O olhar e a palavra: aproximações entre a fenomenologia do olhar e a arte literária

May 30, 2017 | Autor: M. Miranda Fiuza | Categoria: Fenomenologia, Poética, Teoria Literaria
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Esse est percipi; condição existencial idealizada por Berkely, na qual o olho eterno de Deus permaneceria nos observando mesmo quando nenhum outro olhar repousasse sobre nós, garantindo-nos a existência.
"O olhar e a palavra: aproximações entre a fenomenologia do olhar e a arte literária"


Marina Miranda Fiuza
2010


Introdução

Em texto que inaugura a compilação sobre "O olhar", proveniente do curso livre promovido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte (Funarte) e publicado pela Companhia da Letras em 1988, o organizador deste belíssimo livro, Adauto Novaes, escreve: "O olhar deseja sempre mais do que lhe é dado a ver." (NOVAES, 1988, p. 9)

Ao contrário dos outros quatro sentidos – tato, audição, paladar e olfato – a visão não se aprisiona nos limites da matéria. Somente pelos olhos torna-se possível explorar o "que está oculto no outro lado do corpo, acolhendo-o como um secreto prolongamento da matéria". (NOVAES, 1988, p. 9) O oculto da matéria torna-se prosa e participa da História apenas como sombra, completa o autor. Ao lidar com o invisível da experiência sensorial, a literatura é marginalizada na Academia pelas ciências do provável.

Mais do que conteúdo, porém, acreditamos que a literatura não apenas escreve sobre o invisível, mas fundamenta-se nele. Afinal, não é com a palavra conceitual que trabalha o texto literário, mas sim com seu prolongamento oculto.

É através da relação entre o olhar insaciável e a palavra poética que pretendemos, neste trabalho, esboçar uma possível concepção da literatura a partir do olhar. Para tanto, utilizaremo-nos de recortes de alguns autores acerca, sobretudo, da fenomenologia do olhar.



A visão entre os sentidos

Marilena Chauí, em seu belíssimo ensaio "Janela da Alma, Espelho do mundo", diferencia os dois possíveis caminhos do olhar. Como janela da alma, o olhar tem como ponto de partida os nossos olhos e, portanto, tem em sua gênese o nosso interior. Como espelho do mundo, os olhos refletem o mundo que pousa diante de nós em eterna vaidade. No primeiro caso, o olhar ativo sai de si e traz o mundo para dentro de si, enquanto no segundo, o olhar está sujeito exclusivamente à exterioridade. Para diferenciar – e aproximar – estes dois conceitos, Chauí faz um rico apanhado de reflexões sobre o olhar encontradas nas expressões cotidianas da língua, nos mitos gregos, nas falas de filósofos, artistas e teóricos através da história.

Apoiando-se principalmente na teoria fenomenológica de Merleau-Ponty, Chauí aponta a visão como o sentido mais próximo do espírito, dada a imaterialidade desta experiência e ao seu direto acesso ao intelecto.

O olhar apalpa as coisas, repousa sobre elas, viaja no meio delas, mas delas não se apropria. "Resume" e ultrapassa os outros sentidos porque os realiza naquilo que lhes é vedado pela finitude do corpo, a saída de si, sem precisar de mediação alguma, e a volta a si, sem sofrer qualquer alteração material. (CHAUÍ, 1988, p. 40)

Ao contrário do tato, do olfato, da audição e do paladar que só nos permitem apreender um objeto nos limites da matéria, a visão apodera-se, por analogia, dos outros sentidos e convida a ir além do ofício da vista, como assim definiu Santo Agostinho. Daí usarmos expressões tais quais "vê como cheira, vê como sabe bem, vê como é duro" (CHAUÍ, 1988, p. 39). A amplitude de percepção que ocorre quando fazemos uso da visão só é possível porque não podemos nos apoderar, pelo olhar, do objeto que vemos. "Ver é ter à distância". (CHAUÍ, 1988, p.40)






O Olhar e a Palavra Literária

A atividade do homem tende naturalmente à rotina, observa Aguiar e Silva em seu clássico livro "Teoria da Literatura". Tal tendência reflete também na atividade lingüística, o que resultaria em uma "acentuada estereotipação" da lingugaem coloquial. Segundo o autor, quanto mais previsível for a palavra, menos informação ela transmitirá uma vez que a familiaridade dispensa a reflexão.

A linguagem literária, contràriamente, define-se pela rejeição intencional dos hábitos lingüísticos e pela exploração inabitual das virtualidades significativas de uma língua. (AGUIAR E SILVA, 1969, p. 36)

Da mesma forma que o olhar, o texto literário se mantém sempre à distância daquilo sobre o qual escreve. Vejamos o exemplo a seguir.

