O Padrão Ouro e o Poder Britânico (1870-­1914)

May 23, 2017 | Autor: P. e Geopolítica ... | Categoria: Relações Internacionais, Geopolítica
Share Embed


Descrição do Produto

O Padrão Ouro e o Poder Britânico (1870­1914)   Daniel de Pinho Barreiros   Resumo: Uma das influências formativas da chamada “era contemporânea”, na  acepção de Geoffrey Barraclough, o padrão ouro, em funcionamento entre 1870  e  1914,  consistiu  no  primeiro  arranjo  monetário­cambial  de  alcance  global  da  História, consolidando a projeção de poder financeiro global da Grã­Bretanha, a  partir  do  papel  da  City  londrina  como  centro  de  depósitos.  Entretanto,  a  despeito  de  ser  ainda  hoje  resgatado  como  um  modelo  de  estabilidade  por  opiniões conservadoras e críticas ao dólar flutuante (desde 1973), o padrão ouro  não  só  dependeu  de  circunstâncias  históricas  excepcionais  (enquanto  tais),  mas  também  de  expedientes  que,  se  por  um  lado  expandiam  seu  alcance,  simultaneamente minavam suas bases. A presente comunicação tem por objetivo  tecer  breves  considerações  sobre  as  circunstâncias  internacionais  subjacentes  ao  surgimento  do  padrão  libra­ouro,  de  modo  a  servir  de  passo  inicial  para  uma  compreensão  aprofundada  não  só  das  vias  de  afirmação  e  colapso  histórico  do  sistema  internacional  de  câmbio  fixo  na  ocasião  da  Primeira  Guerra  Mundial,  mas da controversa ideia de colapso do Poder Britânico.     

 



 Texto apresentado no XVI Encontro Regional de História da Associação Nacional de História, realizado  na Universidade Santa Úrsula, Rio de Janeiro, em julho de 2014. 

1

Durante  a  década  de  1970,  as  sociedades  capitalistas  ocidentais  testemunharam  o  colapso de uma das principais influências formativas da Era Contemporânea : o sistema  monetário  internacional  de  câmbio  fixo,  baseado  no  ouro.  Sua  existência  começou  a  deixar marcas no registro histórico cem anos antes, na década de 1870, quando Londres  tornou­se  inequivocamente  o  principal  centro  de  depósitos  do  mundo  industrializado,  ou dele dependente. Os acontecimentos de agosto­dezembro de 1971 (com a suspensão  da  conversibilidade  do  dólar  e  a  Conferência  Smithsoniana),  a  abril  de  1978  (com  a  entrada em vigor da Segunda Emenda aos Artigos do Fundo Monetário Internacional,  que  regulamentou  a  flutuação  cambial  e  pôs  fim  prático  aos  Acordos  de  Bretton  Woods),  encerraram  esse  traço  de  longo  prazo,  e  abriram  uma  nova  etapa  no  funcionamento  do  sistema  monetário­financeiro  internacional.  Esses  acontecimentos  ocuparam  lugar  num  hall  de  fenômenos  em  processo  desde  fins  dos  anos  1960,  que  marcaram  a  maturação  da  Era  Contemporânea  e,  possivelmente,  o  nascimento  de  um  novo tempo. A relação entre a Segunda Emenda, o Vietnã, a contracultura, os direitos  civis,  a  crise  do  petróleo,  os  debates  sobre  “formas  alternativas”  de  desenvolvimento  econômico, a terceira revolução industrial, a contestação da “liderança mundial” anglo­ saxônica  e  o  ressurgimento  europeu  não  é  fortuita;  ela  marca  o  esgotamento  de  um  mundo  surgido  em  1870,  bem  como  os  primeiros  sintomas  de  um  novo  mundo  em  gestação. Ainda que essa ampla discussão não caiba aqui, um de seus corolários deve nos  nortear: o padrão ouro internacional foi sustentado pelas influências formativas da Era  Contemporânea, e, reciprocamente, sustentou­as. Não espanta, então, que o seu colapso  tenha vindo em conjunto com outros colapsos, despercebidos como associados entre si  pelo olhar apressado, midiático e em busca de eficácia, que é próprio do senso comum.  O padrão ouro é um fenômeno histórico, portanto; como seria diferente?  Saltam à vista algumas intervenções recentes a respeito da pertinência de um “retorno ao  ouro”,  menos  pelo  anacronismo  e  mais  pelo  cinismo,  acompanhado  de  irreflexão  histórica.  Que  os  economistas  da  Escola  Austríaca  o  façam  desde  muito  não  é  a  novidade,  o  que  confere  a  eles  certa  aparência,  hoje,  de  profetas  no  deserto.  O  que  chama atenção no cenário atual é anacrônica impetuosidade com que a questão tem sido  tratada no debate político­eleitoral norte­americano, especialmente após o aparecimento  do  Tea  Party.  Ron  Paul,  persistente  candidato  à  presidência  dos  EUA,  defendeu  o  padrão  ouro  nas  primárias  de  2012.  Curso  forçado  ao  ouro  (e  à  prata)  tem  sido  timidamente  introduzido  em  alguns  estados  norte­americanos  (a  Carolina  do  Sul,  por  exemplo), por força de uma opinião política que pretende “denunciar” (de forma quase  conspiracionista,  e  não  para  propósitos  humanistas)  o  “desmedido  poder”  do  governo  federal e de seu sistema de reserva, bem como, por tabela, a “irracionalidade” da reserva  fracionária  bancária,  posta  em  prática  onde  quer  que  sistemas  bancários  modernos  2

