O Olhar na Viagem de Elizabeth Bishop pelo Brasil

June 30, 2017 | Autor: Manuela Moreira | Categoria: Travel Writing, Elizabeth Bishop, Travel Literature
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O Olhar na Viagem de Elizabeth Bishop

Manuela Moreira 15 de Fevereiro de 2015

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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Ao escolher a poeta Elizabeth Bishop como objecto de estudo para este trabalho, nomeadamente

uma

figura

que,

na

História

da

Literatura

Americana,

é

fundamentalmente considerada e recordada como poeta, poder-se-á aventar a hipótese, à primeira vista, de que nem tal figura, nem tal obra se parecem enquadrar no âmbito dos Estudos de Literatura de Viagens. No entanto, segundo Mary Baine Campbell, poderse-á ler contra a corrente (Campbell, 2005: 262) e inscrever Bishop como escritora de viagens, dada a natureza híbrida do género1, que, em inglês, se denomina por Travel Writing. Na verdade, o terceiro livro de poesia desta autora intitula-se Questions of Travel, sendo que um dos seus poemas ostenta o título homónimo, o que é também mencionado por Campbell, no que se refere ao enquadramento da Literatura de Viagens em termos de consideração da categoria de espaço, que enforma a teorização mais actual. (Campbell, 2005: 263) Porém, a faceta mais conhecida de Bishop, enquanto poeta, negligencia a tradutora, crítica, ensaísta, contista, epistológrafa e escritora viajante. Assim, o corpus elegido para este trabalho consta de poemas seleccionados do livro Questions of Travel, em particular da primeira parte “Brazil” e da epistolografia trocada entre Bishop e seus amigos, aquando da sua residência no Brasil. Após esta pequena nota introdutória, cabe então explicar até que ponto Bishop se pode considerar escritora de viagens. Daí que se recorra à biografia, mas principalmente à conceptualização teórica que caracteriza um texto enquanto pertença de um género denominado “Literatura de Viagens”. Elizabeth Bishop nasceu em 1911, em Worcester, Massachusetts, nos Estados Unidos. Filha de pai americano, cujo falecimento ocorre quando Bishop tinha apenas oito meses, e de mãe canadiana passa a viver com os avós maternos a partir dos cinco anos de idade, numa pequena aldeia, na Nova Escócia, no Canadá, devido ao internamento da mãe num hospital psiquiátrico. Dada a conjuntura familiar, a infância de Bishop é passada num vaivém entre a Nova Escócia, onde se situa a casa dos avós maternos, e em Worcester, no Estado do Massachussetts, local de residência dos avós paternos, espaço onde Bishop se sente isolada e infeliz, mas também doente, o que é 1

Segundo Patrick Holland e Graham Hughan “Travel writing (…)is hard to define not least because it is a hybrid genre that straddles categories and disciplines”

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comprovada por Diana Almeida: “ where she lived for some months with her paternal grandparents, becoming chronically ill”. (Almeida, 2010: 195). Devido à infância atribulada, em permanente deslocação, Bishop só sentiu afecto, na Nova Escócia, ou seja, junto dos avós maternos, que lhe puderam proporcionar um lar “a home”, um “lar doce lar”, local do enraizamento do ser humano, mas que não permite a Bishop a criação de raízes, já que dele é desenraizada, ao ser levada para casa dos avós paternos. Após a conclusão dos estudos universitários em 1934, no Vassar College, a poeta americana decide viajar. Em parte, a viagem, no sentido físico e de descoberta, vem na sequência de uma infância e adolescência passada em “viagem”, entre as casas dos familiares. Por outro lado, Bishop possui uma herança por parte do pai, que lhe permite viver com um certo desafogo. Como testemunha Linda Anderson: “Through the thirties and forties Bishop spent time in Europe, Morocco and Mexico, and less far afield in Carolina and Cape Cod, as well as taking up temporary residency in Florida”(Anderson, 2013: 10). O gosto pela viagem poderá interpretar-se como a demanda do eu-viajante em busca de um lugar que a faça sentir em casa, mas também a busca de um espaço, de uma pátria, onde a mesma pudesse deixar de se sentir estrangeira, ou seja, como diz Helen Vendler: “Foreign abroad, foreign at home, Bishop appointed herself a poet of foreignness”(Vendler, 1987:828). Deste modo, a viagem, enquanto deslocação física, representa, para Bishop, a compensação pela ausência de “the home”(lar, pátria), e simultaneamente a busca desse mesmo espaço. Daí que a poesia de Bishop, uma vez que versa diferentes temáticas e “géneros”, advenientes das suas atitudes e experiência, leva Helen Vendler a considerar que: “They led Bishop toward certain genres (landscape poetry, poetry about sky and ocean, travel poetry2) and away from others (historical poetry, religious poetry, poetry of social enumeration)”. (Vendler, 1987:837). A “travel poetry” de Bishop contém aspectos característicos da Literatura de Viagens. Na verdade, nela encontramos a viagem física, o encontro com o outro e a sua representação, a representação da verdade, uma poesia narrativa onde facto e ficção se entrelaçam, bem como um grande poder de observação e atenção ao pormenor. No que respeita à epistolografia, as cartas de Bishop, vêm na esteira de um género fundamentalmente praticado por mulheres, no que respeita à Literatura de Viagens, tal como refere Susan Bassnett. Com efeito, Bassnett refere-se a Letters, de Lady Mary Wortley Montagu, editadas em 1762, a Letters from Egypt, da autoria de