Ao lidarmos com um texto informativo a leitura como uma faculdade da visão aproxima-se do tato. É possível "apalpar" o texto, sentir-lhe a forma, retirar-lhe dados como quem retira objetos de dentro de uma bolsa. Estamos diante de um texto repleto de palavras-sígno, as quais compreendemos sem esforços uma vez que estamos sob a poderosa legislação da linguagem cujo código – a língua – inscreve seu poder desde toda a eternidade humana. (BARTHES, 2007, p.12)

Do texto literário, porém, jamais teremos posse. O artista literário tem como matéria prima a palavra: seu labor é transformá-la. Longe do convencionalismo da linguagem formal, as palavras libertam-se de seus conceitos, são dessignificadas e ressignificadas. Entre plurissignificações, o texto torna-se obscuro. Com isso, o que pretende o escritor não é causar o puro desentendimento do leitor frente ao texto, mas, sim, sugerir novas imagens, provocar novos sentidos pelo estranhamento da palavra-símbolo, tal e qual a conhecemos.

Se reconhecemos a palavra-sígno dentro de um texto literário, fazemo-no apenas à distância, como ocorre no reconhecimento de um objeto pela visão. O que nos separa da palavra palpável – eterna promessa – é o amplo espaço da percepção.
Segundo o formalista russo Chklovski, o que categoriza um objeto – em nosso caso, o texto – como artístico é a duração da percepção decorrente da desautomatização do olhar. Para este teórico, só é plenamente consciente o indivíduo capaz de desprender-se das convenções pré-estabelecidas pelo próprio homem inserido em sua cultura. Em seu famoso artigo "A arte como procedimento", Chklovski escreve:

E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar sensação de objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. (CHKLOVSKI, 1976, p. 45 )

Sempre que o significado distanciar-se do significante, sempre que se fizer necessário entre estes dois pólos um prolongamento da percepção, teremos então um texto artístico literário. "A arte é um meio de experimentar o devir do objeto". A literatura é um meio de experimentar o devir da palavra.


















A literatura e o Fantástico Aparelho Óptico

Leyla Perrone-Moisés, também em colaboração ao livro "O olhar", escreve "Pensar é estar doente dos olhos", artigo que interpreta os heterônimos de Fernando Pessoa a partir da variação de olhar existente entre eles.

Sua análise parte de Fernando Pessoa ele mesmo, heterônimo de olhar velado que busca enxergar o oculto das coisas, sem se deter no que há de visível nelas. "Contemplo o que não vejo", diz o escritor constantemente transtornado pela névoa que se estabelece entre ele e aquilo que deseja ver.

Através do olhar, Fernando Pessoa ele mesmo deseja ver o oculto além do objeto, "o secreto prolongamento da matéria", como assim o definiu Adauto Novaes. Mesmo quando tenta ver-se, busca o sujeito oculto além da própria imagem. Poderíamos assim, criar a seguinte equação:



SUJEITO OLHAR OBJETO OCULTO



Ao tentar ver o sujeito que está oculto atrás da sua própria imagem, o olhar de Pessoa distancia-se de si – ver é ter à distância – e o que consegue ver é um eu-obejto, homem contemplador. Assim, olhar e objeto alternam seus lugares nesta equação da impossibilidade de ver, como um enfeite magnético de mesa de escritório que gira eternamente sem jamais se chocar.

Para este heterônimo apenas o olhar divino, superior e exterior aos objetos e sujeitos, poderia apreendê-los de fato. O olhar divino torna-se necessário para garantir a existência de todas as coisas, uma vez que ser é ser percebido.
O mestre Alberto Caeiro surge para acalmar a angústia de Fernando Pessoa ele mesmo, professando um exercício de não exceder a exterioridade das coisas visíveis, não havendo, assim, face oculta alguma. A equação do olhar em Caeiro seria o resultado da soma entre sujeito e objeto.

Discípulo de Caeiro, Ricardo Reis tenta colocar em prática o olhar pagão que tudo vê. Contudo, ao ver as coisas ele não se funde a elas, apenas posicionando-se diante, desapaixonadamente. Ao contrário do olhar de Fernando Pessoa ele mesmo que se distancia na incessante intenção de melhor ver, Ricardo Reis acredita, mesmo que com indiferença, estar diante da plena existência das coisas.

