tendo já corrigidos certos exageros a que fomos levados anteriormente”. (1956, p. 37) 157

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acarretar, o histórico das relações ocorridas entre os dois países desde o século XIX bem denotava que os antecedentes deveriam ser considerados como um referencial facilitador de tais negociações. Oliveira (1956, p. 6), ao comentar a adesão brasileira à Doutrina Monroe desde o seu nascedouro, explicitou a importância de tal acontecimento enquanto um resguardo, uma “proteção contra as veleidades da reconquista portuguesa”. Nesse sentido, de se evitar as pretensões recolonizadoras orquestradas pelas Cortes de Lisboa, há de se lembrar também que, naquelas circunstâncias, foram os Estados Unidos os primeiros a reconhecerem a independência brasileira, em 1824. Foi também ele que expôs à ESG a ideia de que o Brasil seria credor dos Estados Unidos, justamente pelo apoio material e logístico dado àquele país no decorrer da Segunda Guerra Mundial. Os “acordos especiais” firmados com aquele país determinaram que: a) Os recursos derivados da produção brasileira seriam todos mobilizados visando o abastecimento ao mercado estadunidense, a preços fixados por aquele país; b) A fixação de cotas de café brasileiro para os EUA, “a preço também fixado pelo comprador”; c) A “cessão de bases aéreas no nordeste e nordeste” e a entrada na guerra junto aos EUA e contra o EIXO; d) O arrendamento de navios da frota mercante nacional “a preço simbólico de dólar mensal por unidade”. (1956, p. 8) Essa exposição foi seguida pela reclamação quanto à postura adotada pelos EUA imediatamente após a Segunda Guerra, quando o Brasil teria sido relegado a um segundo plano nas considerações dos EUA sobre política externa, a despeito de ter sido aliado incondicional de primeira hora daquele país frente à ameaça do EIXO. Na realidade, a reclamação claramente expressa um ressentimento pelo fato de o Brasil fora tratado “à semelhança das demais repúblicas americanas”. O argumento de Oliveira obtém respaldo na intensidade da colaboração brasileira, utilizando-se de um trecho de texto da obra de Graham Stuart, “Latin America and the USA”, onde o autor afirmou taxativamente: without Brazil’s production of strategic materials and bridge of planes, the United States could not have met its schedules. (1956, p. 9)

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“Passado o conflito”, questionou ele, “o que aconteceu”? Segundo o exposto à ESG, um enorme acúmulo de prejuízos, computadas “as despesas de guerra”, o não-convite – sob protestos brasileiros – à Conferência que seria realizada em Paris para “o rateio das quotas de reparações”, devendo então o Brasil contentar-se com a “incorporação dos bens alemães já penhorados para tal efeito”. Os bens de cidadãos de origem italiana, japonesa e alemã residentes no país, lembrou o diplomata, já estavam penhorados, seriam um patrimônio “de fato, incorporado à economia nacional”, tal sua qualidade de riqueza derivada de um processo de integração de imigrantes ao território nacional, não fazendo sentido utilizá-los como reparação para os “desfalques” causados pela guerra. (1956, p. 9) Essa política dos Estados Unidos para com a América Latina e especialmente para com o Brasil durante a presidência de Dwight Eisenhower foi também duramente criticada na palestra pelo então Chefe da Divisão de Assuntos Políticos da ESG, Roberto Assumpção. Ele fez referências, especificamente, ao então Secretário de Estado Foster Dulles, ao qual associava o conceito de “moralismo puritano” enquanto orientador de suas atribuições enquanto homem de Estado, comportamento esse ligado, segundo sua visão, à fraqueza em momentos decisivos para a política externa da superpotência 160. No tocante à América Latina e Brasil, seus interesses teriam sido “injustificavelmente relegados a um nível secundário” (1958, p. 9). A despeito dos problemas, os laços com os EUA, seriam fortes o suficiente para que não houvesse danos à política de alianças, moralmente respaldada pela defesa da “civilização de que somos beneficiários e parte”, como dito por Oliveira (1956, p. 14), exatamente a Civilização Cristã Ocidental. A aliança entre o Brasil e os EUA seria também um dos temas mais comuns à fala de Golbery. 11.3 A “Grande Nação Irmã do Norte” Ao realizar uma análise do posicionamento geográfico brasileiro em relação à grande massa eurasiana, observada a teoria geopolítica de Mackinder 161, Golbery o fez destacando que, aquilo que “nos afasta dos centros de maior potência da civilização ocidental a que pertencemos”, deixaria o Brasil também distante das rotas mais fortes de circulação de

É citada como exemplo a Crise de Suez, no qual a posição norte-americana teria sido “hesitante” (ASSUMPÇÃO, 1958, p. 9) 161 Sobre Mackinder e a Teoria do Heartland, ver Miyamoto, 1995, p. 31 a 33; Mello, 1999, p. 27 a 69.

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riquezas mas, por outro lado, ao largo das zonas do planeta onde as relações internacionais materializavam as suas mais fortes e perigosas tensões. Seriam os elementos negativo e positivo da nossa situação frente a geografia mundial. Seguindo esse raciocínio, Golbery passaria a discorrer sobre as vantagens que o país poderia tirar de tal situação. Nesse ponto, começa a se desenhar em sua teoria a valorização da nossa posição no contexto geográfico da América do Sul, especialmente naquilo que diz respeito ao estabelecimento de uma zona de influência sobre a zona do Atlântico Sul, onde possuímos larga faixa litorânea, jogando com tal ideia nas perspectivas dos Estados Unidos sobre a região (SILVA, 1981b, p.49). Seria a base de um esquema de interesses recíprocos, por um lado, o Brasil se sobressaria politicamente no Hemisfério Sul, sobrepujando África do Sul e Argentina em termos de importância geopolítica, ao mesmo tempo em que se consolidaria como naçãoreferência na América Latina. Por outro lado, observando-se os interesses estadunidenses na região, com base na “estratégia dos espaços periféricos” de Spykman 162 , aproveitaria os elementos que seriam os motivadores da geopolítica daquele país para adequar o Brasil ao seu jogo estratégico na região. Entrava em pauta, na perspectiva de Golbery, a possibilidade de consecução da aliança estratégica entre o Brasil e os EUA, este observando devidamente o potencial e a importância do Brasil na região e frente o mundo. A ameaça comunista, comum a ambos, seria a razão fundamental para a consolidação de tal acordo. A posição geográfica do Nordeste brasileiro, estratégica, dominante que é em relação à proximidade com a África e com a Europa, jogava uma grande responsabilidade sobre o Brasil 163, no que dizia respeito à sua aliança com os EUA e com o papel que o país poderia desempenhar no contexto da Guerra Fria. Para Golbery (1981b, p. 52), a atribuição dada “à costa brasileira e a seu promontório nordestino” a título de um “quase monopólio” de domínio do Atlântico Sul conferido ao Brasil, não poderia ser objeto de abdicação quanto a uma vantagem tão generosamente oferecida pela geografia. A essa característica do nosso território, ele recomendava que se usasse como materialidade territorial para a confirmação de um “destino manifesto”, qual fosse o alcance de uma justa posição de domínio brasileiro sobre a América do Sul com

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Sobre Spykman e a Teoria do Rimland, ver Miyamoto, 1995, p. 38; Mello, 1999, p. 93 a 133. A responsabilidade em questão decorreria de, em eventualmente ocorrendo uma Terceira Guerra Mundial, e caso os EUA não contivessem um avanço soviético sobre a Europa e a África, haveria a possibilidade de um próximo passo da expansão comunista ocorrer sobre o vasto litoral nordestino, zona vulnerável a esse tipo de ação e merecedora da atenção dos estudos geopolíticos. Ver Silva, 1981b, p. 59. 163

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projeção de poder sobre o Atlântico 164, em benefício próprio e “em benefício de nossos irmãos do Norte, a que nos ligam tantos e tão tradicionais laços de amizade e de interesses, e em defesa” da civilização cristã ocidental contra a ameaça comunista. Se aos Estados Unidos eram direcionados sinais de devotada amizade, o mesmo não se pode depreender da leitura do texto de Golbery sobre nossos vizinhos sul-americanos, sobre os quais ressalta as diferenças culturais e possíveis motivos para a existência de discursos ou até mesmo atitudes hostis165. À “cintura de nações” de natureza hispânica, dotadas de tradições históricas e culturais semelhantes entre si, mas diferentes das brasileiras, ele destilou sua ironia com base em um suposto sentimento de inveja daqueles países quanto ao vizinho grande, rico e prepotente a ponto de ser imperialista166. Para Bastian Pinto, a posição de destaque alcançada pelo Brasil em termos de prestígio internacional se refletia na excelência da sua atuação diplomática e o habilitava a tornar-se um valioso aliado dos Estados Unidos nas questões que envolvessem as delicadas negociações que costuravam apoio ao bloco ocidental no contexto da Guerra Fria, ressalvados a salvaguarda dos interesses nacionais e a adoção de uma postura de independência, nunca de “subserviência”, frente ao poderoso aliado do hemisfério Norte. Efetivamente, ele advogava para o Brasil o status de “potência mundial”, superando assim a condição de potência continental. Dessa forma, afirmou, “nossos interesses não se circunscrevem ao Continente Americano nem aos países banhados pelo Oceano Atlântico, mas também aos outros continentes menos próximos de nossas fronteiras” (1956, p. 37-38). Em seu discurso, ele apontava na direção da proposta geopolítica da Teoria dos Hemiciclos, de Golbery. Por outro lado, Juarez Távora (1954, p.22-23) expôs a sua opinião a respeito das potencialidades do Brasil e as suas fraquezas internas e externas, isso posto frente a uma

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Como um contraponto a Golbery, a hipótese de uma guerra em escala extracontinental, em caso de uma não vitória imediata das “Democracias” sobre o bloco soviético, abria a pronta possibilidade de invasão da Europa e da África pelas forças comunistas, o que colocaria o Brasil na iminência de sofrer ataques diretos ao seu território, via Atlântico. Em uma “guerra continental”, o fato de fazermos fronteiras com vários países, nos deixaria em dificuldades para a manutenção de uma posição de neutralidade. Em ambos os casos, o fator posição geográfica normalmente tido como vantajoso para o Brasil, seria o grande problema. (HORTA, 1955, p.16) 165

A questão defendida na ESG de uma posição de superioridade do Brasil frente seus vizinhos encontrava um obstáculo sério no temor e no ressentimento que alguns dos nossos vizinhos nutriam quando do surgimento de questões que envolvessem relações com o Brasil. Bastian Pinto identificava as raízes históricas de tais sentimentos quando afirmava que “desde a colônia e ainda na República, o Brasil veio se expandindo sempre à custa de seus vizinhos e os Tratados a que chegamos consagraram, quase todos, nossas aquisições territoriais”. Por isso, recomendava ele, “cumpre-nos orientar nossa política com o maior cuidado no sentido de apaziguar tais sentimentos e evitar quaisquer atos que os possam reacender”. (1958, p. 7) 166 Ibidem, p. 53

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análise sobre a posição do país no cenário internacional. Sua posição geográfica lhe daria condições iniciais de ocupar posição de destaque no mundo. Concorriam de forma positiva a sua vastidão territorial, “o valor absoluto de sua população”, suas tradições históricas. No entanto, admitia que o país estava muito atrasado em termos comparativos a outros tantos em termos de desenvolvimento, dentro do mundo ocidental. Internamente, a maior fraqueza brasileira residiria na precária situação social e econômica de uma grande parcela da sociedade, fato que nos amarraria à condição do subdesenvolvimento. 11.3 "Principais modificações estruturais da Sociedade Brasileira em face da evolução do Ambiente Mundial e, em particular, do Panorama Americano" O entendimento difundido na ESG sobre a definição do Brasil enquanto “uma potência média no cenário mundial” daquela época foi objeto, na explanação feita pelo diplomata Antônio Camillo de Oliveira, em junho de 1956, de uma série de considerações relativas ao exercício da política externa que deveriam ser objeto da atenção da Escola, da chancelaria e do próprio Estado brasileiro. O elemento por ele abarcado foi a citação à matéria assinada por C. Schawarzenberger, publicada no Times com data de 1º de outubro de 1943 sob o título de “Power Politics”. Tal estudo tratava de assuntos militares vinculados à definição de “poder beligerante” de uma nação e expunha que o conceito seria definido pela soma do seu poder terrestre, marítimo e aéreo, usado coletivamente, em cooperação uns com os outros, e acrescidos do potencial civil. Todos os elementos do poder nacional – Exército, Marinha e Aviação, marinha mercante, defesa civil, comércio, finanças, indústria, propaganda, matériasprimas – atuarão coordenadamente, sob um chefe comum. O poder beligerante se exerce mediante organização, treinamento, equilíbrio, coordenação e direção de todas as modalidades do poder nacional com o objetivo de lograr o máximo de resultados na consecução de determinado fim. (SCHWARZENBERGER, Apud OLIVEIRA, 1956, p. 15)

Mas, segundo ele, como realizar plenamente tais objetivos em uma situação dramaticamente marcada por deficiências econômicas, estruturais e sociais graves, como a existente no Brasil daqueles idos de 1956? À audiência esguiana, entendia Oliveira, deveria ser passada a consciência de que o Brasil somente teria condições de realizar de forma minimamente satisfatória seus projetos, em torno dos conceitos de desenvolvimento e segurança, se fossem atacados os grandes problemas nacionais.

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A população brasileira – e aqui se discute população como parte integrante do conceito de Poder Nacional – chegava próxima ao patamar de 60 milhões de habitantes e era composta em quase sua metade por crianças e idosos, o que jogava as responsabilidades do campo produtivo para a porção adulta da sociedade. Desses, dizia ele, “mais da metade se dedica a atividades agrícolas”, e pelas deficiências sanitárias que afligiam o país, cerca de 80% estariam acometidos de verminoses e outras endemias associadas ao ambiente rural. Doenças congênitas, mortalidade infantil e analfabetismo seriam outros elementos que compunham um desafiador quadro nacional do nosso “potencial humano ativo” 167 . Nesse sentido, “valemos pouco”, finalizava Oliveira 168. Os problemas relacionados à infraestrutura eram imensos. Deficiências na organização de uma rede de transportes, distribuição de energia e outros se juntavam à ainda incapacidade da indústria pesada nacional atender às demandas nacionais, destacando-se, no caso, o “suprimento normal” às Forças Armadas para a formação de uma estrutura bélica capaz de suprir as necessidades do país em caso de envolvimento em algum conflito 169. A formação técnica da população e a consequente falta de mão de obra qualificada, portanto também um indicativo de deficiência estrutural, era outro elemento que se juntaria à pouca eficácia industrial como entrave a uma real “cooperação civil, que um país em guerra deve converter em completa e total cooperação militar”, carência essa definida como “potencial”, típica de um país que poderia ser culturalmente definido como “de repercussão e não de invenção”, desprezando assim o potencial criativo da sua população jovem, mas sem formação profissional170. Oliveira foi duro ao definir culpados por tais situações enfrentadas pelo Brasil. Diplomata de carreira, com longo currículo de serviços prestados ao país no decorrer da sua atuação no MRE171, afirmou que as deficiências apontadas em sua análise teriam origem em dois fatores, já muito antigos e permanentes na história política brasileira. Seriam eles:

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Dados retirados da Mensagem do Presidente da República, Juscelino Kubitscheck, ao Congresso, em 1956. (1956, p. 16)

Ibidem, p. 16. Ibidem, p. 16 171 Formado em Direito pela faculdade de Belo Horizonte, fora Secretário nas missões diplomáticas em La Paz, Londres, Santa Fé e Paris; Ministro na Bolívia e na Costa Rica; Embaixador no México e Bélgica; Secretário Geral do MRE. Participou de Conferências em Havana e na ONU, entre outras. Em 1956, quando da palestra à ESG, era Diretor do Instituto Rio Branco. 170

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a) A “omissão contínua do poder civil na formulação e execução de um programa de governo” que enfrentasse os problemas do país, observados “critérios rigorosos de prioridades”; b) A “obliteração da consciência cívica nacional, pela ação corrosiva do imediatismo e do hedonismo, para os quais o dinheiro é a medida de todas as coisas.” (1956, p. 16 e 17) As críticas veladas à classe política e aos detentores do poder de uma forma geral indicavam deficiências como a falta de uma visão de Estado e definição das suas prioridades estratégicas, capazes de conduzir o país à superação dos graves problemas que travavam seu desenvolvimento172. Irônico com aqueles que formulavam discursos enaltecedores de uma grandiosidade nacional projetada para o futuro, citou trecho de palestra feita anteriormente na ESG, “sobre a estultícia de sermos pernas de pau para parecermos grandes 173.” Pagaríamos caro o feito de profetizar e mesmo louvar a adoção de “um novo padrão de política externa, sem um balanço exato das responsabilidades correspondentes e dos meios de ação que tal fato requer, é, de certo modo, tomar as já citadas pernas de pau” sem que se levassem em conta os potenciais riscos de uma queda174. O mesmo tom crítico foi adotado no que dizia respeito às relações diplomáticas entre o Brasil e a URSS, rompidas pelo governo brasileiro 175. “Os fatos são de ontem e estarão na lembrança de todos”, dizia Oliveira (1956, p. 18), ao se referir aos motivos de Dutra para o rompimento. “Fomos ofendidos e não recebemos escusas pela ofensa. As razões de ontem permanecem válidas ainda hoje, e é de esperar do nosso brio nacional que válidas continuem, até que recebamos retratação da ofensa”.

172 A fala de Oliveira reproduzia em muito argumentos de Golbery e de outros palestrantes da ESG, que colocavam a necessidade de reformas econômicas que refletissem positivamente na vida do cidadão brasileiro, especialmente os mais pobres. A pobreza endêmica, segundo entendiam, seria um campo fértil para a ação da propaganda revolucionária de esquerda. Nesse sentido, vale a pena expor o ponto de vista de João Pereira Coutinho, para o qual seriam as tradições o ponto gerador de reformas consequentes e prudentes, que teriam em última instância o poder de não alterar as estruturas vigentes. Ele lembrou não ser o suficiente para o indivíduo ou a sociedade conservadora serem avessos “ao radicalismo político e às situações extremas que o alimentam”, se fazendo necessária a percepção de que mudanças devem ser feitas em prol de todos – no nosso caso, especialmente às classes desassistidas – de forma e evitar a disseminação de ideias radicais. Coutinho cita Burke, no sentido de para “que possamos amar o nosso país [...] o nosso país deve ser amável”. Os discursos na ESG representavam esse ponto de vista como vacina contra a ameaça comunista. (COUTINHO, 2014, p. 74-75) 173 Oliveira, 1956, p. 16. 174 Ibidem, p. 16 175 Sobre os fatores que levaram ao rompimento, ver Skidmore, 1979, p. 92 a 96.

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Além de tudo isso, não existia condições para continuidade de relações entre os dois países se considerasse a falta de reciprocidade soviética quanto ao tratamento dado ao seu serviço diplomático no Brasil. A “Embaixada soviética gozava aqui de todas as franquias e dispunha de uma luxuosa residência e de uma excelente e espaçosa sede para a sua chancelaria”, enquanto que a Embaixada brasileira em Moscou funcionava “em dois quartos de hotel, que atendiam à dupla serventia de residência do Embaixador e chancelaria da Missão”. As facilidades estruturais oferecidas pelo Brasil aos representantes soviéticos eram inúmeras e de qualidade. No caso oposto, “nenhuma”. Oliveira critica especialmente a violação de correspondência brasileira chegada a Moscou; pelo contrário, a Embaixada soviética no Brasil receberia “suas malas diplomáticas trufadas de instruções, material de propaganda e, não seria exagerado supor, dinheiro para o Partido Comunista Indígena 176”. Devido ao caráter movediço e não transparente da política soviética no tocante às relações com o mundo ocidental, Brasil inclusive, não existiriam motivos para se entender as intenções daquele país comunista em termos de “mútua confiança”. As relações brasileiras com o governo soviético, finalizou Oliveira177, “funcionavam num só sentido e para exclusivo proveito dele”. Não passavam despercebidos também a Golbery os processos sociais e econômicos. Eram sempre alvo de análise as maneiras como as transformações no cenário político mundial, particularmente o “panorama americano” impactaram as estruturas da sociedade brasileira. Foram descritas as consequências sobre áreas distintas, embora estritamente interligadas. A indústria, que se apresentava como uma atividade em expansão, revertendo um quadro de dependência das importações, era apontada como fator de viabilização da unidade nacional, fazendo frente à tradicional dependência da nossa economia quanto às atividades agropastoris. No campo político, a conscientização das massas e a decadência das figuras tradicionais do poder no Brasil, implicaram em uma efetiva democratização da vida política nacional. Tal dinâmica teria relação direta com o denominado campo psicossocial 178, onde era

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Ibidem, p. 18 Ibidem, p. 19 178 Em sua exposição a respeito das características psicossociais do povo brasileiro, o jurista José Honório Rodrigues alertava, em sua introdução, a respeito de que o entendimento de tal questão deveria se fazer a partir da percepção do “caráter nacional” perante a “crença de que todo povo tem um caráter específico, que persiste através de todos os tempos e pode ser traçado através de toda a sua história e em todos os ramos de sua civilização”. O nacionalismo era então postado como pedra angular de um problema que trazia em seu bojo as impressões colhidas por uma variada gama de áreas estudadas, com destaque para os “estudos históricos, religiosos, de psicologia coletiva, de filosofia e de antropologia”. (RODRIGUES, 1957, p.1-2) 177

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apontado o impulso à educação como fator de desenvolvimento. As crises políticas e econômicas, dotadas de potencial poder de agudizar os problemas sociais mediante o confronto entre as classes, poderiam ser amainadas pelo estímulo ao sentimento de unidade gerado pelo cultivo ao nacionalismo. Tal quadro seria completado pelo crescimento populacional, no caso, a demografia refletiria seu crescimento no impulso à marcha para o interior, para a ocupação do território até então vazio. (SILVA, 1981b, p.72 e 73) Os problemas derivados da pobreza profunda que afetava grande parte da sociedade brasileira eram um tema de destaque nos Cursos de Guerra, especialmente naquele contexto conturbado da Guerra Fria. Falando sobre o tema, Ramos (1955, p.1-3) defendia a tese “de que os problemas sociais do país” serem o resultado prático “de um impasse a que chegou sua estrutura” que não permitia que fossem erradicados seus entraves internos através de mudanças superficiais e de caráter quantitativo. O que se propunha, como meio de efetivar reais mudanças que permitissem o desenvolvimento estrutural do país, seriam mudanças qualitativas, resultando em uma passagem efetiva “de um estágio inferior para um outro superior”. A real necessidade que levaria à ocorrência dessas mudanças residiria no potencial de radicalização das relações sociais a partir da exacerbação dos conflitos derivados da existência de “contradições internas”179. Ele alertava assim que as mudanças no âmbito econômico que resultassem em desenvolvimento trariam em seu bojo, por consequência, as necessárias adequações no que chamou “esfera de poder”. Tais mudanças na estrutura que detêm o poder decisório se dariam pela integração “dos contingentes sociais que lograram representatividade” como consequência “de sua contribuição para o desenvolvimento” do país. O problema seria equalizar essa inclusão sem a ocorrência de distúrbios políticos e sociais, inerente a tal situação (Ibidem, p. 4-5). A conjuntura nacional, assim colocada sob sua análise colocava como elemento chave a afirmação do modelo capitalista e as arestas que deveriam ser aparadas dentro de tal situação. Estava em jogo, segundo ele, uma necessidade de reorientação do Estado de acordo com o problema inerente à própria evolução da economia e da sociedade, que implicou na superação de modelos agrário e mercantil e alçou, em termos de poder econômico e, portanto,

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A luta de classes enquanto motor da dialética que move a história seria a base para o internacionalismo inerente à teoria marxista. Assim foi posto por Kruel (1953, p.2-3), ao comentar uma concepção que “atirou-se cruamente contra tudo até então existente com base”, ideia comum ao meio esguiano, onde se alertava quanto ao perigo das grandes diferenças sócio-econômicas para a sociedade brasileira, enquanto facilitadoras da disseminação das ideias comunistas.