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Itálico meu

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Lucie Duff Gordon, publicadas em 1865 e a Letters from the Shores of the Baltic, escritas pelo punho de Lady Elizabeth Eastlake, cujo ano de publicação é 1842 (Bassnett, 2005: 229/230). Tal como nas cartas destas autoras do século XVIII e XIX, as cartas de Elizabeth Bishop conjugam a descrição com a narração e estão repletas de atenção ao pormenor. Aliás, como referem Jane Robinson e Sara Mills, a literatura de viagens de autoria feminina enfatiza a riqueza do pormenor (apud, Basnett, 2005:227).Também, segundo estas autoras, o enfoque no detalhe distingue a literatura de viagens de autoria feminina, da literatura deste género de autoria masculina (apud, Bassnett, 2005:227). Para além do acima referido relativamente à correspondência de Bishop, o seu género epistolar é considerado literatura de alto quilate, por parte de Linda Anderson: “(…) letters to friends and acquaintances where Bishop’s ability to combine her gift for acute observation with a fluent colloquial style has earned her the reputation of being one of the twentieth century’s ‘epistolary geniuses’”. (Anderson, 2013: 89).

Feita esta breve introdução no sentido de enquadrar Bishop como poeta viajante e a sua epistolografia enquanto objecto pertencente ao género híbrido que caracteriza a a Literatura de Viagens, abordar-se-ão primeiro três poemas incluídos na secção “Brazil” de Questions of Travel, na medida em que eles são objecto do olhar do sujeito poético face ao outro, ao diferente, e também porque estes poemas reflectem diferentes formas de representação desse outro. Abordamos primeiro os poemas, começando por “Arrrival at Santos”, que abre a secção “Brazil”. Antes porém de proceder à análise do poema, há que o enquadrar nas circunstâncias e no contexto em que ele surge. Na verdade, “Arrrival at Santos” aparece datado de Janeiro de 1952, estando Bishop com residência fixa no Brasil. Bishop viveu neste país durante quinze anos e, ao longo destes, fez outras viagens. A sua residência em terra brasilis, não foi programada pela poeta, mas surge no âmbito de uma viagem iniciada em Novembro de 1951, com o objectivo de percorrer a América do Sul. 3Ao chegar ao Brasil, a poeta desembarca em Santos e dirige-se ao Rio de Janeiro, onde adoece. Aí conhece Lota de Macedo Soares, por quem se apaixona e acede ao pedido da mesma, para permanecer no Brasil. Assim, o poema em análise é escrito de memória, sendo autobiográfico, na medida em que relata um facto acontecido:

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Segundo Élcio Luis Rufero: “Foi em 1951 que Elizabeth Bishop aportou no Brasil, num projeto de viagem que circunavegaria a América do Sul - do Atlântico ao Pacífico.”

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Here is a coast; here is a harbor; here, after a meager diet of horizon, is some scenery: impractically shaped and--who knows?--self-pitying mountains, sad and harsh beneath their frivolous greenery,

with a little church on top of one. And warehouses, some of them painted a feeble pink, or blue, and some tall, uncertain palms. Oh, tourist, is this how this country is going to answer you and your immodest demands for a different world, and a better life, and complete comprehension of both at last, and immediately, after eighteen days of suspension?