tenham  surgido  desde  1870,  pelo  menos.  O  debate  sobre  a  dívida  pública  norte­ americana, na segunda metade de 2013, foi marcado pela histeria contracionista e pelas  exigências do estabelecimento de um teto para o endividamento; o padrão ouro voltou à  baila  nessa  discussão.  Resultou  em  nada,  o  que  era  de  se  esperar:  nem  em  ajuste  recessivo, nem em encerramento dos pacotes de recuperação pós­crise de 2008, menos  ainda em limites ao poder expansivo do Federal Reserve. A dívida seguirá em expansão  até março de 2015, quando será novamente discutida.  É a galinha ianque dos ovos de  ouro,  nascida  da  contingência  imediata  dos  fenômenos  históricos  que  envolvem  o  colapso da Era Contemporânea (e do padrão ouro, com ela), mas com raízes profundas  que remontam à conclusão da Grande Guerra, já secular nesse ano de 2014. Depená­la  levemente  para  cutucar  os  adversários  políticos  é  uma  coisa;  cozinhá­la  é  outra  totalmente  diferente.  Isso  tem  sido  parte  do  arsenal  comportamental  dos  profetas  no  deserto  a  que  me  referi,  ou  daqueles  que  não  entendem  que  o  dólar  flutuante  é  o  instrumento de poder financeiro global dos EUA, hoje.   Certamente  não  era  assim  entre  1870  e  1914,  quando  a  Grã­Bretanha  fundamentava  justamente sua projeção financeira global por meio do compromisso com uma taxa de  câmbio fixa e com a conversibilidade plena do esterlino em ouro. Foram circunstâncias  históricas que tornaram esse instrumento de projeção de poder viável ao final do século  XIX,  como  são  circunstâncias  de  natureza  análoga  que  tornaram  o  dólar  flexível  um  instrumento  semelhante,  mas  de  poder  absolutamente  maior,  ao  final  do  século  XX.  Tornar  o  padrão  ouro  um  modelo  abstrato  e  aplicável,  ou  usar  a  “história”  para  “comprovar”  que  essa  ou  aquela  decisão  política  são  acertadas,  em  nada  ajuda  àqueles  que  buscam  uma  análise  sólida  da  experiência  humana,  embora  possa  ter  alguma  relevância  sofística  para  interesses  políticos  lá  e  cá.  E  dizer  que  o  padrão  ouro  permanecerá  insustentável  nesse  mundo  surgido  do  esvaziamento  da  Era  Contemporânea é outra afirmação improcedente em seu mérito, antes de o ser em seu  conteúdo. Entretanto, se esse instrumento de poder se tornar viável novamente, o será  por circunstâncias históricas, não pela beleza, coerência e valor “de verdade” do modelo.  Nos  anos  1870­1914,  falar  de  “prioridade  da  moeda”  no  âmbito  das  políticas  econômicas  dos  Estados  liberais  capitalistas  era,  digamos,  um  índice  de  civilidade,  naquele mundo contemporâneo em gestação, no qual a clivagem entre o “progresso” e a  “barbárie” definia os que tinham direito ou não de interferir no grande concerto global  das nações. A adesão a um sistema de câmbio fixo internacional, referenciado no preço  do ouro e no câmbio do esterlino em relação a esse metal, exigia atenção das autoridades  monetárias no que dizia respeito à oferta de meios de pagamento em moeda nacional.  Os  efeitos  de  políticas  expansivas  decorrentes  (ou  que  incorressem  em)  déficits  no  balanço de pagamentos deviam ser estancados por meio de operações de mercado aberto  3

