O PADRE, O MILITAR E OS ÍNDIOS Chagas Lima e Guido Marlière: civilizadores de botocudos e kaingangs nos sertões de Minas Gerais e São Paulo, século XIX

June 19, 2017 | Autor: Silvana Jeha | Categoria: History of Indigenous Peoples, BOTOCUDOS, Kaingang, Brazilian Indigenous History
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Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Centro de Estudos Gerais Universidade Federal Fluminense

Silvana Cassab Jeha

O PADRE, O MILITAR E OS ÍNDIOS Chagas Lima e Guido Marlière: civilizadores de botocudos e kaingangs nos sertões de Minas Gerais e São Paulo, século XIX

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em História da Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História, sob orientação da professora doutora Maria Regina Celestino de Almeida.

Niterói, 2005

Silvana Cassab Jeha

O PADRE, O MILITAR E OS ÍNDIOS Chagas Lima e Guido Marlière: civilizadores de botocudos e kaingangs nos sertões de Minas Gerais e São Paulo, século XIX

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em História da Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História.

Banca examinadora:

_______________________________________________________ Orientadora: professora doutora Maria Regina Celestino de Almeida

_______________________________________________________ Professor doutor Ronald Raminelli — UFF

_______________________________________________________ Professor livre-docente John Manoel Monteiro — UNICAMP

_______________________________________________________ Professora doutora Hebe Maria Mattos — UFF (suplente)

_______________________________________________________ Professora doutora Eunícia Barros Barcelos Fernandes — PUC-Rio (suplente)

Ao meu filho, concebido durante a dissertação e nascido antes dela Aos meus amorosos pais Ao meu amado marido

Agradecimentos Agradeço primeiramente à minha orientadora Regina, compreensiva e rigorosa nas horas certas. Devo grande parte da inspiração deste trabalho às suas aulas do curso “Relações de alteridade e reconstruções etno-culturais: abordagens históricoantropológicas”. Aos professores John Monteiro e Ronald Raminelli, por aceitarem participar da banca. Quanto ao primeiro, tenho seus textos como fonte de inspiração desde que me interessei pela história indígena. O curso “Impérios e etnografias”, ministrado pelo professor Raminelli, além de sua participação na banca de qualificação, foram fundamentais. À professora Marta Amoroso, pela conversa inspiradora em sua sala na USP, numa tarde de verão em minha cidade natal. Aos funcionários do Arquivo do Estado de São Paulo; à Rosane e à Valéria, do Arquivo Nacional (onde me sinto em casa). Em Minas, a Ailton Krenak, pela simpatia e colaboração em e-mails e conversas telefônicas; a Otavio Aguiar e à professora Maria Leônia Chaves de Resende. Ao professor Ilmar Rohloff de Mattos, pela participação na banca de qualificação e, sobretudo, pela orientação no pensamento e na profissão. Aos funcionários do departamento Juceli, Mauro, Stela, Roberto, Haidée. Às bibliotecas da UFF e da PUCRio. Aos meus colegas da pós-graduação, principalmente Berenice, Cida, Tyrone e Márcia, pois nossa cumplicidade nos tornou um grupo de apoio fundamental, ainda que espalhados pelo país. A Maria Helena, pelo axé. Aos amigos de todas as horas: Valtinho (paz espiritual), Cristina, Mário, Álvaro, Helena, Teresas, Iná , Guido, Lívia, Tânia, Jorge, Abel, Vera, Eline, Mariana, Flora, Marina, Gabi e Zé Celso. Em Sant’Anna, Armelle, Tarsila, Orlando e especialmente à Gláucia, por cuidar de mim. Agradeço ao Orlando a tradução do resumo. Aos meus irmãos e à tia Esmeralda que passeava com o João, enquanto eu estudava. Finalmente, o agradecimento mais importante: aos meus pais, Roberto e Sonia, pelo apoio, perto ou longe, sempre permanente. E a Paulo e João, pela paciência e pelo amor.

Resumo Esta é uma pesquisa sobre a atuação, sobretudo na década de 1820, de dois agentes indigenistas: o primeiro é o padre curitibano Francisco das Chagas Lima, responsável pela catequese e civilização dos índios durante a Real Expedição de Guarapuava, na então província de São Paulo. O segundo é Guido Thomaz Marlière, militar de origem francesa, diretor-geral de índios de Minas Gerais e comandante-geral das Divisões do Rio Doce. Após uma breve exposição dos debates indigenistas na Corte, são analisados os discursos e as narrativas de Marlière e Chagas Lima sobre as relações sociais nas duas frentes de expansão. Além disso, este trabalho propõe-se a editar as informações etnográficas sobre botocudos e kaingangs produzidas por esses autores e a colocá-las numa perspectiva comparativa com outras etnografias e etnologias, a fim de interpretar as ações dos índios diante da colonização. Trata-se, enfim, de um estudo de história com incursões pela antropologia.

Abstract This study is about the work of two indigenist agents, specially in the 1820s. The first one is Francisco das Chagas Lima, a priest from Curitiba, that was in charge of the indian’s cathechization and civilization, during the Royal Expedition of Guarapuava in what was then the province of São Paulo. The second one, Guido Thomaz Marlière, a French military, was Minas Gerais’s general director of indians affairs and also commanding officer of the Rio Doce Divisions. After a brief explanation about the contemporary discussions concerning the indians held in the Parliaments of Lisbon and Rio de Janeiro, Marlière and Chagas Lima’s speeches and reports about social relations in those two expasions fronts are analised. The idea is to gather ethnographic information on the kaingans and botocudos produced by these two men, putting then into a comparative perspetive with other ethnographies and ethnologies, in order to have a better understanding of how the indians reacted when faced with the colonization process.

Lista de abreviaturas AESP — Arquivo do Estado de São Paulo BN — Biblioteca Nacional IHGB — Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro RAPM — Revista do Arquivo Público Mineiro

Sumário

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 1 Civilidade, civilização ...................................................................................................... 2 Antropologia e história ..................................................................................................... 4 Civilizadores etnógrafos ................................................................................................... 6 CAPÍTULO I: BREVÍSSIMO PANORAMA DOS DEBATES SOBRE LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS INDIGENISTAS, 1821-1826 ................................... 8 Como se faz um país......................................................................................................... 8 O índio nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, 1821-2 .................. 11 O índio na Assembléia Constituinte de 1823 ................................................................. 13 O aviso de 3 de julho de 1826 ........................................................................................ 16 CAPÍTULO II: MATÉRIA ÚMIDA, QUE CUSTA A INCENDIAR-SE: O PADRE CHAGAS LIMA E OS KAINGANGS DE GUARAPUAVA, 1810-1828 ................ 19 A história de Rita de Oliveira e o narrador desta história .............................................. 19 O padre Francisco das Chagas Lima .............................................................................. 22 Kaingangs: etnonímia e breve história do contato.......................................................... 25 Civilização e catequese de índios em São Paulo, início do século XIX ......................... 31 Chumbo grosso .......................................................................................................... 33 Escravidão ou trabalho compulsório? ........................................................................ 34 A “Real Expedição de Conquista e Colonização dos Campos Gerais de Guarapuava” . 36 Discórdia generalizada. A violência, o medo e lutas pelo poder e pela cultura ............. 39 O padre contra os colonos e militares. Colonos e militares contra os índios ............ 41 Índios contra índios .................................................................................................... 45 A história das rivalidades segundo o cacique kaingang Arãkchó .............................. 50 As guerras, segundo o conceito de dualismo e o mito de origem kaingang .............. 53 A catequese: o cristianismo e a religião kaingang.......................................................... 57 Céu, inferno e o mundo dos mortos ........................................................................... 60 Sardanapalos e epicúreos: a poligamia e o casamento .............................................. 62 Descompassos culturais .................................................................................................. 66 CONHECER, TOLERAR, CIVILIZAR: GUIDO THOMAZ MARLIÈRE E OS BOTOCUDOS DO LESTE MINEIRO, DÉCADA DE 1820.................................... 69 Guido Thomaz Marlière: “quarenta anos de viagem da Europa até vir parar no meio dos botocudos” ...................................................................................................................... 70 Botocudos: etnonímia e breve história do contato ..................................................... 77 Colonização e divisões militares no rio Doce ................................................................ 81 Antes de 1808 ............................................................................................................ 81 As cartas régias de 1808: guerra justa e trabalho compulsório no rio Doce .............. 84 A colonização na década de 1820 .............................................................................. 86 Os soldados e os oficiais ......................................................................................... 88 Os colonos .............................................................................................................. 93 O discurso indigenista de Marlière ................................................................................. 97 Empatia e romantismo ............................................................................................. 102

A cega Merangang, “tal é o teu poder, oh, amor da independência!” .................. 103 As mortes dos “desditosos e jovens amantes” ...................................................... 104 A cena dramática da morte de uma família indígena ........................................... 104 Marlière civilizador ...................................................................................................... 105 A receita de Marlière: comunicação da palavra, beneficência e oferecer-lhes o cachimbo da paz....................................................................................................... 106 Relações de poder: a hierarquia dos paquejus e a militarização dos índios ............ 112 “Dar de comer ao cão ainda que haja de morder” ................................................... 115 Do entusiasmo à melancolia .................................................................................... 115 Marlière etnógrafo ........................................................................................................ 120 Etnografia comparada .............................................................................................. 123 “A mais bela e louvável nação de índio”. Aspectos físicos e morais ...................... 125 Antropofagia ............................................................................................................ 127 Guerra: superstição e valentia .................................................................................. 130 Língua: a dança dos vocábulos ................................................................................ 132 Casamento e relações amorosas ............................................................................... 135 A religião ................................................................................................................. 136 Deus e diabo ......................................................................................................... 136 Paraíso e inferno ................................................................................................... 138 “Usos fúnebres” .................................................................................................... 139 Conhecer, tolerar, civilizar ........................................................................................... 140 CONCLUSÃO............................................................................................................. 142 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 145 Fontes primárias ........................................................................................................... 145 Manuscritas .............................................................................................................. 145 Impressas e digitais .................................................................................................. 147 Fontes secundárias ........................................................................................................ 151 ANEXOS ..................................................................................................................... 158 1. Informação do missionário e vigário colado na freguesia de Nossa Senhora de Belém nos campos de Guarapuava — 1827 ............................................................................ 159 2. Notícias sobre os botecudos e mais índios da província de Minas Gerais ............... 164

Índice das ilustrações

Capítulo II Mapa etno-histórico, região sul do país..........................................................................26 Desenhos de Joaquim José de Miranda sobre a Expedição aos sertões do Tibagi.....28-29 Mapa do Campo de Guarapuava e seus recintos de matas pelo P. Francisco das Chagas Lima, 1818..........................................................................................................38 Tabela de população de Atalaya 1812-1827....................................................................58 Esquema pelo qual se mostra o número dos índios que em Guarapuava se renderam à real expedição de 1809, ao primeiro de agosto de 1812: e progressos que fizeram na religião cristã; com suas alterações à margem: ao que se ajunta o cálculo dos selvagens que residem no mesmo distrito aos 31 de dezembro de 1826................anexo 2

Capítulo III

Retrato de Guido Thomáz Marlière.................................................................................72 Mapa etno-histórico: aimorés, grens, botocudos............................................................78 Mapa do leste mineiro, circa 1800..................................................................................82 Quadro dos aldeamentos botocudos administrados por Marlière................................110 Aquarelas de botocudos feitas pelo Príncipe M. Wied-Neudwied................................128

INTRODUÇÃO Em meados do século XVIII, nasciam os dois personagens desta história. O primeiro, Francisco das Chagas Lima, na pequena Curitiba, ainda capitania de São Paulo, e o segundo, Guido Tomás Marlière, numa vila do interior da França. Com trajetórias completamente distintas, seus destinos convergiriam em uma singular atividade: a civilização de indígenas em sertões remotos, nos turbulentos anos próximos à independência do Brasil. Chagas Lima foi o missionário responsável pela catequização e civilização dos hoje chamados kaingangs, durante a expedição de conquista e colonização de Guarapuava, região ao sul da capitania de São Paulo que atualmente é parte do estado do Paraná. Marlière foi o comandante-geral das divisões do Rio Doce e diretor-geral de índios de Minas Gerais, responsável pela “civilização” dos botocudos e dos coroados, coropós, puris, maxacalis e malalis. Ambos atuaram nas décadas de 1810 e, principalmente, de 1820. A partir dos escritos desses chamados agentes de contato — neste trabalho identificados como “civilizadores de índios” —, serão abordadas suas atuações nos sertões, levando em conta que trabalhavam para o Estado, o modo como pensavam e agiam e a resposta dos indígenas a seus esforços. Nesse sentido, eram mediadores de dois mundos e, como tais, sujeitos privilegiados para compreender como se deu a interação entre esses dois mundos. Nas palavras de Laura de Mello e Souza, foi “nos espaços abertos e nas zonas distantes que se passou boa parte da história da colonização lusitana na América”.1 De penetração mais difícil do ponto de vista documental, os sertões também vêm merecendo mais atenção, pois neles, longe das plantações de cana-de-açúcar, algodão e café, ou das minas de ouro, havia povoações — de índios, mestiços, portugueses aventureiros, pequenos sitiantes, negros libertos e fugidos, aos quais, em meados do século XIX, vieram se juntar os imigrantes. É o que José de Souza Martins chama de “frente de expansão”, ou seja, a fronteira demográfica, que não coincide

Laura de Mello e Souza. “Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações”. In: idem (org.). História da vida privada no Brasil, vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 42. 1

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necessariamente com a fronteira econômica, que é a “frente pioneira”. Para o autor, via de regra, a fronteira demográfica está além da econômica.2 Por essa razão, procurei introduzir em minha pesquisa, além dos índios e agentes de contato,outros atores sociais, como colonos e soldados, a fim de contextualizar as relações sociais nessas frentes de expansão, geralmente conflituosas.