A primeira estrofe mostra-nos, visualmente, a chegada a Santos e a descrição da paisagem natural, bem como da que sofreu a intervenção humana. A natureza surge, aos olhos do leitor, antropomorfizada, como indicam os versos “(…)self-pitying mountains, /sad and harsh beneath their frivolous greenery,/(…). A personificação da natureza através de adjectivos que lhe conferem auto-comiseração, tristeza, dureza e frivolidade não é nada abonatória aos olhos de quem a lê. Porém, o sujeito poético interpela a persona referida por “Oh, tourist,” para criticar o olhar do turista como diferente do do viajante. Estabelece-se aqui a diferença do olhar do viajante e do olhar do turista. De facto, o turista vai em busca do “lazy desire for instant entertainment” (Holland/ Huggan (2003: 2). Com a passagem que começa com “Oh, Tourist(…)” e se estende até “(…)after eighteen days of suspension?”, a persona da viajante critica as elevadas expectativas do turista e a sua imodéstia, servindo-se do humor e do sarcasmo para representar esta figura, contrastando-a com a do viajante, com a qual o sujeito poético se identifica, isto é, como aqueles que: “ view themselves as open-minded inquirers rather than as pleasure-seeking guests” (Holland/ Huggan (2003:3). Por outro lado, a expressão “Oh, tourist” poderá interpretar-se como a interpelação que o eu poético estabelece consigo próprio. Servindo-se de um tom irónico, que permite uma posição de distanciamento de quem fala, o sujeito poético troça de si mesmo e metonimicamente do povo norte-americano, ao mostrar um Brasil que resiste ao imaginário feito de clichés e de estereótipos. De facto, o Brasil de “Arrival at Santos” nada tem de exótico ou erótico. Daí que o olhar imperial se sinta traído, ao que o sujeito poético contrapõe o desejo de questionamento e de desestabilização do “ I/eye” do turista, esse voyeur que

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não estabelece uma relação de encontro com a cultura do outro, mas cujo contacto com a mesma é estabelecido de forma hierárquica.4 Prosseguimos este trabalho com a leitura de passagens do poema “Questions of Travel”. Tal como em “Arrival at Santos”, o “I/eye” do poema é o do sujeito e da visão de alguém a residir no Brasil, mas do ponto de vista do viajante estrangeiro. Mais, este poema dá-nos a conhecer os conflitos do eu no que se refere ao acto de viajar. Partindo do questionamento dos benefícios da viagem e, simultaneamente, do olhar intruso que o eu exerce sobre o outro, o sujeito poético acaba por concluir que só a viagem física é capaz de proporcionar o prazer visual, impossível de fruir através de representação fotográfica ou fílmica. (…) Think of the long trip home. Should we have stayed at home and thought of here? Where should we be today? Is it right to be watching strangers in a play in this strangest of theatres? (…) But surely it would have been a pity not to have seen the trees along this road, really exaggerated in their beauty, not to have seen them gesturing like noble pantomimists, robed in pink. (…)

A abertura da segunda estrofe inicia-se com o questionamento da viagem e da permanência no Brasil, o que parece limitar-se às perguntas, para as quais não há resposta. Do mesmo modo, se questiona a posição do viajante, expressa do ponto de vista do visitante estrangeiro, que questiona a legitimidade do olhar sobre o outro, num espaço outro: “Is it right to be watching strangers in a play/ in this strangest of theatres?”. Observando o outro, equivale a vê-lo no teatro, isto é, à distância, que o viajante/espectador observa com o seu olhar de voyeur. O outro é identificado com o observado, como objecto, enquadrando-se necessariamente numa relação hierárquica inferior à de quem observa. Daí que a pergunta formulada se aplique ao sujeito poético e a todos os outros viajantes, uma vez que o emprego do pronome pessoal “we” tem como referente o eu-viajante e todo aquele que viaja. A terceira estrofe vem porém esclarecer a dúvida sobre a legitimidade da viagem, enquanto observação do outro, uma vez que é 4

Como diz Rey Chow (2006:197): “In the case of binary oppositions (…) usually one of the two terms in a relation of difference is given epistemological precedence and used as the criterion to determine the value of the other in a hierarchical fashion.”