Álvaro de Campos, finalmente, pratica em seu exercício de alteridade, o olhar caleidoscópico, capaz de agilmente apreender um objeto através de múltiplos ângulos. Este olhar sensacionista está atento às "sensações intensas, enérgicas e vibrantes da vida moderna" (PERRONE-MOISÉS, 1988, p. 340). Contudo, Campos frustra-se com a fugacidade deste olhar que tanto olha sem de fato ver, o que faz com que ele busque frequentemente na infância a unidade perdida do adulto plural.

Assim, Perrone-Moisés reconstitui os heterônimos de Pessoa pela análise de seus olhares. Segunda ela, é a força do conjunto destes olhares que torna a obra Pessoana um "fantástico aparelho óptico". No momento da leitura, fazemos uso deste aparelho capaz não apenas de reconstruir verbalmente uma imagem, mas de intensificá-la fortemente.

Ao substituir um real visto por uma imagem dita, o poeta afirma nossa percepção do real, revela o que não víamos antes, eleva diante de nossos olhos mentais um outro mundo, que concorre com o visível e o suplanta, dando uma forma e uma significação àquilo que, no mero estar-ali, é informe e insignificante. (PERRONE-MOISÉS, 1988, p. 345)


O discurso poético literário é capaz de acordar nossos olhos que se tornaram míopes no processo de automatização da linguagem. A literatura obscurece a palavra para trazê-la em seguida à luz, devolvendo-nos a sensação de vida. (CHKLOVSKI, p. 45)



Conclusão

Entre os cinco sentidos não há dúvida de que a visão tem despertado maior curiosidade no homem através da história. Demócrito, Epicuro, Lucrécio, Aristóteles, Santo Agostinho , Merleau-Ponty , Sartre, Pessoa, Lispector... são alguns dos nomes que dedicaram-se, em menor ou maior grau, a desvendar os mistérios do olhar.

Ainda distante de uma conclusão acerca da fenomenologia do olhar, o consenso inegável da modernidade é o de que a visão extrapola os limites materiais do visível, abrindo-se para o nebuloso campo da imaginação. Longe da concepção democritiana de olhos passíveis - simples espelhos refletores do mundo exterior - o olhar avança em direção dupla: para o íntimo humano e para o além da matéria.

Sentir um objeto com os dedos é algo definido e concreto, diferentemente da experiência de sentir com os olhos. Olhar requer interpretação, afirma Fayga Ostrower, e toda interpretação já é em si um processo de criação.

Olhar e criar.

A criação literária é sempre fruto do olhar do escritor sobre determinada coisa. Talvez por isso a fenomenologia do olhar instigue igualmente filósofos e escritores. Muito frequentemente, o olhar torna-se conteúdo e o resultado são os mais diversos olhares sobre o olhar. "O essencial é saber ver", professa Alberto Caeiro em acordo com Goethe e sua célebre frase: "Pensar é mais interessante do que saber mas menos interessante do que olhar".

Mais do que um processo de escrita ou mero conteúdo, acreditamos haver uma relação de essência entre o olhar e a literatura.

A palavra que busca o poeta – e por poeta entendemos o escritor comprometido com a arte, e não com a informação – não é a palavra-símbolo que preenche a ausência daquilo que codifica, mas a palavra como experiência, emissora de si mesma. Desta forma, o texto literário torna-se terreno fértil onde cada palavra vela, sentinela desatenta, imagens múltiplas. Assim como o olhar é capaz de alcançar os prolongamentos invisíveis da matéria, a palavra poética se desdobra em imagens além do seu conceito inicial. Olhar e palavra poética passeiam livres no campo das possibilidades criativas, uma vez que fogem dos limites do palpável.

Encerrada a batalha entre o visível e o invisível – sem que houvesse um único vencedor – olhar e palavra erguem-se como arcos do triunfo sobre a via de mão dupla por onde transitam as sensações do íntimo humano ao exterior e além.





















Referências Bibliográficas

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1969.
BARTHES, Roland. A aula. São Paulo: Cultrix, 2007.

CHAUÍ, Marilena. "Janela da alma, espelho do mundo". In: O olhar/ Adauto Novaes... [et al.] – São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

CHKLOVSKI, V. "A Arte como Procedimento". In: Teoria da Literatura: formalistas russos. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1976.

NOVAES, Adauto. "De olhos vendados". In: O olhar / Adauto Novaes... [et al.] – São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

OSTROWER, Fayga. "A construção do olhar". In: O olhar/ Adauto Novaes... [et al.] – São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. "Pensar é estar doente dos olhos". In: O olhar/ Adauto Novaes... [et al.] – São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

PESSOA, Fernando. Poesia Completa de Alberto Caeiro – São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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