Civilidade, civilização Os mediadores entre o Estado e os índios são comumente chamados de “agentes de contato” ou “indigenistas”, entre outros termos. Escolhi a expressão civilizador pelo peso que a palavra civilização teve durante todo o século XIX, estendendo-se pelo século XX. O uso da palavra civilização em referência à transformação dos índios foi sendo sedimentado ao longo do século XVIII pelos filósofos iluministas franceses desde Mirabeau (pai), segundo Michele Duchet e Norbert Elias. Na interpretação deste último, na França, conceitos como politesse ou civilité tinham, antes de formado e firmado o conceito civilization, praticamente a mesma função que este último: expressar a auto-imagem da classe alta européia em comparação com outros, que seus membros consideravam mais simples ou mais primitivos, e ao mesmo tempo caracterizar o tipo específico de comportamento através do qual essa classe se sentia diferente de todos aqueles que julgava mais simples e mais primitivos.3

Assim, por exemplo, o Diretório Pombalino, também chamado diretório dos índios — que foi o documento indigenista mais importante da Colônia portuguesa no século XVIII —, atribuía aos diretores dos novos aldeamentos a obrigação de “civilidade dos índios”, mediante a introdução do ensino da língua portuguesa em escolas e a nominação de lugares e indígenas com palavras do português. O diretório usava ainda a expressão “nações polidas” para referir-se àquelas que usaram esse método em suas colônias, ou seja, as nações européias.4

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José de Souza Martins. Capitalismo e tradicionalismo: estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1975, p. 45. Para Martins, “a frente de expansão se integra na economia de mercado de dois modos: pela absorção do excedente demográfico que não pode ser contido dentro da fronteira econômica e pela produção de excedentes que se realizam como mercadoria na economia de mercado”. 3 Norbert Elias. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990 [1939], p. 36. 4 Francisco Xavier Mendonça Furtado, “Directorio que se deve observar nas povoações dos indios do Pará, e Maranhão, enquanto Sua Majestade não mandar o contrário”. In: Carlos de 2

Ao longo do século XVIII, o conceito de civilização substituiu, aos poucos, os de polidez e civilidade. Segundo Michele Duchet, nos textos iluministas sobre a colonização francesa, “por toda parte aparece a palavra civilização, noção-chave em torno da qual se organizam todos os planos propostos”.5 Foi a partir da década de 1760 que o vocábulo se tornou corrente em textos franceses sobre colonização. Em 1765, o fisiocrata abade Badeau dizia, referindo-se aos índios, que era necessário “convertê-los não somente ao cristianismo, mas também à civilização européia”.6 O barão de Bessner, em sua Memória sumária sobre a colônia de Cayenne (1774), afirmava que era necessário “fazê-los experimentar as vantagens de ser civilizados, de ser parte de um corpo político e usufruir o estado de cidadão”.7 Em Portugal e na América portuguesa, até onde pude alcançar, a palavra começou a aparecer em documentos nos últimos anos do século XVIII, como na “Carta régia ao capitão general do Pará acerca da emancipação e civilisação dos índios e a resposta do mesmo acerca da sua execução”;8 em Concordância das leis de Portugal e das bulas pontifícias... (1796);9 e nos Pensamentos políticos sobre a colônia (1798-9).10 No século XIX, civilização passou a ser termo corrente, juntamente com catequese, nas ações indigenistas e nas memórias sobre política indigenista. Não vou utilizar a palavra civilização e seus derivados entre aspas, apesar de não acreditar, obviamente, que os índios precisassem ser civilizados, ou que o significado da palavra faça sentido hoje em dia, apesar de muita gente ainda pensar assim. Como esses termos serão largamente empregados nesta dissertação, deixo registrado que o sentido deles no texto corresponde ao que tinham na época. O capítulo I tratará dos debates indigenistas nas Cortes de Lisboa e do Rio de Janeiro na década de 1820. Nesse período, a política indigenista era conduzida pelas

Araújo Moreira Neto. Indios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988, p. 166-205. 5 Michele Duchet. Anthropologie et histoire au siècle des lumières. Paris: Albin Michel, 1995 [1971], p. 218. Tradução minha. 6 Abade Badeau. Ephémérides du citoyen, citado em Michèle Duchet, op. cit., p. 218. Tradução minha. 7 Citado em Michele Duchet, op. cit., p. 219. Tradução minha. 8 Transcrita em Carlos de Araújo Moreira Neto, op. cit. Esta é a carta régia de 12/5/1798, que revogou o Diretório Pombalino, pelo menos na região amazônica. 9 J. J. da Cunha Azeredo Coutinho. Concordância das leis de Portugal e das bulas pontifícias das quais umas permitem a escravidão das pretos da África e outras proíbem a escravidão dos índios no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1988. 10 Luís dos Santos Vilhena. Pensamentos políticos sobre a colônia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1987. 3

províncias, mas as Câmaras buscavam discutir planos de civilização para todo o país. A proposta mais conhecida é a de José Bonifácio. Achei necessário estabelecer um breve panorama dessas discussões, pois elas encontravam eco no procedimento de Chagas Lima e de Marlière, na medida em que era corrente a idéia de uma civilização passiva. Nesse sentido, as duas cartas régias de 1808, que decretaram guerra justa contra os índios de duas regiões, não correspondiam ao discurso dominante entre deputados e senadores. No tocante à questão indígena, estes traziam para o século XIX as idéias da Ilustração do século XVIII, que criticavam os procedimentos do Antigo Regime.

Antropologia e história A primeira idéia foi comparar os escritos dos dois principais agentes oficiais no processo civilizatório dos índios: os religiosos e os militares. A época escolhida foi a passagem da Colônia para o Império, quando a legislação indigenista era esparsa e local. À medida que a leitura dos documentos e a elaboração do texto avançaram, essas questões se mantiveram, ainda que um pouco deslocadas do foco central, redirecionadas pela própria ação dos índios diante da colonização. O tema, que se restringia àquilo que um padre e um militar diziam sobre os índios e as relações de contato luso-ameríndio, ampliou-se na direção da ação dos próprios índios, ajustando-se aos estudos mais recentes de etno-história ou de antropologia histórica, que, como observou John Monteiro, buscam “qualificar a ação consciente — agency, em inglês — dos povos nativos como sujeitos da história, desenvolvendo estratégias políticas e moldando o próprio futuro diante dos desafios e das condições do contato e da dominação”. 11 Nesse sentido, o estudo, que originalmente comparava duas maneiras de civilizar, tornou-se a análise de duas experiências de processos civilizatórios e da reação de grupos indígenas diversos, tendo em vista suas especificidades étnicas. A partir da década de 1990, foram lançados grandes projetos de história indígena, principalmente pelo Núcleo de História do Índio e Indigenismo da USP, formado basicamente por antropólogos, ou por antropólogos egressos da disciplina de história, que encontraram seu nicho nos departamentos de antropologia. Esse movimento lançou três volumes seminais: História dos índios no Brasil, Legislação indigenista no século John Monteiro. “O desafio da história indígena”. In: Aracy Lopes da Silva; Luís D. B. Grupioni (org.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1.o e 2.o graus. Brasília: MEC; MARI; UNESCO, 1995, p. 226-7. 11

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XIX: uma compilação (1808-1889) e Guia de fontes para a história indígena e do indigenismo em arquivos brasileiros: acervos das capitais. Os dois primeiros foram organizados em 1992 por Manuela Carneiro da Cunha, e o último por John Manuel Monteiro, em 1994. Esta dissertação deve suas preocupações iniciais às grandes questões levantadas por esses guias/manuais. Nesse sentido, inspirou-se, como tantos outros estudos dos últimos anos, na fraca inserção do índios na historiografia brasileira. Essa ausência tem sido explorada, via de regra, nas introduções de todos os estudos recentes de história indígena. Por outro lado, à medida que tais estudos, feitos por antropólogos e historiadores, se avolumam, caminha-se para uma consolidação do tema na história social do Brasil.12 Considerar os índios como sujeitos de sua história implica enveredar pela antropologia. Nas palavras de Maria Regina Celestino de Almeida, no balanço que fez dos estudos que usam procedimentos da antropologia e da história, as “transformações são vistas como conseqüência do próprio dinamismo histórico, que incluía as situações de contato, e elas se processam também a partir dos interesses dos próprios índios ligados às suas tradições culturais”.13 Busquei, portanto, nos dois capítulos centrais deste trabalho, levar em consideração as “tradições culturais” dos botocudos e kaingangs para compreender melhor suas ações diante da colonização.14

Os estudos são inúmeros. A título de exemplo, cito os trabalhos dessa “nova história indígena” — nas palavras de John Monteiro — que consultei na elaboração deste trabalho: Maria Regina Celestino de Almeida. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro; Marta Rosa Amoroso. Catequese e evasão: etnografia do aldeamento indígena São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895); Izabel Missagia de Mattos. Civilização e revolta: os botocudos e a catequese na província de Minas. Cristina Pompa. Religião como tradução: missionários, tupi e tapuia no Brasil colonial; Kimiye Tommasino. A história dos Kaingáng da bacia do Tibagi: uma sociedade Jê meridional em movimento; Ronaldo Vainfas. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. Robin Wright. “Uma conspiração contra os civilizados: história, política e ideologias dos movimentos milenaristas dos Arawak e Tukano do Noroeste da Amazônia”.Ver a bibliografia para as citações completas. 13 Maria Regina Celestino de Almeida. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 32. Para uma análise de estudos interdisciplinares de história e antropologia na literatura estrangeira, ver ibidem, p. 26-34. 14 Dentro dessa linha de estudos, Robin Wright, por exemplo, se valeu da comparação de histórias orais dos baniwas dos rios Içana e Aiari com fontes do século XVIII à década de 1990 para traçar um histórico do milenarismo dos povos da região. Robin Wright. “Uma conspiração contra os civilizados: história, política e ideologias dos movimentos milenaristas dos Arawak e Tukano do Noroeste da Amazônia”. Anuário Antropológico/89. Rio de Janeiro: TB, 1992, p. 191-231. 12

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Civilizadores etnógrafos Depois de analisar os civilizadores como narradores do contato luso-ameríndio, organizei as etnografias de Chagas Lima e Guido Marlière espalhadas em seus escritos , confrontando-as com outras fontes etnográficas dos kaingans e botocudos, e com estudos antropológicos do passado e contemporâneos. Foram os missionários — e, em menor escala, os militares — que produziram narrativas mais permanentes sobre os contatos luso-ameríndios ao longo dos séculos. Os jesuítas (até meados do século XVIII) e os capuchinhos (mais intensamente a partir de meados do século XIX) foram os principais narradores dessa história. No entanto, padres seculares, diversos diretores de índios e militares — enfim, funcionários de fronteira em geral — são fontes inestimáveis para chegar mais perto da história indígena e indigenista. De acordo com Pels e Salemink, “a academia é apenas um dos lugares da atividade etnográfica entre muitos”. No texto introdutório do livro Colonial subjects, eles incluem autoridades indigenistas, informantes, comerciantes, colonos, missionários e administradores coloniais na história da antropologia.15 Chagas Lima e Marlière foram etnógrafos, cada um a seu modo: este último, intencionalmente; o primeiro, sem perceber. Ou seja, ao explicar o porquê do malogro da catequese, Chagas Lima acabou por versar sobre a espiritualidade kaingang, que no seu ponto de vista não passava de idolatria, superstição. A etnografia de Marlière, por sua vez, tinha duas orientações. A primeira tecia o conhecimento sobre os botocudos como estratégia para civilizá-los. A segunda produzia etnografia para ser publicada, assim como vinham fazendo os naturalistas europeus. No entanto, Marlière não publicou livros na Europa, e sim artigos em dois jornais de Minas Gerais. No capítulo II, sobre os kaingangs, com base nos procedimentos de Marta Amoroso,16 confrontei a etnografia de Chagas Lima com as de agentes de contato do século XIX, passando pela etnologia de Curt Nimuendajú, do século XX, e por teses recentes sobre os kaingangs. A continuidade, nos últimos dois séculos, dos escritos sobre os kaingangs ajudou, neste caso, a unir história e antropologia, diminuindo os riscos de anacronismo. Peter Pels; Oscar Salemink. “Introduction: locating the colonial subjects of anthropology”. In: idem. Colonial subjects: essays on the practical history of anthropology. The University of Michigan Press, 2000, p. 1. 16 Marta Amoroso. Catequese e evasão: etnografia do aldeamento indígena São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). Tese de Doutoramento. São Paulo: Departamento de Antropologia, FFLCH-USP, 1998. 15

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Em relação a Guido Marlière, apesar do imenso volume de informações etnográficas, minhas incursões pela antropologia foram mais modestas e limitei-me a comparar sua etnografia com outras do século XIX. Emergem de seu capítulo muito mais sua atuação, seu pensamento e sua trajetória originais, enquanto no capítulo de Chagas Lima os kaingangs ganham mais visibilidade. Finalmente, gostaria de registrar minha escolha em relação à grafia das etnias. Em geral, os antropólogos não aplicam o plural e grafam os nomes dos grupos indígenas com letra maiúscula, a partir de uma convenção da Associação Brasileira de Antropólogos (ABA) de 1954. Com todo o respeito a essa prática, optei por usar as normas gramaticais, usando o plural quando necessário e grafando os nomes com letra minúscula.

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Capítulo I: BREVÍSSIMO PANORAMA DOS DEBATES SOBRE LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS INDIGENISTAS, 1821-1826

Como se faz um país “Mouros, brancos, negros, mulatos ou mestiços, todos servirão, todos são homens e são bons, se bem governados.”1 Assim o duque Silva-Tarouca se referia ao Brasil numa carta ao marquês de Pombal de 1752. O ministro português certamente corroborava as idéias de seu interlocutor. Um ano antes, havia dirigido as seguintes palavras a Gomes Freire, então vice-rei do Brasil: “[...] o poder e a riqueza de todos os países consistem principalmente no número e na multiplicação das pessoas que os habitam [...] é preciso abolir todas as diferenças entre índios e portugueses”. 2 Décadas depois, em 1798, Luís dos Santos Vilhena afirmava: “População, agricultura e comércio são as colunas mais sólidas e a base mais estável das colônias que conservamos na América”.3 O tema do aumento da população, bastante presente nos documentos portugueses e brasileiros da passagem do século XVIII para o XIX, teve igual espaço nas discussões da Assembléia Constituinte de 1821-2, de Portugal, e na do Império do Brasil, de 1823. Nesse grande espectro, a civilização dos índios ocupou lugar de destaque, juntamente com o estímulo da imigração de estrangeiros para o país. Vamos nos deter no primeiro aspecto. A questão da escravidão africana perpassava o debate, no sentido de que, se índios e trabalhadores estrangeiros aumentassem “os braços da agricultura”, evitariam a necessidade do tráfico de escravos. Por sua vez, a questão indígena também atravessava os debates sobre cidadania. O pano de fundo das discussões era sempre qual seria a melhor maneira de torná-los vassalos e/ou cidadãos úteis. O objetivo deste capítulo é apresentar um breve panorama do debate político e da legislação da Corte sobre a civilização e catequese dos indígenas, principalmente na década de 1820. Há três momentos-chave para analisar o tema nessa tumultuada década 1

Citado em Kenneth Maxwell. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 54. 2 Ibidem, p. 53. 3 Luís dos Santos Vilhena. Pensamentos políticos sobre a Colônia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1987, p. 39. 8

da independência: a Assembléia Constituinte de Lisboa (1821-2), a Assembléia Constituinte do Rio de Janeiro (1823) e as respostas das províncias do Império ao aviso de 3 de julho de 1826, o qual continha um questionário sobre a política indigenista conduzida em cada província. Se procurarmos definir exatamente a política indigenista no Brasil das primeiras décadas do século XIX através de uma legislação determinada e datada, provavelmente nunca obteremos um resultado satisfatório. É notável como as leis divergiam nas diversas capitanias ou províncias, o que dirige o estudo para o âmbito local. Segundo Manuela Carneiro da Cunha, A legislação indigenista do século XIX, sobretudo até 1845, é flutuante, pontual, e, como era de se esperar, em larga medida subsidiária a uma política de terras. Com a revogação em 1798 do Diretório Pombalino, promulgado na década de 1750, havia-se criado um vazio que não seria preenchido. Só em 1845, com o ‘Regulamento acerca das Missões de catequese e civilização dos índios’ (decreto 426 de 24/7/1845), é que se tentará estabelecer as diretrizes sérias, mais administrativas, na realidade, do que políticas, para o governo dos índios aldeados.4

Ainda que num primeiro momento “flutuante, pontual” — portanto, existente —, Cunha sugere para o período compreendido entre 1798 e 1845 um vazio legal. O vazio, para a autora, é claramente relacionado ao que ela chama de “política indigenista global”. Por outro lado, a regionalização da política indigenista havia sido uma opção legal e necessária; era, portanto, uma política da Corte. Em segundo lugar, para o período até 1845, a legislação indigenista não era apenas “subsidiária a uma política de terras”. Em algumas regiões de colonização mais antiga, como o Rio de Janeiro e algumas províncias do Nordeste, a questão de terras era certamente uma realidade. O aumento da população “civilizada” — e, conseqüentemente, o preenchimento do vazio dos sertões — e novos “braços para agricultura” era um tema caro aos políticos na Corte e aos agentes de contato nos sertões. Talvez até 1845 a referência máxima no trato com os índios ainda fosse o Diretório Pombalino de 1757, estendido para todo o Brasil em 1758. Apesar de “revogado” pela carta régia de 1798,5 ele ainda era muito citado e utilizado na prática Manuela Carneiro da Cunha. “Prólogo”. In: idem (org.). Legislação indigenista no século XIX: uma compilação (1808-1889). São Paulo: EDUSP; Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992, p. 9. 5 Na decisão n.o 22, de 24/5/1811, o então ministro conde de Aguiar afirmou que, quando governador da Bahia, recebeu cópia da carta régia de 12/5/1798, anexa ao aviso de 29/8/1798, o qual instruía que se executasse a carta régia “em tudo a que pudesse ser aplicável”. O ministro supunha que outros governadores também teriam recebido esse aviso. Num outro trabalho, 4