por  parte  dos  bancos  centrais  e  de  elevações  na  taxa  de  redesconto,  que  levassem  à  contração  do  crédito  e  absorção  de  moeda  no  curto  prazo,  com  impactos  recessivos  dificilmente contornáveis. Mantidos o déficit externo e/ou o desequilíbrio monetário, o  preço do ouro cotado em moeda nacional nos mercados livres certamente viria a superar  a  taxa  de  conversibilidade  no  banco  central,  incentivando  ganhos  de  arbitragem  e  acirrando ainda mais o desequilíbrio cambial; sem intervenções contracionistas (ou sem  aumento substancial da oferta de ouro), a situação chegaria a um fim através do pânico  generalizado  entre  detentores  de  ativos  denominados  na  moeda  em  depreciação,  e  a  inevitável  suspensão  da  conversibilidade.  Isso  significaria  em  primeira  instância  que  tanto  sua  moeda  quanto  sua  autoridade  monetária  não  são  dignas  da  confiança  dos  agentes  financeiros;  e  em  última,  que  seu  governo  falha  em  atender  a  critérios  civilizacionais mínimos no que diz respeito ao funcionamento da economia.  Naturalmente,  de  todos  os  operadores  do  padrão  ouro,  esperava­se  do  Banco  da  Inglaterra  a  maior  disciplina  no  que  diz  respeito  à  estabilidade  monetário­cambial.  Naquele  mundo  de  1870­1914,  os  governos  comprometidos  com  o  ouro  eram  observados quanto à instauração de medidas de proteção às autoridades monetárias, que  viessem a escudá­las contra pressões políticas inflacionistas. Esse “clima político” em prol  do compromisso com a estabilidade cambial marcou em linhas gerais o funcionamento  do  esterlino  no  mercado  mundial,  e,  por  sua  vez,  a  estabilidade  das  moedas  que  o  tinham  como  reserva  cambial,  em  adição  ou  substituição  ao  ouro.  As  expectativas  dos  agentes financeiros quanto à estabilidade do esterlino eram de tranquilidade, a ponto de  não serem absolutamente relevantes as operações de securitização contra riscos cambiais  no exterior, que são uma marca inequívoca do sistema  dólar  flutuante dos dias atuais.  Mesmo  diante  de  eventuais  desequilíbrios  no  valor  externo  do  esterlino,  evidentes  na  flutuação dos preços do ouro no mercado livre, a certeza do compromisso do Banco da  Inglaterra  com  o  câmbio  propiciava  fluxos  estabilizadores,  impulsionados  pelas  operações de agentes financeiros que compravam o esterlino em baixa, confiantes, como  bons  homens  vitorianos,  de  que,  tal  como  os  trens,  o  Banco  da  Inglaterra  jamais  atrasaria  ou  deixaria  de  cumprir  sua  tarefa.  O  padrão  ouro  até  1914  corroborava  o  mundo de certezas da civilização burguesa vitoriana, com sua ciência infalível, governos  representativos e moralidade pudica.  Contudo, não devemos tomar o compromisso do Banco da Inglaterra pelo que não era,  nem nos impressionar pela opinião dos contemporâneos; esse compromisso fazia parte  do  “jogo  de  máscaras”  e  da  “arte  de  esconder”  tão  própria  dos  padrões  de  civilidade  vitorianos. De  todos os bancos centrais no sistema, decerto o Banco da Inglaterra  era,  em termos proporcionais, o mais indisciplinado, o que era algo ainda mais relevante se  levarmos  em  conta  seu  peso  e  protagonismo.  Aliás,  não  fazia  muito  sentido  assumir o  4