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compensada pelo fruição do olhar proporcionado pela natureza, através do vocábulo “trees”, que por ser tão bela é comparada a “noble pantomimists, robed in pink”, por via do movimento “gesturing”, o que transforma a natureza em arte. De facto, o sujeito poético não se apropria da natureza enquanto matéria-prima, para efeitos de representação, mas apresenta-no-la como arte. Façamos agora a leitura do poema “The Burglar Of Babylon”. A abordagem deste poema distingue-se do modo como foi realizada a leitura dos poemas anteriores. Com efeito, a dicotomia eu/ outro revela-se limitadora, dado que o que presenciamos é o eu e outros. De facto o que interessa a Bishop, mais que o outro, é a instabilidade nas relações hierárquicas entre povos, como refere Linda Anderson: “In many of her poems based on the people she met in both Florida and Brazil, Bishop was interested in the instability of power relations, both racial and social.” (Anderson, 2013:78).Com efeito, este longo poema, escrito em forma de balada, vem na sequência do referido por Anderson, o que é reiterado por Axel Nesme, ao pronunciar-se sobre:

“(…) the

narrative contents of this text intentionally built upon the schematic opposition between the wealthy inhabitants of Rio and the underprivileged class from which the burglar Micuçu stems”. (Nesme, 2005: 94). Trata-se, com efeito de um poema narrativo, em que a diegese se desenrola aos nossos olhos, constituído por um enredo, pelos comentários do narrador e pelas diferentes personae que nele se vêem envolvidas. Acresce que foi escrito com base num acontecimento verídico, como testemunha a própria Elizabeth Bishop, num pequeno apontamento de 1968, intitulado “Introduction to the Burgar of Babylon”:“The story of Micuçu is true. It happened in Rio de Janeiro a few years ago. I have changed only one or two minor details, and, of course, translated the names of the slums”. (Bishop, 2008:718). O poema abre com um prelúdio, constituído por cinco estrofes, das quais se transcrevem a primeira e a quinta: On the fair green hills of Rio here grows a fearful stain: The poor who come to Rio And can't go home again. (---) There's the hill of Kerosene, And the hill of Skeleton, The hill of Astonishment, And the hill of Babylon (---)

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Ao contrário dos dois poemas anteriormente analisados, em que o olhar do sujeito poético se posiciona como o olhar do visitante, o “I/eye” deste poema é o de alguém que observa a acção a desenrolar-se, do ponto de vista do estrangeiro residente no país visitado. Logo, na primeira estrofe, observamos que, por entre as belas colinas verdes do Rio de Janeiro, há uma nódoa que desestabiliza a beleza, uma nódoa que se revela assustadora, e que metaforiza os pobres das favelas que migraram para a cidade grande e dela ficam cativos. Na segunda estrofe, são enumeradas as favelas com nomes fictícios. Note-se que os nomes das favelas são expressos pelo nome que identifica a paisagem natural “hills”, pelo que a paisagem humana se confunde com a paisagem natural. Se a nódoa é antropomorfizada, por meio do adjectivo qualificativo “fearful”, podemos considerar que os pobres das favelas se apresentam como uma ameaça para o corpo social, nomeadamente para os que dominam o país. Tal como acontece na actualidade, as favelas do Rio de Janeiro são descritas como lugares onde a pobreza vive lado a lado com o crime. Numa dessas favelas, decorre a caça ao criminoso, Micuçu, assaltante, assassino e foragido como nos mostram os versos: Micuçú was a burglar and killer, An enemy of society. He had escaped three times From the worst penitentiary.