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das relações luso-ameríndias. O fato de ter sido impresso na época, o que não era comum, e distribuído pelos aldeamentos e pelas capitanias talvez tenha contribuído para sua perenidade. Segundo o mineralista W. Eschwege, no livro em que relata a visita à população indígena da Zona da Mata mineira, a lei ali aplicada, pelo menos em 1814, era a do Diretório, documento que ele resumiu em detalhes.6 No Ceará, em 1843, o Diretório Pombalino chegou a ser restabelecido pelo presidente da província.7 No caso indigenista, outra questão se impõe. Se o discurso vigente era a necessidade de tornar os índios cidadãos trabalhadores, era necessário que passassem por um processo civilizatório — polissêmico, diga-se de passagem — para alcançarem tal status. Entrementes, a legislação corrente os trataria diferentemente dos outros moradores da Colônia e, depois, do Império. Um exemplo claro dessa política são as duas cartas régias expedidas poucos meses depois da chegada de d. João ao Rio de Janeiro. A primeira (13/5/1808) é aquela que declara “guerra ofensiva” aos botocudos de Minas Gerais. A segunda (5/11/1808) declara guerra aos índios da região de Guarapuava, na então província de São Paulo e, hoje, parte do estado do Paraná. O desdobramento dessas leis na década de 1820 será desenvolvido ao longo deste trabalho. Aparentemente contraditórias em relação aos desejos de aumento da população e ao discurso filantrópico e ilustrado dos políticos da época, incluindo o príncipe d. João, as cartas régias que declaravam guerra justa8 se explicam pelos intentos coloniais na região e pela compreensão de que os índios no “estado selvagem” representavam um obstáculo a ser transposto. Contudo, essas leis não promoveram apenas o extermínio, como veremos nos capítulos seguintes.

cheguei à conclusão de que o “Diretório e sua revogação, não obstante contraditórios, conviveram nas últimas décadas da Colônia e provavelmente nas primeiras décadas do Império, demonstrando certa desarticulação da política indigenista geral para todo o território brasileiro, que se teria tornado majoritariamente local” (Silvana C. Jeha. Rendon e Bonifácio: dois projetos de política indigenista no início do Império do Brasil. Monografia de final de curso. Departamento de História, PUC-Rio, p. 14).. 6 Wilhelm Ludwig von Eschewege. Jornal do Brasil 1811-1817 ou Relatos diversos do Brasil, coletados durante expedições cientificas. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2002, p. 725. 7 “01/08/1843: decreto provincial n.o 298 — Província do Ceará — Restabelece o Diretório dos índios de 3 de maio de 1757”. In: Manuela Carneiro da Cunha(org.). Legislação indigenista no século XIX: uma compilação (1808-1889). São Paulo: EDUSP; Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992, p. 186-7. 8 Sobre a guerra justa no período colonial, ver Leyla Perrone-Moisés. “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista no período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In: Manuela Carneiro da Cunha (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 123-7. 10

O índio nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, 1821-2 No total, foram apresentadas na Constituinte de 1821-2 das Cortes portuguesas quatro memórias, não transcritas nos diários, sobre a civilização dos índios no Brasil. Duas aparentemente se referiam ao Brasil todo — quais sejam, a do paulista José Bonifácio de Andrada e Silva9 e a de Henrique Guilherme Smith.10 Outra se aplicava ao Pará (do paraense José Caetano Ribeiro da Cunha11) e uma ao Ceará, a Minas Gerais e a Mato Grosso (escrita pelo pernambucano Muniz Tavares12). O baiano Borges de Barros apresentou, em 18 de março de 1822, um projeto de decreto cujo mote era justamente o aumento da população na então colônia: As Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, desejando promover a povoação, civilização e cultura do vasto Reino do Brasil, como único eficaz meio de elevar-se aquela brilhante parte do Novo Mundo ao grau de prosperidade, que a natureza lhe tem marcado, em vantagem da Nação inteira.13

Borges de Barros propunha o povoamento do Brasil com a criação, junto às Câmaras das províncias, de “Juntas de Colonização e Protetoras dos Índios”. Reunia, desse modo, índios e colonos estrangeiros para preencher os sertões do país. Previa, enfim, que a escravidão africana, dentro de seis anos, não seria mais necessária. Castello Branco Manoel, da Comissão do Ultramar, explicou por que não deu um parecer sobre a representação dos “principais dos índios e gentios das cinco nações unidas das províncias de Minas, Maranhão e Pará”. O deputado transferia para as províncias as resoluções das questões indigenistas: A Comissão se abstém de dar o seu parecer acerca de determinar os limites do território, como se pede nesta representação, porque não tem as informações necessárias. Ela confia, e espera que, depois de estabelecidas no Brasil as Juntas de Governo, criadas pelo decreto de 20 de setembro, entre os cuidados aos quais elas se deverão entregar, tenha grande parte o informar miudamente o Governo do modo por que se pode estabelecer um sistema o mais liberal, e ajustado às circunstancias locais de cada uma das províncias.14

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Diários das Cortes Geraes e Extraordinárias da Nação Portugueza, 7/3/1821, ata 30, p. 394. Disponível em: . 10 Ibidem, 9/4/1822, ata 69, p. 994. 11 Ibidem, 9/10/1821, ata 172, p. 2206. 12 Ibidem, 1/4/1822, ata 49, p. 683. 13 Ibidem,, 18/3/1822, ata 52, p. 736. 14 Ibidem 18/12/1821, ata 253, p. 3451. 11

Ele entendia, como muitos, que a questão indigenista era local, e mais adiante se remeteu ao Diretório Pombalino de 1757, como uma lei que se devia consultar.15 Uma discussão interessante foi a suscitada pelo deputado baiano Cypriano Barata, quando defendia que a palavra português deveria ser substituída por indivíduo nos artigos da Carta. Na linha argumentativa de Silva-Tarouca, afirmava: [...] para o Brasil é melhor dividir os cidadãos em ativos, e passivos, segundo o abade Seyés, e outros publicistas, porque isto é mais a bem dos negócios brasileiros. Os mulatos, sr. presidente, cabras, e crioulos; os índios, mamelucos, e mestiços, são gentes todas nossas, são portugueses, e cidadãos muito honrados, e valorosos: eles em todo o tempo provarão quanto peso tem aquele país, fazendo a defesa dele, e concorrendo para seu engrandecimento, já na agricultura, já no comércio, e artes. Nós temos visto grandes heróis em todas aquelas raças.16

Barata trazia à tona um dos discursos vigentes naquele momento. O cidadão compunha a povoação e, quanto maior fosse esta, maior seria a prosperidade do Estado. Ao que parece, propunha a divisão em ativos e passivos, no lugar de divisões raciais. De qualquer maneira, na prática, chamar negros livres, índios e portugueses pobres de cidadãos

significava

sua

contabilização

nos

censos

populacionais,

e

não

necessariamente que essas populações tivessem acesso a direitos. Segundo William Sewell, na França do século XVIII o termo cidadão também era usado “para indicar cada habitante, de um Estado, nação ou cidade”.17 Este significado também era próximo do status de vassalo que o Diretório Pombalino quis imputar aos índios: “Saindo da ignorância e rusticidade a que se acham reduzidos, possam ser úteis a si, aos moradores e ao Estado”.18 A utilidade de um vassalo, na Colônia, e do cidadão, no Império, estava no cumprimento de seus deveres e na incorporação à força de trabalho. A menção de um ofício, pelo secretário da Assembléia, parece fornecer uma nuance interessante do debate na Corte portuguesa. A junta do Governo do Rio Grande do Norte havia remetido uma representação enviada pelos “índios e mais moradores da

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Está ainda em aberto a discussão sobre o verdadeiro alcance, nas diversas capitanias, da carta régia de 1798, que revogava o Diretório Pombalino, aplicado a todo o Brasil na década de 1750. 16 Diários das Cortes Geraes e Extraordinárias da Nação Portugueza, 13/8/1822, ata n.o 11, p. 137-40. 17 William H. Sewell. “Le citoyen/la citoyenne: activity, passivity, and the revolutionary concept of citizenship”. In: Colin Lucas (ed.). The French revolution and the creation of modern political culture. Oxford: Perguson Press, 1988, p. 105. 18 Francisco Xavier Mendonça Furtado. “Directorio que se deve observar nas povoações dos indios do Pará, e Maranhão”. In: Carlos de Araújo Moreira Neto. Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988, p. 203. 12

vila de Extremoz, contra o seu pároco”.19 Segundo nosso levantamento, este foi o único documento assinado por índios lido nas Cortes. Os historiadores vêm, cada vez mais, levantando documentos com reclamações dos índios sobre o não-cumprimento de leis e sobre a quebra de seus direitos. Em Minas Gerais, em 1813, os coroados mandaram um ofício para o governador da capitania, o qual enviou o capitão Guido Marlière para averiguar os conflitos de terra entre índios e portugueses. 20 Anos depois, botocudos do rio Doce se dirigiram à Corte para falar com o imperador. Maria Regina Celestino de Almeida analisou diversos casos de demandas de índios aldeados do Rio de Janeiro, o que ela chamou de “ação política” dos índios.21 Ainda que não freqüente, essa remissão ao Estado demonstrava a percepção, pelos índios, da existência de direitos, embasados nas próprias leis.

O índio na Assembléia Constituinte de 1823 No Parlamento, nas casas, nos pasquins e até mesmo nas ruas e praças públicas, aqueles que pretendiam dirigir os destinos de uma sociedade que julgava ter completado sua emancipação da tutela metropolitana expunham suas idéias e programas [...] Servindo-se de imagens e conceitos cunhados em países distantes, buscavam referências para a compreensão do quadro em que se moviam, assim como procuravam ser semelhantes às nações que se apresentavam como portadoras de uma civilização.22

Sete meses após o 7 de setembro de 1822, em 3 de maio de 1823, foi aberta a primeira Assembléia Constituinte brasileira. Mais de cinqüenta deputados oriundos de várias províncias se reuniram durante cerca de sete meses para elaborar a Constituição do novíssimo Império do Brasil. O ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros José Bonifácio de Andrada e Silva e o tenente-general José Arouche de Toledo Rendon eram dois dos nove deputados que representavam a província de São Paulo. Observe-se que foi nesse ano que ambos escreveram dois projetos de política indigenista para o país. 23

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Diários da Cortes Geraes e Extraordinárias da Nação Portugueza, ata 69, p. 994. Conde de Palma. Carta para o conde de Galveas, Vila Rica, 18/2/1813. Revista do Archivo Publico Mineiro, ano 10, 1904. 21 Maria Regina Celestino de Almeida. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. 22 Ilmar Rohloff de Mattos. O tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. Rio de Janeiro: Access, 1999, p. 1. 23 Escrevi sobre esses dois projetos em minha monografia de final de curso. Silvana C. Jeha. Rendon e Bonifácio: dois projetos de política indigenista no início do Império do Brasil. Monografia de final de curso. Departamento de História, PUC-Rio, 2002. 20

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No dia 12 de maio, José Bonifácio leu na Assembléia uma carta que recebera da Câmara de Ilhéus. O documento pedia providências urgentes em relação a uma colônia de mais de cem famílias alemãs, que morriam à míngua. Os subsídios que haviam sido prometidos não estavam sendo efetivados. Diante do problema, José Bonifácio e seu irmão Antônio Carlos sugeriram que seria fundamental criar uma comissão de colonização. O presidente da Assembléia deliberou que “a Comissão de Colonização e de Civilização e Catequização dos Indígenas do Brasil, que, unida à da Fazenda, desse um parecer sobre o caso dos alemães, ficando, além disso, a seu cargo formar um plano que satisfizesse ao fim geral do aumento da população dos homens brancos e civilização dos índios selvagens”.24 Nesse mesmo dia, foi formada a comissão, com três deputados mineiros. É importante notar, como havia sugerido o deputado Borges Barros nas Cortes portuguesas, que se unia o problema da colonização estrangeira ao da civilização dos indígenas. Os anais também relatam que “o sr. Andrada e Silva, que tinha um trabalho feito a respeito da civilização e catequização dos índios, o qual oferecia, poderia acrescentar algumas idéias”.25 No dia 1.o de junho, Bonifácio — que, além de acumular os cargos citados, havia se tornado no mesmo dia presidente da Assembléia — apresentou à Comissão de Colonização os Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil. Na sessão de 18 de junho, a Comissão aprovou o texto de Bonifácio, guardandose de “extratá-lo por não desfigurar o original que pensa digno de se imprimir tal qual se acha, devendo julgar-se como um compêndio de princípios elementares, da ciência, ou arte de dirigir, e civilizar os selvagens do Brasil”. Mais adiante, determinava-se que alguns exemplares fossem remetidos às províncias e que se exigissem delas “as necessárias notícias, informe sobre os meios mais eficazes de realizar em toda a sua extensão tão importante projeto”.26 Em novembro, a Assembléia foi dissolvida. D. Pedro I nomeou um Conselho de Estado, composto por dez membros, que redigiu a Carta constitucional outorgada em março de 1824. Leis indigenistas ficaram de fora da nossa primeira Carta. Apenas é digno de nota que, no artigo 6.o do título 2.o, afirma-se que são cidadãos brasileiros “os que no Brasil tiverem nascido”. Uma pergunta fica no ar: segundo a Carta, índios eram 24

Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléia Constituinte, 1823, t. 1. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artístico, 1874, p. 97. 25 Ibidem. 26 Ibidem, p. 240. 14

cidadãos? O diretor-geral dos índios de Minas Gerais, Guido Marlière, responderia que não. Numa missiva a um deputado da Assembléia, em 1825, protestou: “A Constituição qualifica de cidadão a um escravo liberto. Aos índios senhores proprietários, e natos do país imenso que habitamos, não deu ainda estes títulos!”.27 A política indigenista das primeiras décadas do Império passaria a ser responsabilidade de cada província. A lei de 20 de outubro de 1823 decretou a extinção das Juntas Provisórias que governavam as províncias e criou os cargos de presidente e conselheiros para cada uma delas. Caberia a eles, segundo o artigo 24, § 9, “promover as missões e a catequese dos índios, a colonização dos estrangeiros, a laboração das minas, e o estabelecimento de fábricas minerais nas províncias metalíferas”.28 Dessa maneira, cumpria-se o que já havia sido sugerido na Constituinte de Lisboa pelo deputado Castello Branco Manoel. Em dezembro de 1823, o ex-deputado-geral José Arouche de Toledo Rendon, então conselheiro de São Paulo, retomou o tema da civilização dos índios, publicando e oferecendo às demais províncias a sua Memória sobre as aldeias de índios da província de S. Paulo, segundo as observações feitas no ano de 1798. Tratava-se de uma reelaboração bastante revista e aumentada de um plano escrito em 1798, quando Redon era diretor dos Aldeamentos de São Paulo. Rendon visava, com base em sua ampla experiência, propor às outras províncias um plano de assimilação dos índios para aumentar a população do Império. Nenhuma das memórias transformou-se em lei ou decreto. Elas são importantes na medida em que parecem refletir e de alguma maneira sintetizar as diretrizes contraditórias e, em muitos aspectos, convergentes da elite dirigente e da legislação indigenista, seja na extinta Colônia, seja no nascente Império. Segundo Manuela Carneiro da Cunha, os Apontamentos… de Bonifácio reverberariam século XIX adentro, tendo influenciado bastante o Regulamento de 1845, primeiro documento de política indigenista voltada para todo o Império. É importante salientar que a lei de 20/10/1823 resolvia que “ordenações, leis regimentos, alvarás, decretos e outras leis promulgadas

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Guido T. Marlière. Carta para o deputado à Assembléia, coronel João J. L. Mendes Ribeiro. Quartel do Retiro, 11/7/1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 609-17. 28 Manuela Carneiro da Cunha (org.). Legislação indigenista no século XIX: uma compilação (1808-1889). São Paulo: EDUSP; Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992, p. 109. 15

pelos reis de Portugal até 25/4/1821 continuariam a vigorar”.29 A permanência de tais leis traria para o Império muitas questões coloniais ainda não resolvidas. A semelhança entre as propostas indigenistas das Constituintes de Lisboa e do Rio de Janeiro não era mera coincidência. Além de diversos deputados terem participado de ambas, praticamente todos os deputados no Rio de Janeiro haviam estudado em Coimbra. Assim como a família real permaneceu a mesma, na passagem do Império para a Colônia, o conjunto de membros do Governo não sofreu grandes alterações. A elite política do início do Império era ilustrada, e trazia os debates iluministas para a arena política, num ambiente ainda impregnado por procedimentos do Antigo Regime e da colonização. Não havia contradição: o processo de independência e de formação do Estado demandava tempo para se realizar.