ônus da administração de um sistema de câmbio fixo baseado no ouro (políticas de corte  recessivo  periódicas,  impactos  sobre  o  crescimento  do  produto,  deflação)  se  não  fosse  pelo  poder  externo  que  dele  deriva:  a  transformação  de  moeda  nacional  em  meio  de  pagamento  capaz  de  romper  as  barreiras  geoeconômicas  impostas  pela  existência  de  outros  Estados  nacionais,  soberanos  em  suas  fronteiras  jurídicas  territoriais;  e  o  grau  desse  poder  era  função  da  capacidade  de  cada  Estado  de  “jogar  fora  das  regras”.  Isso  consistia  em  empregar  as  capacidades  emissoras  das  instituições  monetárias  nacionais  para  criar  meios  de  pagamento  que  supostamente  valem  ouro,  mas  que,  em  sua  totalidade,  não  valem.  Era  o  que  fazia  o  Banco  da  Inglaterra  por  meio  do  sistema  fiduciário  que  pautava  o  esterlino.  Através  desse  sistema,  o  Departamento  Bancário  absorvia esterlinos gerados pelo Departamento de Emissões, e os injetava na economia,  expandindo a capacidade de pagamentos interna e externa do governo (já que o esterlino  tem  ampla  liquidez  internacional),  tendo  como  colateral  a  emissão  de  bônus  governamentais; por meio deles, o Banco da Inglaterra absorveria esse excesso de moeda  em  tempo  oportuno  e  suficiente  para  que  os  efeitos  virtuosos  de  uma  expansão  de  liquidez sem maior oferta de ouro fossem sentidos. Em outras palavras, as vantagens do  sistema padrão ouro provinham da capacidade de um Estado jogar fora de suas regras,  colher  os  frutos  dessa  iniciativa,  e  restaurar  a  confiança  na  moeda  antes  que  seus  parceiros fossem levados a retaliar.   Naturalmente, a capacidade desfrutada por um Estado de burlar  as regras  e não sofrer  sanções  não  era  somente  proporcional  à  “solidez”  de  seus  fundamentos  macroeconômicos;  eu  diria  que  esse  era,  inclusive,  um  fator subalterno.  Jogar  fora  das  regras sistematicamente sem ser punido fazia parte do arsenal de poucos, e dependia de o  quão  capilarizada  era  a  moeda  nacional  daquele  jogador.  Quanto  mais  aquela  moeda  nacional  fosse  aceita  pelos  parceiros  do  emissor  como  meio  de  pagamento  para  as  importações  feitas  por  ele;  quanto  mais  essa  moeda  passasse  a  denominar  as  dívidas  mútuas entre parceiros; e quanto mais os parceiros recorressem aos mercados de capitais  do emissor em busca dessa moeda (gerando dívida), mais vulneráveis à taxa de juros do  emissor  estariam  esses  parceiros  (na  medida  em  que  suas  dívidas  externas  estariam  determinadas na moeda do emissor, e qualquer  enxugamento  de liquidez dessa moeda  levaria a uma apreciação da dívida). Em outras palavras, se as vantagens do padrão ouro  provém  de  jogar  fora  das  regras,  e  a  tolerância  à  indisciplina  provém  de  o  quão  vulneráveis são os parceiros diante das políticas monetário­cambiais de um determinado  Estado, teremos que as hierarquias no padrão ouro provém do poder externo (expresso  em  termos  econômicos,  mas  não  exclusivamente)  de  um  determinado  Estado.  Se  o  Estado britânico foi o mais capaz de manejar sua moeda nesses termos, e operou como  nodo central nesse sistema cambial, temos que o padrão ouro foi função direta do Poder  5