Apesar da ameaça à sociedade que Micuçu representa, tal como transparece destes versos, ele é, aos olhos do sujeito poético, desculpabilizado, visto que nunca praticou o crime de violação, como demonstram os dois primeiros versos da estrofe seguinte: “They don't know how many he murdered/ (Though they say he never raped),”. A meu ver, a menção do facto de o criminoso nunca ter praticado violação só poderia ser proferido por uma mulher, o que contribui para a atenuação da criminalidade de Micuçu.5 Ao longo do poema, são justapostas a perseguição e a fuga do criminoso, que resulta na morte deste. Por outro lado, a caça ao homem é-nos mostrada como um espectáculo a que assistem os poderosos, entre eles a própria Bishop, como se demonstra na seguinte estrofe:

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Elizabeth Bishop refere-se obliquamente aos perigos de violação sofridos pelas mulheres viajantes em contraste com os viajantes do sexo masculino. Como se pode verificar, tal é apontado no terceiro capítulo de Tourists with Typewriters, intitulado “Gender and Other Troubles “ (…) for women traveler-writers cannot help but be aware of their own physical vulnerability— “the fear of rape, for example, whether crossing the Sahara or . . . just crossing a city street at night, most dramatically affects the ways women move through the world”. (113)

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Rich people in apartments Watched through binoculars As long as the daylight lasted. And all night, under the stars,

Na realidade, “o espectáculo” a que os ricos assistem tem como protagonista um delinquente, que é capaz de mobilizar a classe dominante, para lhes satisfazer o prazer do voyeurismo não consentido. Desta forma, os ricos cariocas são equiparados ao turista que observa o outro e, como tal, representam a preguiça e o tédio que se compraz com a gratificação imediata. Se o sujeito empírico partilha agora o território dos ricos, ele não é mais o outsider, aquele que vê de fora, nem os ricos são o outro. O outro é agora a personagem Micuçu e, metonimicamente, os pobres das favelas que se viram forçados a desenraizar-se, e tal como os exilados, vivem sem possibilidade de retorno à terra natal. Se, como foi dito, o sujeito empírico, se encontra física e socialmente do lado dos ricos, o sujeito poético não deixa de lançar um olhar sarcástico a este grupo social e mesmo a ridicularizá-los como se vê na estrofe que se segue: The rich with their binoculars Were back again, and many Were standing on the rooftops, Among TV antennae.

A representação dos ricos é agora feita à imagem dos vampiros, para quem o espectáculo, observado através de binóculos, não se mostra satisfatório e que ascendem aos telhados para “sugar” todas as minúcias relacionadas com a captura de Micuçu. Desta forma, a representação da classe possidente carioca é-nos apresentada como a personificação da desocupação e da alienação, características próprias de uma sociedade iletrada, vivendo ainda numa sociedade pré-capitalista, onde a classe média não existe6. Por outro lado, os mais desfavorecidos são remetidos à vida nas favelas, espaço de guetização. Daí que possamos ir mais longe e concordar com Solange Oliveira, ao dizer que “the literal colonization (…) is replaced by the symbolical colonization grounded on

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Betsy Erkkila refere-se ao período de permanência de Elizabeth Bishop no Brasil da seguinte forma: “Bishop's residence in Brazil in the '50s and '60s coincided with a period of rapid industrialization and modernization, runaway inflation, and an increasingly violent struggle between the landless, impoverished, and mostly illiterate urban and rural masses and an essentially feudal system of land ownership by a few powerful aristocrats.” (Erkkila, 1996:299).

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race and social group.” (Oliveira, 2013: 54). Assim, em tempos de pós-colonialismo poderemos afirmar que, quer o colono de outrora, branco e rico, quer o colonizado, negro, mulato, migrante e pobre coabitam no mesmo espaço-nação. Não obstante a riqueza estética de “The Burglar Of Babylon”, o sujeito poético assume uma posição ética ao denunciar a vida dos que vivem nos morros ou como diz Flora Süssekind: “(…)o sujeito lírico praticamente cola sua perspetiva à do ladrão (do morro) da Babilônia(…)”(Süssekind,1990:99). Daí que sejamos levados a concordar com Solange Oliveira, quando esta afirma que: “The (…) financial and educational gap between social groups, which tempts poor young men born in the slums to risk their lives in order to traffic drugs” (Oliveira, 2013: 55). No fundo, o que o sujeito poético nos mostra neste poema é o conhecimento de uma realidade, na qual já criou raízes, o que lhe permite representar o ladro negro dela, e colocar-se marginalmente desse lado.7 Passemos à epistolografia de Bishop, enquanto residente no Brasil. Nela encontramos uma visão do outro, da paisagem física e humana, ora favorável ora crítica. As referências às cartas são feitas de forma cronológica, nomeadamente, para podermos verificar a progressão do eu-viajante no espaço brasileiro. As cartas constam do livro Elizabeth Bishop- Poems, Prose, and Letters (2008), pelo que os excertos da correspondência de Bishop remetem para esta edição. Assim, numa carta dirigida a Ilse e Kit Barker em Fevereiro de 1952, Bishop refere-se ao carácter solidário do povo brasileiro, aquando do acometimento de “Quincke Edema”, que a impediu de escrever. Nesta carta, refere Bishop: “However it wasn’t too bad because Brazilians seem to adore illness, and all took such an interest, brought their own medicines, crowded into the room saying ‘the poor one and calling on the Virgin, etc. every time I had an injection’(…)”.(778). Se é verdade que a solidariedade do povo brasileiro face à estrangeira traduz afecto e tal é representado, não deixa de ser interessante verificar que a representação da afectuosidade do povo brasileiro é subliminarmente demonstrada num tom condescendente, embora recheado de humor, resquício de uma posição imperial. No entanto, ao finalizar a carta, a redactora conclui: “(…) but I have been so happy that it takes a great deal of getting used to. My troubles, or trouble, seems to have disappeared completely since leaving N.Y.”(779). Por outro lado, em carta endereçada a Marianne Moore, a 3 de Março de 7