O aviso de 3 de julho de 1826 Em 3 de julho de 1826, o visconde de São Leopoldo, senador e ministro interino dos Negócios do Império, a pedido de d. Pedro I, expediu a todos os presidentes de províncias um aviso que continha um questionário acerca da civilização dos índios. Resumidamente, as questões versavam sobre: 1. a índole, os costumes e as inclinações dos índios selvagens; 2. os terrenos próprios para o seu aldeamento; e 3. as causas que têm feito fracassar todos os esforços de civilizá-los, “com avultadas despesas da Fazenda Nacional”.30 Na terceira sessão do Senado, em 7 de maio de 1827, 31 o visconde entregou à Comissão de Estatística as respostas de oito províncias, enviadas neste ínterim. A leitura desses documentos demonstra a polifonia de opiniões a respeito do que se deveria fazer com os índios nas províncias e no Império em geral. São ofícios e até memórias escritas pelos presidentes, clérigos e agentes de civilização em geral. A divergência de opiniões

Silvia Hunold Lara. “Introdução”. In: idem (org.). Ordenações filipinas livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 38. 30 Visconde de Congonhas do Campo. Carta ao Visconde de São Leopoldo, 22/2/1827. In: Leda Maria Cardoso Naud. “Documentos sobre o índio brasileiro (2.a parte)”, Revista de Informação Legislativa, 7(28), out.-dez 1971, p. 322. John Monteiro analisou as respostas deste aviso em Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese de livredocência. Departamento de Antropologia, IFCH, UNICAMP, 2001, p. 129-69. 31 Segundo a Constituição de 1824, as sessões do Parlamento iniciavam sempre no dia 3 de maio. 29

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não dizia respeito apenas às diferentes concepções de cada um dos pareceristas. A diversidade e a quantidade de povos indígenas e de grau de colonização de cada província, por si só, explicavam a necessidade de políticas diversas. Por exemplo, no Ceará havia poucos aldeamentos, e o presidente nem mencionava a existência de índios nos sertões. Já em Goiânia a população indígena era imensa, e existiam grandes áreas não colonizadas. No dossiê preparado pelo presidente de Minas Gerais, havia um longo conjunto de textos redigidos por Guido Marlière, diretor de índios da província. Num dicionário de sessenta verbetes didáticos sobre a civilização de índios, Marlière pedia pena de morte àqueles que matassem índios sem terem sido atacados. Ignácio Aciolli de Vasconcellos, presidente do Espírito Santo, aconselhava derrubar “as matas, para se lhes [dos índios] tirarem os coutos, e que isolados busquem recursos entre nós, e se amoldem aos nossos costumes”. Já Caetano Maria Lopes Gama, presidente de Goiás, pedia “missionários de probidade”. O presidente da Paraíba afirmou não haver outra providência “senão fazêlos entrar na massa comum de todos os habitantes”. Antônio de Sales Nunes Barford, presidente do Ceará, acusava de corruptos os diretores das aldeias e pedia diretores de “conhecida probidade”. Segundo Barford, a preparação dos índios para o trabalho diminuiria “a necessidade da população escrava” e forneceria “ao Exército e à Marinha soldados e marinheiros robustos”. O comandante-geral da vila de Parnagoá, no Piauí, responsabilizou “idéias de opressão e cativeiro que eles têm concedido à vista da ocupação violenta do seu país, e à vista da má-fé e crueza com que os têm tratado seus diversos conquistadores”.32 Todos, no entanto, remetiam-se à história do contato, condenando o modo como ele foi feito, e, em geral, elogiavam os jesuítas. Todos acreditavam na assimilação dos índios à nação. Era certamente um momento de reflexão: como civilizar os índios? Na mesma sessão de 1827, o visconde de São Leopoldo trazia ao Senado um plano assinado por três membros da Comissão de Colonização “para atrair e estabelecer colonos estrangeiros no Brasil”. A Assembléia Constituinte de 1823 tinha uma única comissão para a atração de colonos e a civilização de índios. Em 1827, os dois temas não mais pertenciam à mesma comissão, mas apareceram na ordem do mesmo dia.

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Leda Maria Cardoso Naud (org.), op. cit., p. 297-336. 17

As leis e os debates, por si só, não são suficientes para entender políticas. O que ocorria, de fato, nos “sertões infestados de índios” só é verificável numa análise combinada das leis, do pensamento da elite política, da correspondência dos funcionários desses postos avançados, de relatos de viajantes etc. A dificuldade de instituir leis adequadas para a questão indígena na primeira metade do século XIX, além de apontar para a diversidade de grupos indígenas e de graus de contato nas diferentes regiões, evidencia o problema do nascente direito na nascente nação, que lidava justamente com problemas de inclusão e exclusão, por exemplo, definir qualidades de cidadãos. Na década de 1820, quem explicitou com todas as letras os objetivos principais da civilização de índios foi o indigenista e ex-deputado José Arouche de Toledo Rendon, em sua Memória sobre as aldeias de índios da província de S. Paulo. Com a civilização, a assimilação dos índios se daria de duas formas: a primeira seria pela mistura racial, ao transformar os índios em brancos: “Vendo-se os mapas estatísticos da província de S. Paulo, encontra-se um grande número de brancos. Mas não é assim; a maior parte é gente mestiça [...]. Eles já têm sentimentos, e quando na fatura das listas são perguntados [...] declaram que são brancos”.33 A segunda seria pelo trabalho: Nas projeções de Rendon, repetindo a frase tantas vezes dita naquele tempo, seu plano de civilização de índios daria “milhares de braços à agricultura” e aliviaria o Brasil, “em parte, da necessidade do negro comércio da raça africana”.34 Este pequeno panorama das discussões parlamentares na década de 1820 foi feito a fim de introduzir as idéias indigenistas correntes nas Cortes. A política indigenista nos sertões mineiros e paulistas foi conduzida majoritariamente pelos presidentes da província. Estes últimos, no entanto, circulavam amplamente por cargos políticos, e não somente pelos altos cargos provinciais: ocupavam cadeiras no Senado, na Câmara dos Deputados e alguns Ministérios. Além disso, atuaram politicamente tanto no período colonial como no imperial. As idéias da Corte, de certa maneira, reverberaram nos sertões, uma vez que os civilizadores em questão eram, cada um a seu modo, favoráveis a um tratamento brando dos índios.

José Arouche de Toledo Rendon, “Memoria sobre as aldeas de indios da provincia de S. Paulo, segundo as observações feitas no ano de 1798 — opinião do autor sobre a sua civilização”. Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, v.4, 1842, p. 299. 34 Ibidem, p. 317. 33

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Capítulo II: MATÉRIA ÚMIDA, QUE CUSTA A INCENDIAR-SE: O padre Chagas Lima e os kaingangs de Guarapuava, 1810-1828

A história de Rita de Oliveira e o narrador desta história Rita de Oliveira, uma índia kaingang, viveu no século XIX na região de Guarapuava, atual estado do Paraná, então capitania/província de São Paulo. Ela era um dos recém-contatados índios camés e votorons, clãs kaingangs que, a partir de 1812, foram morar no abarracamento, depois povoado e finalmente aldeia de índios de Atalaya da Real Expedição de Conquista e Povoação dos Campos de Guarapuava. Ali viveu cerca de dez anos, foi batizada e se casou, segundo o rito católico, com o índio aliado dos portugueses, o cacique/capitão Antônio José de Azevedo Pahy, com quem teve quatro filhos. Seu nome original, não se sabe; seu nome cristão foi inspirado no de Rita de Oliveira, esposa do comandante-em-chefe da expedição, o tenente-coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, padrinho de um de seus filhos. Pahy também adotou um dos sobrenomes deste último. Curiosamente, foi uma das únicas índias neófitas batizadas que não conservou um nome indígena depois do de batismo.1 Uma vez viúva, Rita se casou novamente com o índio votoron chamado Fuoc-xó, batizado Victorino. Viveram em Atalaya por um ano e, quando um grupo de votorons não aldeados visitou a aldeia, o casal decidiu voltar com eles “para os sertões”. Victorino Fuoc-xó ainda teria associado “a sua mulher legítima, outra pagã de nome Iagninvé”. Na relação de índios de 1821, produzida pelo padre Chagas Lima, estão os quatro filhos de Rita e do capitão Pahy: Francisco Netxiam, Bárbara Gatan, Margarida

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Na lista de índios batizados de 1821, todos os índios que não nasceram no abarracamento e a maioria dos que nasceram tinham nomes mistos. Exemplos: Escholastica Curem, Lourenço Cavú etc. Ver Francisco das Chagas Lima, “Relatório sobre o estado atual em que se acham os estabelecimentos desta Conquista de Guarapuava. Freguesia de Nossa Senhora de Belém em Guarapuava, 31 de dezembro de 1821”. In: Arthur Martins Franco. Diogo Pinto e a conquista de Guarapuava. Edição do Museu Paranaense, 1943, p. 248-58. 19

Caven e Lourença, que segundo a lista moravam juntos, órfãos de pai e sem a presença da mãe.2 Em 1827, Rita voltou para Atalaya. Segundo dois tataranetos do comandante Portugal, autores de obras sobre a ocupação de Guarapuava, a índia amamentou, em 1814, Francisco, um dos filhos de Portugal, criando “laços duradouros com a família” (note-se que ela também teve um filho chamado Francisco). Francisco, o filho de Portugal, na velhice, lhe mandaria freqüentemente presentes. Rita teria morrido aos cem anos, na década de 1880, em Guarapuava.3 Essa pequena biografia da índia, até 1827, foi reconstituída com informações esparsas, contidas nos relatórios enviados para os governantes de São Paulo pelo padre secular Francisco das Chagas Lima, que viveu de 1810 até pelo menos 1828, entre os índios de Guarapuava. A história de Rita é exemplar, uma vez que representa o destino de tantos outros índios recém-contatados que trafegaram entre o aldeamento e os sertões; e que aderiram, desistiram, voltaram ou abandonaram as áreas de contato. Enfim, denota a possibilidade de escolha que muitos índios tiveram em situação de contato. Por ter passado tanto tempo entre os kaingangs, pode-se afirmar que Chagas Lima os conhecia razoavelmente. Por outro lado, como tantos agentes de contato, não havia grande empatia de sua parte, e ele nunca os compreendeu. Dessa maneira, ainda que as informações etnográficas deixadas por ele forneçam pistas importantes, elas precisam ser complementadas com outras fontes. O padre tolerava as diferenças culturais dos aldeados, mas nunca as aceitou. Nos últimos anos de sacerdócio, ele concluiu que não fora muito bem-sucedido na catequese, pois os índios eram como “matéria úmida, que custa a incendiar-se”.4 Usava uma metáfora de uma outra forma de colonização: queimar as matas para implementar culturas adventícias, tais como gado e agricultura. Tratando-se do cultivo de corações e mentes dos índios, essa tarefa pouco frutificou.

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Ibidem, p. 252. Arthur Martins Franco, op. cit., e F. R. Azevedo Macedo. Conquista pacífica de Guarapuava. Curitiba: Farol do Saber, 1995, p. 61. 4 Francisco das Chagas Lima. “Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava”. Revista do Instituto Geográfico Brasileiro, vol. 4, 1842, p. 62. 3

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Fazedor de listas obstinado, o padre tinha sob sua mira os índios que batizava, aldeados ou de volta aos sertões, mortos ou vivos. O cômputo dos batismos era a prova de que seus esforços não tinham sido em vão, ainda que ele assumisse o fato de não têlos catequizado. O objetivo deste capítulo será justamente analisar o conteúdo e o discurso dos escritos de Chagas Lima, procurando compreender, em parte, as relações lusoameríndias e o comportamento dos kaingangs diante da colonização e da catequese na região de Guarapuava. Existe uma extensa bibliografia documental, historiográfica, antropológica ou etno-histórica sobre os kaingangs do Paraná. Francisco S. Noelli e outros autores organizaram um bibliografia de mais de mil títulos, entre teses, artigos, documentos impressos etc.5 Apesar das inúmeras citações em diversos trabalhos da memória de Chagas Lima, publicada na Revista do IHGB em 1842, não há, salvo engano, um trabalho exclusivamente sobre o padre.6 No que diz respeito à compreensão das ações indígenas, buscarei auxílio numa série de escritos etnográficos do século XIX — e, posteriormente, etnológicos — sobre os kaingangs. O que chamo de tradição etnográfica sobre os kaingangs teria se iniciado com Chagas Lima na década de 1810; essa tradição tornou-se mais elaborada na segunda metade do século XIX, nos textos do capuchinho frei Luiz Cemitille e de Telêmaco Borba, ambos diretores do aldeamento de São Jerônimo. Mais tarde, no início do século XX, Curt Nimuendajú, seguido por Baldus e Egon Schaden, já como etnólogos, contribuíram para o conhecimento desse grupo indígena, e a partir daí inúmeros antropólogos contemporâneos têm descrito os kaingangs nas diversas regiões que ocupam, no Sul do país e numa pequena parte do estado de São Paulo. Além dos trabalhos de Nimuendajú e Baldus, as teses das antropólogas Marta Rosa Amoroso, Kimiye Tommasino e Juracilda Veiga, defendidas na década de 1990, serão fundamentais nesta análise. As duas primeiras têm uma abordagem etno-histórica, e a última, basicamente antropológica. Este capítulo incorpora algumas conclusões desses trabalhos, que incluem procedimentos de antropologia e história, e procura contribuir para esse diálogo. O conhecimento antropológico sobre os kaingangs ajuda a 5

Francisco S. Noelli. Bibliografia kaingang: referências sobre um povo Jê do Sul do Brasil. Londrina: Editora UEL, 1998. 6 Em setembro de 2005, Tatiana Takatuzi defendeu uma dissertação sobre Chagas Lima no Departamento de Antropologia da UNICAMP, a qual, infelizmente, não tive acesso antes do término deste capítulo. 21

compreender as ações descritas pelo padre, que chamamos de mal compreendidas, como as guerras permanentes entre os clãs — que podem ser explicadas, em parte, pelo dualismo, fenômeno bastante estudado não só entre os kaingangs, mas também entre diversos grupos Jê, que possuem mitos de origem semelhantes. Certamente, será levada em consideração a transformação dos kaingangs de hoje, quando confrontados com os do início do século XIX. Não pretendo realizar uma “projeção etnográfica”,7 o que, nas palavras de Carlos Fausto, significa “ler as sociedades pré-conquista a partir das etnografias contemporâneas”.8 O fato de este estudo abordar o contato com os kaingangs a partir do início século XIX traz a vantagem de contar com o que chamei de tradição etnográfica. Ou seja, desde Chagas Lima, houve contato contínuo com os kaingangs, bem como uma continuidade de etnografias e etnologias, até os dias de hoje. E é no contexto do contato que realizarei a reflexão sobre o modo de ser dos kaingangs, não pretendendo compreender como eles eram antes do contato.