Britânico  (e  não  de  questões  técnicas,  nem  da  solidez  dos  índices  macroeconômicos,  nem do bom exemplo civilizacional dado por Londres).  E ao contrário de certo senso comum sobre a história econômica do mundo capitalista  ao  fim  do  século  XIX,  a  Grã­Bretanha  estava  longe  de  “estar  em  declínio”  perante  os  colossos  industrializados  representados  pelos  Estados  Unidos  e  pela  Alemanha.  Ainda  que  a  performance  industrial  desses  dois  últimos  fosse  extraordinária  (especialmente  considerando  os  EUA),  e  que  viessem  paulatinamente  ultrapassando  a  produção  de  ferro, carvão e aço britânica, especialmente após 1890, não devemos perder de vista que  o  sistema  monetário­financeiro  internacional  fora  criado  sob  o  poder  do  esterlino,  e  seguiu  sendo  dominado  quase  que  exclusivamente  por  ele  até  a  Grande  Guerra.  As  baixas  taxas  de  juros  nos  EUA  a  partir  dos  anos  1870,  reconhecidamente  provocadas  pela  oferta  de  capitais  (num  contexto  de  intensificação  da  relação  capital­produto  significativa, que deveria ter elevado as taxas de juros, e não o contrário), não podem ser  entendidas sem que sejam considerados os extraordinários aportes de capital britânico ao  processo  de  industrialização  norte­americano.  Nada  diferente  podia  ser  dito  das  economias continentais europeias, que já vinham sendo alvo da exportação de capitais e  de  investimentos  diretos  britânicos  desde  a  década  de  1850.  Desse  modo,  o  mundo  industrial cresce fora além dos litorais de Álbion, mas não fora da esfera de poder da taxa  de juros britânica.  Outro  índice  para  o  “declínio  britânico”  foi  a  resistência  adamantina  de  Londres  em  ceder ao protecionismo, mesmo em tempos de aguda retração nos lucros decorrente de  uma  ainda  pouco  entendida  “Grande  Depressão”  do  século  XIX,  entre  1873  e  1896.  Essa resistência pode ser tomada, a partir de um olhar superficial, como reflexo de uma  adesão  ideológica  aos  princípios  liberais  pela  elite  política  britânica,  e  o  suposto  “declínio  britânico”  naquele  final  de  século  pode  vir  a  ser  atribuído  à  perda  de  competitividade  gerada  por  uma  política  econômica  liberal,  num  contexto  de  ampla  competição  por  mercados  e  de  tarifas  alfandegárias  em  elevação  nos  países  de  industrialização dita “tardia”. Nada menos correto, a meu ver: se o Poder Britânico está  em  alta,  e  o  padrão  ouro  é  um  de  seus  instrumentos,  devemos  compreender  que  a  manutenção dos mercados abertos, na Grã­Bretanha, para importações provenientes de  seus parceiros comerciais era, antes de tudo, um instrumento de geração de capacidade  de  pagamento  externa  (em  esterlinos)  nesses  parceiros,  e,  portanto,  de  condições  para  que honrassem o serviço de suas dívidas externas (também em esterlinos) com as casas  bancárias  britânicas,  bem  como  sustentassem  taxas  de  câmbio  minimamente  estáveis,  quando fosse o caso. Uma política consistente, de corte liberal, era viabilizada em parte  pela  falta  de  pressão  camponesa  e  agrícola  em  geral,  no  que  diz  respeito  às  vastas  importações  de  bens  primários,  considerando  que  esse  problema  de  cunho  sociológico  6