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também político, uma já sólida burguesia industrial. No seu dizer, seria a necessidade de elevar “ao plano de consciência política” a questão do desenvolvimento econômico e a mudanças que isso acarretava à sociedade. Era preciso, dentro dessa lógica, que a burguesia nacional amadurecesse enquanto classe 180 e que ela se articulasse com as classes sociais já estabelecidas 181 de forma que fossem geradas as condições necessárias ao país para que a economia atingisse um grau de desenvolvimento minimamente suficiente para que fossem atendidas “as necessidades da população”. O problema constante das ações que visavam apenas a estabilidade da estrutura do país, sem lhe permitir alçar reais chances de solução dos problemas sociais foi destacado por Ramos (1955, p.10-15). Tais ações foram por ele identificadas como o moralismo, o assistencialismo, o peleguismo sindical, o populismo e a estrutura educacional demagógica, elementos que mascaravam as reais deficiências da sociedade e mantinham em funcionamento uma paz social cujo cerne seria a acomodação. Seria, no seu entendimento, a ocorrência de uma dinâmica que apresentava “soluções de contemporização que não alcançam” os fatores estruturais gerados pelo novo “panorama social” que refletia o Brasil à época. 11.4 A Igreja e a sociedade

Dentro da perspectiva de entendimento da situação social e econômica do país, coube a Dom Helder Câmara, então bispo-auxiliar do Rio de Janeiro, tecer comentários a respeito do papel das instituições religiosas dada a questão da “recuperação moral do país”, título da sua palestra feita na ESG no dia 23 de setembro de 1955. No entanto, o primeiro problema por ele apresentado foi o que envolveria “o papel da América Latina no conjunto mundial em relação ao Cristianismo”. Tal discurso, com destaque final para o cenário cristão latinoamericano, veio embasado na exposição das dificuldades que a Igreja Católica enfrentava em outros continentes. A Ásia, segundo Dom Helder, seria “um continente perdido para o Cristianismo”, na medida em que se registravam expulsões de missionários. Não à toa, pois

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Para o autor, o grande problema a ser resolvido no tangente ao desenvolvimento pleno da indústria e, portanto, do próprio país, era a “escassa consciência ideológica de nossa burguesia industrial”. Isso seria um entrave à sua ascensão à condição de classe dirigente, portanto melhor capacitada a visões mais sofisticadas de gerenciamento empresarial que lhe daria condições, inclusive, de desenvolver as melhores relações com outros elementos vitais ao setor produtivo, o proletariado e os quadros técnicos (RAMOS, 1955, p.6-7). 181 Ramos discernia na sociedade brasileira cinco forças: a burguesia industrial, a burguesia latifúndio-mercantil, o campesinato, a pequena burguesia e o proletariado (1955, p.5).

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na região o branco era “identificado como opressor e também como cristão”. A África seria um belo exemplo de região do globo onde existia aumento de missionários cristãos. No entanto, o trabalho apostólico teria pela frente a dura missão de empreender, no seu dizer, “uma luta”, para fazer frente a maioria esmagadora de muçulmanos e “pagãos”. A Europa, berço da Civilização Cristã do Ocidente, passava por uma crise, um largo processo de descristianização, registrada em países como a França, ou da necessidade de repartição dos fiéis cristãos com o protestantismo, como em outros países, como a Holanda. Nos Estados Unidos, a população católica era minoria frente os protestantes e àqueles que denominou como “indiferentes”. Tal foi o quadro do Cristianismo em termos de mundo apresentado à ESG, antes que se passasse à exposição dos dados referentes à América Latina. (CÂMARA, 1955, p.4) Sobre a região, ele comentou a perspectiva de que, em algum tempo, a América Latina estivesse sob a “contingência de carregar a responsabilidade de ser uma nova sementeira da cristandade”. Apontava assim a preocupação quanto a Igreja latino-americana “organizar-se para ficar à altura de colaborar dentro da humanidade”, ponto de vista que não o distanciava daquilo que era comumente exposto na ESG sobre o tema. (Ibidem, 1955, p.6) No tocante ao Brasil, Dom Helder Câmara acusava a falta de infraestrutura, a nossa condição de subdesenvolvimento, com “todas as consequências que vêm daí”, fato esse que tornaria mais complexa a responsabilidade, por ele atribuída à plateia que o assistia na ESG e à Igreja, “tanto no plano geral como no plano religioso”. Afirmava isso em um momento em que, falando pela Igreja, dizia-lhe como que se organizando, citando como exemplo a atuação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, de cuja criação fora um dos artífices. A entidade faria a sua parte ao escolher para seus debates “temas que sejam sempre temas profundamente do interesse nacional”, e que isso por si já denotava uma posição da Igreja do Brasil “em face desta posição da América Latina dentro da Cristandade”. (CÂMARA, 1955, p.7) O momento certamente mais complexo da sua fala à assistência da ESG foi quando abordou, dentro da questão do campo moral, sobre o qual fora convidado a palestrar, as responsabilidades que enxergava da Igreja para com “a massa trabalhista das cidades e ante a população rural do país”. O que o impressionava, segundo expôs – e já ressaltando que pisava “em terrenos delicados” – era especialmente a falta de “líderes operários”. Dizia ele da sua aflição em “ver a massa trabalhista na situação em que se encontra, jogada na política, com o título de populismo ou trabalhismo”.

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A fala de Dom Hélder tocava em um assunto espinhoso: ele deixava claro à assistência esguiana que até então a Igreja estivera habituada a lidar com uma massa operária pacata, composta por homens do tipo que “balançam a cabeça, concordando com tudo o que se diz, que não davam trabalho, gente que não pensava muito”. Mas tal tempo de tais homens estava fadado ao passado. Dom Hélder afirmou que haveria “dentro da ação católica operária, especialmente dentro da Juventude Operária Católica (JOC), uma mentalidade completamente diversa”. Deixava claro que à Igreja não interessava o “operário bonzinho”, mas sim descobrir e formar “autênticos líderes”, homens dotados de visão e que soubessem o que queriam para seus comandados, “inclusive, utilizar técnicas modernas”. No que dizia respeito às populações rurais, Dom Hélder classificou a situação como “infra-humana”, de abandono material e também espiritual. Tal crítica à questão social, cuja solução moral passaria, em sua opinião, numa maior presença do clero católico nas comunidades operárias e campesinas, que ia de encontro às demandas dessas camadas da população brasileira então ainda muito alheias à questão da cidadania, inclusive por falta de uma educação nesse sentido. A sua fala, nesse sentido de lembrar às massas suas obrigações enquanto trabalhadoras, o colocava na angústia de afirmar, ali perante a ESG, que seu trabalho poderia levá-lo à identificação enquanto “comunista”. (CÂMARA, 1955, p.8-13) Alguns dias antes, outro clérigo discursara também na ESG, na mesma linha da “Recuperação Moral do País”. Ao padre Álvaro Negromonte 182 coube comentar a visão da Igreja a respeito da “Família”. Mas, ao contrário da fala de D. Hélder, ele teceu uma opinião menos relacionada às temáticas sociais, enfocando a necessidade de se reforçar as estruturas familiares e das suas bússolas morais e religiosas para a luta contra o comunismo. O padre Negromonte expunha o papel da Igreja em termos de responsabilidades frente à instituição familiar. Para ele, à Igreja caberiam seus tradicionais papéis de doutrinação religiosa, voltada ao “fortalecimento e à formação da consciência cristã”. Mas, se a temática passava por uma advogada questão de “recuperação moral do país”, as responsabilidades para tal empresa deveriam ser também assumidas pelo “Estado e aos particulares”. A “salvação pública e a prosperidade temporal” dependeriam da proteção do Estado ao matrimônio e da observância, pelos “particulares, de uma vida familiar verdadeiramente exemplar” (NEGROMONTE, 1955, p.11).

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Em 1955, era Orientador Educacional, Diretor Arquidiocesano de Ensino Religioso e Professor de Pedagogia Catequética no Seminário São José, em Belo Horizonte, MG.

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Os pontos de vista expostos pelos membros da Igreja Católica não diferiam daquilo que era exposto na ESG sob uma ótica da laicidade. Consciente dos problemas da conjuntura nacional e de acordo com os entendimentos a respeito da situação do país naquela segunda metade da década de 1950, Juarez Távora não se esquivou de apontar a responsabilidade dos “desajustamentos políticos” para a ocorrência desse problema, enxergando na falta de cooperação entre as diversas instâncias administrativas brasileiras – federal, regional e local – um entrave ao desenvolvimento econômico da Nação, com sérias implicações, portanto, nos campos social e político. Em termos de segurança nacional, tal descompasso administrativo seria um problema na medida em que facilitaria a “atuação persistente da infiltração comunista”, que teria assim facilitado o seu argumento de desacreditar a elite diante do povo e colocar em xeque a sobrevivência da democracia no país. 11.5 O Comunismo Quatro anos depois da fala de Juarez Távora, Roberto Assumpção (1958, p. 3) discursou no sentido de analisar os fatores principais a serem considerados naquele ano de 1958 e suas relações com os EUA, com o Bloco Ocidental e a América Latina. O exame, então, do “Panorama Mundial da Atualidade” tinha por finalidade dotar de informações sobre a conjuntura internacional visando embasar “os trabalhos de Planejamento do Fortalecimento do Potencial Nacional, observados o interesse do Brasil, a posição do Brasil, as aspirações do Brasil”. A Guerra Fria determinara posicionamentos determinados pela bipolarização, por ser um conflito essencialmente de caráter ideológico, mas trouxe também, embutido na realização da Conferência de Bandung, em 1955, uma grande adesão a uma posição de neutralidade, uma terceira posição, portanto. Para Assumpção (1958, p. 4), tal posicionamento era também um reforço ao princípio da “coexistência pacífica”, que ele aponta como uma ideia surgida em meio ao processo da Revolução Bolchevique, de novembro de 1917, na Rússia. À ESG ele expôs que naquele processo histórico o antagonismo entre os dois sistemas ideológicos tornou-se irreprimível. Formulou-se, ou melhor, reformulou-se Lenine, segundo o pensamento de Engels (carta a Kautsky em 1882), nos seguintes termos: “É possível o desenvolvimento e a coexistência simultânea de nações que adotam sistemas econômicos diferentes sem que seja indispensável o recurso à guerra entre esses sistemas antagônicos para impor em ao adversário suas características peculiares.” (ASSUMPÇÃO, 1958, p. 4)

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Era apontado na mesma exposição, que o Brasil já tinha delimitada a sua própria conceituação de coexistência, a qual encerraria seus princípios, segundo as palavras do então presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira, nos “propósitos das nações democráticas, seguras possibilidades de pacificação que jamais serão abandonadas” 183 . O problema, para a ESG, é que a coexistência com o bloco comunista estava longe de ser visto como pacífico. Dessa forma, em palestra proferida na ESG em 29 de outubro de 1954, Golbery expôs uma apaixonada crítica ao modelo esquerdista de condução das sociedades. Nesse sentido, aparece em relevo o fato de que a construção das diretrizes geopolíticas na ESG obedecia a uma linha de pensamento que, com ênfase no anticomunismo e na defesa dos valores sociais, culturais e econômicos do mundo ocidental, padronizava a formação dos estagiários em torno de uma visão de mundo essencialmente direcionada à postura de fortalecimento da posição do país nos quadros de uma aliança que tinha os EUA como expoente. O mundo comunista era dito, então, como pautado por um “intervencionismo estatal polimorfo e prepotente”, meio usado para o domínio da sociedade por “uma minoria fanatizada” que apoiava uma elite partidária184 que se impunha pelo terror e pela disseminação da ideia de que possuiria a “onisciência e a incorruptibilidade como qualidades incontestes”, anulando-se, por meio do uso intensivo da propaganda 185 , “a vontade individual e a consciência do povo”. Ele criticava também o modelo socialista de condução da economia, marcada pelo dirigismo e pela supressão da iniciativa privada, por meio de iniciativas que visavam o rígido controle do processo econômico por um imenso e autoritário aparato burocrático (SILVA, 1954, p.10-11).

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Conforme Mensagem de 1957 ao Congresso Nacional de Sua Exa. O Senhor Presidente da República, página 58. Ver Assumpção, 1958, p. 6. 184 O Desembargador Ary de Azevedo Franco, então Presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, palestrou à ESG em 3 de agosto de 1955 sobre a Organização Político-Partidária Brasileira. Comentando sobre a estrutura do “partido único”, característica dos regimes socialistas, o definia como um fenômeno inerente às ditaduras do século XX, caracterizando-o como fundamentado na ideia de imposição de um sistema político que objetiva o monopólio ideológico sobre a sociedade, que assim perderia a liberdade de escolha e de ação política. (FRANCO, 1955, p. 4). 185 A “propaganda totalitária” foi alvo da análise de Hannah Arendt, ao descrever o “movimento totalitário”. Segundo a autora, a propaganda é útil para que seja estabelecido o domínio absoluto sobre a sociedade. Isto feito, é substituída pela doutrinação, como caminho para validação das “suas mentiras ideológicas e às suas mentiras utilitárias”. Arendt, 2012, p. 474.

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Estava expresso ali seu temor ao totalitarismo 186, ao “Leviatã187 monstruoso que em sua soberania prepotente despejará a todos de qualquer partícula de liberdade e poder”, e que deveria levar a uma reação. De forma que esta não resultasse em uma desordem institucional e social, uma “anomia”, como definia Golbery, o levava a concluir seu raciocínio prescrevendo a formulação, “em termos precisos e seguros”, de “um planejamento democrático” que abrisse caminho para a paz social e o progresso. (SILVA, 1954, p.12) No entanto, cabe-me ressaltar que os textos que analisam o comunismo buscam sempre fornecer aos alunos da ESG um quadro histórico bem traçado, mediante a análise dos teóricos, das ideias desenvolvidas e dos processos históricos derivados da difusão das ideias esquerdistas. Leite Filho (1954, p.6-7) chamava a atenção, usando o exemplo da Rússia de 1917, da ação efetiva do “revolucionário profissional”, o integrante do Partido, devidamente devotado à figura do líder, “devotado, sem outra atividade que o prenda, se for necessário, ou à qual deva obrigações suscetíveis de distraí-lo da sua atividade revolucionária”. A ação empreendida por uma massa de agitadores profissionais e potenciais, uma espécie de “vanguarda do proletariado”, seria a chave para o sucesso da “fórmula da revolução de minoria, revolução jacobina de uma vanguarda esclarecida e valente, que arrasta atrás de si as massas”, origem, portanto, “de toda a degeneração totalitária 188 do Estado soviético e do caráter funcionalmente antidemocrático do movimento comunista”. Os regimes de partido único possuiriam uma característica que, na prática, desvirtuam aquilo que, “segundo o marxismo clássico” deveria constituir a base para uma “forma superior de democracia”. Dessa maneira, segundo Leite Filho (1954, p.7), houve a transformação da “ditadura do proletariado em uma ditadura sobre o proletariado”, o que seria perceptível pela existência de uma “ditadura totalitária de uma burocracia irresponsável”. Fazendo uma citação à revolucionária Rosa Luxemburgo e às críticas que ela fez ao processo revolucionário soviético, ele apresentou um texto no qual ela vaticinava o que seriam

Duroselle comentou sobre aquilo a que se referiu como “espasmos”, a ambição que ataca “periodicamente” algumas grandes comunidades de homens e que os incita a impor, voluntariamente ou obrigados, a vontade ao resto do mundo”. Era uma veemente crítica aos regimes totalitários, que a tudo e a todos queriam subordinar ao objetivo supremo. Observe-se que a conotação do termo “totalitário” voltada ao sentido universalista, como seria a ambição da extensão dos regimes comunistas ao mundo inteiro. (1992, p. 141) 187 O Estado hobbesiano, conforme Golbery. 188 Golbery acreditava que o autoritarismo inerente aos regimes políticos comunistas tenderia a uma maximização do Poder Nacional, o que na prática um desvirtuamento da ideia de que seja ele um instrumento de uma ação estratégica, sendo assim um meio, nunca um fim em si mesmo. Silva (1956, p.16)

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os regimes totalitários no poder, derivados da disseminação de uma determinada “tática socialista” de ação recomendada ao proletariado internacional. Rosa Luxemburgo fazia a denúncia “do exercício da ditadura e a ausência de democracia no regime soviético nascente”, denunciando a centralização de poder nas mãos dos sovietes, tornados então a “única representação verdadeira das massas laboriosas”. Em um regime onde “só a burocracia permanece como o elemento ativo”, onde inexistem eleições gerais, liberdade de imprensa e de reunião, haveria o colapso da vida “em todas as instituições públicas”. Tal conjunção de fatores traria, “inevitavelmente, a brutalização da vida pública”. (Ibidem, p. 12) Cumpriria à elite presente à ESG no Curso Superior de Guerra de 1954 compreender as condições gerais que possibilitariam o sucesso de uma revolução comunista. Era necessária uma ação que viesse a evitar o recrudescimento de problemas sociais e econômicos que agravassem os conflitos sociais e que resultassem no desenvolvimento das “condições objetivas e subjetivas” presentes na deflagração de um processo revolucionário. Isso seria fatal diante da existência de um governo fraco. Tal e qual destacadas por Leite Filho (1954, p.21), essas condições, seriam a) Objetivas, resultantes das dificuldades enfrentadas pelas massas a partir dos maus resultados apresentados por uma determinada conjuntura econômica; b) Subjetivas, derivada do “grau de organização das massas e do nível da sua consciência política”, orquestradas pela ação do partido, que em última instância as incentivaria à luta em prol da revolução. Para o autor, “o partido da revolução de massas passou a ser um partido de golpes de Estado. O comunismo é hoje uma mera teoria pura da conquista do poder, do mesmo modo que o fascismo”. (Ibidem, 1954, p.22). 11.6 A frutificação perigosa No Curso Superior de Guerra de 1956, coube à diplomata Odette de Carvalho e Souza tecer um quadro geral a respeito da política soviética direcionada à América Latina, tendo ela

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identificado o Komintern189 – ou Terceira Internacional – como ponto de partida das atenções da URSS para a região, mantendo como constante uma dinâmica caracterizada pela estrita submissão dos “Partidos Comunistas nacionais” a Moscou. O início das ações na América Latina, segundo seu discurso, pode ser relacionado à inclusão do continente no programa revolucionário do Komintern, em 1922. Em 1925, tendo sempre em vista a expansão da revolução proletária, foi “criado um Secretariado especial latino-americano”, sediado em Moscou e com o objetivo de estudar as condições políticas, econômicas e sociais dos países da região. Da criação desse Secretariado, resultou a formalização da ideia de que a “influência crescente dos partidos comunistas da América Latina é da mais alta importância para o conjunto do movimento revolucionário internacional”, sendo o histórico de exploração da região pelo “capital internacional” 190 um campo aberto à expansão “das ideias revolucionárias” (SOUZA, 1956, p. 1-2) A “ação bolchevista na América Latina” foi reforçada pelas deliberações resultantes do I Congresso Sindical do Continente, ocorrido em Montevidéu, capital do Uruguai, em 1929. A importância do evento residiu, segundo Souza, no fato de que a embaixada soviética naquele país ter se tornado “o quartel-general da propaganda e da ação moscovita no Continente”, permitindo a instrução dos “elementos de liderança comunista no Continente, a fim de que adquirissem uma mentalidade mais estritamente comunista e realizassem um trabalho em contato com as massas”, favorecendo, assim o projeto de se englobar os países do hemisfério na “União das Repúblicas Soviéticas mundial”. A ação foi completada pela “criação, formação e consolidação” dos partidos comunistas da América Latina, com o objetivo de estabelecer uma ação doutrinária “em todos os setores da vida nacional de cada país”. Onde não houvesse a permissão para a existência do partido, era recomendada a “organização de outro partido proletário, com denominação menos assustadora” (Ibidem, 1956, p. 3 e 4). Um assunto em especial foi parte da explanação feita pela ministra Odette de Carvalho e Souza: a propaganda comunista nas Forças Armadas. Objetivando o sucesso da “ação revolucionária”, a infiltração foi tacitamente recomendada pelo Congresso de Montevidéu, inclusive com a identificação das particularidades das Armas na América Latina