O padre Francisco das Chagas Lima

O único missionário que resta, já tem completados 69 anos, e trata de se recolher para tratar do seu alívio e descanso nos últimos dias que lhe restam de sua existência [...]. Ele conta com 41 anos de serviço no bispado de São Paulo, foi quinze anos coadjutor e vigário colado na vila de Curitiba, quatro anos na capela de N. S. da Aparecida, distrito da vila de Guaratinguetá, cinco anos catequizou na aldeia de Queluz, e residiu dezessete anos em Guarapuava.9

Esse fragmento autobiográfico, escrito em dezembro de 1827, resume todas as atribuições do padre ao longo de seu sacerdócio. Em 1818, numa carta enviada ao rei, anexa a uma representação dos índios neófitos, já apresentava sinais de cansaço, superados, no entanto, por sua persistente postura missionária e de mártir: Eu estou completando 61 anos de idade; a vigorosidade do meu temperamento e da minha saúde se tem consumido em 38 anos de serviços que tenho feito a Igreja [...] Assim mesmo não dimito nem enquanto puder, dimitirei jamais o meu ofício, se não depois de ver fundamentada aquela povoação com sua Igreja Matriz; e os meus aplicados Expressão de Anna Roosevelt (1989), citada por Carlos Fausto em “Fragmentos de história e cultura tupinambá”. In: Manuela Carneiro da Cunha. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; FAPESP, 1998, p. 388. 8 Carlos Fausto, op. cit. 9 Francisco das Chagas Lima. “Memória...”. Revista do Instituto Geográfico Brasileiro, vol. 4, 1842, p. 62. 7

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perpetuamente providenciados de seu pastor, assim como tive a consolação de ver os da aldeia de Queluz quando de lá me retirei.10

Nascido em Curitiba em 1758, filho de um sargento-mor, Chagas Limas tornou-se padre aos 22 anos.11 Ficou na memória da Igreja principalmente pelo seu trato com os índios. Em 1853, o padre e deputado-geral Idelfonso Xavier Ferreira reclamou que, a respeito de catequese indígena, eram sempre lembrados os jesuítas. Ferreira evocou Chagas Lima, reconhecendo no missionário a imagem de mártir: No começo deste presente século apareceu [...] um gênio raro, [...] o virtuoso curitibano padre Francisco das Chagas Lima, que estando capelão de Aparecida (Guaratinguetá) foi mandado a Queluz, hoje vila rica e populosa ao pé de Areias para catequizar. Lutando contra a penúria, contra a fome e contra a miséria [...] conseguiu [...] aldear os índios, reduzi-los à fé católica e proporcionar aos fazendeiros aqueles ricos terrenos para a cultura do café. [...] [Em Guarapuava] seus trabalhos foram destruídos pelo comandante da expedição que contra a vontade do missionário queria misturar e com efeito misturou os soldados com os indígenas facilitando assim a desenvoltura dos soldados entre os selvagens, também a ela propensos. Esse passo foi o bastante para que o padre enlouquecesse e assim findou seus tristes dias [...]12

Essa imagem foi corroborada pelo importante indigenista José Joaquim Machado de Oliveira, membro do IHGB, presidente de algumas províncias e autor de uma memória sobre aldeamentos paulistas. Segundo Oliveira, “seria indubitavelmente proveitoso estudar o caráter, a índole desse zeloso catequista; os fatos que decorreram da sua vida de missionário, para que possa servir de norma aos que houverem de acharse em posições idênticas”.13 Aparentemente, pelo seu êxito na catequese dos puris, em Queluz,14 foi chamado para ser o religioso responsável na expedição militar, que partia para Guarapuava em 1809. Dentre as várias cartas que mandava para os governantes, endossada numa letra 10

Francisco das Chagas Lima. Carta ao rei d. João VI. Vila de São Paulo, 7/7/1818. Biblioteca Nacional, códice 35, 28, 15. 11 Processo de Genere et moribus: Francisco das Chagas Lima, 1779. Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, 70-3-1901. 12 Idelfonso Xavier Ferreira. “Prólogo”. In: Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. São Paulo: Typographia 2 de Dezembro, 1853, p. 9-10. 13 José Joaquim Machado de Oliveira. “Notícia raciocinada sobre as aldeias de índios da província de S. Paulo, desde o seu começo até a atualidade”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 8, 1846, p. 237-8. 14 Segundo Manoel Eufrásio de Oliveira, que copiou uma notícia da fundação da aldeia de Queluz escrita pelo padre e publicada na Revista do IHGB, Chagas Lima teria sido o autor de um “catecismo escrito na língua nacional e na língua dos puris”. Cf. verbete “Francisco das Chagas Lima", Diccionário bibliographico brasileiro Sacramento-Blake. Rio de Janeiro, 18831937. 23

sofrível por Antônio da Rocha Loures, comandante-em-chefe da expedição, fica patente que ele estava escrevendo sobre todos os aspectos da expedição, e não só da evangelização. Chagas Lima chegou a tomar o lugar do comandante numa de suas ausências. Por que o padre só desistiu dos índios de Guarapuava já à beira da morte? O que leva um indivíduo já em idade avançada a retirar-se para o sertão e por lá ficar por cerca de vinte anos? Fidelidade à Coroa? À Igreja? Fé? Em 1809, numa carta a França Horta, governador da capitania, ele expressou sua ansiedade de encontrar os “infiéis”: “[...] já me disponho a sofrer por este ano os ares deste sertão bem pouco benignos à saúde dos homens, e sobretudo à veemência dos meus desejos; que todos são de ver-me já no campo trabalhando na conversão dos infiéis”.15 Treze anos depois, sua força de vontade não havia esmorecido: “[...] não tenho vontade alguma de renunciar ao meu emprego, porque isto seria olhar para trás depois de haver metido mão ao arado [...]”.16 No fim de 1827, ele decidiu recolher-se para descansar. Mas não se sabe se conseguiu. Em 1828, ainda estava em Guarapuava, muito doente, segundo informações do comandante da expedição. Apenas em 1832 Chagas Lima seria aposentado pela Corte, numa determinação de Diogo Feijó, “pelo estado valetudinário e avançada idade”.17 O regente deveria conhecer o padre, pois fora criado em parte pelo irmão deste, o também padre João Gonçalves Lima, em Parnaíba e Guaratinguetá, na capitania de São Paulo. Gonçalves Lima foi padrinho de Feijó, ensinou-o a ler, a escrever e o latim.18 O cônego Idelfonso Xavier Ferreira afirmou que Chagas Lima enlouqueceu nos últimos anos, tendo passado seus últimos dias com o irmão em Parnaíba,19 onde morreu em outubro de 1832, aos 74 anos. Nos anos de 1970, a Prefeitura de Guarapuava recolheu seus restos mortais em Parnaíba, guardando-os na praça central da cidade, que leva seu nome e fica em frente à Igreja Matriz de Nossa Senhora de Belém, no mesmo lugar onde foi fundada pelo padre a freguesia homônima, em 1818.

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Francisco das Chagas Lima. Carta ao governador Franca e Horta. In: Arthur Martins Franco, op. cit., p. 76. 16 Francisco das Chagas Lima. Carta de 22/2/1822. Citado em: Arthur Martins Franco, op. cit., p. 235. 17 Citado em: Monsenhor Paulo F. da Silveira Camargo. A Igreja na história de São Paulo, vol. 6. São Paulo, 1953, p. 106. 18 A arquidiocese de Curitiba na sua história. Curitiba, 1956, p. 45. 19 Cônego Idelfonso Xavier Ferreira. “Prólogo”. In: Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. São Paulo: Typographia 2 de Dezembro de 1853, p. 9-10. 24

Como os jesuítas, Chagas Lima talvez buscasse no martírio, entre selvas e selvagens, o ápice espiritual. Segundo Ronald Raminelli, “os jesuítas desbravaram sertões, enfrentaram animais perigosos e nativos cruéis para levar a luz além das fronteiras da cristandade. [...] O martírio era o caminho da perfeição e da perfeição espiritual”.20 Era a sua lavoura, o seu rebanho de convertidos que Chagas Lima tinha em mente o tempo todo. Sua meta obsessiva era a conversão, simbolizada pelo batismo. Desprezava os portugueses das classes baixas — como soldados, tropeiros e afins —, os quais, no seu ponto de vista, pervertiam os índios. Desprezava os comandantes da expedição, que os escravizavam ou logo se tornavam desleixados. Tinha pouquíssima empatia com os índios; porém, jamais abdicou de suas funções: sua missão evangelista era “bíblica”, e, apesar das fugas constantes e da pouca submissão dos índios, só desistiu quando lhe faltaram possibilidades físicas. O padre citava freqüentemente passagens da Bíblia em latim. Em vez de procurar compreender seu rebanho, comparava as dificuldades por que passava com episódios bíblicos, fortalecendo a auto-imagem de mártir, que forjou ao longo dos anos de sua permanência em Guarapuava. No final de suas lamentações, sempre encontrava consolações na escritura sagrada. Uma delas certamente explicou para si próprio o sentido de seu martírio, que, segundo seu ponto de vista, advinha de tanto trabalho e pouco resultado: “Neque qui plantat est aliquid, neque qui rigat, sed qui incrementum dat, Deus”.21

Kaingangs: etnonímia e breve história do contato No século XVII, os espanhóis fundaram Ciudad Real de Guairá, às margens do rio Paraná. A partir de 1609, no atual território do estado do Paraná, a Coroa espanhola criou treze reduções às margens dos rios Paranapanema, Piquiri, Pirapó, Tibagi e Ivaí. Foram reduzidos guaranis, gualachos e coronados. Estes dois últimos, segundo Alfred Métraux, eram os kaingangs. Há registros de “que alguns grupos ancestrais dos atuais 20

Ronald Raminelli. Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1996, p. 77. 21 “Aquele que planta, nada é; aquele que rega nada é; mas importa somente Deus, que dá o crescimento.” Epístolas aos Corintios, cap. 3. Biblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 2002. Francisco das Chagas Lima. Carta em resposta ao aviso de d. Pedro I “para que se ministrem os esclarecimentos necessários a fim de se organizar pela Assembléia Legislativa o plano geral de civilização dos índios”, 1827. AESP, Ofícios de Castro, caixa 987, p. 1, doc. 66. 25

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kaingangs foram reduzidos em Conceição dos Gualachos, às margens do rio Piquiri, e em Encarnación, as margens do Tibagi”.22 Essas reduções foram destruídas no século XVII, principalmente pelas bandeiras paulistas. Apenas na segunda metade do século XVIII, depois do Tratado de Madri, a Coroa portuguesa procuraria colonizar a área, preocupada com a questão das fronteiras e com a ocupação do território. Entre 1768 e 1773, onze expedições militares exploraram os chamados “Sertões do Tibagi”, que incluíam os campos de Guarapuava.23 O comandante dessas expedições foi o tenente-coronel Afonso Botelho de S. Paio e Sousa, que deixou um extenso relato, depois ilustrado. Os índios da região foram denominados xaklans, e foram descritos como bravos e traiçoeiros, pois num primeiro contato, embora tenham demonstrado alguma amizade, mataram seis integrantes da expedição. Os índios ainda desenterraram os ossos dos soldados sepultados e os espalharam pela terra, além de derrubar a cruz que ali fora colocada. O etnólogo Curt Nimuendajú presumiu serem os xaklans, antepassados dos kaingangs.24 O coronel Botelho, em janeiro de 1774, recebeu ordem “para aprontar gente para socorro do rio Grande”. Ao terminar o relato, afirmou que naquele período estava se preparando para o [...] estabelecimento daqueles grandes e deliciosos campos de Gorapuava. [...] E por continuar a guerra [no rio Grande], e chegar novo general à capitania de S. Paulo, pararam todas as diligências de estabelecimento do campo, e da redução do gentio, ficando a porta aberta para a toda a hora que Deus for servido entrar por aquele abismo a redenção, e livrar do cativeiro a tantas almas como habitam aqueles sertões.25

A partir de 1809, a colonização dessa região e de outras partes adjacentes — as quais, reunidas comporiam a futura província do Paraná — aconteceu sem trégua. Dessa vez, quem comandou as “entradas” foi o tenente-coronel Diogo de Azevedo Pinto Portugal, que havia participado das expedições do coronel Botelho. Muito se aproveitou do legado das explorações feitas quarenta anos antes. Mapas, estradas e relatos de

Kimyie Tommasino; Ricardo Cid Fernandes. Verbete “Kaingang”. In: Enciclopédia dos povos indígenas no Brasil. Instituto Sócio-Ambiental. Disponível em: . Acesso em: maio 2004. 23 Afonso Botelho de S. Paio e Sousa. “Noticia da conquista, e descobrimento dos sertões do Tibagi, na capitania de São Paulo, no Governo do general dom Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, conforme as ordens de sua Majestade”. Anais da Biblioteca Nacional, vol. 76. Rio de Janeiro, 1962. 24 Curt Nimuendajú. Etnografia e indigenismo sobre os kaingang, os Ofaié-Xavante e os índios do Pará. Marcos Antonio Gonçalves (org.). Campinas: Editora da UNICAMP, 1993, p. 57. 25 Afonso Botelho de S. Paio e Sousa , op. cit., p. 24. 22

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Botelho foram citados na correspondência da Real Expedição de Conquista e Povoação dos Campos de Guarapuava.26 As cartas régias que determinaram as expedições chamavam os índios da região simplesmente de bugres. As sesmarias foram aos poucos sendo ocupadas pelos colonos, e até o início da década de 1840 só havia sido criado um aldeamento de índios, a já mencionada aldeia de Atalaya, administrada pelo padre Chagas Lima. O padre curitibano denominou os grupos indígenas aldeados de votorons e camés; discorreu brevemente sobre os cayeres/dorins, com quem os aldeados travavam sangrentas lutas; e apenas citou a existência de grupos chamados guaranis, tac-taias, tavens, paiquerês e xocrens, que moravam na região, a léguas de distância. Por uma vez agrupou os camés, votorons, dorins e xocrens sob a denominação genérica “gentios guaranis”. Talvez por considerar que o idioma que todos usavam era o guarani. Nas décadas que sucederam o aldeamento de Atalaya, esses grupos eram também conhecidos como coroados, pois “usavam o cabelo cortado curto em volta de toda a cabeça, e os homens eram ainda tonsurados.”27 “Não gostam porém deste apelido e a si mesmos se chamam kaingang, que em língua portuguesa quer dizer índio ou antes aborígine.”28 De acordo com Claude Lévi-Strauss, “um grande número de tribos primitivas chamam-se a si mesmas com um nome que significa somente, em sua língua, ‘os homens’, mostrando com isso que a seus olhos um atributo essencial da humanidade desaparece se sai dos limites do grupo”.29 Segundo Marta Rosa Amoroso, “em meados do século XIX, os agentes de contato [Telêmaco Borba, Franz Keller e o frei Cemitille] divulgaram o etnônimo Kaingang, que permanece ainda hoje em uso, com o qual se dava tratamento unificado à complexa composição social que caracterizava essa fração da população Jê meridional”.30

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Ver Ordenanças de Castro, caixa 303, AESP. Thomas P. Bigg-Wither. Novo caminho no Brasil meridional: a província do Paraná. Três anos em suas florestas e campos 1872/1875. Curitiba: Livraria José Olímpio Editora; Universidade Federal do Paraná, 1974, p. 141. 28 Frei Luís de Cemitille [1867], citado em: visconde de Taunay. Entre os nossos índios Chanés, Terenas, Kinikinaus, Guatós, Guaycurus, Caingangs. São Paulo, Ed. Cia. Melhoramentos, 1931, p. 88. 29 Claude Lévi-Strauss. Estruturas elementares de parentesco. Petrópolis; São Paulo: Vozes; EDUSP, 1976, p. 85-6. 30 Marta Rosa Amoroso. “Guerras e mercadorias: os kaingang nas cenas da ‘conquista de Guarapuava’ ”. In: Do contato ao confronto: a conquista de Guarapuava. BNP Paribas, 2003, p. 29. 27