havia  sido  “resolvido”  pelo  longo  processo  de  cercamento  de  campos,  no  âmbito  da  modernização  da  sociedade  e  do  Estado  ingleses.  Ainda,  os  riscos  de  “desindustrialização”  não  pareciam  evidentes  aos  grupos  de  interesse  fabris  britânicos;  antes  de  condenar  o  livre  mercado,  entendiam­no  como  indispensável  para  a  manutenção  do  esterlino  no  ouro,  e  para  as  exportações  de  capitais  britânicos  que,  normalmente, geravam demanda externa para a indústria siderúrgica e ferroviária.  Se  havia opinião organizada contra o ônus da administração de um regime de  câmbio  fixo com referência metálica, ela provinha das trade unions. Naturalmente, políticas de  ajuste  recessivo  geravam  uma  elevação  no  custo  do  crédito  para  as  empresas,  que,  indispostas a absorvê­lo especialmente no período entre 1873­1896 (quando as margens  de retorno dos empreendimentos comerciais eram cada vez menores), tendiam a repassar  esses  mesmos  custos  para  os  salários  (pela  via  da  redução  ou  da  demissão).  Então,  o  esforço social posto em marcha para a manutenção do sistema de câmbio fixo (fosse do  esterlino,  ou  de  qualquer  outra  moeda)  tendia  a  ser  feito  pelas  massas  operárias,  que  compartilhavam  do  bônus  apenas  colateralmente.  Ainda  que  o  período  da  Longa  Depressão  do  século  XIX  tenha  sido  de  salários  reais  bastante  menos  flexíveis  (para  baixo) que os lucros, a pressão sindical ainda assim foi intensa, mas não o suficiente para  oferecer uma significativa resistência às prioridades de política econômica mantenedoras  do  padrão  ouro;  situação  essa  que  difere  razoavelmente  daquela  que  envolveu  a  reconstrução do sistema financeiro internacional após a Grande Depressão do século XX  e da Segunda Grande Guerra, com os Acordos de Bretton Woods.   Foram sob essas condições que o padrão ouro se tornou funcional como instrumento de  projeção  de  poder  financeiro  por  parte  da  Grã­Bretanha  até  a  Grande  Guerra.  Foi  o  esvaziamento  progressivo  dessas  condições  no  Entreguerras,  o  esforço  econômico  no  conflito,  e,  em  especial,  o  surgimento  dos  Estados  Unidos  como  centro  de  depósitos  alternativo, que provocaram as intempéries pelas quais o esterlino e a economia britânica  passaram na década de 1920, com um turbulento retorno à conversibilidade em 1925, e  novo abandono do ouro em 1931, já no contexto da Grande Depressão do século XX.  Nesse  estado  de  coisas,  o  ônus  da  administração  do  câmbio  fixo  era  superado  pelo  bônus, proveniente do poder externo do esterlino.   Se empreendermos um salto analítico para os primeiros anos do século XXI, notaremos  superficialmente  algumas  condições  análogas  (respeitados  os  limites  em  que  duas  situações  históricas  podem  se  assemelhar)  a  estas  sob  as  quais  o  esterlino  foi  moeda  financeira do mundo capitalista, ainda que dificilmente sejam informações importantes  no cálculo político dos advogados do padrão ouro nos dias de hoje. O dólar tornou­se  capilarizado geoeconomicamente ao longo do século XX através do circuito da dívida de  7