Criado em 1919 e com duração até 1943, era também denominada “Internacional Comunista”, foi fundada na URSS, pelos Bolcheviques, à época liderados por Lênin, que na ocasião anunciou a criação de “uma república soviética internacional”. Azevedo, 1999, p. 256. 190 Os alvos eram especialmente os imperialismos “inglês” e “ianque” (Souza, 1956, p. 3 e 4) 189

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e as melhores táticas que poderiam ser empregadas para “desorganizar e desagregar o Exército e a Marinha da própria pátria, para enfraquecer a defesa nacional, em proveito da pátria do proletariado”. A respeito do comportamento dos comunistas quanto às Forças Armadas brasileiras, ele escreveu que: esclareceram os agentes moscovitas que o nosso exército era formado, principalmente, por elementos procedentes de meios rurais. Era preconizada, assim, a propaganda nestes centros, entre os recrutas, que deveriam, a seguir, ser acompanhados até as localidades dos quartéis, onde seriam chamados a prestar serviço militar. Foi este o embrião da ação moscovita no seio das nossas classes armadas. Como na Rússia, foi encarecida a importância da propaganda e do ensino comunista entre os soldados, que, nos “slogans” bolchevistas, deveriam figurar nos sovietes supremos, “ao lado de operários e camponeses”. (SOUZA, 1956, p. 5)

Entendo que a adoção de uma postura anticomunista, constantemente encontrada como parte importante do discurso entranhado nas palestras, atestava os reflexos de dois dados históricos fundamentais: a) O primeiro deles, a forma como a propaganda comunista se propunha a atacar a religião católica, considerada pela historiografia esguiana enquanto elemento fundador da sociedade que se formou no processo de colonização; b) A própria experiência das Armas frente à efetiva ação dos comunistas no território nacional, o Levante Comunista de 1935. Nesse segundo aspecto, faço uma referência específica ao impacto negativo sobre o Exército, especialmente afetado pelos fatos de 1935, quando os comunistas levaram à cabo uma sublevação que ficou marcada na cultura militar como a Intentona Comunista. Nesse sentido, Puglia (2012, p. 127) descreveu a forte “indignação” no corpo do Exército, pelo fato de que o movimento fora arquitetado por um antigo oficial da arma, Luiz Carlos Prestes, em “um claro atentado à ordem, hierarquia e disciplina, bases da instituição militar” e principalmente “pelo fato de que alguns oficiais e soldados teriam sido mortos ainda dormindo ou sem capacidade de se defender”. Esse autor complementa o seu raciocínio destacando o papel que o anticomunismo passaria a desempenhar no imaginário militar 191. Para ele

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Puglia apresenta também o outro lado da moeda. A esquerda brasileira tem uma visão a respeito da opção da ESG. Para ela, a Escola Superior de Guerra também manteve o discurso político da necessidade de um inimigo; aliás, foi além. Dentro de sua busca pela elaboração de uma Doutrina de Segurança Nacional (DSN) acabou por

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o ano de 1935 acaba por ser um marco para o Exército que simbolizaria justamente os perigos que o comunismo poderia representar para as próprias Forças Armadas e para o Brasil como um todo; funcionaria como um eterno lembrete daqueles que foram mortos em traição pela astúcia e maquinações do comunismo. Pelo menos esta é a memória oficial propagada pelo Exército. O comunismo passa a ser encarado como um elemento externo da sociedade brasileira que não poderia ser deixado de lado e deveria ser combatido. (PUGLIA, 2012, p. 127)

Dessa forma percebo o anticomunismo esguiano enquanto reação a uma conjunção de discurso e atitude hostis àquilo que se apresentava para a Escola como valores ditos tradicionais e cultivados por diferentes segmentos da sociedade brasileira, das elites às camadas populares, ou seja, entendo que o ataque ideológico da esquerda às estruturas como o Exército, a Igreja e à Família – entendidas enquanto elementos basilares da sociedade – acabaria ensejando respostas na produção institucional 192 . Note-se que a atuação das esquerdas perpassa exatamente o nosso recorte temporal, como já citamos anteriormente, e para os esguianos chegaria às raias da crise que levou à queda de João Goulart, quando "a movimentação das esquerdas dava mostras de adesão ao projeto revolucionário latinoamericano" (PEDROSA, 2012, p. 5). Assim, entendo que as ações perpetradas pela esquerda estiveram na base da reação conservadora e com base nessa percepção, entendemos a constituição de uma postura antiesquerdista como um dos princípios dos cursos ministrados na ESG, na obra geopolítica do general Golbery e que seria embutida, em síntese, na própria Doutrina de Segurança Nacional. Segundo Souza, “o fim da guerra foi a época dourada dos PP.CC193. americanos. Ao amparo das facilidades concedidas pelos próprios governos desses países, e até mesmo pelos Estados Unidos, seguiu-se o reconhecimento do governo da União Soviética por vários países do Continente” (SOUZA, 1956, p. 9). Para esta autora, a despeito do ocorrido no Brasil, quando o PCB foi colocado na ilegalidade, militantes da esquerda latino-americana

eleger o comunismo como principal inimigo da Nação e contribuiu de forma decisiva para o anticomunismo brasileiro. A ESG ajudou a construir e manter um inimigo para as Forças Armadas e para o Brasil e, consequentemente, a necessidade de um alerta frente a este perigo. (2012, p. 128) 192 Rodrigo Patto Sá Motta trabalha a dinâmica de organização das forças ditas conservadoras na luta contra o comunismo no Brasil. Nesse sentido, o autor cita as categorias ameaçadas pelo discurso comunista, o catolicismo, o nacionalismo e o liberalismo (MOTTA, 2002, p. 20-38), que serão objeto da análise em nosso trabalho em termos da composição e confronto de ideias presentes no período histórico aqui discutido. 193 Partidos Comunistas.

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continuaram a receber apoio e orientação vindas da Europa visando a continuidade das ações pró-soviéticas. Um exemplo disso seriam os Congressos Comunistas de Viena (1953) e Praga (1955), que trataram da linha política e sindical que deveria ser praticada na América Latina. O Congresso de Praga tornou-se mais interessante para o tema que aqui desenvolvo pela especial relação que teve com o Partido Comunista Brasileiro, que foi “muito louvado, justamente por ser o mais numeroso e o mais ativo do Continente”. (Ibdem, 1956, p. 16). Uma das preocupações mais recorrentes nos escritos de Golbery que abordaram os problemas da sociedade brasileira, estava diretamente vinculada às possibilidades abertas ao trabalho dos ditos elementos subversivos frente à fragilidade exposta pela realidade social brasileira, especialmente nas camadas populares urbanas e rurais. Já a atividade de simpatizantes do comunismo junto às comunidades rurais veio a ser o objeto da explanação de Carvalho e Souza, que denunciava o intensivo trabalho desenvolvido “nos meios rurais do Brasil, onde são lançadas as mesmas palavras de ordem preconizadas para os meios proletários”. (Ibidem, 1956, p. 18) Seu texto, a título de denúncia, apontava a existência de escolas dirigidas por estrangeiros e voltadas ao ensino orientado pela literatura bolchevista. Além disso, se referia à formação de entidades que congregavam trabalhadores rurais em torno das ideias de esquerda, como a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil - ULTAB, criada em 1954 e, segundo ele, seria “o instrumento da ação soviética nos meios rurais do país”. No mesmo ano, houve a realização da 2ª Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas e Camponeses, que teria reunido “322 delegados de 16 Estados”, responsáveis pela aprovação da Carta dos Direitos e Reivindicações dos Lavradores Agrícolas, que defendiam as seguintes ideias: a) O incentivo à deflagração de greve em período antecedente à colheita; b) A anistia aos comunistas que estavam presos, especialmente Luiz Carlos Prestes; c) A cooptação de analfabetos para a causa; d) A fundação de sindicatos rurais; e) A proliferação de órgãos de imprensa locais, para a difusão de ideias comunistas. Para esta autora, a automática identificação da causa com o antiamericanismo era inerente ao movimento comunista e isso também ocorria no meio campesino. A Liga de Emancipação Nacional, por exemplo, preconizava a “emancipação da tutela ianque” como atestado de exaltação de um modelo de sentimento nacionalista direcionado a um alvo específico. Na prática, isso implicava em uma rejeição seletiva, contra os interesses dos EUA

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no Brasil, e que evidentemente enxergava a URSS de forma diferenciada. Tal posição ficou explícita nas declarações de “fidelidade à URSS e ao Partido Comunista russo”, bem como “ao seu comitê central”. Um efeito prático da ação da Liga de Emancipação Nacional foi a sua participação na campanha de condenação à bomba atômica, que defendia o não fornecimento de “materiais estratégicos” aos estadunidenses, campanha de âmbito internacional, conforme preconizado pelo Congresso de Praga, e cujas ideias foram defendidas no Brasil por um órgão de imprensa especial, denominado “Emancipação”. (SOUZA, 1956, p 18 e 19). Tais fatos fizeram com que Souza considerasse a ideia de reatamento de relações diplomáticas e comerciais com a URSS como uma “inconveniência”. Ela aponta para o detalhe de que a política de reaproximação da América Latina com aquele país seria um dos objetivos mais defendidos pelos partidários da esquerda no continente. Considera, pois, tal possibilidade como um perigo, inclusive com antecedentes históricos que já mostrariam, antecipadamente, os possíveis resultados de tal reaproximação, sendo um exemplo claro disso as discussões realizadas entre 1934 e 1935, “no Conselho de Comércio Exterior, que funcionava no Itamaraty”. A conclusão à qual chegara a Chancelaria brasileira fora no sentido de negação às pretensões soviéticas. Ela remeteu ao episódio como um alerta à manutenção da desconfiança quanto aos objetivos dos russos, para ele nada ocultos. Sabe-se que, àquela altura, inclusive, enquanto corriam as negociações, estavam em curso “os preparativos da revolução comunista de 1935, prevista com antecedência pelo Itamaraty, de acordo com comunicação oficial sobre o assunto, remetida à Presidência da República e demais órgãos competentes”. (Ibidem, p. 19 e 20) Diante da existência de antecedentes dessa natureza e perante às demandas da Guerra Fria, uma reação dos Estados americanos à investida soviética no continente ocorreu por meio da X Conferência Interamericana de Caracas (1954), que resultou na tomada da Resolução sobre a Repressão ao Comunismo Internacional, “por constituir uma intervenção em assuntos internos americanos”. Foi declarado que o domínio de instituições políticas de qualquer país da região pelos comunistas “constituiria uma ameaça contra a soberania e a independência dos Estados americanos”, na medida em que estaria configurada a apropriação política por uma potência extracontinental sobre território do continente americano. Dessa forma, teria derivado a recomendação, pela Resolução de Caracas, do estabelecimento de “um intercâmbio de informações entre os países do Continente, tendo em vista a repressão do comunismo internacional, notadamente no que tange à sua ação secreta”. (SOUZA, 1956, p. 20)

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Ao final do seu discurso à ESG, a Ministra Odette de Carvalho e Souza preconizava, contra “a ação secreta”, contra “a arma psicológica” que visava criar as condições favoráveis à “decomposição do poder e das instituições” democráticas. Contra tal estado de coisas, contra a “erva daninha do comunismo”, ela concluiu receitando “o uso das armas da verdade e da fé” (SOUZA, 1956, p. 23). 12 CONSIDERAÇÕES FINAIS Observo que no discurso anticomunista esguiano não se fazia uma distinção entre os militantes comunistas latino-americanos e Moscou, propriamente dita. A ideia exposta era de que, uma conquista política da esquerda sobre um determinado Estado nada mais seria que uma conquista direta da URSS em um solo onde se situava seu inimigo maior na Guerra Fria, exatamente a superpotência americana. Diante das circunstâncias e apresentados os argumentos a respeito dos contextos nacional e internacional durante aqueles anos de 1950, passariam os discursos esguianos a apontar na direção de uma necessária reação articulada contra as ameaças ao Ocidente. Nesse sentido, as condições próprias à sociedade brasileira, em grande parte ainda afetada pela pobreza, e a falta de condições do país de enfrentar tal realidade, eram entraves que deveriam ser eliminados e a isso Golbery e a ESG chamavam à atenção o Estado brasileiro. Em uma dinâmica relacionada à política externa, o próprio desenvolvimento interno do Brasil era um imperativo garantidor da força que o país teria em um cenário de alianças político-militares. Assim, entendo que, via de regra, o discurso esguiano apelava à unidade panamericana como meio eficiente para o combate à expansão comunista. Entravam em pauta, deste modo, as ideias dos sistemas políticos e militares voltados à defesa do continente. Seriam também eles um anteparo para a defesa do mundo ocidental como um todo frente o imperialismo de Moscou. Nesse sentido, as ideias de Pan-Americanismo, sistemas coletivos de defesa e os Hemiciclos de Golbery seriam partes integrantes do discurso esguiano que movimentaria a construção de uma narrativa da consolidação continental do Brasil e de sua projeção mundial.

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CAPÍTULO V

A historiografia esguiana: o Brasil e a defesa do Ocidente A Geopolítica brasileira deverá ser “consciente e decididamente partícipe da Geoestratégia defensiva da Civilização Ocidental”, da qual somos culturalmente tributários, por nossa “origem cristã”, pela tradição social e política agregada aos “valores democráticos e liberais”, que nos habilitariam à resistência contra o imperialismo comunista. (SILVA, 1981b, p.170)

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13 EM DEFESA DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL CRISTÃ Quando se pôs a escrever sobre a “política de contenção”194 que os Estados Unidos empreenderam durante cerca de quatro décadas de Guerra Fria, Henry Kissinger (2014, p. 419 e 420) chamou à atenção dos seus leitores sobre um elemento intrínseco à diplomacia colocada em prática por aquele país durante o período. Ele fazia referência a uma política externa que refletia “os mais profundos valores e ideais”, expressando “com sinceridade” as justificativas “morais” – e mesmo messiânicas – das posições adotadas na luta contra o comunismo. Tais “valores morais”, segundo Kissinger “impregnavam documentos oficiais, mesmo os mais sigilosos” em uma dinâmica que os fazia serem colocados em pé de igualdade com os “interesses vitais”, entre os quais a segurança nacional. Era colocada em prática, então, naquele contexto histórico que pautaria a segunda metade do século XX, a “doutrina dos Fundadores, de que sua nação era modelo de liberdade para toda a espécie humana” 195. A análise dos documentos que constituíram os Cursos Superiores de Guerra da década de 1950 apontam para um comportamento similar. Guardadas as singularidades históricas a respeito das origens das sociedades estadunidense e brasileira, diferentes entre si nos seus padrões de colonização e formação social e econômica, um sentido próprio de pertencimento a uma civilização cristã estava em si preservado. Nos discursos de Golbery e da ESG, eram constantes as referências aos valores fundamentais sobre os quais se assentaria a sociedade brasileira e os povos das Américas em geral, independentemente da vinculação ao catolicismo ou ao protestantismo, e seriam esses valores as bases morais para as alianças políticas continentais e seus sistemas coletivos de defesa. Assim, quando escreveu “Geopolítica do Brasil” 196, o general Golbery abordou a questão que envolvia a sua percepção da atuação brasileira no contexto da Guerra Fria, ali

A “estratégia da contenção” consistiria do instrumento por excelência para barrar o avanço comunista, a “metástase” da ideologia que se propunha a destruir os valores ocidentais. Era urgente, então, que fosse mantido “em suas atuais fronteiras já dilatadas, impedindo-o de transbordar, onde quer que seja, pelo ataque militar ou pela penetração pacífica” Em termos geopolíticos, consistiria da aplicação das “luminosas teorias” de Spykman. Em termos práticos, se materializava, por exemplo, pelo Plano Marshall, que “soergueria a Europa sobre escombros ainda fumegantes” da Segunda Guerra Mundial. (SILVA, 1981b, p. 240-243). 195 Conforme Karnal (2014, p. 102), os estadunidenses construíram uma visão de si mesmos como liderados “por pessoas virtuosas que marchavam em direção ao progresso”, guardados os valores de democracia, independência e autossuficiência. 196 Segundo o próprio Golbery (1981, p. 3), a obra é dividida em capítulos que são derivados de "palestras e ensaios escritos em anos vários durante a década dos 50, traduzindo concretamente a evolução de um pensamento geopolítico que se orgulha, sobretudo, de suas raízes autenticamente nacionalistas, a fundo embebidas na sólida realidade da própria terra brasileira." A nota introdutória à edição de 1967, escrita por Afonso Arinos de Melo Franco, foi mantida na edição presentemente utilizada. Nela, Arinos ressalta os pontos que devem ser observados 194

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contida especialmente no ensaio O Brasil e a defesa do Ocidente, datado de 1958, e discorreu então sobre o que classificou como “ameaças dominantes ao Ocidente e sua significação para o Brasil” (SILVA, 1981, p. 220). Ele remontou no seu ímpeto de construção de um ideal de nação197, para as referências à antiguidade, tradição e memória que caracterizam a história da Civilização Ocidental. Golbery referia a um conjunto cultural que consistiria de um legado das civilizações antigas, como a judaica, grega e a romana, que, aliado aos elementos da modernidade, formalizariam a base para a atuação do Estado brasileiro e seus congêneres ocidentais. Segundo colocava, a interação se daria por meio de um legado que a Igreja conservaria, integrando-o em uma síntese inigualável, não deixaria de ressaltar seja o papel do cristianismo e de seus ensinamentos salutares de respeito à dignidade do homem, seja o influxo decisivo dessa outra religião, dos tempos novos – o nacionalismo – derivado embora do particularismo israelita e da devoção romana pelo Estado, mas fenômeno essencialmente moderno, ao qual se deve, afinal, muito da coesão política que viria também a ser, pelo menos até bem pouco, uma das características distintivas da Civilização do Ocidente. (SILVA, 1981, p. 223)

Outro exemplo foi colocado por meio de uma citação. Como era dado às referências àquilo que considerava clássicos da literatura e historiografia para formalização de seu raciocínio, nesse mesmo sentido a sua argumentação recorreu aos préstimos literários do afamado dramaturgo e poeta modernista Thomas Stearns Eliot 198 . Da sua obra, Golbery buscou uma construção que afirmava que a força dominante na criação de uma cultura comum, entre povos que possuam cultura individual distinta, é a religião [...] falo da tradição comum do Cristianismo que fez da Europa aquilo que ela é de fato e dos elementos culturais comuns que esse Cristianismo trouxe consigo mesmo. Se, amanhã, a Ásia se convertesse ao Cristianismo, nem por isso se teria convertido em uma parte da Europa. No Cristianismo, desenvolveram-se nossas artes; no Cristianismo, as leis da Europa, até há pouco tempo, permaneceram arraigadas. Todo nosso pensamento adquire significação contra um fundo

no pensamento político contido nos escritos de Golbery. São eles: o nacionalismo; a ênfase no desenvolvimento econômico; a incorporação das massas ao projeto de nação; a conceituação de Ocidente; a civilização cristã ocidental; e o poder do Estado e a Segurança Nacional. 197 As noções de Tradição e Nação serão utilizadas a partir do estudo da obra de Eric Hobsbawm. Tal opção deve-se à amplitude dos estudos desenvolvidos pelo autor a respeito da formação das tradições e de que formas elas se vinculam à constituição da ideia de Estado-nação. Tais conceitos são constantemente referenciados nas obras de Golbery do Couto e Silva, na medida em que se pronunciava a formação de uma doutrina que orientou a ESG e os elementos a ela vinculados em torno de um projeto de poder. 198 T.S. Eliot, de cidadania britânica, embora nascido em St. Louis, Missouri, EUA, escreveu Notes Towards a Definitions of Culture, de cuja edição argentina Golbery foi buscar referências.

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cristão. Um europeu pode duvidar da verdade da fé cristã e, no entanto, o que diz, o que produz, o que faz, será tudo proveniente dessa sua herança de cultura cristã e dependerá da própria cultura para que tenha sentido. Somente uma cultura cristã poderia ter produzido um Voltaire ou um Nietzsche. Não creio que a cultura da Europa pudesse sobreviver ao completo desaparecimento da fé cristã [...] Se desaparecer o Cristianismo, toda a nossa cultura desaparecerá também. (ELIOT apud SILVA, 1981, p. 224)

Percebe-se na construção do discurso de Golbery o mesmo padrão de comportamento ao qual Kissinger se reportou ao descrever as ações da Diplomacia estadunidense, a defesa desse conjunto de grande valor cultural, especialmente o Cristianismo e o seu ordenamento moral, que forneceu as bases às quais recorreu para a montagem do aparato discursivo que, nesse aspecto, evidenciava um dos papéis que deveriam ser desempenhados pela ESG no decorrer de sua evolução enquanto instituição estatal. Muitas das referências a essa carga cultural constavam de textos escritos entre 1958 e 1959 e que compunham as segunda e terceira partes de “Geopolítica do Brasil”. 13.1 Geopolítica e geoestratégia: o pan-americanismo e os sistemas coletivos de defesa Em um texto que descreveu, em 1959, como composto por vários “ensaios sobre temas da Geopolítica brasileira” reunidos num só corpo, Golbery teceu considerações sobre autores que, no decorrer da história e desde a Antiguidade 199, se dedicaram a escrever sobre as relações de poder e suas áreas de interesse ligadas à Geografia (SILVA, 1981b, p.141). Comentando os avanços científicos e tecnológicos e o papel que desempenharam enquanto responsáveis por importantes mudanças nas formas de relacionamento entre os Estados-nação, Golbery salientava, sobretudo ao que implicava na capacidade do homem dar a si, às suas ideias e à riqueza produzida a velocidade de tráfego que vencia qualquer limite imposto por compartimentações espaciais convencionais. Tal dinâmica teria um impacto mais profundo sobre aquilo que seria a temática militar por afinidade, a arte da guerra. Assim, buscava alertar para a responsabilidade inerente aos Estados, por ação ou omissão, em seus atos internos e externos200 , que teriam repercussão imediata em um cenário internacional tornado a cada dia mais complexo.