Adrienne Rich considera que, dada a orientação sexual de Bishop, a mundividência da poetaviajante é a do outsider, o que segundo esta poeta: “(…) enables Bishop to perceive other kinds of outsiders and to identify, or try to identify, with them.”

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1952, a poeta-viajante menciona o facto de se encontrar tão bem ao ponto de dizer : “(…) it is all wonderful to me and my ideas of travel ‘recede’ pleasantly every day.”(781). Embora a uma leitura de superfície, a redactora não manifeste qualquer desagrado, este é entrevisto na auto-ironia, bem como no vocábulo ‘recede’, colocado entre aspas. Também, passado um ano, em carta escrita a Marianne Moore, Bishop continua a referir o apreço pela estadia no Brasil: “I am still liking living here very much, more and more in fact, and in spite of ocasional cycles of sthma-broncitis, etc, I am feeling better than in twenty years”. (791) Assim, poder-se-á concluir que Bishop parece ter encontrado “a home”, que nas palavras de Robert Frost se define assim: “Home is the place where, when you have to go there, / they have to take you in.”( apud Matsukawa: 529). Porém, numa carta escrita a Pearl Kazin, com data de 22 de Fevereiro de 1954, ou seja, após três anos de permanência em solo brasileiro, Bishop exprime as suas impressões sobre o país que a acolheu, com um olhar que representa o outro de uma forma diferente. De maneira bastante directa, Bishop refere-se ao Brasil com as seguintes palavras: “As a country I feel it’s hopeless – not in the horrible way Mexico is, but just plain lethargic, self-seeking, half-smug, half-crazy, hopeless”(798) e, mais adiante na mesma carta, Bishop declara “(I’ll confess to you - I don’t want to be buried in a Brazilian cemetery. And I suppose I shall be.)”(802). As afirmações proferidas acerca do Brasil traduzem a ambiguidade da poeta, em virtude da relação amorosa com uma cidadã brasileira, que aprecia os afectos dos amigos que a rodeiam, mas cujo retrato da sociedade brasileira nos é dado com repulsa e despeito. Esta atitude é agudizada, à medida que os anos passam, dado que numa carta a May Swenson, com data de 6 de Setembro de 1955, Bishop escreve o seguinte: “One good Thomas poem8 is worth all the South American poetry I’ve ever seen – with the possible exception of some of Pablo Neruda, when he isn’t being communist”(809). Com esta última asserção, vemos a arrogância do olhar imperial relativamente a todo o continente sulamericano. Com efeito quer a sociedade, quer a literatura brasileira são reduzidas à menoridade, dado que uma não se assemelha à Civilização e a outra fica à margem da Grande Literatura. Em carta posterior, datada de Dezembro de 1957, dirigida ao poeta americano Robert Lowell, Bishop afirma (821) “ (…) I wish I were more articulate and I suppose I’ll never be now, living off in the mountains and meeting only Brazilian 8

Eizabeth Bishop refere-se ao poeta Dylan Thomas, nascido em Gales a 27 de Outubro de 2014 e um dos maiores poetas do seu país de origem.