guerra  alemã  no  Entreguerras,  dos  Acordos  de  Bretton Woods,  e  do  indisputado  peso  assumido  pela  economia  norte­americana  no  sistema  internacional  capitalista  desde  os  anos  1920,  o  que  levou  à  reversão  de  seu  perfil  de  moeda  escassa  nos  anos  1960  (a  despeito do episódio contracionista de inícios dos anos 1980, após o choque de juros de  1979).  A  demanda  pela  moeda  norte­americana  segue  firme,  e  as  dívidas  externas  mundiais  continuam  sendo  fundamentalmente  denominadas  em  dólares.  O  Federal  Reserve está longe, hoje, de ser um banco central “disciplinado”, e os EUA, tal como a  Grã­Bretanha,  em  seu  tempo,  seguem  utilizando  seu  poder  sobre  a  moeda  nacional  como forma de ampliação de seus meios de pagamento internacionais. As semelhanças,  se existem, esgotam­se aí. A indisciplina do FED dificilmente será punida: a referência  ao  ouro  foi  descartada  estrategicamente  pelo  governo  norte­americano  quando  historicamente  oportuna,  e  hoje,  nenhum  fetiche  metalista  fundamenta  o  valor  internacional do dólar; em seu lugar, a taxa de juros norte­americana surge soberana. O  vasto  volume  de  endividamento  internacional  em  dólares  coloca,  em  um  nível  sem  precedentes,  os  parceiros  dos  EUA  sob  ameaça  dos  ajustes  recessivos  gerados  pela  política  monetária  americana,  lição  aprendida  nos  duros  anos  de  1979­1985.  Fugas  substanciais  contra  o  dólar  podem  ocorrer  mediante  o  aprofundamento  do  déficit  comercial americano, mas um reenquadramento hegemônico, como o do início dos anos  1980,  também  vive  no  cálculo  político  dos  parceiros,  que  não  sem  pressa  promovem  operações  de  ajuste  nos  mercados  de  dinheiro  tendo  em  vista  socorrer  a  moeda  americana,  antes  que  seus  “donos”  se  vejam  na  circunstância  temerosa  de  ter  de  pessoalmente ajustá­la. Nessas circunstâncias, não há qualquer bônus advindo da adoção   de um regime de câmbio fixo por parte do dólar, já que sua projeção financeira, dentro  do quadro de influências formativas atual,  ocorre sem a necessidade dos extenuantes e  onerosos mecanismos de ajuste que marcaram o funcionamento do padrão libra­ouro no  final do século XIX. É dessa forma que as opiniões favoráveis ao padrão ouro hoje, nos  EUA,  só  podem  existir  ao  compreendê­lo  de  forma  simplificadora,  como  um  instrumento de saneamento e de controle dos “excessos” governamentais numa agenda  ultraliberal. Nem entre os inequivocamente liberais britânicos, no século XIX, o padrão  ouro foi sustentado tendo perspectivas saneadoras como prioridade. Era instrumento de  projeção de poder internacional da City, cujo ônus foi absorvido enquanto os benefícios  compensaram.  Estando  a  elite  financeira  britânica  nas  botas  de  sua  congênere  norte­ americana hoje, ouviríamos brados furiosos contra o descontrole monetário e a flutuação  cambial?  Referências Bibliográficas  BARRACLOUGH,  G.  Introdução  à  História  Contemporânea.  4ª  ed.  Rio  de  Janeiro,  Zahar, 1976.  8

BEAUD,  Michel.    História  do  Capitalismo:  de  1500  aos  nossos  dias..  São  Paulo,  Brasiliense, 1987   EICHENGREEN, Barry.  A Globalização do Capital. São Paulo, 34, 2000.   HOBSBAWM,  Eric  J.  Era  dos  Impérios  (1875­1914).  Rio  de  Janeiro,  Paz  e  Terra,  1988. 

9

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.