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Recorrer a fatos e personagens históricos para compor seus raciocínios era comum nos textos de Golbery. Golbery alertava para a singular situação que impedia que se delimitasse a política interna de um Estado de forma que aquela se diferenciasse da política externa. A complexidade da Guerra Fria, onde a guerra era um componente permanente no processo de paz, reduzia as decisões de Estado a um mesmo denominador que conjugava as relações interiores e exteriores de uma política nacional. (SILVA, 1981b, p.144) 200

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À época na qual o texto foi redigido, existia pouco mais de uma centena de países. Estava em curso e entrando em seu ápice o processo de descolonização afro-asiática201, que colocava às mesas de negociação do cenário político mundial as novas nações, com suas pautas de reivindicações e discursos em defesa de suas soberanias e interesses. Estava assim criado o cenário ideal para que o grande conflito Leste-Oeste atraísse aliados para seus polos ideológicos de origem. O fortalecimento dos sistemas integrados de segurança coletiva, como a OTAN e a OTASE, ou mesmo de organizações políticas transnacionais, como a OEA, tornava-se a grande opção com vistas ao resguardo da sobrevivência dos Estados, em um momento em que a guerra, diante das mudanças operadas nos mais diversos espectros das sociedades ocidental e oriental, tornava-se um problema algo mais complexo a ser entendido e enfrentado. Seria essa a solução eficaz no combate à complexa situação geopolítica do pós-Segunda Guerra que pautava o pensamento gestado na ESG por Golbery e outros. Em conclusão da sua palestra à ESG, o diplomata Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva destacou três pontos, para ele essenciais, naquilo que dizia respeito aos sistemas regionais de defesa: a) Que os tais sistemas haviam se tornado vitais para a defesa do mundo Ocidental, a despeito do ceticismo de muitos países membros das Nações Unidas sobre a sua eficácia; b) O “papel preponderante dos Estados Unidos”, funcionando como “a espinha dorsal da defesa do mundo livre” e contribuindo com generosidade para a “defesa de seus aliados”202; c) A situação do Brasil, “com a graça de Deus [...] vinculado ao bloco ocidental” por meio de “atos internacionais multilaterais” e também por acordos bilaterais especificamente com os EUA, que em suma estavam destinados à salvaguarda dos “alicerces da vida democrática e cristã de que desfrutamos e desejamos legar às gerações futuras” (1957, p. 30 a 32).

Conceito que denomina “a emancipação das colônias europeias localizadas” em África e Ásia. Azevedo, 1999, p.148. 202 Silva (1957, p. 31) citou os investimentos estadunidenses nos países aliados a título de defesa, nos anos anteriores ao seu discurso na ESG, como algo em torno de “17 bilhões de dólares”, por meio dos quais “ajudaram a desenvolver e equipar um poderio militar do mundo livre no total de 200 divisões de forças militares amigas”. 201

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Nesse sentido, de integração do Brasil aos sistemas de defesa, Juarez Távora, ao defender a importância da adoção de políticas que viabilizassem alianças internacionais mediante o cenário do pós-Segunda Guerra, alertava para os riscos da não adoção de sistemas de relações internacionais fundamentados em uma estrita obediência ao Direito Público Internacional203. Os organismos destinados a reger as relações entre os Estados deveriam se sobrepor aos interesses dos Estados-Nação. Aparentemente paradoxal, na medida em que consiste da fala de um militar a uma audiência de mesma ordem e, portanto, acostumada à retórica do nacionalismo, na prática a prescrição da adoção de um sistema de alianças era apontada como a mais eficaz maneira de garantir, no cenário internacional, a manutenção da soberania. 204 Esta poderia ser solapada, em seu ponto de vista, se o sistema dos Estados-Nação continuasse a ditar as regras do jogo, o que implicaria no risco de imposição de seus interesses pelas grandes potências, evidentemente melhor dotadas do fator força em praticamente todas as instâncias. Seria, efetivamente, a melhor maneira de se resguardar dos efeitos da adoção exacerbada de uma “política de poder”205 por Estados mais fortes (TÁVORA, 1954, p.4). As discussões a respeito da política externa brasileira frente ao cenário da Guerra Fria evidenciavam então, a necessidade de enquadramento do país em um sistema de defesa que lhe conferisse, ao mesmo tempo, proteção e reconhecimento de sua importância. Os discursos esguianos se pautaram, então, por análises detalhadas do processo de formação dos organismos internacionais, de suas deficiências e potenciais, dos papéis que desempenhariam e de como o Brasil se enquadraria neles. Importa observar que, embora a ONU fosse um símbolo maior da existência desses organismos, os discursos proferidos na ESG a colocavam em uma espécie de segundo plano frente os ganhos que o Brasil poderia auferir de uma valorização e fortalecimento da OEA, enquanto entidade representativa de um ideal muito anterior e mais representativo dos interesses nacionais, inclusive de sua Segurança, que seria o pan-americanismo, e do seu papel fundamental para a defesa do Ocidente.

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A observância às determinações da ONU e da OEA selariam o compromisso brasileiro frente à questão da “segurança coletiva internacional e interamericana”. (Távora, 1954, p.23-24) 204 Ao definir o conceito de Estado Soberano, Golbery aponta que ele “nada mais traduz que uma preponderância das forças coesivas políticas, econômicas, militares e outras, sobre as forças desagregadoras de toda espécie”. (SILVA, 1953, p.48) 205 Política do Poder consistiria da tendência de cada Estado, usar de meios para fortalecer seu poder próprio que seria usado em detrimento do poder dos demais Estados. Daria-se, segundo Távora, por meio da “aquisição dos meios de domínio e de defesa” que lhe garantisse o fortalecimento citado. (1954, p.7).

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A ONU, na visão de Gomes 206 (1954, p.14-15) seria uma entidade voltada à finalidade de fazer a política internacional ser voltada à “preparação da ação comum”, no caso, à colaboração coletiva da comunidade internacional em prol do bem coletivo. No entanto, aponta ele, a totalidade das ações empreendidas pela URSS 207 até aquela época teriam redundado em atos expansionistas e a inevitável eclosão de tensões e conflitos. Daí a sensação de insegurança em escala global e a necessidade de serem estruturados e reforçados os sistemas de segurança coletiva, a exemplo do determinado pelo Tratado do Rio de Janeiro, que fora o instrumento responsável pela implantação do sistema interamericano, e o sistema do Atlântico Norte, derivado da criação da OTAN208 em 1949. Para ele, diante dos perigos que a civilização cristã ocidental corria perante a ameaça do comunismo internacional, diante do “materialismo, encabeçado pela União Soviética”, os povos latinos, com base “nos valores espirituais, mercê de Deus”, teriam que se unir à frente cuja defesa era encabeçada “pela força anglo-saxônica”, especialmente pelos EUA, à qual deveria se unir também a Alemanha Ocidental, para a luta anticomunista. (Ibidem, p.21). Daí a necessidade das alianças voltadas à defesa. O problema é que a existência dos organismos regionais não fora explicitada na Carta das Nações Unidas. Na realidade, fora uma iniciativa da chancelaria egípcia, rejeitada em São Francisco, que havia proposto que se considerasse a necessidade e legitimidade da existência de tais organizações. Elas deveriam ser configuradas de forma que reunissem, “em uma região geográfica determinada, diversas nações que, devido à sua vizinhança, sua comunidade de interesses ou suas afinidades, históricas ou espirituais”, se congregassem em

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Henrique de Souza Gomes era Ministro de 1ª Classe do Itamaraty. A prescrição feita por Stalin, segundo Kruel (1953, p.10-11), de que os países com regimes comunistas já estabelecidos, devessem se dedicar ao enfraquecimento dos governos dos países não comunistas, inclusive por meio da guerra, seria por si um argumento definitivo para a rejeição, pela sociedade brasileira, de tal modelo político de viés autoritário que tinha suas bases assentadas em um governo de partido único e totalitário, tal como viera a acontecer com os países da Europa Oriental no pós Segunda Guerra, o que resultou na formação de um bloco de países satélites da Rússia e a ela ligados na sua luta contra o Ocidente capitalista. 208 O diplomata Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, lembrava, ao comentar o papel dos sistemas regionais de defesa no mundo ocidental, que a NATO (OTAN) “foi criada visando à proteção da Europa ocidental de uma agressão soviética” e que, para o Brasil e demais países da América do Sul, um apoio militar à aliança militar do Hemisfério Norte implicaria no possível deslocamento de forças marítimas “para um teatro de operações de interesse secundário” para os países sul-americanos, desguarnecendo um litoral extenso e já “insuficientemente” patrulhado. Advogou, perante a ESG, a criação “de um organismo específico para a navegação do Atlântico Sul”, a SATO, organização militar que segundo a sua fala “agiria em estreita colaboração com a NATO”. (SILVA, 1957, p. 21). Para Rodrigues (1955, p. 24), o Tratado do Atlântico Norte foi “confessadamente moldado pelo Tratado do Rio de Janeiro”. Já Bastian Pinto alertava que o a NATO incluía “todos os países anticomunistas da Europa, com exceção dos neutro e da Espanha, sendo que a participação desta foi vetada pela Inglaterra e França, por antipatia ao regime político espanhol.” (PINTO, 1956, p. 19) 207

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torno da busca de soluções pacíficas para os atritos por ventura ocorridos entre seus integrantes ou, no caso de agressão de um Estado externo ao grupo, legitimar a reação, resguardada a questão da legítima defesa enquanto princípio basilar. Evidencia-se, assim, na exposição de Rodrigues (1955, p.11), o princípio da solidariedade como amálgama dos organismos regionais. Se os sistemas regionais de segurança coletiva, explicados acima, não estavam previstos na Carta da ONU, não houve impedimento neste documento para a sua existência 209. No seu capítulo VIII, artigo 52, parágrafo 1º, rezava a seguinte redação: “Nada na presente Carta impede a existência de acordos ou entidades regionais destinadas a tratar dos assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacionais que forem susceptíveis de uma ação regional, desde que tais acordos ou entidades regionais e suas atividades sejam compatíveis com os Propósitos e Princípios das Nações Unidas”. (ONU, Apud Pinto, 1956, p. 14) Aquilo que não estava previsto, mas que poderia existir, no entanto, era uma força formidável para que não fosse assim considerada. Tanto assim, que os dois artigos seguintes, 53 e 54, colocavam esses organismos sob a autoridade do Conselho de Segurança, sem cuja autorização não se poderia levar a efeito qualquer ação de caráter coercitivo, além do que, definia que toda ação planejada ou realizada no âmbito da segurança internacional, devesse ser previamente informado ao próprio Conselho. Para o Conselheiro Bastian Pinto, tal controle efetivamente perdeu sua razão de ser quando a União Soviética mostrou-se tendenciosa a uma atitude hostil ao Ocidente e marcada pelo expansionismo. Assim, enfraquecido o Conselho de Segurança, o mundo ocidental passou a depender de forma primordial dos sistemas regionais para a sua própria defesa, entre os quais a OEA210. (1956, p.15) Importa lembrar que, constante na Carta das Nações Unidas em seu artigo 51, a legítima defesa foi tacitamente reconhecida como “direito natural”. Tal condição derivava da observância de alguns elementos, tais como a) “A legítima defesa só se pode fazer valer em caso de ataque armado;

Inclusive, Rodrigues (1955, p. 31) destacava que a formação dos sistemas regionais de defesa decorria da inexistência de um dispositivo com tal finalidade coordenado pela ONU. Frente às ameaças de “agressões comunistas”, tais sistemas tornavam-se um imperativo. 209

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Segundo Nascimento, a Carta da OEA define, em seu artigo 1º que dentro da estrutura da ONU, a OEA “constitui um organismo regional”. (1956, p. 16)

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b) O ataque armado há de ser contra um membro das Nações Unidas; c) A legítima defesa pode ser individual ou coletiva, isto é, podem reagir contra o ataque armado tanto o Estado atacado quanto outros Estados que a isso estejam dispostos; d) “As medidas de legítima defesa devem cessar quando o Conselho de Segurança tiver tomado as medidas necessárias à manutenção da paz”. (RODRIGUES, 1955, p.9) Golbery, por sua vez, condenava aquilo que enxergava como uma inércia dos organismos internacionais, incapazes de evitar a eclosão de conflitos. Via como erro a renúncia ao uso da guerra enquanto instrumento político, isso diante da dinâmica de interesses e jogos de poder que movem os Estados, os mais ou os menos fortes, em suas relações. Apontava a Liga das Nações e a ONU como instituições fracas diante das tarefas que se lhes apresentaram. A Liga das Nações, pós-Primeira Guerra Mundial, era definida como um “triste aborto de um grande idealismo utópico”; a ONU, por sua vez, embora mais complexa em suas estruturas211, era referida como instituição dotada de um “estranho sistema de paternalismo político” ( SILVA, 1981b, p.22). 13.2 Dois pólos da segurança nacional na América Latina Segundo Golbery, qualquer concepção de pan-americanismo que fosse colocada em pauta no pós-Segunda Guerra Mundial deveria necessariamente levar em consideração a ascendência do contexto mundial sobre qualquer ideia de unidade continental. Nesse sentido, os EUA assumiriam naturalmente a condição de líderes de um processo de integração das Américas e do próprio Ocidente, mesmo que “a contragosto”, como especulou Golbery. (SILVA, 1981b, p. 165). Seria necessário fazer um esclarecimento sobre essa aparente contrariedade estadunidense em assumir tal papel de destaque na política mundial., na medida em que o isolacionismo sempre foi a moeda sonante nas relações exteriores norte-americanas, analisadas as condições de sua evolução histórica até princípios do século XX 212.

Athayde evidenciava a “superestrutura respeitável” da ONU. Mas criticava o fato de que a instituição era colocada “à margem das decisões que coordenam e correlacionam as forças antagônicas”, paralisada que estaria perante o grande poder possuído pelas superpotências, especialmente o “direito de veto”. (1955, p.21) 212 Discorrendo a respeito da importância de uma política de “não-isolamento”, Juarez Távora usou da fala nesse sentido do então presidente dos EUA, Dwight Eisenhower, que se pronunciara no sentido de que as democracias deveriam entender que o mundo mudara e colocara em xeque “os conceitos rígidos de soberania nacional que se desenvolveram em um tempo quando as Nações eram autossuficientes e independentes para o seu próprio bem211

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O bacharel Austregésilo de Athayde (1956, p. 1) apontou no discurso feito por George Washington, em 1796, ao despedir-se do governo dos Estados Unidos, as raízes do isolacionismo estadunidense. O objetivo de manter aquele país livre “de ligações políticas com todos os outros países”, independente e imune às influências externas, como forma de moldagem a um “caráter americano” que lhes garantisse o respeito exterior e a estabilidade interna, embasando o que Athayde convencionou chamar “o evangelho do insulacionismo” 213. O próprio Athayde fez questão de alertar que a tese de um país fechado no seu isolamento seria passível de contestação. O primeiro fato a ser colocado é que a postura norteamericana apresentaria muito claramente o significado da busca do não envolvimento na política europeia naquele conturbado século XVIII; o segundo ponto a ser destacado, é que naquele exato momento, ainda não haviam eclodido os movimentos libertários que moveriam a América Latina no sentido de rompimento de suas relações de dependência frente suas metrópoles. Tal situação caracterizaria a primeira metade do século seguinte, quando, inclusive, os Estados Unidos colocariam em prática a Doutrina Monroe, de 1823. (1956, p. 2). O Monroísmo 214, no entanto, apresentava um empecilho ao ideal que iria movimentar os órgãos de política externa na segunda metade do século em torno da defesa do ideal de panamericanismo: era um ato de caráter unilateral, desprovido de consulta às jovens repúblicas latino-americanas quanto à forma de fazer frente ao colonialismo europeu. Athayde (1956, p. 4) foi buscar nos escritos do sociólogo argentino Alberdi215 o reclamo latino-americano à falta de apoio dos EUA às lutas pela independência latino-americana. Ele escreveu, em seus Escritos Póstumos, que nada fizeram os americanos do Norte pela liberdade dos povos do Sul:

estar e segurança”. Não haveria mais condições para o isolamento. (Cruzade in Europe, Eisenhower, 1948 APUD Távora, 1954, p.3). 213 Na prática, aquilo a que Washington dava início era necessário para que houvesse a realização de um país, os Estados Unidos da América. Karnal aponta que a sequência inicial de presidentes que possuíam, além de Washington, John Adams e Thomas Jefferson, consistiu de um período de superação de interesses de caráter local e de manutenção de um estado de beligerância com a Inglaterra. Somente com Jefferson tal contexto foi superado, dando-se início a uma fase mais estável que resultou na consolidação do republicanismo. (2014, p. 101) 214 Três elementos são avaliados por Austregésilo de Athayde quanto à Doutrina Monroe: a questão da real necessidade da divulgação de tal documento, diante da impossibilidade europeia de intervir nas Américas por conta de seus problemas internos; a real possibilidade de os Estados Unidos poderem defender a si e aos demais países americanos em caso de ataque de uma potência europeia; e a possibilidade de a Doutrina Monroe estar vinculada aos interesses territoriais norte-americanos, via expansionismo com base no Destino Manifesto. (1956, p. 6-7) 215 Referência ao político e sociólogo Juan Bautista Alberdi. Apesar de remontar à sua crítica, Austregésilo de Athayde recorre à historiografia para apontar que o Congresso estadunidense, “em 1811, examinou a possibilidade de conceder aos insurretos da América Latina o caráter de beligerantes”, tendo o então presidente, Madison, apontado em mensagem ao mesmo Congresso, sua preocupação com os destinos das repúblicas que surgiam ao Sul do continente. (1956, p. 4)

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“[...] nem um fuzil, nem um peso, nem uma espada, nem um homem, nem um navio”, teria sido essa a marca da neutralidade dos EUA frente à luta latino-americana contra a Espanha. Ainda assim, os Estados Unidos estiveram notadamente mais afeitos às suas relações com a América Latina do que propriamente com a política europeia, marcada que foi pela eclosão sequencial de dois grandes conflitos na primeira metade do século XX, aos quais os estadunidenses dedicaram suas atenções políticas e esforços bélicos, apenas a partir do momento em que não lhes era mais possível a manutenção de uma postura de imobilismo humano e material. Lago (1955, p.5) observou que o cenário mundial surgido após a Segunda Guerra Mundial lançou dúvidas sobre o destino do pan-americanismo. Tal situação foi decorrente do deslocamento dos interesses norte-americanos para a Europa e para a Ásia. Os Estados Unidos, inclusive, tinham que assumir “crescentes responsabilidades” que abarcavam uma nova realidade geopolítica configurada pelo início do confronto ideológico Leste-Oeste. Junte-se a isso, o fato de que, com a fundação da ONU, em 1945, os sistemas regionais ficavam relegados a um segundo plano dentro das perspectivas políticas, militares e diplomáticas. Reagindo a isso, as nações das Américas decidiram partir para a defesa de sua organização regional. Em Chapultepec, México, março de 1945, estas fixaram a “posição do sistema interamericano” dentro da nova realidade internacional. Um mês depois, durante a Conferência de São Francisco, fizeram chegar à Carta das Nações Unidas seus objetivos, que se refletiram na redação do texto do Artigo 51, que autoriza, “em caso de ataque armado, ações regionais de legítima defesa, individuais ou coletivas, até que o Conselho de Segurança pudesse adotar medidas apropriadas para” o restabelecimento da paz. No Artigo 52, em seu 2º parágrafo, ficava determinado que problemas relativos às nações vinculadas a sistemas regionais deveriam ser resolvidos no âmbito interno desses sistemas, antes que se apelasse ao arbitramento pela ONU. O despertar de uma “consciência de solidariedade continental” 216, portanto, seria o meio que garantiria a defesa conjunta dos povos americanos. No entender de Golbery, seria

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O Congresso do Panamá, ocorrido em 1826, teria sido, na visão de Athayde (1956, p. 10 a 15), uma primeira efetiva tentativa de união dos povos americanos em torno da ideia de “salvaguarda da sua independência e integridade”. Simon Bolívar, promotor do Congresso, pretendia a elaboração de uma Carta Constitutiva da Confederação que tivesse o mesmo peso político da Doutrina Monroe. O Congresso teve por molde a defesa da “garantia da independência, da ordem interna, da colaboração para o bem geral e o endosse da Doutrina Monroe por todas as Repúblicas e pelo único Império da América”, procedendo, dessa forma, uma antecipação em mais de cento e vinte anos aos termos do Tratado do Rio de Janeiro, que definiu os planos para o estabelecimento de

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necessária uma mudança de postura capaz de colocar a Geopolítica como um norte dessa política de defesa. Era uma tarefa que induzia, inclusive, à necessidade de superação do estigma adquirido pela própria Geopolítica desde que esta fora tornada sinônimo do expansionimo da Alemanha Nazista e, portanto, algo não apropriado às práticas das democracias ocidentais217. Outro ponto a ser superado era a reserva com a qual os EUA eram vistos na América Latina, onde a sua política externa era entendida como a expressão de seu imperialismo 218. O argumento estaria, por si mesmo, historicamente justificado, uma vez que os EUA ascenderam à condição de potência, mas não a única. A União Soviética era o formidável oponente219 que se erguera para lhe fazer frente, em termos políticos, ideológicos e militares. Era necessário, porém, que os estadunidenses mudassem seus conceitos quanto à importância da América do Sul220. Era essa a crítica de Golbery aos aliados do Brasil, a “indiferença” dos EUA quanto à ameaça extracontinental e que residia, enquanto fator demonstrativo de fraqueza, no não investimento na “segurança da fortaleza americana” e, este era, pois, o imperativo geopolítico frente à necessidade de manutenção, “em mãos amigas, das terras do hemiciclo interior”. (SILVA, 1981b, p.176-184).

uma efetiva “solidariedade defensiva continental”. Tais termos, voltados a tornar a “Doutrina Monroe a base de um sistema continental sustentado pela responsabilidade de todos”, seriam reforçados quando da realização de uma conferência em Washington, em 1889, convocada pelos EUA e contando com a presença das chancelarias de dezessete países do continente. 217 Ponto de vista de Griffith Taylor, citado por Golbery, a respeito da Geopolítica da chamada Escola de Munique, que serviu de esteio ao regime hitlerista e que teve em Haushofer seu maior expoente. (SILVA, 1981b, p.165) 218 Eram recorrentes, nesse sentido, as referências a Theodore Roosevelt e sua política do Big Stick, que seriam a nota destoante dentro da lógica de integração cordata defendida pelo ideal do Pan-Americanismo. Athayde (1956, p. 16) expôs que a política de Roosevelt, tal como foi posta em prática por vias do mais explícito intervencionismo seria um desvirtuamento da Doutrina Monroe e, por extensão, um instrumento responsável pelo acirramento de ânimos dos países latino-americanos quanto aos interesses norte-americanos na região. Era aquilo ao qual Oliveira (1956, p. 7 e 8) definira como “investidas de rough rider”, que refletiam negativamente na “literatura política” continental como sinônimo do perigo representado pelos interesses ianques e que sempre emergia sob a forma de “animosidade hispano-americana” quando da ocorrência das Conferências entre os países da região. Tais posturas seriam amainadas posteriormente com a adoção de políticas mais simpáticas aos olhos daqueles países, como a eliminação da Emenda Platt do texto da Constituição de Cuba, em 1933, e o fim de intervenções militares na Nicarágua, também em 1933 e no Haiti, em 1934. 219 Aponta-se o curioso erro da previsão feita por Filho (1956, p. 18), que discursou a audiência esguiana afirmando que “o sistema totalitário soviético está em plena desintegração”, em decorrência do grande impacto causado pela morte de Stalin, em 1953. 220 O que só teria impulso a partir das implicações da Revolução Cubana.