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intellectuals who got stuck at Valery, and with whom I really am silent, necessarily (…)”. (821). Este excerto da carta revela o desprezo pelos intelectuais brasileiros, e possivelmente a ignorância da figura de Valéry enquanto poeta e pensador, o que traduz uma atitude de arrogância face aos intelectuais brasileiros e à literatura que não seja de expressão inglesa. No entanto, em carta redigida a Robert Lowell, de 22 de Abril de 1960, Bishop refere-se ao edifício da Ópera de Manaus, à sua beleza e à atenção ao pormenor, característica da epistolografia feminina, como foi atrás referido. Assim, transcreve-se uma longa passagem, que nos permite ver o que acabei de referir: “Well, speaking of opera – you’d like Manaus. Its most famous sight is the huge opera house built around 1905 at the height of the rubber boom. Rubber collapsed completely just after that there the Opera house stands, huge, magnificent, art- nouveau-ish, with the tow dwindled to nothing around it, and the Rio Negro rolling magnificently below. It is quite lovely inside – rose damask and mirrors(…) and armchairs with cane seats, for coolness; the plaster work is very delicate, all regional things, palms, coffee trees, alligators, etc. – and huge paintings of Guarani, sunrise on the river, et. The ballroom is marble and tortoiseshell (…)”. (832).

Com esta passagem, podemos verificar que, não obstante a atitude de desprezo e arrogância em relação às elites culturais brasileiras, suas coetâneas, Bishop aprecia e elogia o legado patrimonial, no que respeita à cultura e arte brasileiras, fora do escopo da literatura. Esta questão é corroborada, em carta a Anne Stevenson, datada de 1963, no que se refere à música popular brasileira: “One Thing I like very much in Brazil is the popular music (…) often superb spontaneous folk-music, and I want very much to write a piece about them (…)” (845). Também numa carta escrita a Anne Anderson, a 8 de Janeiro de 1964, Bishop faz uma apreciação do sentido de humor do povo brasileiro, no que respeita aos mais pobres: “The poor Brazilians’, the people’s, sense of humor is really all that takes this country bearable a lot of the time.” (858). Como se viu, houve a necessidade de enquadrar Elizabeth Bishop, no âmbito do espaço e do tempo que a viu nascer, bem como das circunstâncias que a levaram a viajar. Falámos da sua longa estadia no Brasil, começando com a chegada a este país, expressa no poema “Arrrival at Santos” e do olhar de confronto com a paisagem. No poema “Questions of Travel”, aferimos a legitimidade do olhar sobre a paisagem e da ética que o enforma, e no poema “The Burglar of Babylon”, vimos o olhar de quem 12

gradualmente se foi adaptando ao espaço que a recebeu e acarinhou. Nesse espaço de convivência com as elites socioeconómicas e intelectuais, a poeta mostra-nos a sua simpatia para com os oprimidos do espaço físico que habitou, ao longo de quinze anos. No que respeita à epistolografia, vimos, primeiramente, o encontro com o outro de forma muito positiva, dada a apreciação da afectividade do povo brasileiro. Porém, à medida que o tempo passa, observamos o olhar imperial da poeta, face aos literatos locais. No entanto, verificamos, também, o olhar de reconhecimento da qualidade das artes da arquitectura, da pintura e da música brasileiras. Por último, dado que se trata de uma poeta-viajante, oriunda do mundo de língua inglesa, pareceu-nos inevitável considerar o olhar, transmitido num abraço de culturas que se traduz na homenagem às classes mais pobres, para quem o humor é a única arma de resistência ao statu quo. Sem pretender desculpar a poeta-viajante e o seu olhar arrogante face ao outro, dá-se por concluído este trabalho, ao transcrever de uma das suas cartas, uma característica de Bishop, aí inserta, e que serve de testemunho à arrogância da autora, face ao outro e a si própria: “In fact snobbery governs a great deal of my taste” (858). Queria também afirmar que, a despeito das atitudes arrogantes em relação aos poetas brasileiros, seus contemporâneos, Elizabeth Bishop deu a conhecer ao mundo de língua inglesa, a obra de poetas de quem foi tradutora. Entre estes, encontram-se Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Morais, o que reflecte a valorização e o reconhecimento da cultura do Outro.

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