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Em nossos dias, os kaingangs compõem uma das maiores populações indígenas do Brasil, com cerca de 25 mil indivíduos.31 Vivem, sobretudo, no Paraná, e também em São Paulo, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, ocupando diversas reservas. Como se vê, esse grupo indígena, que contém vários clãs e diversas denominações, tem uma longa história de contato com a colonização; no entanto, “ao longo de quase dois séculos de dominação continuou a produzir uma cultura própria distinta da sociedade nacional”.32

Civilização e catequese de índios em São Paulo, início do século XIX A maior parte dos aldeamentos indígenas da capitania de São Paulo foi fundada nos séculos XVI e XVII, nos arredores da vila de mesmo nome. Muitos deles duraram até o século XIX, como os de Escada, Pinheiros etc. A prática de fundar novos aldeamentos foi cessando a partir do século XVIII e das primeiras décadas do XIX. Até o início da década de 1840, pelo menos oficialmente, foram criados apenas Atalaya — na região de Guarapuava, no atual estado do Paraná — e Queluz (origem do atual Município de Queluz, situado entre Rio de Janeiro e São Paulo). O padre Chagas Lima foi o missionário responsável em ambos. Novos aldeamentos voltariam a existir, a partir do Regulamento de 1845. Esses aldeamentos, dirigidos por capuchinhos, seriam em grande parte fundados na década de 1850, na ocasião da criação da província do Paraná, anteriormente território paulista. Marta Rosa Amoroso observou que na década de 1970 a antropologia de contato, especialmente os trabalhos de Darcy Ribeiro e Carlos Moreira Neto, considerou os aldeamentos “instituições falidas, que não teriam causado impacto sobre a população indígena, por constituírem experiências fugazes, das quais os índios se mantiveram afastados”.33 A autora não concorda com o ponto de vista e afirma ser possível repetir para o século XIX, sem maiores ajustes, a máxima formulada pelo historiador João Lúcio de Azevedo sobre a Amazônia colonial: “Cada um desses marcos, que era a

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Dados da FUNASA, de 2003. Citados em: Marta Rosa Amoroso, op. cit., p. 38. Kimiye Tommasino. A história dos Kaingáng da bacia do Tibagi: uma sociedade Jê meridional em movimento. Tese de doutoramento. São Paulo: Departamento de Antropologia, FFLCH-USP, 1995, p. 313. 33 Marta Rosa Amoroso. Catequese e evasão: etnografia do aldeamento indígena São Pedro de Alcântara, Paraná (1855). Tese de doutoramento. São Paulo: Departamento de Antropologia, FFLCH-USP, 1998, p.89. 32

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missão, constituía até novo avanço, a divisória do mundo policiado com o selvagem. E a fronteira assim delineada jamais recuou [...]”34 Os aldeamentos eram referência de contatos luso-ameríndios tanto para as políticas públicas como para os índios, os quais, se não moravam neles, com eles mantinham contato. As categorias sociais aplicadas por Marta Rosa Amoroso para o sistema de aldeamentos do Paraná, dividindo os índios em aldeados, agregados e do sertão, é bastante útil para este trabalho. Os aldeados eram os que moravam nos aldeamentos, sendo contabilizados nos censos. Os agregados eram os que orbitavam os aldeamentos, participando de sua rede de trocas de mercadorias e brindes. Finalmente, os “índios do sertão” eram aqueles “que freqüentavam as unidades do sistema para se abastecerem de mercadorias, visitar parentes, participar das festas”.35 Tal categorização serve para outros aldeamentos, tanto coloniais como imperiais, em várias partes do território. Com exceção das missões jesuíticas do Sul, sempre mais populosas, é comum que nos mapas de população dos aldeamentos do século XVI ao XIX os índios sejam contabilizados em algumas poucas dezenas, ou centenas, e que a evasão seja uma constante nos relatos.36 Era o caso de Atalaya. Nos relatórios de Chagas Lima, a despeito da evasão, muitos outros índios orbitavam em torno de Atalaya, às vezes ficando na aldeia, muitas vezes apenas visitando-a e outras levando consigo índios aldeados. A importância dos aldeamentos reside em sua continuidade como ponto de referência do contato entre os índios e a colonização, e não necessariamente no número de índios que habitavam seus domínios. Muitos aldeamentos de São Paulo dos séculos XVI e XVII sobreviveram por mais de três séculos. Do ponto de vista dos indígenas, eram, em muitos casos, locais de proteção contra tribos inimigas ou colonos e, em menor escala, um espaço de possível acesso às leis das quais eram objeto. O fato é que o sistema de aldeamentos criado por Manoel da Nóbrega, a despeito de muitos fracassos e transformações, foi mantido e adaptado ao longo de todo o período colonial e imperial, salpicando o litoral, os sertões e as fronteiras do Brasil com diversas povoações, tendo muitas se transformado em municípios. Nesses espaços, aos

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Citado em Marta Rosa Amoroso, op. cit., p. 89. Marta Rosa Amoroso, op. cit., p. 92-5. 36 Para estatísticas dos aldeamentos do século XVI ao XIX nas capitanias/províncias de São Paulo e Rio de Janeiro, ver Maria Regina Celestino de Almeida. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, e Pasquale Petrone. Aldeamentos paulistas. São Paulo: EDUSP, 1995. 35

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índios se misturariam, aos poucos, moradores brancos e negros, durante décadas ou séculos a fio, ora desfazendo, ora mantendo, ora recriando as fronteiras étnicas, das quais muitas se mantiveram até os dias de hoje.

Chumbo grosso Em resposta ao aviso de julho de 1826, expedido por d. Pedro I, o visconde de Congonhas, presidente de São Paulo, diagnosticou que em sua província o contato com os índios acontecia, na prática, com pólvora e chumbo grosso. Dava um parecer nada favorável à catequese e civilização de índios e demonstrava-se nostálgico em relação aos jesuítas. Vale a pena transcrever uma citação mais longa, pela síntese que ele apresenta da política indigenista na província, e por conter um trecho sobre os jesuítas, uma transcrição dos Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brazil, de José Bonifácio: Apesar de se ter despendido 55:715$ na descoberta e conquista dos campos de Guarapuava e catequese dos índios, os seus resultados têm sido retrógrados, pois que apenas ali existem 123 índios, o que faz presumir que pouco se refletiu no exemplo que nos deram os jesuítas em suas missões do Paraguai e do Brasil, para que aperfeiçoando-se seu sistema se pusessem em prática, [...] que mais eles teriam feito se não fora sempre o seu cuidado em separar os índios da comunicação com os povos e de os governar por uma teocracia com vistas unicamente aos interesses próprios para saciar sua cobiça e ambição tão reprovadas no Evangelho, ingerindo-se nos negócios e poder temporal: mas assim mesmo vendo-se que em 1732 existiram mais de trinta missões guaranis [...] e que de 1747 até 1766 foram batizados 91 520 pessoas, sendo essas povoações compostas de 161 182, devemos confessar o quanto naquele tempo prosperavam as aldeias que hoje se têm diminuído, à exceção de Guarapuava. Em parte alguma da província se têm há muitos anos, mesmo desde a extinção dos jesuítas, promovido com regularidade a catequese e civilização dos índios, pois os povos só cuidaram em defender-se à pólvora e chumbo das suas incursões e afugentá-los para o mais longe possível, vistos que nos campos de Araraquara, e nas vilas de Itapeva, Apiaí e Castro, grande destruição têm eles feito, e por isso sendo repelidos e até perseguidos pela mata, não admitem capitulação pela sua parte.37 [grifo meu]

Entre as ordenações e ofícios da vila de Castro, onde estão arquivados os relatórios de Chagas Lima e outros documentos de Guarapuava, há diversos documentos que comprovam a prática do chumbo grosso. Em 1819, quando da retirada do quartel-general de Atalaya para Linhares, o comandante da expedição, o tenente37

Visconde de Congonhas do Campo. Carta ao visconde de São Leopoldo, 22/2/1827. In: Leda Maria Cardoso Naud. “Documentos sobre o índio brasileiro (2.a parte)”. Revista de Informação Legislativa, 7(28), out.-dez 1971, p. 327. A respeito dos jesuítas, do trecho “pouco se refletiu” até “91 520 pessoas”, o visconde copiou literalmente, com supressão ou adição de um ou outro termo, o texto de José Bonifácio em Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brazil. 33

coronel Portugal, pediu ao presidente de São Paulo que autorizasse o transporte de duas peças de artilharia e munição de Guarapuava, pois “o gentio indoméstico nacional das margens do rio Tibagi tem feito nos recintos do quartel-geral de Linhares várias hostilidades, e assassinado não menos de seis indivíduos da respectiva guarnição”.38 O coronel Luciano Carneiro Lobo, da vila de Castro, a mais próxima de Guarapuava, numa carta ao presidente da província, em 1827 pedia munição, pois havia mandado: fazer uma entrada aos gentios, por estarmos muito atacado deles que estavam saindo por estradas e invernadas e cabo de dezessete dias de mato sobre eles, tiveram encontro onde se gastou mais de uma arroba de pólvora no combate para assim se poderem escapar, pois os ditos gentios puseram mangas pelos lados e ciladas; porém não perigou camarada algum por saírem debaixo de fogo e isso se pode apanhar dois arcos e três frechas as quais remeto a V. Ex.a.39

Lobo justificava a guerra como defesa, enviando como prova do ataque arcos e flechas.

Escravidão ou trabalho compulsório? São Paulo usou mão-de-obra indígena durante todo o período colonial e, provavelmente, no início do imperial. Burlar as cartas régias e outras legislações era também uma questão de “costume da terra”.40 As cartas régias de 1808 e 1809, que recomendavam o aldeamento pacífico e ao mesmo tempo autorizavam a obrigação ao trabalho compulsório em Guarapuava, eram um prato cheio para interpretações: Todo miliciano, ou qualquer morador que segurar algum desses índios, poderá considerálos por quinze anos como prisioneiros de guerra destinando-os ao serviço que mais lhes convier; tendo porém vós todo o cuidado em fazer declarar e conhecer entre os mesmos índios que aqueles que se quiserem aldear e viver debaixo do suave jugo das minhas leis [...] já não só não ficarão sujeitos a serem feitos prisioneiros de guerras, mas serão até considerados como cidadãos livres e vassalos [...]41

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Arthur Martins Franco, op. cit., p. 195. Luciano Carneiro Lobo. Carta ao presidente da província de São Paulo Luís Antônio Neves de Carvalho, Jaguariaiba, 13/8/1827. AESP, Ofícios de Castro, caixa 987, doc. 76, p. 1. 40 Segundo Maria Regina Celestino de Almeida, na “sociedade do Antigo Regime, as leis definiam-se no cotidiano das relações entre os agentes sociais e conforme as situações práticas que iam surgindo. Assim, a legislação e a prática caminhavam juntas, à medida que muito freqüentemente a primeira era feita para regulamentar o que já se praticava em larga escala, conforme os ‘usos e costumes da terra’, expressão inclusive bastante utilizada para justificar comportamentos tidos como ilícitos”. Maria Regina Celestino de Almeida, op. cit., p. 103. 41 “5/11/1808: Carta régia — sobre os índios botocudos, cultura e povoação dos campos geraes de Coritiba e Guarapuava”. In: Manuela Carneiro da Cunha. Legislação indigenista no século 39

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Além disso, José Arouche de Toledo Rendon, diretor de índios da província no início do século XIX, era membro da Junta de Guarapuava, a qual decidia os rumos da expedição em seus primeiros anos, junto com o governador da capitania. Rendon descreveu em “Sobre as aldeias de índios da província de S. Paulo”, memória escrita em 1823, uma prática de trabalho compulsório permitida por lei, na década de 1810, em São Paulo. Segundo Rendon, os navegantes que iam de São Paulo para Cuiabá trocavam, com índios da foz do Tietê, sal e instrumentos de agricultura por seus filhos. Era um negócio feito pelo cacique, “apesar das lágrimas das mães”: O conde de Palma governando aquela província [...] concedia licença para irem fazer estas permutações somente a aqueles homens cuja probidade era conhecida. Eles o traziam para o seu serviço e para os cederem a terceiras pessoas que lhes pagavam as despesas a uma certa comissão. Todos os que por este modo recebiam índios assinavam perante o ouvidor da comarca de Itu um termo de tutela deles obrigando-se a educá-los, tratá-los bem, e utilizar-se dos seus serviços até certa idade, na qual o índio ficará emancipado, tendo então o arbítrio de existir na mesma casa, ou ir para onde lhe convier. Infelizmente saindo de São Paulo o conde de Palma ficou este tráfico em desuso, com prejuízo dos índios e da providência, onde se aumentavam os braços e a agricultura.42

A idéia de trocar trabalho, da parte dos índios, por educação, da parte dos portugueses, pelo menos nesse período, foi lançada pela carta régia de 1798, a mesma que revogava o Diretório Pombalino e que era igualmente assinada pelo príncipe d. João. Autorizava-se que aqueles que trouxessem índios “das nações que estiverem em paz” assinassem um termo junto ao Governo, obrigando-os a educar os mesmos índios mediante uma indenização, qual seja: o trabalho do indígena por um determinado número de anos. Tanto nas cartas régias de 1798 e de 1808 como na prática permitida pelo conde de Palma em São Paulo, o conceito de trabalho indígena seria compulsório. Por outro lado, o padre Chagas Lima e outros tantos funcionários e religiosos, ao longo da história de São Paulo, denunciaram práticas escravistas baseadas nesse tipo de lei. O imbróglio chegou à Câmara do Senado em 1830. Uma representação do Conselho Geral de São Paulo afirmava que os “bugres” da região sul da capitania

XIX: uma compilação (1808-1889). São Paulo: EDUSP; Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992, p. 63. 42 José Arouche de Toledo Rendon. “Memoria sobre as aldeas de indios da provincia de S. Paulo, segundo as observações feitas no ano de 1798 — opinião do autor sobre a sua civilização”. Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, vol. 4, 1842, p. 316. O conde de Palma havia sido antes governador da capitania de Minas Gerais, onde, segundo Maria Hilda B. de Paraíso, coordenou a política indigenista na região do Jequitinhonha e adjacências. 35

continuavam a “serem tratados como escravos; à sombra da carta régia de 5 de novembro de 1808”. O parecer da Comissão de Colonização e Catequese da Câmara, que incluía o ex-presidente de São Paulo, visconde de Congonhas, repudiou a prática do que chamaram, literalmente, de escravidão, “chegando a barbaridade a ponto de [os índios] serem vendidos em leilão, pretextando que se vendiam os serviços não de quinze anos, mas talvez perpétuos, e, o que era pior ainda, dos filhos destes índios, e dos filhos destes filhos”.43 Na ocasião, foi elaborada uma resolução que abolia a carta régia e fazia valer os direitos de liberdade dos índios contidos nas leis de 1680, 1715 e 1758. A resolução foi aprovada para subir à sanção imperial e transformou-se em decreto em 28 de outubro de 1831,44 com poucas modificações e a importante inclusão da revogação da lei que autorizava a servidão dos botocudos em Minas Gerais, também de 1808. É importante notar que, nas discussões do Senado, o termo escravidão foi livremente mencionado; porém, no decreto de 1831 a palavra usada foi servidão, em referência ao trabalho compulsório dos índios capturados em guerra. Assim, a fluidez entre servidão, trabalho compulsório e escravidão estava presente na legislação, seja nas interpretações da cartas régias de 1808 e 1809, ou, 23 anos depois, nas discussões preliminares do decreto que as revogava, assumindo que elas redundavam em escravidão.

A “Real Expedição de Conquista e Colonização dos Campos Gerais de Guarapuava” Poucos meses depois de sua chegada, o príncipe d. João, ainda em 1808, declarou guerra aos índios “denominados bugres”, habitantes dos “campos gerais de Curitiba [...] de Guarapuava, assim como todos os terrenos que deságuam no Paraná e formam do outro lado as cabeceiras do Uruguai, todos compreendidos nos limites dessa capitania [São Paulo]”,45 delimitação geográfica que correspondia, em parte, à futura província do Paraná, fundada em 1855.