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13.3 O pan-americanismo Quando se propôs a defender a ideia do Pan-Americanismo como elemento capaz de fortalecer as nações do continente, Bastian Pinto explicou que a “unidade essencial” latinoamericana extrapolaria os limites mesmo da unidade continental. Tal fenômeno estaria ancorado em profundas raízes de história, de origem, de religião, de formação social e política, de língua, de mistura racial, que caracteriza a quase todos, do estágio semelhante de desenvolvimento social e econômico, de anseio idêntico de um progresso rápido e efetivo em todos os aspectos da vida. (PINTO, 1957, p. 12)

Os discursos proferidos na Escola costumavam insistir no ideal de unidade. No mesmo molde da fala de Bastian Pinto, Oswaldo Aranha, no ano seguinte, explicitou à ESG a sua visão a respeito do pan-americanismo, um ideal para ele secular, que manteria o continente “não só como um mesmo território, mas como um mesmo sentimento e uma só atitude internacional”. Seria então um elemento integrado à ONU com um propósito maior, na medida em que a unidade continental refletiria adoção de uma postura de extensão dos seus valores ao mundo221, identificados, por exemplo, na ajuda material e financeira dos Estados Unidos aos países de outros continentes. Seria uma missão “mundial”, centrada na ideia de extensão de um modelo civilizacional focado nos interesses, progresso e bem-estar “de todos os povos”. (1958, p. 17). Para as perspectivas defendidas dentro da ESG por Golbery e outros palestrantes, se em larga escala a tal “unidade essencial” da América latina encontrava respaldo na sua orientação majoritariamente cristã católica, uma análise dos posicionamentos de alguns países da região quanto às relações interamericanas, colocava em xeque as pretensões de integração

Duroselle (1992, pag. 53) comentou que, a partir do XIX houve a tendência de que as unidades políticas tornadas Estados vivessem uma espécie de ficção, configurada pela ideia de “igualdade”, em termos de direitos e deveres. Nota-se então, que a teoria geopolítica desenvolvida por Golbery e pelo conjunto intelectual esguiano tinha que lidar com a ambiguidade gerada pela guerra fria. Se, no rastro do ideal de igualdade entre as nações a ONU se configurava enquanto uma referência, o conflito Ocidente versus Oriente fazia lembrar ao mundo a existência de duas superpotências nucleares, que dentro da própria estrutura da ONU possuíam o privilégio do poder de veto dado aos países que detinham assentos permanentes no Conselho de Segurança. Por si, isso já era um indicativo de que, na prática, a igualdade não existia. 221

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plena ao modelo de defesa coletiva do continente. Argentina e México 222, dois importantes países da região, demonstravam-se refratários à condenação do comunismo e ao alinhamento automático com os interesses estratégicos dos EUA no Hemisfério Sul. Em um mundo caracterizado pela bipolarização de posições, não deixava de chamar atenção a posição da Argentina peronista, pivô de uma “terceira posição e de um bloquismo latino-americano, dirigido contra a harmonia no hemisfério”. Oficialmente, tal posição diplomática implicaria em uma hostilidade à influência norte-americana na América do Sul223. No entanto, no entender de Athayde (1955, p. 19), o Brasil seria o real alvo de Perón, em se tratando de rivalidade antiga e latente no cenário geopolítico da América do Sul224. Golbery então defendia o alinhamento do Brasil com os Estados Unidos, guardadas as condições de respeito entre as partes de forma parelha e observada, pelos estadunidenses, a questão da importância brasileira dentro de sua estratégia para a América Latina. Não haveria “subserviência” e nem “apoio cego”, posição também defendida pelo diplomata Bastian Pinto (1957, p. 18 e 19), mas sim uma a observância ponderada “da existência de interesses comuns e da utilidade e até necessidade de uma ação conjunta ou paralela visando alcançar os objetivos que ambos colimam”. Pela tradição das alianças entre os dois países, os estadunidenses não deveriam temer que o Brasil mudasse de postura quanto à linha de sua política externa em relação àquele país e ao pan-americanismo. Como forma de se sacramentar esse grau de importância, as condições internas necessárias a fomentar o desenvolvimento da nação, habilitando-a a desenvolvimento do seu potencial e ao desempenho de suas plenas responsabilidades no cenário das relações

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Se então era variável o grau de solidariedade de cada nação ao projeto de integração interamericana, isso dependia de circunstâncias várias, inerentes às situações particulares desses países. Mas os casos de Argentina e México eram especiais. Bastian Pinto apontava como causa inicial uma questão histórica: uma suposta posição de superioridade argentina sobre os demais países da América Latina por conta da riqueza e progresso auferidos pelo sucesso da sua economia no início do século XX. Isso faria com que os argentinos adotassem uma atitude mais independente quanto a seus vizinhos. Fato ou não, a Argentina realmente manteve neutra quanto à Segunda Guerra Mundial até praticamente o fim do conflito, quando rompeu com “as potências totalitárias” e declarou também o mesmo princípio de neutralidade quanto ao conflito “entre as democracias e os soviéticos”, chagando inclusive a negar a subscrição à resolução anticomunista de Caracas. Já o caso mexicano apontava para dois fatores: a ideia de defesa dos ideais da Revolução Mexicana, que segundo colocou Bastian Pinto, era usada “constantemente e a propósito de tudo”, inclusive para justificar uma posição antiamericana e a riqueza desfrutada pelo país a partir, ironicamente, dos grandes recursos ali deixados pela grande quantidade de turistas norte-americanos que o visitavam anualmente. Como a Argentina, o México também não assinou o documento de Caracas. (PINTO, 1957, p. 13 e 14). 223 Segundo Athayde, tal posicionamento do “justicialismo” contra o “colosso do norte”, teria sido revertido pelo poder do capital norte-americano, do qual a Argentina precisava para seu próprio desenvolvimento (1955, p. 19) 224 As problemáticas relações entre Brasil e Argentina são explicadas por Peixoto (2000, p. 17 a 85), que as situa em um estudo que coloca em pauta a decisiva atuação de Rio Branco e o processo de profissionalização do Exército no decorrer das três primeiras décadas da República brasileira.

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internacionais foram avaliadas em termos da evolução territorial dos países das Américas hispânica, portuguesa e inglesa. A análise feita por Carneiro teve início pela evolução do território hispanoamericano. Correlato à expulsão dos elementos opressores da América espanhola, a tendência a da “multipartição”, a fragmentação política derivada, em larga escala, do modelo colonial ali desenvolvido. O que Carneiro afirmava era que, com a divisão em Vice-Reinados e Capitanias-Gerais, as colônias espanholas na América evoluíram para a formação de forças políticas marcadas pela pessoalidade que caracterizava o fenômeno conhecido por caudilhismo 225. A tendência, pois, teria sido a fragmentação. Diferentemente da América espanhola, o processo de formação do Brasil Colônia apontou para uma orientação política de tendências centralizadoras, configurada principalmente pela existência do sistema de Governo-Geral, depois Vice-Reinado. Esse processo de centralização transcorreu enquanto se configuravam as aquisições territoriais efetivadas por uma série de elementos inerentes à ocorrência da expansão aos sertões do Brasil. “O esforço de estruturação só frutifica, acomodando-se em parte, à situação periférica” quando da firmação do Tratado de Madrid, em 1750, que estabeleceu a configuração espacial de “um novo Brasil”, que extrapolou em muito os limites estabelecidos em 1494. Para Carneiro, foi “o tratado de 1750 que fixou pela primeira vez, um esboço de teoria de posse legítima, em contraposição à antiga divisão papal arbitrária, de Tordesilhas” (CARNEIRO, 1957, p. 7). Os Estados Unidos, na parte que lhe coube na palestra de Silva Carneiro, teve a sua formação histórica exposta colocando-se em ressalto a flagrante velocidade de sua composição territorial, especialmente destacada a evolução após a independência, datada de 1776, e até meados do século XIX. A despeito de ter iniciado a sua história colonial em 1607, quase um século após o Brasil, portanto, as 13 colônias inglesas na América logo empreenderam um processo de ocupação do território além de suas fronteiras iniciais, apontando, quanto à ocupação do Oeste, uma dinâmica estimulada por uma “intensidade enorme” daquilo que Carneiro tipificava como sendo “objetivos nacionais” 226.

225 Segundo Azevedo, o caudilhismo foi um fenômeno que marcou a América espanhola no decorrer do século XIX e que se caracterizava pelo autoritarismo, militarismo e personalismo dos chefes políticos regionais. 1999, p. 96) 226 Segundo Wright e Law (2013, p. 223), o Destino Manifesto foi “uma doutrina política” adotada pelos EUA no século XIX que relacionou a questão da expansão territorial aos desígnios da “Providência” divina, e que resultou em um processo de conquistas que formou um país de moldes continentais, do Atlântico ao Pacífico.

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A breve exposição dos processos de formação dos territórios do Brasil, dos países da América espanhola e dos Estados Unidos, serviu para que Carneiro fizesse uma comparação entre os três diferentes modelos, buscando assim apresentar uma escala que apontasse razões histórico-espaciais que explicassem o alcance de um maior ou menor grau de desenvolvimento dos países do continente em termos de estruturas econômicas, sociais e políticas. Quanto mais dotado de desenvolvimento, evidentemente mais capacitado para a solução de problemas internos ou externos. À ESG, ele expunha então que “a comparação feita com nossos irmãos do Norte põe em evidência nossa inferioridade, da mesma forma que o cotejo com os irmãos hispânicos mostra-nos em melhor nível que eles” (1957, p. 19). No meu entender, tal comparação, antes de qualquer conotação deletéria e longe de optar pela aceitação de uma simples percepção de inferioridade frente à realidade estadunidense, tinha por claro objetivo apontar “as razões lógicas e naturais para a situação em que nos encontramos” e a partir desse entendimento, apontar para a busca das soluções necessárias, conforme expôs Carneiro (1957, p. 20). As comparações seriam então “esclarecedoras”, e deixavam à audiência esguiana a responsabilidade de apreender com os conhecimentos dos processos históricos e com os estudos geopolíticos, a importância de tais saberes para o desenvolvimento e segurança nacionais. Carneiro (1957, p. 23) concluiu sua explanação especificando as consequências que a formulação de diretrizes corretas para a política externa teria, em termos de orientação e condicionamento da ação governamental. O alcance de objetivos, pois, seria resultado do “planejamento, escalonamento e ordem de prioridades, com segurança de métodos e prazos flexíveis”, seguidas as premissas da obtenção da “perfeita estabilidade interna, base incontestável da supremacia exterior” e da expansão da influência exterior, fundamentada na estabilidade política, na sedimentação econômica e na industrialização rápida e perfeita. Em sua visão, a supremacia brasileira sobre o panorama latino-americano deveria ser uma pretensão constante, por força pois da economia e da indústria, mas nunca “pelos canhões”. Em linhas gerais, reafirmava-se o papel já defendido por Golbery, de um Brasil forte no contexto latino-americano para a consolidação plena do conceito de Pan-Americanismo. O Brasil seria então um elemento chave nesse processo, levada em conta a natural posição de liderança exercida pelos Estados Unidos. Bastian Pinto não deixou de lembrar a existência, dentro do Brasil, de uma corrente que divergiria da tradicional posição adotada. Essa corrente julgaria mais conveniente para o país a adoção de “uma política mais nacionalista, desligada de compromissos, que atendesse” os interesses nacionais mais imediatos. Julgava-se até, que o Brasil deveria “seguir uma

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política neutralista, isto é, a chamada ‘3ª posição’”, como a adotada por países afro-asiáticos. Tal ideia, dizia, era “acrescida e insuflada” pelo movimento comunista internacional, com a clara intenção de prejudicar os interesses externos dos Estados Unidos. (PINTO, 1957, p. 19) Não à toa, acredito, o seu discurso à ESG era concluído com considerações a respeito do excesso de atribuições que a Guerra Fria trouxera aos EUA. Seriam a “única potência realmente grande no mundo ocidental ou democrático, obrigados a ocupar-se simultaneamente de todos os grandes problemas do mundo”, amenizou ele. Diante disso, estadunidenses teriam “cometido numerosos erros em sua política externa”, flagrantemente a negligência à qual foi levada a sua política para com a América Latina, mediante o corte de recursos à região, o que se tornou causa natural de “ressentimentos”. (Ibdem, p.19) O recado de Bastian Pinto aos estagiários da ESG era claro: dizia ele, após apontar o grande problema dos EUA, que a despeito de qualquer problema, o Brasil estaria parelho aos Estados Unidos no sistema de defesa coletiva. O ponto relativamente fraco da política externa estadunidense seria sanado mediante a importância que o Brasil possuiria no contexto de América Latina. Daí que voltamos à ideia defendida por Golbery, em Geopolítica do Brasil, aqui citada por Bastian Pinto, naquele momento e, que a união entre as nações, seria a chave para a sobrevivência do mundo ocidental: o Brasil se encontraria em uma “situação privilegiada de reunir todas as condições para exercer a liderança dos países da América Latina”, vital às necessidades decorrentes de um sistema de defesa do Hemisfério. Caberia aos Estados Unidos fazerem a sua parte (Ibdem, p. 20). 12.4 As queixas latino-americanas contra os EUA Aquilo que fora alvo das críticas de Golbery, no que diz respeito à atitude displicente dos governos estadunidenses quanto à importância do Brasil foi reproduzido por Athayde (1955, p. 19-20), em escala ampliada, englobando assim a América Latina. Tratava-se, aqui, do aspecto econômico, cujo impacto sobre a área política seria muito negativo. Ele criticava “o desinteresse ou a displicência com que, por motivos diversos, os governos de Washington encaram os problemas econômicos de suas vizinhas latinas”, enquanto que a Europa ocidental e a Ásia eram alvos de maior atenção política e de injeção de recursos financeiros. Tal fato abriria as brechas necessárias à atuação dos “agentes antiamericanos”, que explorariam as deficiências sociais e econômicas da América Latina em prol da expansão da ideologia de esquerda.

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Tal problema também foi alvo da fala do jornalista João Baptista Barreto Leite Filho, em 1956. A reclamação feita por ele quanto ao comportamento dos Estados Unidos quanto à América Latina, o Brasil especialmente, apontava para uma maior atenção norte-americana ao hemisfério Norte, deixando “o hemisfério Sul como uma zona apenas marginal” (LEITE FILHO, 1956, p. 20). Tal discurso apontava ainda para a questão do subdesenvolvimento do país, que era um entrava ao fortalecimento do potencial nacional e claramente um paradoxo, diante da importância estratégica que a condição territorial brasileira oferecia, no continente e na frente atlântica. Golbery escrevia sobre a pouca atenção dada pelos Estados Unidos aos países da América Latina e da potencial perspectiva de que tal comportamento enfraquecesse os países da região no aspecto social e econômico, facilitando assim o trabalho de elementos subversivos pró-URSS. Era importante destacar a questão econômica na medida em que estavam em jogo o desenvolvimento e também o fortalecimento militar dos países latinoamericanos. Lago (1955, p. 25), explicava que “o princípio da cooperação econômica” seria um ponto já ajustado nas relações entre a América Latina e os Estados Unidos. Mas alertava para as dificuldades inerentes ao processo, que decorriam, segundo ele, da ocorrência de “muita incompreensão de parte a parte”. Se a América Latina esperava injeção de recursos tal e qual a Europa recebera com o Plano Marshall227, os “Estados Unidos se aferravam à tese de que o programa de desenvolvimento econômico da América Latina deveria ser, em grande parte, resolvido mediante investimentos de capitais privados estrangeiros”. Tal impasse teve solução mediante a adoção de preceitos que equalizariam as ações internas, país a país, aliadas à “cooperação internacional nos domínios técnico, econômico e financeiro”, o que implicava na ideia de concessão de substanciais financiamentos externos228.

227 Criado como Programa de Recuperação Europeia, sua denominação oficial, o Plano Marshall foi criado para possibilitar a recuperação do capitalismo na Europa ocidental, mantendo-a distante da influência soviética. Segundo Leite Filho (1977, p. 449), foi o Plano que possibilitou à Europa entrar na década de 1950 com o impulso necessário ao seu desenvolvimento. Já McMahon (2012, p. 41), aponta um montante de 13 bilhões de dólares injetados naquele continente, cujo reerguimento econômico seria vital para “a paz e a prosperidade globais”. 228 Lago cita especificamente o discurso feito por George M. Humphrey, Secretário do Tesouro do Estados Unidos no governo Eisenhower, na Reunião de Ministros da Fazenda ou Economia em IV Sessão Extraodinária do Conselho Interamericano Econômico e Social, realizado em Quitandinha, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1954, no qual são feitas referências às concessões de empréstimos aos países latino-americanos por meio de recursos liberados pelo Eximbank, e Banco Internacional de Reconstrução e Fomento, gerando assim as condições necessárias ao implemento da “Política do Bom Sócio”, destinada “a dar substância econômica à Política de Boa Vizinhança”, marca da política externa norte-americana ainda àquela época, para a América Latina. (1955, p. 27-28)

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Se durante a Segunda Guerra Mundial, especialmente após a entrada dos Estados Unidos no conflito, houvera uma atenção especial daquele país ao Brasil, inclusive com a instalação de uma grande estrutura militar voltada a dar apoio logístico ao esforço de guerra no Norte da África229, com o final do conflito, em 1945, houve a abertura de um novo período que ficou marcado por uma mudança de atitude por parte dos estadunidenses. Segundo Bastian Pinto, “os Estados Unidos viram-se a braços com o novo perigo da expansão do comunismo soviético, e passaram a preocupar-se, sobretudo, com a situação ameaçadora na Europa e na Ásia”, o que de imediato refletiu no deslocamento maciço de recursos para os países daquelas regiões cuja defesa fosse de vital importância para os interesses estratégicos estadunidenses (1957, p. 11). As implicações negativas de tal atitude do governo dos EUA quanto aos seus aliados na América Latina não se fizeram esperar. Bastian Pinto, ainda discorrendo sobre o assunto, explicou à audiência esguiana que tal atitude não implicaria no desaparecimento do “interesse norte-americano pelos assuntos da América Latina, nem que tenha esta abandonado o princípio da solidariedade ante as questões comuns”, conforme ficou evidenciado na declaração anticomunista emitida em Caracas. De toda a forma, explicou ainda o diplomata, seria “muito generalizada nos países latino-americanos a queixa contra o que se considera como negligência de Washington quanto aos problemas desta parte do Hemisfério”. 230 (Pinto, 1957, p. 11) 14 SISTEMAS DE DEFESA Em sua palestra aos estagiários da ESG, em maio de 1955, o então oficial de gabinete do MRE e também professor de Direito Internacional Público do Instituto Rio Branco, Carlos Calero Rodrigues, discorreu a respeito do conceito de segurança coletiva. De acordo com ele, a

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A entrada do Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial levou à percepção de que o imenso e desguarnecido litoral brasileiro seria um ponto vulnerável para o projeto militar estadunidense, que incluía a projeção militar sobre o Atlântico Sul como forma de se alcançar o continente africano. Dessa forma, segundo Sérgio Trindade, houve a decisão pela construção e melhoria de aeroportos e outras instalações que viabilizassem o fluxo de homens e equipamentos entre o Brasil e a África. O aumento da presença militar norte-americana se fez mais presente em Natal, RN, que acabou abrigando a maior base militar dos EUA fora do seu território naquele período. (2015, p. 300 a 303). 230 No mesmo discurso, Bastian Pinto expôs os “marcados indícios” de que haveriam mudanças na situação negativa das relações dos EUA com os países latino-americanos, naquele ano de 1957. O governo Eisenhower estaria colocando em andamento o que denominou “política do bom sócio”, que implicaria em uma maior atenção de Washington aos países da região.

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expressão segurança coletiva não se encontra na Carta das Nações Unidas, nem no Pacto da antiga Liga das Nações. Dela, entretanto, se tem feito uso abundante para caracterizar o sistema de garantias que os Estados têm procurado obter através das duas grandes tentativas de organização geral da Comunidade Internacional (RODRIGUES, 1955, p.1)

Se trataria de um dispositivo que teria, por meio de um processo de “ação compulsória coletiva”, possibilitar que uma determinada nação que viesse a sofrer um ataque, pudesse contar com um dispositivo dotado de aspectos preventivo e repressivo que, em última instância, teria a legitimidade de representar uma comunidade internacional dotada de poder de sanção. Rodrigues (1955, p.2) chamava a atenção para o fato de que, em se tratando de uma questão de relação de forças entre um Estado agressor e a comunidade que lhe aplicaria as possíveis sanções, o fiel da balança estaria justamente no “efeito preventivo” que tal comunidade pudesse representar. A eficiência de um sistema de segurança coletiva está condicionada na força da coletividade contra um Estado agressor ou grupo agressor. Dentro de uma dinâmica como a da Guerra Fria, onde as alianças estavam quase sempre relacionadas à disposição da influência emanada das superpotências, o “problema central” residiria na necessidade de se criar um desequilíbrio nas relações de força a favor do bloco ocidental contra a URSS, de conformidade com a exposição feita à ESG por Rodrigues (1955, p.6). 15 A ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA) A discussão a respeito da origem e evolução histórica do conceito de PanAmericanismo 231 foi o elemento marcante no início da palestra do então Chefe de Divisão Econômica do MRE, Antônio Corrêa do Lago, em maio de 1955. Desconsiderou ele, então, dois fatos históricos tidos por alguns como o ponto de partida para a formação do “sentimento coletivo” de pertencimento a uma comunidade que congregasse os povos americanos: o primeiro deles, a Doutrina Monroe232, de 1823, por tratar-se de “um ato unilateral”; o outro, o

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O conceito foi usado pela primeira vez em 1882, em editorial do New York Evening Post, segundo Azevedo, 1999, p. 343. 232 Para Aquino (1990, p.158), o Monroísmo seria uma representação da forma como os Estados Unidos enxergariam o Pan-Americanismo, atestado de uma pretensa dominação daquele país sobre as Américas. Já Bobbio coloca a particularidade do termo “doutrina”, derivado da linguagem adotada pela diplomacia norteamericana, no sentido de que expressava a enunciação formal de um chefe de Estado ou de um político estadunidense que apontava para uma determinada linha política a ser seguida pela política externa.

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Congresso do Panamá 233 , de 1826, que, em sua opinião, “não passou, na prática, de uma conferência regional, sem resultados duráveis”. Lago, então, situa o surgimento do PanAmericanismo na Conferência Interamericana 234 , realizada em Washington entre 1889 e 1890235, que teria acarretado, segundo ele, “dois resultados concretos de grande importância”: a definição dos princípios que nortearam o movimento desde seu início, quais fossem o compromisso de se “garantir a paz” e a promoção do “bem-estar dos povos das Américas” e o lançamento dos “fundamentos da instituição” que viria a ser no futuro, a OEA. (1955, p. 12) O ideal de Pan-americanismo se fundamenta, institucionalmente, na formação de organismos internacionais – pactos militares, acordos de cooperação ou reuniões de diplomatas por quaisquer outros motivos – quer seriam uma realidade no mundo do pós Segunda Guerra. No entanto, o Embaixador Bastian Pinto chamava a atenção para a singularidade que apontava como de base mais sólida a união baseada no critério de proximidade geográfica, países de uma mesma região unidos por laços diversos. Ele usava a Europa ocidental como exemplo bem sucedido dessa variante política, marcada pela criação de uma série de organismos que visavam a integração dos países da região 236. Tal argumento apontava para as deficiências do Pan-americanismo, tido justamente como “o mais antigo dos movimentos regionais”. A OEA, enquanto expressão institucional de tal conceito, apresentava, era verdade, grande progresso no campo político, mas uma série de fatores, segundo Pinto (1958, p. 14 e 15), “tendiam a limitar sua maior expansão”. O primeiro a ser apontado era a existência de “diferenças de toda índole entre a América Latina e os Estados Unidos”, derivadas especialmente do grande poder, político e econômico, daquele país, “muito maior que o de todos os demais reunidos”. O outro fator preponderante

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Aquino coloca que, realizado entre 22 de junho e 15 de julho de 1826, o Congresso do Panamá chegou a aprovar um tratado para a União, Liga e Confederação Perpétua dos países hispano-americanos, além de tratar de questões de solidariedade militar, preservação da paz no continente, adoção do arbitramento como meio de resolução de questões entre as nações da região e a ideia de abolição do trabalho escravo. Os Estados Unidos, embora tenham mandado observadores, resistiram aos termos aprovados, por questões econômicas, especialmente. Já o Brasil, país escravista, se opôs. (1990, p.156) 234 Lago aponta que foram realizadas seis Conferências Interamericanas entre 1890 e 1933. Além da já citada, em Washington, ocorreram ainda na Cidade do México (1901-1902), no Rio de Janeiro (1906), Buenos Aires (1910), Santiago (1923), Havana (1928) e Montevidéu (1933), todas com suas atividades voltadas especialmente para temas “jurídicos e comerciais”. A “solução pacífica das controvérsias” já estava na pauta desses eventos. (1955, p. 2) 235 Segundo Azevedo (1999, p. 344), “foi a primeira conferência verdadeiramente pan-americana”. 236 Bastian Pinto citou o Conselho da Europa, a União da Europa Ocidental, a Comunidade do Carvão e do Aço a Euratom e o Mercado Comum Europeu foram citados. (1958, p. 14)

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seria a carência de sentido econômico do pan-americanismo, que mantinha em evidência as disparidades existentes entre os hemisférios Norte e Sul do continente americano. A solução para tal problema seria a necessária “união mais íntima” dos países latinoamericanos. A sua integração nesses termos era uma necessidade premente para que se fortalecessem as condições reais para um progresso que permitisse o concomitante alcance do desenvolvimento social e econômico. Era essencial que a América Latina superasse o discurso da união fundamentada apenas nas suas “profundas raízes da história, de origem, de religião, de formação social e política, de língua, da mistura racial” que a sintetizava enquanto imagem de si mesma. Bastian Pinto, no entanto, ressaltava que a adoção dessa atitude não implicaria em uma “negação do pan-americanismo ou propósito de oposição aos Estados Unidos”. Antes, seria o estabelecimento de condições mais razoáveis e justas para o pleno funcionamento do ideal de integração continental. (PINTO, 1958, p. 15) Cabe ressaltar, no entanto, que não foi fácil a superação das muitas desconfianças dos países de origem hispânica diante da política externa dos Estados Unidos para a América Central e as Antilhas. Tal sentimento gerou entraves para a evolução do “movimento panamericanista”, que ficou durante um bom tempo afeito “ao caráter meramente jurídico, econômico e cultural” das relações entre os países, evitando-se qualquer desenvolvimento de negociações que pudessem dar ao movimento características essencialmente ligadas aos âmbitos político e militar (LAGO, 1955, p.2) Importante foi a direção dada para a integração Pan-Americana a partir da Conferência Interamericana de Consolidação da Paz, realizada em Buenos Aires, 1936. Ali, conforme Lago (1955, p.3), “foram dados dois passos fundamentais para o estabelecimento de um sistema interamericano de segurança”, a firmação do “princípio da solidariedade continental e cooperação interamericana”, além de ter sido adotado o “sistema de consulta”, que possibilitava a aplicação do princípio citado. Na prática, foi formalmente proclamado que a ameaça à segurança de um Estado Americano seria considerada uma ameaça a todos os demais (grifo nosso). Ficou também convencionado que situações emergenciais ensejariam entendimentos com base na reciprocidade visando à solução de quaisquer controvérsias, inclusive com a adoção “de medidas uniformes destinadas a fazer frente às ameaças à paz”. Em Lima, 1938, foi instituída a Reunião de Ministros das Relações Exteriores, durante a 8ª Conferência Interamericana, com a finalidade de dispor aos países americanos de um instrumento de consulta. A ocorrência da Segunda Guerra Mundial logo levou à utilização de tal dispositivo. À sombra do grande conflito, houve uma breve sequência de reuniões de

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ministros das Relações Exteriores, iniciada em 1939, no Panamá, e continuada em Havana, 1940, e no Rio de Janeiro, em 1942237. (LAGO, 1955, p.3) A posição tomada pelos países latino-americanos frente a eclosão da Segunda Guerra Mundial foi de neutralidade, conforme definido na chamada Declaração Geral de Neutralidade ou Declaração do Panamá, que derivou do encontro de chanceleres de vinte e uma repúblicas americanas naquele país, entre setembro e outubro de 1939. Tal posição seria alterada pelo ataque japonês a Pearl Harbor, que “provocou a Reunião de Consulta do Rio de Janeiro”, em janeiro de 1942, “na qual se recomendaria o rompimento de relações diplomáticas”. É interessante notar que apenas dois países não assinaram o documento emitido nessa reunião, entre os quais a Argentina, que manteria a sua posição de não declarar guerra ao Eixo até mesmo após a queda de Berlim, em maio de 1945, mudando de opinião apenas “a tempo de tomar parte na Conferência de São Francisco” 238 (NASCIMENTO, 1956, P. 4-5). Dentro de alguns anos, diante da defesa das pretensões brasileiras perante uma perspectiva de firmar-se como país apto a exercer um papel de liderança em um contexto de América latina e opção primeira nos acordos com os Estados Unidos, esta posição argentina – e outras tomadas no decorrer dos anos em desfavor dos interesses estadunidenses na região – seria ressaltada nos cursos ofertados pela ESG como um ponto favorável às pretensões brasileiras, assim entendidas como de liderança do Brasil na América Latina. A ideia de que o Brasil seria capaz de assumir a liderança no processo de integração latino-americana foi também defendida por Bastian Pinto. Dizia ele que o Brasil estaria “naturalmente” talhado para assumir tal encargo, por ser dotado de “maior poder político e econômico”, pela estabilidade política relativa, pela inexistência de divergências com as nações vizinhas, entre outros fatores. Argumentava que os países “vizinhos não escondem que esperam de nós essa liderança, e creio mesmo que até a Argentina estaria disposta a aceitá-la” (1958, p. 16)

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Em conferência à ESG em 1957, o então Chefe da Divisão Política do MRE, Ministro Luiz Leivas Bastian Pinto, explicou que foram Reuniões de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores. A primeira, corrida no Panamá, teve por fim “preservar e assegurar a neutralidade do Continente”; a segunda, em Havana, ocorreu pouco tempo após a invasão dos Países-Baixos e tomada da França pelos exércitos alemães, e tinha por objetivo avaliar “as consequências desses acontecimentos sobre as possessões daqueles países na América”; a do Rio de janeiro ocorreu pouco tempo após o ataque japonês a Pearl Harbor, que foi considerado “o primeiro ato de agressão previsto na Declaração de Havana” e, como tal, ‘considerado como agressão contra a soberania de todas as Nações do Continente”. (PINTO, 1957, p. 6 e 7) 238 Realizada entre abril e junho de 1945.

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O “sentido real da atual política do Itamaraty”, afirmou, estava centrado no “apoio ao movimento de integração latino-americana, em forma gradual e por etapas sucessivas”, afinando a posição nacional com “a tendência mundial para o regionalismo”. As condições naturais para o exercício do papel de liderança, como exposto, já estavam configuradas. Ao Brasil caberia agir “com habilidade e persistência” com vistas à defesa dos “interesses comuns a todos”, mais ainda que à defesa dos seus próprios interesses. Concluía Bastian Pinto o seu discurso afirmando que seria “através dessa liderança” que o Brasil poderia “exercer no mundo, diante dos amigos e de adversários, o papel de real destaque para que somos destinados”. (1958, p. 16) Nesse sentido, a parte final da palestra do Embaixador Álvaro Teixeira Soares trabalhou a definição do Brasil como um “ator e espectador do cenário sul-americano”, avaliadas aí as vantagens e responsabilidades que tal posição poderia acarretar ao país. Tal premissa era inicialmente apontada como orientadora da questão sobre a posição que o país deveria adotar frente a possibilidade de “divergências entre países” da região. Para ele, em se tratando do Brasil um país com seu território e suas fronteiras já historicamente delimitadas, não lhe caberia a adoção de quaisquer atitudes de política externa pautadas pela adoção de princípios expansionistas, classificados, inclusive, como “veleidades”. Pelo contrário, o Brasil deveria equacionar seu comportamento em função de ações pautadas em torno dos capitais de “equilíbrio” e de “prestígio” adquiridos no decorrer de sua trajetória política no cenário continental e mesmo mundial. Descartavam-se assim, no entender de Soares, quaisquer objetivos de hegemonia alcançada pela força. O caminho para essa hegemonia seria outro, a ser trilhado dentro de uma perspectiva de desenvolvimento planejado, conforme os estudos geopolíticos apontavam na formação dos conhecimentos estudados na ESG e instituições de Estado dotadas de preocupações correlatas, como o MRE. O motor seria a riqueza, esta obtida por meio de “crescimento econômico” (SOARES, 1956, p. 17) Arestas por ventura existentes entre o Brasil e seus vizinhos, derivadas de situações políticas passadas, seriam naturalmente superadas pelo respeito às diretrizes consolidadas e já estabelecidas para a política externa do país. Em casos de litígios entre países da América do Sul, a posição brasileira seria naturalmente norteada pelo princípio de uma ação mediadora, visando o fortalecimento dos laços de amizade já existentes entre os países por ventura litigantes. Pesariam, nesse sentido, a presença e a tradição diplomática brasileira, freios, inclusive, ao surgimento de “alguma força que ponha em contraste sua posição, seu prestígio e sua política internacional (SOARES, 1956, p. 18)

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Soares defendia, assim, a ideia de que o Brasil deveria pensar em “sua projeção através do mundo” na medida na medida em que atingisse o equilíbrio que lhe permitisse a superação dos entraves internos ao seu pleno desenvolvimento. Grande e consolidado internamente em seu poder nacional, estaria apto a assumir a condição de “grande potência”, desfecho natural, conforme pensavam os homens que faziam a ESG, pela adoção de um conhecimento naquela Escola discutido e planejado239. A política a ser adotada pelo Brasil na América do Sul deveria, em resumo, ser pautada por uma função “moderadora” que apenas seria possível quando o país fosse “forte, organizado e rico, sem jactâncias e sem agressividade, consciente do seu destino e confiante na sua gente”. Seria essa, então, a “finalidade” pela qual deveria “trabalhar incansavelmente”. (SOARES, 1956, p. 20) Essa visão de um Brasil não agressivo se encaixava no que foi traçado em Havana e no Rio de Janeiro, quando o princípio da solidariedade continental, finalmente, tomou forma definitiva. Na primeira, as “repúblicas americanas declararam que todo atentado de um Estado não americano” contra territórios ou soberanias americanas, seria considerado agressão a todos os países das Américas. Já no Rio de Janeiro, o princípio da solidariedade continental foi objetivamente aplicado pela primeira vez, no caso, com o rompimento de relações com as nações do Eixo. Para Nascimento (1956, p. 5), o Ato de Chapultepec 240 seria “transcendental”, na medida em que definia que qualquer atentado contra a integridade territorial, soberania ou independência política de um Estado americano, seria uma agressão extensiva aos demais países que foram signatários do documento. Dessa forma, ficava evidente o que ele definiu como um “entrosamento da ONU e da OEA”. Perante a comunidade internacional, estava

Cunha (1954, p. 4 e 5) afirmava que a finalidade do planejamento (estudo, elaboração e execução) da política externa impunha ao Estado o aparelhamento, no sentido do desenvolvimento interno, de forma que fossem atingidos “os objetivos de sua política exterior”. O planejamento da política externa é parte integrante do planejamento político, existindo portanto “para aplicação nos campos interno e externo”. Já o planejamento político, faz parte do conceito de planejamento governamental, juntamente “com os planejamentos psico-social, econômico e militar”. O conjunto de conceitos expostos está, por sua vez, condicionado ao Conceito Estratégico Nacional. 239

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Conhecido também como Acordo de Assistência Recíproca e Solidariedade Americana, firmado em 6 de março de 1945, resultado da Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. Disponível em < http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/multilaterais/tratado-do-atlantico-norte/>, Acesso em: 25 abr 2016.

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afirmado o direito à legítima defesa dos países americanos, sendo assim o Ato de Chapultepec inteiramente compatível com a Carta da ONU. (Ibidem, 1956, p. 15) As bases para a formação da OEA, segundo Rodrigues (1955, p.19), foram resultado de um processo de evolução de uma ideia de integração interamericana que remontava à época da emancipação política das nações americanas e que, segundo Athayde, chegara a um elevado grau de maturidade pelo processo de elaboração que antecedera em meio século o Tratado do Rio de Janeiro (1955, p. 10). Segundo ele, a OEA teve sua estrutura fixada no documento assinada em Bogotá, em conferência realizada no ano de 1948241. O evento ficou marcado também pela criação do Tratado Americano de Soluções Pacíficas (Pacto de Bogotá) que, juntamente com o Tratado do Rio de Janeiro, de 1947, do qual derivou o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, formavam “a trilogia básica do pan-americanismo”, àquela época. Mereceu especial atenção no texto, o Tratado do Rio de Janeiro, pelo qual “os países americanos concordaram considerar um ataque armado contra qualquer deles, em seu território ou em águas vizinhas ao continente, ataque contra todos”, configurada assim a tese da legítima defesa242 coletiva. Não foi pacífica a consolidação da ideia de criação de uma organização militar de caráter permanente dentro do sistema interamericano de defesa 243 . O chamado Conselho Interamericano de Defesa tivera a sua criação prevista para atuar como órgão do Conselho da OEA, tal e qual a outros órgãos voltados para as áreas econômica e social, jurídica e cultural. Lago (1955, p.17-18) nos explica que, em Bogotá, “certos Estados”244 fizeram oposição tenaz à criação de um organismo militar permanente no corpo do sistema interamericano. A posição brasileira foi a de liderar uma corrente favorável ao órgão militar, demonstrando que a defesa do continente não poderia ser relegada à condição do improviso, especialmente diante da

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A Organização dos Estados Americanos (OEA) foi instituída em 1948, durante a 9ª Conferência Interamericana. Segundo Lago (1955, p.7), a chamada Carta de Bogotá estabeleceu a estrutura e as atribuições do novo organismo, procurando então “consolidar instituições e processos que se haviam originado e expandido com a prática do pan-americanismo”. 242 Comentando a questão da “legítima defesa” o diplomata Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, em sua exposição à ESG, no ano de 1957, recorreu à definição constante em artigo publicado na Revista del Instituto de Derecho Internacional, intitulado “La seguridade y la defensa propria coletiva según la Carta de las Naciones Unidas”, publicada em Buenos Aires, em 1949, em sua página 193. Segundo o artigo, a “legítima defesa representa o emprego da força por uma pessoa ilegalmente atacada por outra”. Assim caracterizado, o conceito foi traduzido para o campo das relações internacionais mantendo a sua essência, definido como “o mínimo de defesa permitido mesmo num sistema de defesa coletiva, baseado na monopolização da força pela comunidade”. É assim tido “como tal no direito nacional e internacional, tanto pelos Estados quanto pelas organizações internacionais”. (1957, p. 5) 243 O Sistema Interamericano de Defesa tinha por documento básico o Tratado do Rio de Janeiro, firmado no Palácio Itamaraty, na então capital do Brasil, a 2 de setembro de 1947. (SILVA, 1957, p. 11) 244 A ironia na frase não contemplou seus nomes. (LAGO, 1955, p. 17)

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possível ocorrência de um ataque. O meio termo foi alcançado por meio da criação de uma Comissão Consultiva de Defesa e a manutenção da Junta Interamericana de Defesa, “como órgão permanente de preparação defensiva do continente”. O Tratado do Rio de Janeiro, dentro das perspectivas dos argumentos de Golbery sobre a questão do papel da aliança pan-americana no cenário da Guerra Fria, foi de fundamental importância. Para Lago (1955, p.20), esse dispositivo consistiu da “pedra angular” do sistema de defesa interamericano, por ter definido “o procedimento e as obrigações dos Estados Americanos no caso de ataque contra um desses Estados e no caso de outras ameaças à paz do Continente”245. Naquilo que seria um dos pontos fundamentais para a Geopolítica brasileira, o Tratado do Rio de Janeiro recebeu ainda o reforço de ajustes complementares246 que firmaram resoluções que visavam aumentar a eficiência do sistema interamericano, na medida em que se dispunham a “proteger o Continente de agressões armadas do bloco soviético e de ações subversivas do movimento comunista internacional”. 15.1 A OTAN e o Pacto de Varsóvia Austregésilo de Athayde falou à ESG a respeito da configuração da “Cortina de Ferro”, onde, exceção feita à Iugoslávia de Tito, que a despeito de ser um país de regime comunista, era independente da URSS, houve a formação de um bloco submisso aos ditames do Kremlin, onde as nações foram “privadas do direito de autodeterminação, neste vasto e impiedoso simulacro das democracias populares, onde governos fantoches”, representariam “a comédia de uma soberania de que só possuem os símbolos mortos”. (ATHAYDE, 1955, p.16) Para Athayde (1955, p.17-19), a OTAN representaria um elemento fundamental para a defesa do Ocidente, do seu ideal democrático e dos princípios da sociedade cristã, em oposição ao materialismo histórico, mas não seria um elemento único. À assistência esguiana,

Traçando um quadro do “caso particular do Brasil”, Horta (1955, p.14-15) chama a atenção para o fato de que, como membro da ONU e da OEA, perante as quais o país assumiu compromissos e que o obrigavam à adoção de determinadas atitudes diante da eclosão de conflitos que colocassem outros signatários em risco. No que diz respeito à possibilidade de conflitos “fora do continente americano”, enquadrados numa perspectiva de luta de países do bloco ocidental com o bloco soviético, convencionou-se denomina-los hipótese extracontinental; já aqueles que ocorressem no âmbito das Américas, seriam os conflitos intercontinentais, que seria da alçada dos termos fixados no Tratado do Rio de janeiro. Uma terceira variante apontada, denominada continental, derivava da possibilidade de “conflito armado contra nações sul-americanas, quer isoladas quer em coligação”. 246 Derivado da IV Reunião de Consulta (1951) e pela Conferência de Caracas (1954). (Ibidem, p.22) 245