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Anais do Senado, 1830, sessão de 3 de novembro, vol. 3, p. 389. “27/10/1831: Lei — Revoga as cartas régias que mandaram fazer guerra, e pôr em servidão os índios”. In: Manuela Carneiro da Cunha (org.), Legislação indigenista..., op. cit., p. 137. 45 “5/11/1808: Carta régia — Sobre os índios botocudos, cultura e povoação dos campos gerais de Curitiba e Guarapuava”. In: Manuela Carneiro da Cunha (org.), Legislação indigenista..., op. cit., p. 62-4. 44

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Segundo a carta régia, havia duas opções para os índios: se capturados, poderiam ser retidos pelos colonos como prisioneiros de guerra por quinze anos. Ou, ainda, “aqueles que quiserem aldear e viver debaixo do suave jugo das minhas leis [...], já não só não ficarão sujeitos a serem feitos prisioneiros de guerra, mas serão até considerados como cidadãos livres e vassalos especialmente protegidos por mim e minhas leis”.46 Em abril de 1809, uma outra carta régia complementava a ação. Nela o príncipe aprovava o plano feito pela junta organizada pelo governador da capitania de São Paulo, Franca Horta. O discurso era mais brando com os índios, ainda que se mantivesse a autorização para manter os índios prisioneiros de guerra obrigados ao trabalho por quinze anos, podendo, nesse período, serem até vendidos: Não é conforme meus princípios religiosos, e políticos o querer estabelecer minha autoridade nos campos de Guarapuava, e território adjacente por meio de mortandades e crueldades contra os índios, extirpando as suas raças, que antes desejo adiantar, por meio da religião e civilização até para não ficarem desertos tão dilatados e imensos sertões, e que só desejo usar da força com aqueles que ofendem os meus vassalos e que resistem aos brandos meios de civilização que lhe mando oferecer.47

O príncipe enviava uma tropa de linha e artilharia de calibre 3, tropa miliciana e dois religiosos “de luzes que sejam encarregados não só de catequizar, batizar e instruir os índios, mas de vigiar que com eles se não pratique violência alguma”. 48 A cruz e as armas chegavam aos campos de Guarapuava como chegaram em tantos sertões coloniais. A diferença é que não havia mais as missões jesuíticas ou de outras ordens. Eram expedições militares nas quais o reverendo vigário (Chagas Lima) e um eventual segundo-capelão se diluíam entre cerca de duzentos militares divididos em tropas milicianas, de linha e ordenanças — o comandante, tenentes, alferes, furriéis, portaestandartes, sargentos, cabos, tambores, trombetas, soldados, além do cirurgião, ferreiros, armeiros, linguarazes, práticos, lavradores de madeira e alguns escravos. Obuses, mosqueteiras, chumbo grosso e balas de diversos calibres era o que dava o tom à expedição.49

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Ibidem. “1/4/1809: Carta régia — Aprova o plano de povoar os campos de Guarapuava e de civilizar os índios bárbaros que infestam aquele território”. In: Manuela Carneiro da Cunha (org.), op. cit., p. 70-3. 48 Ibidem. 49 “Real Expedição de Goarapuava — Mapa das tropas meliciana, de linha e ordenanças e mais pessoas empregadas na Real Expedição e Conquista dos Campos Geraes de Goarapuava deq he comandante em xefe o Ten. Cor. Diogo Pinto de Azevedo Portugal”. Linhares, maio de 1811. AESP, caixa 303, Ordenanças de Guarapuava. 47

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O que chamamos de aldeamento de Atalaya não foi fundado como tal. Os kaingangs vieram morar no abarracamento militar de Atalaya, que se transformou num povoado misto e que só se tornaria uma “aldeia de índios”50 após a fundação da freguesia de Nossa Senhora de Belém, por alvará régio, em 1818, e sua instalação em 1821. Nesse sentido, Atalaya não é um aldeamento típico nem do período colonial, nem do imperial. Esse arranjo complicado condiz com a política indigenista da época, correspondente ao interstício entre o Diretório Pombalino e o Regulamento de 1845. De qualquer maneira, é válido chamar Atalaya de aldeamento, pois sua população antes de 1821 era majoritariamente indígena e, depois, quase exclusivamente indígena, cabendo inseri-lo na história dos aldeamentos indígenas, como fez, por exemplo, Machado de Oliveira na sua memória sobre os aldeamentos paulistas, publicado em 1846 na Revista do IHGB. Era um tempo de encontro entre colonizadores, colonos e populações nativas, uma “situação histórica em que a morte era companheira do cotidiano”,51 com guerras, pestes e um profundo estranhamento cultural, que tornava mais agudas as ações e reações, ocasionando diversos conflitos sangrentos.

Discórdia generalizada. A violência, o medo e lutas pelo poder e pela cultura

Mas sempre me desgosta a terra em razão de grande perigo de bugres em que sempre se vive [...] Eu vivo em tal cautela que mudei a minha cama para o armazém que estou entregue dele por ser casa de pedra e coberta de telha e logo que da Ave-Maria fecho-me e conservo uma arma de fogo carregada e vivo sempre pronto para o que pode suceder.52

Essas palavras são do praça Francisco Manoel de Assis França, morador da freguesia de Nossa Senhora de Belém, Guarapuava, e foram escritas para sua mãe, moradora de Curitiba, em 1828. Este também foi o ano em que o padre Chagas Lima interrompeu seus relatórios, escritos com a pena mergulhada em sangue, sobre a expedição em Guarapuava. O tom apocalíptico de Chagas Lima se encerrava, e a Usamos a expressão “aldeias de índios” quando for este o termo usado na documentação. Caso contrário, usamos o termo aldeamento para o que John Manuel Monteiro chamou de “aglomerações multi-étnicas abrigando populações ‘descidas’, isto é, deslocadas e ‘dessocializadas’ ”. John Manuel Monteiro. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese de livre-docência. Campinas: Departamento de Antropologia, IFCH, UNICAMP, 2001, p. 112. 51 Cristina Pompa. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru (SP); São Paulo: EDUSC; ANPOCS, 2003, p. 416. 52 “Carta de Francisco Manoel de Assis França, praça acantonado na freguesia de Nossa Senhora do Belém de Guarapuava”. Citado em: Lucio Tadeu Mota. As guerras dos índios kaingang: a história épica dos índios kaingang no Paraná (1769-1924). Maringá: EDUEM, 1994, p. 135. 50

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premência da violência ainda era um denominador comum daqueles que moravam na região. Nesta seção, após uma breve análise das diversas lutas e de seus adversários, procuraremos refletir sobre a motivação de cada ator para participar dessas batalhas, fossem elas físicas, morais ou culturais. As culturas nativas e as adventícias tinham diferenças profundas, o que demandaria tempo para mudanças e adaptações. A concepção de colonização de Chagas Lima era diversa da dos colonos, que ao mesmo tempo combatiam e temiam os índios, os quais, por sua vez, guerreavam entre si e contra os colonos. O medo grassava, a discórdia e a violência eram uma constante. A relação entre violência e cultura é uma das chaves para compreender uma região em franca colonização. Não adianta apenas concluir que as diferenças tecnológicas e de concepção de mundo condenaram as culturas nativas ao desaparecimento. Em Guarapuava, as coisas não foram bem assim. É fundamental admitir que o impacto do contato foi negativo; porém, como observou John Manuel Monteiro, não devemos “apresentar a história dos índios como uma espécie de crônica de sua extinção”.53 Admitir a violência é fundamental, mas deve-se compreender como se dá a sobrevivência de grupos ou indivíduos em processo de colonização, a fim de narrar também a história dos viventes, e não só a dos mortos. Mesmo mantendo uma postura crítica em relação aos colonos e militares, o padre permaneceu por vinte anos na expedição. O comandante Portugal só perdeu o cargo quando morreu, e os índios, apesar de todas as suas perdas, mantiveram muitos princípios básicos de sua cultura, que incluía a guerra. Gerald Sider, num texto sobre a etnogênese e o etnocídio nos Estados Unidos do período colonial, afirma não ser “o caso de admitir a violência como um aspecto secundário [...], mas, pelo contrário, introduzi-la no âmago de um processo que forma e transforma a cultura, e então constrói estratégias para contestar a dominação”.54 Sider contesta a conceito de cultura de Cliford Geertz como um conjunto de valores e significados compartilhados, e a define como um “lócus de luta — necessária luta —, John Manuel Monteiro. “Os guarani e o Brasil meridional”. In: História dos índios no Brasil. São Paulo: FAPESP; Companhia das Letras, 1992, p. 479. 54 Gerald Sider. “Identity as history: ethnohistory, ethnogenesis and ethnocide in the Southeastern United States”. Identities: Global Studies in Culture and Power. New Hampshire, vol. 1, n.o 1, 1994, p. 109. Tradução minha. 53

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assim como a classe nomeia um lócus de luta”.55 Em situações de início de colonização, a manutenção, a recriação e a criação de uma cultura são, em geral, feitas num processo de violência que, a princípio, não compartilha, mas pelo contrário, mantém os próprios valores, ou pelo menos os recria com autonomia.

O padre contra os colonos e militares. Colonos e militares contra os índios No início da Real Expedição de Guarapuava, seus condutores, acusados de “frouxidão”, tiveram de prestar contas para um inspetor enviado pelo Governo paulista. Chagas Lima era todo elogios para o seu compadre, o tenente-coronel Diogo Portugal: A sua fidelidade, seu desinteresse, o zelo da real fazenda que tem mostrado é constante; a humanidade com que acolhe todos os soldados beneméritos não deixa lugar de formar a menor suspeita que debaixo de tão claras virtudes houvesse de admitir tão feias notas ao seu crédito como são aquelas que lhe imputam seus adversários.56

Sua relação com o tenente-coronel Portugal mudaria, e muito, anos depois: de fiel defensor, passaria a atacá-lo. Segundo o padre, os índios de Guarapuava, em geral, não atacavam os portugueses, a não ser que tivessem sido atacados, e os colonos forjavam situações de guerra para justificar a escravização. Ele denunciou casos de escravização ilícita, feitos principalmente pelo próprio comandante da expedição, que era também seu compadre. O tenente-coronel Portugal teria escravizado deliberadamente indígenas, inclusive os aldeados, praticando transações de compra e venda e enviando expedições em seu encalço, mesmo quando não havia ofensivas da parte dos índios. Continuavamse, desse modo, as antigas rixas coloniais entre clérigos e funcionários, os quais, segundo John Manuel Monteiro, disputavam “as formas de controle e integração na emergente sociedade luso-brasileira de grupos recém-contatados”. 57 O primeiro episódio que envolvia seu compadre Portugal foi narrado com profunda dramaticidade pelo padre: Não teve mais que inventar a insaciável avareza do tenente-coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, [...] cujos detalhes sempre foram amoldados aos seus interesses

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Ibidem, p. 117. Francisco das Chagas Lima. Carta ao governador da capitania de São Paulo Franca Horta, abarracamento de Linhares, 4/5/1811. AESP, Ordenanças de Castro, caixa 303. 57 John Manuel Monteiro. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 40. 56

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particulares, quando até dos índios conquistados em Guarapuava chegou a fazer, contra todos os direitos, ou a economia de seu tráfico, ou a matéria do seu negocio [...]58

Chagas Lima passa a narrar e denunciar diversos casos de captura ilícita, escravização e comércio de índios com plena participação do comandante da expedição, durante sua ausência. Garante que o comandante seduziu diversos índios aldeados para sua própria propriedade em Curitiba, muitos menores, tratando-os depois como escravos. Acusa-o ainda de ter vendido ou cedido alguns deles para os seus amigos. “Que mágoa! Que desassossegos estes para quem sendo por oficio catequista destes infiéis é juntamente por disposição de S. Majestade encarregado da sua tutela temporal para que ninguém lhes faça violências!”,59 exclamou o padre, referindo-se à carta régia de 4 de abril de 1809. Como sua função era evitar violências, ele pede que o Governo autorize o capitão interino da expedição, o tenente Rocha Loures, a “recolher todos os índios de Guarapuava que andarem dispersos, a sua aldeia, e [a] nova freguesia de Nossa Senhora de Belém [...]”.60 Alguns meses depois, voltando de uma viagem à vila de São Paulo, ao descobrir que Antônio José Pahy — capitão dos índios, a quem devotava profunda amizade e admiração — fora, numa expedição a pedido do tenente-coronel Portugal, caçar alguns índios, ele se revolta mais uma vez, e envia nova carta denunciatória ao presidente da província. Anexo, ele manda o bilhete que Portugal teria enviado a Pahy, em julho de 1818, comprovante do delito cometido pela autoridade máxima da expedição: “Compadre, faço grande empenho de ter um casal de bugrinhos dos bravos e para tanto se houver ocasião desejo ficar lhe devido. Certo que estou pronto a despender o que vosmecê querer”.61 Pahy e outros índios não voltaram dessa incursão nas matas, pois foram mortos pelos índios que estavam atacando. A conseqüência, segundo o padre, foi um dos golpes fatais que a avareza tem dado a esta nova povoação; pois além de ficarem pela morte destes cinco homens, nove mulheres viúvas e treze órfãos desamparados; além do perigo a que todos ficamos expostos de sermos talvez envolvidos na vingança dos selvagens ofendidos; bem se deixa ver que a respeito destes índios

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Francisco das Chagas Lima. Carta ao governador da capitania, abarracamento de Linhares, 16/1/1819. AESP, Ordenanças de Castro, caixa 303. 59 Ibidem. 60 Ibidem. 61 Portugal deve ter provavelmente batizado a filha de Pahy, Margarida, a quem manda lembranças na carta. Diogo Pinto Azevedo Portugal. Carta a Antônio José Pahy, Linhares, 14/7/1818. AESP, Ordenanças de Castro, caixa 303. 42

fechou-se por hora a porta da comunicação por onde essa vai concorrendo pacificamente a sua catequização e civilização [...].62

A respeito da morte de Pahy, Chagas Lima encontrou mais uma vez consolo na Bíblia, no Livro da Sabedoria de Salomão, capítulo 4, que versa sobre o homem justo morto prematuramente: “Eu adoro a Providência Divina, que talvez abreviou os dias a este seu escolhido para que a malícia não mudasse o seu entendimento, ou os enganos do mundo não pervertessem o seu coração”.63 Dessa maneira, a providência divina, conforme seus desígnios, ora levava os maus como castigo, ora os bons, para privá-los da maldade alheia. Diogo Portugal morreu aos setenta anos, em maio de 1820, na vila de Castro, quando tomou a frente da expedição o tenente Antônio da Rocha Loures, o qual tinha com Chagas Lima alguma amizade. Entretanto, alguns anos depois, Loures também foi alvo das reclamações de Chagas Lima: Já mais não poderá ser conveniente, conservarem-se os comandantes de Guarapuava por muitos anos neste emprego. Dos que tem havido passados cinco ou seis anos de comando, discreparam bastantemente de seu primeiro zelo que todo se empenhava em promover com fervor o bem público da conquista.64

Os moradores da região também combateram o padre. Segundo este, em 1825, depois de uma das diversas lutas entre índios que ocorreram no aldeamento — que foi completamente destruído —, eles fizeram um requerimento a favor da extinção dos índios e da preservação dos menores, para serem vendidos.65 Nas palavras de Chagas Lima, seu sacerdócio era questionado em três artigos principais: 1.o) Por que, dizem eles, o nosso reverendo vigário não corrigia aos índios batizados em seus desvarios? 2.o) Por que não quer ele consentir, que se mandem na presente ocasião escoltas de gente portuguesa sobre os selvagens malfeitores, que os extingam de todo? 3.o) Por que não tem aldeado; e agora mesmo não aldeia os índios dentro desta freguesia de Belém, ou lugar a ela contíguo?66

O padre responde à primeira pergunta argumentando que, em 1824, quando quase todos os índios abandonaram Atalaya, ele foi a cavalo atrás deles, acompanhado de dois 62