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falou que a “unidade do mundo ocidental origina-se do movimento natural de defesa de um patrimônio de civilização e cultura que, pela primeira vez, em dois milênios, está sendo desafiado” nas suas bases, na “sua filosofia, nas suas aspirações morais, nos conceitos orgânicos de sua estrutura política e econômica”. Tal defesa da ideologia que permeava o Ocidente investia também, e diretamente, na concepção de que tais fundamentos deveriam orientar o pan-americanismo e a OEA, enfim, para que se assumisse a questão da igual responsabilidade das nações na questão da defesa solidária das Américas. Athayde destacava, então, que o peso sobre os EUA, era evidente, na medida que “a política do Ocidente democrático está traçada na teia de compromissos cujos fios se estendem de Washington em todas as direções” (1955, p. 22). Na perspectiva de Golbery, isso viria bem a corroborar a sua ideia de que os estadunidenses, a despeito de todo o seu poder, precisariam de aliados fortes nas diferentes áreas sob seu interesse estratégico. No caso da América do Sul, esse aliado seria o Brasil. Para Golbery (SILVA, 1956, p. 27), caberia a ponderação a respeito da posição soviética quanto ao sistema de defesa coletiva do Ocidente. Ele extraiu, de um texto publicado no The American Journal of International Law 247, em 1954, a opinião de representante do governo soviético que classificava o tratado que gerou a OTAN, e outros, como “criminosos”, definindo-os como “atos típicos de preparação para agressão”, ao contrário dos tratados entre a URSS e seus aliados, classificados no mesmo documento como alianças que, pelo seu teor, teriam “um lugar especial na luta pela paz”. No entanto, em 1955, a União Soviética mudou sua postura quanto aos tratados de defesa coletiva, por meio da criação do Pacto de Varsóvia. Dada essa visão geopolítica desenvolvida por Golbery, onde, em termos de um cenário mundial dominado pelo confronto ideológico entre duas superpotências dotadas do alto poder de fogo, e, um recurso maior representado pelas armas nucleares248 , ele afirma a necessidade de que os demais Estados deveriam adotar a prudente postura de planejar estratégias que garantissem a sua própria segurança, valorizando seu territórios e dando

“Some problems of the theory and practice of International Agreements”, vol. 48/4, p. 642/3 (Apud Silva, 1956, p. 27) 248 Explicando a posição da ONU quanto à questão do uso da energia nuclear, o Conselheiro do MRE, Luiz Leivas Bastian Pinto destacou que uma das primeiras medidas tomadas pelo organismo, no ano seguinte à sua fundação, “foi o estabelecimento de uma Comissão de Energia Atômica, destinada a incentivar o uso da energia nuclear para fins pacíficos e estudar as possibilidades da eliminação das armas atômicas e congêneres”. Esta comissão teve vida curta, sendo dissolvida no ano de 1952, por consequência do não entendimento entre as grandes potências. Nesse mesmo ano foi substituída pela Comissão de Desarmamento. (PINTO, 1956, p. 13) 247

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condições para que suas populações usufruíssem de um processo de desenvolvimento fundamentado em objetivos previamente traçados. Importa observar que Golbery condena em seus escritos qualquer tipo de postura isolacionista. No seu entender, um país só teria condições de alcançar o equilíbrio no seu processo desenvolvimentista se vier a se apoiar na observância de que suas estruturas políticas, econômicas e sociais estiverem amoldadas às circunstâncias do sistema de relações internacionais249 (SILVA, 1981b, p.23). Daí a necessidade de se conceber todo um aparato teórico que genericamente é conhecido como Segurança Nacional, que se desenha em termos conceituais por meio da esquematização de uma doutrina, sendo esta apoiada em dois elementos básicos, qual sejam uma teoria e o mundo dito real ao qual ela possa ser aplicada. Tal conjunto, devidamente engrenado, levaria à racionalização do mundo político 250, evitando-se os inconvenientes e perigos derivados de tomadas de decisões e de atos cometidos ambos à sombra do improviso. Atingindo-se tal padrão de comportamento, pode-se atestar que o Estado esteja apto a fazer alcançar e sustentar os objetivos que norteiam os interesses da sociedade que representa. É esse o papel da Doutrina de Ação Política que Golbery e a ESG desenhavam para o Brasil naqueles momentos iniciais da própria Escola e que seria a razão de viver da instituição. 16 A TEORIA DOS HEMICICLOS Dentro das suas formulações voltadas à formação de uma sólida base teórica para uma geopolítica brasileira adequada ao mundo dos anos 1950/1960, Golbery teve que dedicar parte da sua atenção ao fator “Ocidente”. O conceito era fundamental à sua concepção de mundo e foi exposto em “O Brasil e a Defesa do Ocidente”, de 1958, onde identificava as

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Para Bastian Pinto, o quadro geopolítico formado após a Segunda Guerra Mundial demandava que o Brasil se adaptasse às circunstâncias daquela situação, sem no entanto se descuidar “das lições do passado”. As linhas mestras da política externa brasileira deveriam se balizar para a valorização e consolidação do regionalismo, efetivamente favorecendo a prática de uma efetiva prática de alcance continental, mediante “o agrupamento político, econômico e militar dos Estados, segundo seus interesses comuns e sua situação geográfica” (PINTO, 1958, p. 12 e 13) 250 Secco (1957, p.11), descrevendo o “campo político” tal como percebido dentro do conceito de “Poder Nacional” e nos estudos desenvolvidos na ESG, cita seus elementos básicos, ressaltada a “particularidade” de que tal componente curricular abrangeria a “estrutura política e administrativa do Estado; os aspectos particulares dos Poderes da República; o panorama mundial da atualidade; e os organismos de segurança coletiva”, com destaque para a ONU e a OEA.

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ameaças que pairavam sobre essa parte do mundo, que por extensão seriam ameaças também ao Brasil. Abriu-se, assim, um caminho para que se defendesse uma relação de mutualidade entre esses dois espaços: se por um lado, “o Brasil depende do Ocidente”, este, por outro lado, “precisa do Brasil”. Seria necessária a definição quanto à estratégia de defesa a ser adotada, de como nela se situaria o Brasil e de como nela o Brasil poderia realizar seus Objetivos Nacionais. Estava também implícito o imperativo de um sólido sistema de segurança coletiva, que baseado no continente americano projetaria seu escudo defensivo a todo o mundo ocidental. (SILVA, 1981b, p.220) O “Ocidente”, este pedaço de mundo do qual o Brasil é parte, seria aquele que chegou ao modelo que Golbery vivenciava e defendia após um processo evolutivo “histórico milenar”. Era, em suma, e a despeito de suas fases históricas críticas, marcadas pela intolerância e violência exacerbadas251, o resultado de uma conjunção de valores civilizatórios que em suas origens se amparava em antigas civilizações, cada qual, segundo Golbery, responsável por importantes contribuições. Ao Cristianismo caberia o papel de mostrar-se enquanto a “força dominante na criação de uma cultura comum”. Seria ele a base, enquanto elemento pautador de um modelo ético de organização social, que teria ainda a Democracia como “fórmula de organização política” e a Ciência “como instrumento de ação”. (SILVA, 1981b, p.226). Seriam esses os motores advindos da herança cultural europeia para a formação e consolidação da cultura brasileira. Com base nisso, o Ocidente se apresentaria ao Brasil como “ideal, como propósito e programa”, distinto, portanto, de qualquer outro modelo. Golbery fez contundentes críticas ao que considerava chagas na história ocidental, por meio de comentários sobre o colonialismo, “impiedoso”, responsável por “haver registrado as mais negras páginas da história do mundo”, e o imperialismo, “arrogante ou maquiavélico”, que calcara “aos pés todos os princípios cristãos, fomentando guerras e espalhando a miséria e a dor” (SILVA, 1981b, p. 226) Seriam eles, imperialismo e neocolonialismo, fomentadores de uma ressentida reação nacionalista que era impregnada do marxismo, nascido no Ocidente, mas anti-ocidental, portanto “antidemocrático e anticristão”. Golbery chamava então à responsabilidade as nações

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Golbery cita especificamente as caçadas às bruxas na Idade Média, a violência de Francisco Pizarro na América do Sul, a escravidão africana e o extermínio indígena na América do Norte. (SILVA, 1981b, p.223)

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ocidentais, especialmente “seus dois grandes centros de poder da Europa e da América do Norte”, que deveriam se aglutinar em torno do propósito da luta contra o comunismo, superando até mesmo, diante dessa necessidade maior, seus “interesses materiais ou questões de prestígio 252.” As deficiências sociais e econômicas da América Latina não passavam despercebidas a Golbery, que atribuía a elas um papel crucial como possível fator de cooptação pelo mundo comunista em seu jogo de poder contra o Ocidente. Essas deficiências sócio-econômicas se faziam acompanhar da “imaturidade política” e do baixo nível cultural” que acometiam os países da região, que assim se tornaria “extremamente vulnerável à agressão comunista”. (SILVA, 1981b, p.230 e 246) Ao questionar se um determinado Estado poderia fazer parte de áreas estratégicas distintas, ele antecipava a resposta afirmando o fato de que vários Estados tinham seus territórios localizados em zonas limite de áreas estratégicas distintas, tendo assim que administrar também distintos interesses no que tocava a cada região específica. O caso do Brasil é bem demonstrativo dessa percepção, na medida em que tínhamos que administrar nossas projeções no contexto do relacionamento com os vizinhos sul-americanos, com as demais nações integrantes das Américas Latina e da Anglo-Saxônica e, de forma também imediata, com os países da nossa frente atlântica 253. Na prática, em 1953254, entrava em pauta no pensamento de Golbery a base para o seria depois chamado por ele de “Teoria dos Hemiciclos”. (SILVA, 1953, p.49) Um dos elementos centrais da teoria geopolítica está localizado nas perspectivas de uma nação frente ao contexto político internacional. Como meio de introdução ao estudo dessa variante, Golbery formulou um estudo a respeito das possibilidades, em termos de antagonismos, com os quais o Brasil poderia se deparar. Deteve-se na exposição dos possíveis

252

Ibidem, p. 228-229. Golbery definiu como “Estravazamento de áreas” aquilo que dizia respeito às ligações e dependências de toda a ordem entre Estados ligados a uma mesma área estratégica. No que nos interessa, Brasil, EUA e demais nações americanas estariam assim direcionados à conjunção de interesses estratégicos entre os dois países, em uma clara associação aos problemas colocados pela Guerra Fria ao Pan-Americanismo e suas relações com a Teoria dos Hemiciclos, sendo ressaltada a importância do Brasil no contexto geopolítico do Hemisfério Sul (SILVA, 1953, p.51)

253

Palestra proferida por Golbery quando era Tenente-Coronel e exercia a função de Adjunto da Divisão de Assuntos Internacionais da ESG. (Os estudos estratégicos de áreas: conceito e caracterização de áreas estratégicas - A-16-53) 254

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obstáculos à realização plena dos Objetivos Nacionais, elencados em uma escala que percebia o Brasil frente o mundo, a América Latina e ao seu próprio território. (SILVA, 1981b, p.75) Chega-se àquilo que consiste de um dos pontos centrais deste trabalho: de que forma os textos de Golbery, que integram Geopolítica do Brasil, e os trabalhos apresentados por outros palestrantes à audiência da ESG, deram substância a uma linha de pensamento que advoga um determinado grau de importância para o Brasil no contexto do chamado Mundo Cristão Ocidental. Seriam aí observados os potenciais nacionais e como eles se enquadrariam nas perspectivas das relações brasileiras com a América Latina e com os EUA, no contexto da Guerra Fria então vigente. Tais elementos foram expostos em uma série de esquemas configurados pela cartografia, de forma a colocar “em justo relevo a posição do continente sul-americano e, em particular, do Brasil” (SILVA, 1981b, p.80). Dentro de uma perspectiva do enquadramento do Brasil em uma condição estratégica para a defesa do Ocidente, Golbery produziu um esquema por meio da cartografia onde se observava a divisão do globo terrestre em duas grandes linhas, os hemiciclos, paralelas e projetadas a partir de uma massa continental sul-americana em direção ao Leste. Assim, o mundo teria um primeiro marco em um “hemiciclo interior”, que se estenderia da América do Norte à Antártida e que possuiria a África como seu ponto mais adiantado em relação à América. Já o “hemiciclo exterior”, também denominado por Golbery como “hemiciclo perigoso”, se estenderia do Ártico à Antártida, possuindo o continente asiático como ponto extremo do arco. A diferença fundamental, no tocante à questão de defesa da América, era que o hemiciclo interior apresentava condições mais sólidas e efetivas quanto às possíveis ameaças à “fortaleza americana”. Já o hemiciclo exterior era a zona mais passível de surgimento e desenvolvimento de “ameaças perigosas [...] a qualquer tempo, contra o mundo sul-americano” (SILVA, 1981b, p. 82) Golbery preconizava que, se fossem bem guardadas as zonas demarcadas pelos hemiciclos, a “fortaleza sul-americana” seria praticamente inexpugnável. Dessa forma, restaria como preocupação mais efetiva o domínio do ambiente interno, no caso o território nacional, e também o grande espaço continental, resguardado que seriam em sua integridade e segurança pelo uso de “justas medidas preventivas e, se necessário, repressivas” contra os elementos hostis motivados pela ideologia comunista. A dinâmica traçada por Golbery para o trato da questão do enfrentamento da ameaça comunista soviética se enquadrava nas perspectivas dos Estados Unidos quanto à sua própria segurança. O contexto da Guerra Fria acabou por ensejar uma reação estadunidense sob a forma de uma Doutrina de Segurança e uma consequência direta disso foi o espraiamento

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desse conceito pelo conjunto geográfico continental. No Brasil, isso se refletiu na criação da ESG enquanto instituição voltada à formulação de uma doutrina própria ao país, adequada portanto, às singularidades nacionais. Analisando, pois, a questão ideológica existente por detrás do conceito de Segurança Nacional, Comblin (1980, p. 145) detectou a ocorrência de dois estágios distintos quanto ao comportamento estratégico dos países da América quanto ao combate contra o comunismo. Em um primeiro estágio, ocorrido do fim da Segunda Grande Guerra até o ano de 1961, a estratégia de enfrentamento consistiu do implementação de um complexo sistema de defesa do continente americano e do próprio mundo ocidental contra uma possível agressão soviética por via atlântica. Após 1961, por iniciativa do governo Kennedy, houve uma mudança de postura, com o direcionamento das atenções para o espaço interno, continental, onde o comunismo passou a ser observado como uma ameaça concreta que deveria ser combatida. No meu entendimento e no que diz respeito ao livro de Golbery e à sua teoria geopolítica, a Teoria dos Hemiciclos por ele formulada seria uma resposta da geopolítica brasileira àquilo que os Estados Unidos poderiam esperar de seu grande e tradicional aliado sul-americano. Por outro lado, e de acordo com uma perspectiva amplamente difundida nos textos esguianos, estariam, pela teoria, sacramentados os motivos pelos quais os Estados Unidos deveriam valorizar o Brasil e atender as nossas expectativas quanto a questões fundamentais apontadas nos Cursos Superiores de Guerra do período aqui estudado, quais fossem a da ajuda econômica, fundamental para o desenvolvimento brasileiro, além do reconhecimento do papel de líder natural do país na América Latina. A estratégia voltada a combater os efeitos do expansionismo soviético, antes de considerado o âmbito mundial, se ocuparia efetivamente da defesa das Américas, regiões que deveriam, no entender de Golbery, ser mantidas “em mãos amigas” diante das condições inerentes à existência do antagonismo entre o “Ocidente democrático e o Oriente comunista” (SILVA, 1981b, p. 83 e 84) Um papel fundamental na formação da aliança ocidental seria a integração dos demais países da América do Sul. Era uma tarefa que apresentava certo grau de dificuldade, diante das históricas diferenças existentes entre os países da região, que a despeito da existência da colonização ibérica como ponto em comum, resultaram na ocorrência de entreveros diplomáticos ou mesmo de conflitos entre alguns deles. Sobre o papel a ser desempenhado pelo Brasil, especialmente estabelecida “a paz”, era enxergado por Golbery a nossa capacidade de redimir e salvar do sofrimento – da miséria

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e da fome – vastas áreas que se estendem dos Andes à bacia do Pacífico, passando por África, Oriente Médio e Índia. Dessa maneira estaria realizada a ascensão do Brasil a um papel de relevo no cenário internacional, efetivamente como protagonista, isso com base em sua importância geopolítica e nos seus potenciais humanos e de recursos naturais. (SILVA, 1981b, p. 94). A despeito dos problemas, o argumento de Golbery não abdicava da necessidade de uma efetiva unidade continental frente às ameaças externas que enxergava no decurso de suas análises sobre o cenário internacional. Daí o relevo que ganharam, nos cursos da ESG, as temáticas que envolvem o conceito de Pan-americanismo. 16.1 O mundo de Além-Mar Ao fazer suas considerações sobre os hemiciclos e a sua importância para o projeto geopolítico que visualizava para o Brasil, Golbery descreveu a importância do Brasil para a “compartimentação geopolítica de toda a América do Sul – sobre a qual exerceria o “papel capital de zona de reserva geral ou plataforma central de manobra – e clamou pela adoção de uma estratégia frente o antagonismo entre aquilo que defendia, o “Ocidente democrata e Cristão” e o que enxergava como a ameaça a ser combatida, o “Oriente comunizado e materialista” (SILVA, 1981b, p. 127-130). As bases territoriais brasileiras, patrimônio erguido, no dizer de Golbery, “à custa de antigos conflitos” e a “uma atuação diplomática perseverante e clarividente” (SILVA, 1981b, p.134), nos permitiria, mediante a adoção de medidas que realizassem a plena integração do espaço nacional, constituir um indubitável elemento de alavancagem da integração sulamericana, mediante o estímulo ao desenvolvimento dessa parte do continente. Observe-se que a questão da integração do território brasileiro era um componente de uma estratégia que abarcava as questões territoriais vistas como críticas, a leste e a oeste do país, naquele cenário da Guerra Fria. O Brasil estava vulnerável, no entender de Golbery, pela evidente concentração de recursos humanos e materiais na faixa litorânea ou muito próximo a ela. Para Oeste, seria premente, pois, nesse raciocínio, realizar a expansão às áreas desocupadas e subdesenvolvidas, fortalecer o país em termos de presença e influência na América do Sul. Tal fortalecimento da nossa posição nos possibilitaria tomar iniciativas para uma ação na frente Leste, onde o “hemiciclo interior”, em sua parte sul, apresentava aos olhos do estudioso a importância da defesa da África atlântica para o Brasil, como maneira de evitarse um avanço soviético sobre a região. Para Golbery, tal situação teria graves consequências

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para o Brasil, pois a África era dita por ele como “a fronteira avançada e decisiva da própria segurança nacional” (SILVA, 1981b, p.136-137) As zonas da África e Ásia envoltas nas guerras anticoloniais 255 foram assim definidas à ESG por Roberto Assumpção, em 1958, como áreas de crise, conceito que, na sua concepção, não poderia ser aplicado à América Latina, região que buscava seu desenvolvimento industrial que tinha como um esteio a questão da “solidariedade política” advinda da “observância dos princípios do pan-americanismo”, que por sua vez estava baseado nos princípios que pautaram o Tratado do Rio de Janeiro (1958, p. 14).

Tal

argumento, no entanto, seria desmontado pela ocorrência, em 1959, da Revolução Cubana, que logo tornaria realidade a instalação de um regime socialista dentro do cenário geopolítico latino-americano. No entanto, existiam críticas. A defesa da importância do fortalecimento do Brasil no contexto Pan-Americano e sua posição na Teoria dos Hemiciclos, considerados aqui os argumentos embasados em um ideal de Brasil Potência, seria dotado de uma profunda falta de senso da realidade do país, conforme então exposto pelo embaixador Antônio Camillo de Oliveira aos estagiários da ESG. Àqueles que expressavam efusivos objetivos de levar a presença brasileira “tão longe quanto possível”, mediante a adoção de “uma política externa de longo alcance”, ele afirmava que “já vimos que não dispomos de meios de ação para a política ambiciosa que nos é recomendada”. (1956, p. 20). Ele recomendava o bom senso da não ampliação dos compromissos internacionais além dos limites continentais, onde a política externa brasileira era bem sucedida dentro das suas possibilidades, o que implicava em “estreita cooperação econômica” e, portanto, possibilidade de desenvolvimento mútuo256. A questão da segurança coletiva já estaria devidamente encaminhada pelo fato de o país estar ligado aos “organismos internacionais criados com tal propósito”. Isso implicaria na automática solidariedade brasileira àqueles países que precisassem de “toda iniciativa que

A questão da descolonização, em seus aspectos mais nocivos à teoria de uma ação conjunta em defesa do Ocidente, apontava para a possibilidade de adesão dos movimentos nacionalistas antimetropolitanos ao bloco soviético. Duroselle (1992, p. 245) alerta que tal situação não decorre de uma insatisfação irrompida de uma causa imediata. Um processo revoltoso, segundo ele, é derivado de “um conjunto de ideias e de valores” que gradativamente ganha terreno perante o “desenvolvimento irresistível” do nacionalismo, por exemplo. Como o domínio e presença metropolitana sobre regiões e povos diversos normalmente era dado por meio da opressão e exploração, ocorriam com frequência revoltas, ou minimamente manifestações “daqueles que achavam insuportável a dominação estrangeira”. Daí o ideal de independência. 255

256

Ibdem, p. 20

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vise à preservação da paz”. Quanto aos Estados Unidos, pela força e antiguidade das relações, caberia “uma correção: [...] que nos façamos respeitar e que atuemos com circunspecção, corrigindo os estouvamentos de nossa política interna e pondo ordem em nossa própria casa”257. Se a teoria da Geopolítica do Brasil de Golbery visualizava a Teoria dos Hemiciclos como uma possibilidade real, Oliveira afirmava pois que seriam necessárias correções de rotas, nacional e internacional. O Brasil estava envolto em uma situação na qual seu principal aliado e parceiro se achava “empenhado numa partida de proporções globais, a que seremos arrastados”. Chamava, finalmente, os “governantes e governados” à responsabilidade, sob pena de perda da “herança comum” e da própria liberdade 258. 16.2 As ameaças (hemiciclo interior) As preocupações de Golbery quanto à necessidade de uma bem ajustada política de defesa conjunta do chamado “hemiciclo interior” residiam substancialmente na percepção de que a URSS saberia capitalizar, em proveito do seu projeto expansionista, as deficiências do mundo ocidental frente à avalanche de mudanças ocorridas no cenário político mundial na época. Juntavam-se no mesmo cadinho “os descontentamentos locais, as frustrações da miséria e da fome, os justos anseios nacionalistas

259

, os ressentimentos e ódios

anticolonialistas gerados por um longo passado de opressão imperialista”, que devidamente insuflados e manipulados poderiam arrastar vastas áreas da Ásia e, especialmente no que diz respeito às preocupações de Golbery, da África, à influência e dominação soviética (SILVA, 1981b, p.193). A questão que envolvia a sobrevivência do Ocidente frente o ímpeto comunista passava distante do apenas alinhamento em sistemas políticos-militares de defesa coletiva.

257

Ibdem, p. 20 Ibdem, p. 22 259 Se Golbery e a ESG defendiam um ideal nacionalista, na prática eles tomavam parte do modelo político fundado na transição feudo-capitalista, que teve profundamente a criação de unidades territoriais dotadas de um Estado-Nação. Duroselle (1992, p. 247) escreveu sobre “as grandes criações sócias” que teriam o poder de gerar “rupturas de equilíbrio que favorecem um grande conjunto em detrimento de outro”. O Estado-Nação, criação dos Séculos XV à XVIII fora uma dessas criações sociais, no entanto, esse modelo se encontrava seriamente ameaçado por outra criação, essa do século XIX, o “internacionalismo proletário”, por meio de um processo por ele denominado “disseminação”, que como fenômeno é responsável pela difusão de um novo padrão de pensamento e ação, às vezes, diretamente contrário a um padrão já existente. 258

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Em uma clara crítica à concentração de riquezas nas mãos das potências do Ocidente e ao capitalismo predatório, Golbery clamava pela responsabilidade de se fazer chegar aos países subdesenvolvidos os benefícios da industrialização, do progresso material e da realização plena do poderio nacional. Bem-estar, riqueza e progresso seriam os firmes alicerces sob os quais se assentariam as bases sólidas do regime democrático, que em profusão criaria condições para que se evitassem as críticas feitas ao modelo existente no mundo ocidental pelo discurso oriundo do mundo comunista (SILVA, 1981b, p. 248). Não escapou à visão de Juarez Távora (1954, p.8) a respeito dos impérios coloniais mantidos pelas potências europeias ainda após o fim da Segunda Grande Guerra. Era do seu entendimento que a manutenção de tal sistema de domínio sobre vastas áreas e populações afro-asiáticas, classificado por ele como um anacronismo 260, tenderia a inclinar a “balança do poder” em favor da URSS, do Oriente261, assim entendido. Citava o argumento de Arnold Toynbee, para quem o comunismo possuiria um apelo extremamente eficiente para a cooptação de povos especialmente afetados pela pobreza, quanto fossem as populações coloniais262. Em uma situação complexa como a Guerra Fria, a renúncia ao colonialismo traria a vantagem de cooptação de possíveis aliados na luta contra o expansionismo ideológico soviético. Seria aberto, assim, um caminho a possíveis agressões da URSS à América do Sul, a despeito do fator dissuasivo representado pela existência de um arsenal atômico nas mãos dos EUA, ou, minimamente, que os soviéticos viessem a incentivar a ação de “surtos

260

À grita do mundo comunista que condenava o mundo ocidental pelo processo dito imperialista e colonialista, Athayde (1955, p. 8-10) usava de declaração partida do governo do Ceilão, em Bandung, ao governo comunista chinês, no sentido de perguntar se “havia diferença entre a situação dos países outrora dominados pelo imperialismo ocidental na Ásia e aquela em que se encontram as nações compreendidas pela ‘cortina de ferro’ na Europa”. Na prática, o bacharel fazia uma alusão ao que definiu como “direito inalienável à autodeterminação”, argumento este também usado por Golbery para condenar qualquer permanência de domínio europeu sobre povos afro-asiáticos, ainda mais em um momento tão delicado, onde o sentimento insurrecional poderia ser usado pelos soviéticos como forma de cooptação contra o Ocidente. 261 Athayde (1955, p.4) alertava para os riscos inerentes às “generalizações”, que segundo ele “nem sempre coincidem com a realidade”. No caso, fazia uma referência ao fato de que o chamado “Oriente” seria algo muito além que apenas o Kremlin, no sentido de que o bloco ocidental possuiria “fortes aliados, prontos a colaborarem com os Estados Unidos e a Inglaterra, através de instrumentos políticos, como por exemplo a Organização do Tratado do Sudeste da Ásia“. 262 Golbery, em 1953, comentando sobre o papel do marxismo no processo de levante das populações de África e Ásia contra o Ocidente, falava sobre o que entendia então como uma “teoria por demais simplificadora da luta de classes” e, do seu papel ativo para o declínio da influência ocidental sobre aquelas regiões, então em efervescência anticolonial imperialista (SILVA, 1953, p.9)

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insurrecionais” que tivessem por objetivo a implantação, na América do Sul, de um governo afinado com a ideologia comunista 263. (SILVA, 1981b, p.192) Em que pese tal situação, que colocava em larga escala uma grande responsabilidade sobre os ombros ianques, Golbery alerta que a América do Sul deveria munir-se de meios para a sua própria defesa, de forma a não incorrer na vergonhosa situação de precisar da intervenção externa para a sua proteção. Era necessário evitar, a qualquer custo, a “ocupação estrangeira”, mesmo que aliada, para que “não se torne o preço desmesurado de uma segurança que não tenhamos sabido manter como homens”. (SILVA, 1981b, p.193-194)

16.3 O Mundo Luso-Brasileiro A argumentação de Golbery no tocante à pertença do Brasil a um mundo cristão ocidental passava necessariamente pelas referências às ligações históricas com Portugal e suas colônias. Isso era feito no sentido de se arquitetar uma projeção brasileira além-mar, onde os lusitanos haviam constituído parte importante do seu império ultramarino 264. As projeções da política externa brasileira como delineada nos estudos da ESG buscavam na tradição da “doutrina” a sua linha de ação, mantendo ativa uma linha de ação que se seguia desde o Império, como orientador das políticas do Estado nacional, observados os preceitos básicos da permanência e continuidade, derivada do seguimento das normas cultivadas dentro do MRE quanto à política externa em sua normalidade. Nesse sentido, o Embaixador Álvaro Teixeira Soares realizou sua palestra à ESG em junho de 1956, afirmando que a diplomacia brasileira “tem uma tradição viva que recebemos dos portugueses”. Soares (1956, p. 1 e 2) fazia referência ao “singular talento diplomático” revelado pela chancelaria lusitana no decorrer de sua história, em momentos críticos das relações externas daquele país265 e que sofreu solução de continuidade na história do Brasil independente.

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Observar que a Revolução Cubana já era uma realidade à época da escrita do texto, mas sem a adoção explícita, por Fidel e aliados, de um governo de caráter comunista na ilha caribenha. 264 Golbery destacava o que denominou “situação invejável” das extensões pertencentes a Portugal, tanto no Atlântico Norte, onde se situam o país e o arquipélagos dos Açores, Madeira e Cabo Verde, e o Atlântico Sul, onde Angola, Moçambique e Guiné seriam fundamentais para a montagem de uma estrutura defensiva, defronte o litoral brasileiro. Essas possessões seriam fundamentais, ao ver de Golbery, para a segurança do hemiciclo interior. (SILVA, 1981b, p.195) 265 Soares (1956, p. 2) fez uma referência explícita à participação da delegação enviada como representante do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves ao Congresso de Viena (1814-1815), que reuniu expoentes da política

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Das origens do MRE e das tradições mais fortes das práticas brasileiras no campo das Relações Internacionais, Freitas (1955, p. 20) foi buscar as primeiras referências para remontar os fundamentos da política externa nacional. Suas características mais fortes seriam derivadas de um processo de “continuidade”, uma clara referência a “um legado lusitano”, a herança “dos tempos coloniais”, responsável pela existência de um “preciso tino político” na orientação do corpo diplomático do país. Ele fez uma breve descrição dos rumos da política externa brasileira em sua trajetória histórica, dividindo-a em três períodos, desde a Colônia: a) O primeiro, da “nossa formação territorial, até 1828”, quando ocorreu a independência do Uruguai; b) O segundo, que transcorreu com base na “consolidação territorial” e “consolidação política no continente americano”, com uma orientação basicamente voltada ao exercício de uma “política pan-americanista”, fase essa encerrada com o falecimento de Rio Branco, em 1912; c) O terceiro, o “da integração continental e projeção mundial do Brasil”, contado a partir “de Rio Branco até os nossos dias” (1955, p. 21). Entre os valores próprios que o Brasil deveria observar e resguardar no panamericanismo estariam a “origem lusitana” e a “língua portuguesa” como elementos culturais basilares, acompanhados da estabilidade alcançada pelas instituições, sua autonomia política e as formas encontradas para a “resolução dos problemas de fronteira”. (ATHAYDE, 1956, p. 25). O “mundo luso-brasileiro”, pois, em termos geopolíticos, além do próprio Brasil, era constituído pelos territórios do Império Colonial português, que seria uma responsabilidade naturalmente lusitana, mas, como bem observa Golbery, uma responsabilidade também brasileira, caso necessário fosse. Tal ponto de vista estendia um possível raio de interesse e ação da Geopolítica brasileira a espaços tão diferentes e distantes entre si quanto fosse a América, a Europa, a África e a Ásia 266 . Saía-se, assim, de um raio de ação restrito ao

portuguesa e, mais importante naquele instante, a já participação de Gameiro Pessoa, Visconde de Itabaiana, diplomata luso-brasileiro que ocuparia cargos de ministro do 1º Império Brasileiro nas representações diplomáticas de Paris e Londres. 266 Portugal possuía territórios na Ásia: Goa, Damão e Diu, na Índia; Macau, na China; Timor, nas proximidades da Austrália. (SILVA, 1981b, p.195)

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hemiciclo interior e colocava-se o Brasil defronte às contingências geopolíticas do hemiciclo exterior. Na prática, tal ideia defendia que estariam abertas as “esferas da solidariedade internacional” às quais o Brasil se vincularia. Em suma, seriam os mundos luso-brasileiro, latino, católico e subdesenvolvido, as “quatro grandes e amplas janelas” que se abririam ao país frente a sua posição geográfica sul-atlântica. As três primeiras, fundamentadas na herança portuguesa; a última delas, uma situação a ser resolvida por meio do planejamento geopolítico que conjugasse desenvolvimento interno e a formação de sólidas e vantajosas alianças políticas com implicações econômicas e militares. (SILVA, 1981b, p.196-198) Seriam então estas as bases para a defesa do “Ocidente democrático”, que apareceria então como um alvo fácil às ações subversivas, vítima da sua própria atitude de respeito aos valores que embasam suas sociedades. Golbery lembrava que a liberdade democrática é um valor inestimável para a civilização do Ocidente, e renega-la, em face do agressor totalitário, seria, no fundo, confessar-se a priori vencido. Bem sabem disso os comunistas – os primeiros a clamar, nas praças públicas, pelas franquias da democracia mais liberal, enquanto se aprestam para logo sufocá-las, tão pronto alcancem o poder (SILVA, 1981b, p.237)

No entanto, a “penetração e a infiltração”267 que se aproveitariam das deficiências nacionais, de ordem social e econômica, enfim as influências negativas sob quaisquer formas, fossem elas de natureza “política, econômica, econômica, comercial, ideológica e militar”, que constituíam as bases para a sustentação dos temores suscitados pelos discursos construídos na ESG como elementos perigosos à segurança do país, foram relativizados por Oswaldo Aranha em sua palestra à ESG, em 1958. Argumentava ele a respeito de que a eficácia de uma influência originada por um determinado elemento, estaria relacionada a uma questão de bilateralidade, o que equivale dizer que uma influência qualquer apenas surtiria efeito mediante consentimento e aceitação por um outro elemento, este totalmente passivo à absorção das ideias externas. Aranha expunha, então, que a passividade seria inerente aos povos subdesenvolvidos – citando como

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O próprio Oswaldo Aranha expôs que, além da infiltração política ou partidária, a ação soviética ocorria por meio de assistência técnica, econômica, financeira e militar, como no caso dos recursos disponibilizados em 1957, aos países árabes. Na prática, era a mesma dinâmica posta em prática pelos Estados Unidos na disputa pelo estabelecimento de áreas de influência. (ARANHA, 1958, p. 13)

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exemplo os países que lutavam por sua liberdade frente o poder e dominação imperialista – caso que não se aplicaria ao Brasil, justamente por este já haver superado tais limites. Nesse caso, em sendo o Brasil um país “em plena integração, crescendo em si mesmo, capaz de viver em sua fé cristã, em sua tradição democrática”, estaria relativamente imune ao impacto das influências negativas externas e, internamente, no combate àqueles que não pudessem ser apresentados como “bons brasileiros”, entre os quais se destacavam os partidários do comunismo, que atentavam com sua ideologia contra o ideal de nação na ESG defendido (1958, p. 18). Não à toa, como uma espécie de testemunho daquilo que considerava justo e verdadeiro quanto às bases morais que sustentavam sua teoria, dizia ele, para finalizar seu livro, que seria preciso, sobretudo, testemunhar, à evidência, que somos, não só por origem, mas ainda mais por convicção, povos deste mundo livre do Ocidente que estaremos prontos a defender, sem tergiversações covardes nem subterfúgios desonrosos, quando soar a hora extrema da prova. (SILVA, 1981b, p. 250).

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17 CONCLUSÃO

Pensar o Brasil continuamente e utilizar esses insumos para municiar a geopolítica, aplicando-a em função do Estado, como norte para as políticas dos governos que viessem a assumir a condução do Brasil. Entendo que esta foi a proposta de Golbery do Couto e Silva e dos demais integrantes do corpo administrativo e docente da Escola Superior de Guerra por meio dos Cursos ali formulados e lecionados no decorrer da década de 1950, aqui analisados em termos documentais. O trabalho dos esguianos foi feito de forma metódica, organizado de maneira a que se articulassem os conhecimentos de cada ano letivo com o subsequente, para que houvesse uma solução de continuidade, com as ideias discutidas sendo conduzidas dentro das perspectivas da Doutrina que era ali formulada e aperfeiçoada. Os homens que fizeram a ESG transformaram a geopolítica em um instrumento poderoso de articulação e atuação do Estado brasileiro, na medida em que tratavam de praticamente todos os problemas nacionais, assim entendidos na perspectiva de um planejamento da Segurança Nacional e da consecução dos ONP’s e, isso implicava em produzir uma ferramenta para as instituições de governo, como as Forças Armadas e o Ministério das Relações Exteriores. A ESG, enquanto organização de Estado e, voltada ao estudo e produção da Geopolítica do Brasil e, à formulação de um conhecimento a respeito do Brasil, configurouse como um elemento de continuidade do pensamento sobre o espaço nacional que se reconhecia em vigorosos antecedentes, que teriam se expressado nos trabalhos desenvolvidos por instituições e por homens de Estado que exerceram suas atribuições em função daquilo que entendiam como sendo vitais para o fortalecimento da Nação e sua projeção no cenário internacional268. A Escola foi, assim, herdeira de uma tradição forjada desde os primeiros momentos do Estado imperial, ainda no século XIX e que encontram substância no que foi concebido no IHGB e na SENE e na memória das ações de homens como Alexandre de Gusmão, o Visconde de São Leopoldo e o Barão do Rio Branco.

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O papel a ser desempenhado pelas elites nacionais, em termos de responsabilidades, decorreria de sua identificação e dedicação aos Objetivos Nacionais. Conforme exposto nos “Fundamentos da Doutrina”, uma elite que se coloque em termos de oposição aos “anseios da nação, deliberadamente ou porque não os saiba identificar, tende a cair no conceito público e não é uma elite nacional”. (ESG, 1981, p. 31)

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Da mesma forma que essas instituições e homens de Estado, dessa forma entendidos, a ESG se dedicou à produção e reprodução de uma historiografia que versou sobre o processo de Formação Territorial do Brasil, das questões que envolveram as perspectivas da projeção nacional no cenário exterior e, de como isso se conectou aos ONP’s ali identificados . Essa historiografia constituiu, no meu entender, um vigoroso retrato das visões de Brasil e de mundo modelados no pensamento da instituição e das elites que a frequentavam, e que teriam evidentes consequências no direcionamento das políticas desenvolvidas pelo Estado brasileiro. Os grandes temas em torno da ocupação e formação do espaço nacional, descrito em suas características geográficas da forma sucinta e técnica que era reservada à formulação dos conceitos geopolíticos, apresentavam à audiência esguiana um quadro completo da expansão territorial, dos seus atores, da ação deliberada de indivíduos e instituições em torno da herança cultural lusitana e cristã, bases do pensamento ali desenvolvido. O trabalho desenvolvido pela Chancelaria brasileira era tratado com especial deferência, assim como a narrativa de como ela se estruturara e se comportara desde a formação do nosso Estado nacional. Era uma tradição constantemente referenciada nas discussões acerca dos embates diplomáticos que se apresentavam à ESG no contexto da Guerra Fria, aí entendidas as questões do PanAmericanismo, da formação dos Sistemas de Defesa, do Comunismo, do confronto de Civilizações, questões envoltas em um constructo que era eivado do ideal de formatação dos conceitos estratégicos inerentes ao domínio castrense. Foram esses, em essência, os elementos que constituíram o corpo do livro Geopolítica do Brasil, obra clássica dos estudos da Geopolítica nacional. A confrontação entre os textos que compuseram o livro “Geopolítica do Brasil” de 1967, com os arquivos integrantes dos Cursos Superiores de Guerra da década de 1950 apontam claramente para uma conexão entre esse conhecimento e os aspectos doutrinários formulados na Escola Superior de Guerra, em um processo de diálogo permanente. Todo esse aparato intelectual, por sua vez, acabou por estender seus conceitos e domínios a outras instituições nucleares das Forças Armadas e da Diplomacia, como a ECEME, responsável pela formação do alto oficialato do Exército e, o Instituto Rio Branco, responsável pela entrada dos funcionários na carreira diplomática e pelo aperfeiçoamento do pessoal do Ministério das Relações Exteriores. Integrados aos conceitos ali desenvolvidos, observada a ESG como um locus voltado à produção de conhecimentos destinados às políticas estatais, os Estagiários esguianos tinham então condições plenas de ascensão aos mais altos cargos nas variadas instituições de governo

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e da iniciativa privada às quais pertenciam com implicação direta na qualidade dos serviços que poderiam prestar ao Estado no exercício dessas funções. O destaque dado à ESG e ao MRE é decorrente de serem instituições dotadas de similaridades no tocante às carreiras militar e diplomática e também devido à dinâmica conjunta de percepção das possibilidades que se abriam ao Brasil nas políticas interna e externa. Realizou-se ali um trabalho que foi definido como um processo de racionalização da ação política, com vistas à modernização do País e à aceleração de seu desenvolvimento, aspirações que já estavam na consciência de ponderáveis parcelas das elites nacionais, civis e militares, e que as práticas então vigentes estavam longe de alcançar (ESG, 1981, p. 16)

Assim, estava delineada a questão de se dotar o país da melhor estrutura capacitada para a formulação de ideais, adequar-se aos conceitos gerados pelas mudanças inerentes aos sucessivos contextos históricos que definiam a política brasileira e sua ação no mundo. Considero assim ser relevante este trabalho, devido à minha contribuição ao tema da Geopolítica. Têm sido constantes os trabalhos acadêmicos que versam sobre a ESG, sobre Golbery e a Geopolítica do Brasil, mas busquei traçar os rumos do que aqui foi produzido dentro de uma perspectiva que associa a Geopolítica à historiografia produzida sobre a formação do Estado brasileiro e a uma análise dos conteúdos, dos programas e da estrutura do Curso Superior de Guerra. Enxergo tal fato como positivo, na medida em que entendo ser a Geopolítica um conhecimento que diz respeito à implementação de políticas de Estado minimamente ancoradas em subsídios que, pela dinâmica dos próprios estudos geopolíticos, são extremamente abrangentes. Não à toa a ESG permanece ainda como referência para os estudiosos dos grandes problemas nacionais, alguns dos quais diagnosticados há décadas e ainda passíveis de uma solução. Os conhecimentos tratados na ESG desde a sua fundação, independente do período ao qual se refira uma pesquisa, possuem como característica o fato de que buscavam apresentar resultados para a sociedade como um todo, na medida em que o estudo das projeções de poder continua a apontar que ainda existem grandes temas que foram abordados pelo conhecimento geopolítico brasileiro do século XX que se fazem relevantes ao tempo atual, não tendo ainda sido totalmente substituídos por outros temas contemporâneos. Entendo que a produção esguiana ficou muito marcada pelo binômio “segurança e desenvolvimento”, elementos que são estigmatizados por parte da análise historiográfica,

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como símbolos de um conhecimento tido como atestado do conservadorismo que se faz representar na Escola. De imediato, como percebi nos meus estudos sobre a instituição, é traçada uma associação do constructo esguiano ao período militar, como se tivessem sido os estudos ali desenvolvidos os delineadores de um planejamento voltado ao fim específico de embasar um modelo autoritário de poder consubstanciado pelo controle da República pelos militares. Mas não se pretende entrar aqui no mérito da questão de quem efetivamente defendia um ideal democrático naquele contexto de Guerra Fria. Voltando à obra de Golbery, eram exatamente suas angústias e reflexões sobre os problemas gerados pela ascensão dos militares ao poder em 1964 que se faziam representar nas palavras que compuseram “Conjuntura Política Nacional – O Poder Executivo”. O que mudara desde as décadas de 1950 e 1960? O que ainda pautava a vida brasileira e suas relações com o mundo? As circunstâncias até eram diferentes, mas isso não mudava o real sentido e importância do que se construíra intelectualmente na Escola. Entendo que se mantinha ativa toda uma linha de pensamento inerente ao livro “Geopolítica do Brasil”, texto de 1967, à qual Golbery se referiu quando palestrou à ESG, naquele ano de 1980, em meio a um complicado processo de transição política. Ele era Chefe da Casa Civil do governo Figueiredo, por ocasião do discurso proferido na Escola e que compôs a primeira parte do livro editado no ano seguinte, aqui em parte utilizado. Entendo, enfim, que a obra editada em 1981, agora possui um valor histórico de caráter inestimável para a análise do tempo presente.

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ANEXO - ESQUEMA 16 - A AMÉRICA DO SUL E OS HEMICICLOS INTERIOR E EXTERIOR.

Fonte: Silva (1981b, p.81).

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