Francisco das Chagas Lima. Carta ao governador da capitania, povoação de Atalaya, 3/5/1819. AESP, Ordenanças de Castro, caixa 303. 63 Francisco das Chagas Lima. “Relatório sobre o estado atual...”, op. cit., 1821, p. 246. 64 Idem, carta ao presidente Lucas Antônio Monteiro de Barros. Freguesia de Nossa Senhora de Belém em Guarapuava, 8/4/1826. AESP, Ofícios de Castro, caixa 987. 65 Idem, carta ao presidente Lucas Antônio Monteiro de Barros. Freguesia de Nossa Senhora de Belém em Guarapuava, 20/5/1826. AESP, Ofícios de Castro, caixa 987, p. 10. 66 Ibidem. 43

portugueses e de uma índia — “para servir de guia” —, e os trouxe de volta. Rendeu o diretor português de quem se queixavam e doou terras com gado contíguas à aldeia, “doação semelhante a aquela que um pai faz aos seus filhos”, sempre exortando o bem espiritual dos seus catecúmenos. Em relação à segunda questão, argumentou que nas vilas de Lages e da Faxina os portugueses faziam “mortíferas entradas” contra o gentio, que tinham como retorno o medo permanente de vinganças que sofriam os moradores e os viajantes, nas estradas. Além disso, acusava-os de “querer tirar a sardinha das brasas com a mão do gato, na pretensão [...] de adquirir a posse das terras de Guarapuava com a extinção dos selvagens”. A parte mais contundente da resposta é quando ele explicita sua opinião a respeito dos soldados e sua inabilidade em relação aos índios: Que pessoas quereis vós sejam empregadas para guias dessas entradas ao sertão em que moram os selvagens? Porventura os índios restantes na Atalaya? Estes o não devem ser; porque seria isso concorrer para sua destruição total. Quais hão de ser os agentes dessas invasões? Meia dúzia de soldados, outros tantos de degradados, outros tantos de vadios dos campos gerais de Curitiba, que por aqui se juntam, dos quais sendo uns efeminados e outros temerários, todos sem experiência, que partido terão com aquelas feras humanas dentro dos bosques? Ali perecerão todos: entretanto rompida a boa inteligência em que estão há doze anos os selvagens com os portugueses, quem mais poderia parar em Guarapuava? 67

Finalmente, respondeu à terceira pergunta sem se dirigir aos colonos — alegando serem intrusos em matéria que não podiam julgar —, e sim ao presidente da província: “Os índios foram aldeados na Atalaya dentro das terras que lhes foram consignadas para sua vivenda como possuidores primários e originários do país. Agora mesmo depois do abrasamento da Atalaya não podem ser aldeados em outra parte senão nas mesmas terras suas [...]”. Um ano depois, membros da Câmara de Castro também responderam ao questionário sobre a questão indígena expedido pelo imperador em julho de 1826 atacando o reverendo: “O ente revolucionário, motor de todos os males que têm acontecido naquela expedição e que a têm posto no deplorável estado em que se acha, por causa da sua hipocrisia e sandice, é o reverendo vigário Francisco das Chagas Lima”.68

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Ibidem, p. 11. Bernardo Moreira; Serafim de Castro e outros. Carta ao ouvidor e desembargador José Verneque Ribeiro de Aguilar, Vila de Castro, em Câmara, 14/12/1826. AESP, Ofícios de Castro, caixa 987, pct. 1, doc. 65. 68

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Seguiu-se daí em diante um rosário de denúncias contra o missionário, que exprimem bem as controvérsias das velhas questões entre clérigos e colonos. Estes últimos reclamam que, no início da expedição, os índios teriam oferecido mulheres aos soldados, “em mostra de paz e amizade”, e que o padre o proibiu, “sob pena de excomunhão, se tivessem cópula com tais mulheres”. Segundo os denunciantes, os índios teriam ficado aborrecidíssimos pela recusa de seus brindes. O padre ainda teria proibido a venda de licores espirituosos e apontou como sacrilégio “toque de viola, cantigas e danças e cítara”, tendo comprado e quebrado as que existiam. Por último, os castrenses acusavam o padre de escravizar os índios, trancando-os a chaves e estimulando assim as inúmeras fugas. Não é possível saber quem oprimia mais os índios, se o padre ou os colonos. Todos denunciavam todos. O fato é que na documentação raramente aparece uma convivência razoável de qualquer um deles com os índios. Resta uma pergunta no ar: quem seriam os aliados de Chagas Lima nessas contendas? Se por acaso fossem os índios, ele jamais os elogiava, à exceção do líder Pahy, o primeiro marido de Rita de Oliveira, a personagem da biografia que inicia este capítulo. Infelizmente, mesmo em relação ao seu protegido, não há na correspondência grandes informações para uma análise mais apurada dessa relação.

Índios contra índios Na visão de Chagas Lima, a divisão étnica se dava da seguinte maneira: “Nos tempos antigos, havia três nações inimigas em bruta e implacável guerra”: os camés (que significava “tímidos ou medrosos”), os votorons (“habitantes do morro Vuturuna”) e os cayeres (“macacos”). Em 1812, os camés e votorons aldearam-se junto à expedição. Os cayeres, depois de terem recebido alguns presentes, resolveram se retirar para o Oeste, “próximos às arraias dos castelhanos”. Mesmo no sertão, os cayeres “não romperam a paz com os portugueses aos quais não têm feito mal nenhum, sem embargo dos choques particulares, que continuam com as pessoas da sua mesma espécie”. 69 Os aldeados fizeram vários ataques ao cayeres, depois chamados de dorins, para vendê-los como escravos para os portugueses.

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Francisco das Chagas Lima. Carta para o presidente da província de São Paulo Lucas Antônio Monteiro de Barros. Freguesia de Nossa Senhora de Belém, 20/5/1825. AESP, Ofícios de Castro, caixa 987, pct. 1, doc. 33, p. 2. 45

Em maio de 1822, os cayeres/dorins foram para Atalaya para matar Doiangrê, um dos índios aldeados que sempre os atacava, e, nas palavras de Chagas Lima, fizeram o seguinte discurso aos aldeados: Aptú, isto é dizer, bem feito: ide vós outros agora dar vida aos dois que acolá estão mortos. Doiangrê era o forte que fazia sobre nos estragos: não os há de fazer mais. Que razão tendes vós outros de nos perseguir? Já por três vezes, por causa vossa mudamos de domicílio. Sabei que não mudaremos jamais; e se neste lugar último nos fores inquietar, viremos desolar esta aldeia: daremos cabo a toda a vossa gente: queimaremos vossas casas, como agora o poderíamos ter feito, sem vós o terdes pressentido. Como não fazemos nós mal aos portugueses? Eles o não fazem a nós se não bem; e por isso quantas vezes temos chegado bem perto a um português, que dorme solitário por esse campo com a sua espingarda debaixo da cabeça, sem sermos persentidos ainda mesmo dos cães que também dormem a roda de seu sono? E nós depois de o reconhecermos sem o ofender em coisa alguma nos retiramos. Nós bem desejamos fazer aliança com os portugueses e por causa vossa, não fazemos [...]70

Em 24 de abril de 1825, os cayeres/dorins atacaram novamente o aldeamento de Atalaya com tiros e flechas, queimando casas. Queriam matar o líder Luís Tigre Chacom e algumas velhas que serviam de guias nas matas para os portugueses. O ataque acabou tomando proporções de chacina, e morreram — atingidas por foices, flechas, tiros e algumas queimadas por um incêndio provocado — 28 pessoas, entre homens, crianças, mulheres, além dos alvos originais. Casas de portugueses da aldeia foram poupadas, o que demonstrava, para Chagas Lima, que “ainda estavam de boa inteligência com os portugueses”.71 O padre, que estava no aldeamento na ocasião para batizar alguns índios, logo no início do ataque, fugiu com seu escravo. Quando voltou, no dia seguinte, enterrou os mortos, e levou para a freguesia de Nossa Senhora de Belém os 73 sobreviventes, que tiveram suas casas queimadas. Seguiu-se um período de extrema decadência da aldeia.72 Chagas Lima, de certa maneira, justificou os atos dos dorins. Mesmo diante dos massacres cometidos, considerava-os “dotados de melhor índole, mais sinceros e mais dóceis à civilização”.73 Além disso, o sacerdote não gostava muito do líder votoron, Luís Tigre Gacon: “Este índio chefe, com efeito, era um tigre, sacrificando seus súditos aos estragos da guerra, fazendo-se cabeça para continuação das hostilidades, que os

70

Idem, carta ao presidente da província de São Paulo Lucas Antônio Monteiro de Barros. Freguesia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava, 20/5/1825. AESP, Ofícios de Castro, caixa 987, pct. 1, doc. 48. 71 Ibidem. 72 Ibidem 73 Francisco das Chagas Lima. “Memória...”, op. cit., p. 50. 46

mesmos aldeados suscitaram contra os dorins”.74 Antes de relatar a chacina, para justificá-la, inventariou todos os ataques que os camés e votorons aldeados, juntamente com os votorons dos sertões, haviam feito “à traição” aos dorins nos anos de 1818 a 1824. Muitas dessas expedições foram realizadas para capturar índios com o objetivo de vendê-los aos portugueses, inclusive aquela, chefiada por Antônio José Pahy, cujo desfecho foi sua morte. Mesmo sabendo que as dissensões entre os clãs eram anteriores ao contato, Chagas Lima responsabilizou a ganância por escravos, da parte dos portugueses, pelas chacinas que vinham ocorrendo. Ele percebeu já naquela época que a colonização transformou e piorou as guerras intertribais, como vêm observando diversos autores.75 A missão de Chagas Lima, segundo ele próprio, citando a carta régia de 1809, era a de “vigiar que com eles [índios de Guarapuava] se não pratique violência alguma, se não aquela que for necessária para repelir sua natural rudeza e barbaridade”. 76 O padre não dispensava forças militares e, dirigindo-se ao presidente da província, redargüia ser indispensável “o mais hábil dos oficiais, com alguns dos melhores soldados”. Pedia ainda, no final dessa carta, o “restabelecimento, manutenção, diretoria e zelo temporal da aldeia de Atalaya pelas forças da expedição”.77 O presidente Lucas A. Monteiro de Barros, nomeado depois visconde de Congonhas do Campo, por sua vez, relatou o caso ao ministro dos Negócios do Império Estevão Ribeiro Rezende, e este apoiou as providências tomadas pelo primeiro, que atendiam às demandas de Chagas Lima. De acordo com a portaria de 26 de maio de 1825, assinada pelo ministro, para que o aldeamento se restaurasse de “tão fatal ruína” e se transformasse defensável diante de futuras incursões, era necessário sobretudo “promover a civilização e a possível instrução dos ditos índios, e a sua recíproca amizade e boa inteligência [...]”.78 A partir dessa portaria, ficou claro, diante das 74

Ibidem. Para a região amazônica, ver R. Brian Fergunson. “Blood of Leviathan: Western contact and warfare in Amazônia”. American Ethnologist, vol. 17, n.o 2, maio 1990. E, para o caso dos iroquois norte-americanos, ver Daniel K. Richter. “War and culture: the iroquois experience” [1983]. In: American encounters: natives and newcomers from European contact to Indian removal, 1500-1850. Peter C. Mancall; James H. Merrell (ed.). Nova York: Routledge, 2000, p. 283-310. 76 Francisco das Chagas Lima. Carta ao presidente da província Lucas Antônio Monteiro de Barros. Freguesia de Nossa Senhora de Belém, 20/5/1825. AESP, Ofícios de Castro, caixa 987. 77 Ibidem. 78 “26/5/1825: Portaria — aprovando providências no aldeamento de Atalaya em São Paulo por ocasião da agressão cometida pelos índios cayeres contra os camés e votorons”. In: Manuela Carneiro da Cunha (org). Legislação indigenista..., op. cit., p. 123. 75

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divergências entre o padre e os colonos, que Chagas Lima estava mais sintonizado com as autoridades da capital e da Corte, e o programa de civilização e catequese, em princípio, continuaria, como meio de diminuir a violência nas relações dos índios com os portugueses e entre os próprios índios. O presidente rechaçava a opinião dos moradores, que, depois da chacina de 1825, propunham, em documento analisado no item anterior, a extinção dos índios e a preservação dos menores para serem vendidos. Mais tarde, num texto escrito em 1828, Chagas Lima reviu o episódio e manteve sua posição a favor dos dorins. Relatou outros acontecimentos ocorridos no ano seguinte à chacina: “Cerca de cem deles [dorins] visitaram a aldeia em missão de paz três vezes no ano de 1826, demorando cerca de onze dias em cada uma das visitas. [...] seus intentos e súplicas eram o de serem admitidos à nossa sociedade e aldeados como os camés”.79 Esses dorins eram os mesmos que tinham cometido a chacina de 1825, e por isso pediram desculpas, apresentando suas razões. Quando começaram a ser pacificados em separado, os aldeados foram, aos poucos, hostilizando-os, e os dorins tiveram de sair em retirada. Por ter continuado a perseguição, uma escolta do destacamento foi providenciada para proteger os dorins.. Só voltariam um ano depois, em número de 22, tendo-se alojado na freguesia de Nossa Senhora de Belém, distante mais de uma légua da aldeia de Atalaya. Um dia depois da chegada dos dorins, alguns aldeados assalariados, trabalhando nas lavouras da freguesia, tramaram um ataque noturno e mataram com foices e facas quatro homens e uma mulher. Os sobreviventes partiram “e nunca mais voltaram e nem voltarão à aldeia”.80 Do grupo dos catorze aldeados atacantes, sete votorons e sete camés, onze fugiram e três ficaram presos.

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No seu parecer, escrito em resposta ao aviso de julho de 1826 sobre a civilização dos índios, Chagas Lima recomendou que os aldeamentos fossem estabelecidos nos lugares de residência de cada nação. Primeiro por “muitas, e antigas dissensões, que tem havido entre eles”. Assim, votorons permaneceriam no campo do Pinhão, dorins em Nerinhê (campo das Laranjeiras).

79 80

Francisco das Chagas Lima. “Memória...”, op. cit., p. 50-1. Ibidem, p. 52. 48

O segundo motivo também respeitava o modo de ser indígena, ainda que o padre comparasse os índios aldeados a animais: “Semelhantes às feras quando são trazidas para se domesticarem, fazem todos os esforços de se tornarem fugitivos aos seus antigos lares”.81 Em seguida, observava ser fundamental que os aldeamentos fossem distantes uma ou duas léguas das povoações: “Nunca deixa de haverem [sic] nestas povoações perversos dissolutos; e a freqüente comunicação de semelhantes pessoas com os índios em vez de civilizar a estes, barbariza àqueles. O prosélito de religião vendo os maus exemplos dos cristãos, já proveitos, se faz duas vezes pior do que eles [...]”.82 A recomendação de isolamento, ainda que se remeta à política indigenista jesuítica no que diz respeito à separação dos brancos, afasta-se desta ao não recomendar mais descimentos e ao ser enfática na não-mistura de etnias.83 Não era levado em conta, entretanto, o caráter nômade dos kaingangs. A concepção do espaço em que transitavam era limitada a uma territorialidade, ainda que extensa, correspondente a grandes territórios da região Sul e trechos das regiões Sudeste e Centro-Oeste. Migrar para diferentes terras era o costume, e a sedentarização certamente não resolveria as inúmeras dissensões. Uma das questões do aviso de 1826 estaria contida, ou pelo menos sugerida, no “Regulamento acerca das missões de catequese e civilização dos índios”, de 1845. O parágrafo 8 determinava, em referência aos índios, que o diretor-geral dos índios de cada província deveria “indagar se convirá fazê-los descer para as aldeias atualmente existentes, ou estabelecê-los em separado; indicando em suas informações ao Governo imperial o lugar onde deve assentar-se a nova aldeia”.84 No entanto, no parágrafo 19 do mesmo regulamento, incentivavam-se, grosso modo, os antigos descimentos: “Empregar todos os meios lícitos, brandos, e suaves, para atrair índios às aldeias [...]”85. De qualquer maneira, a separação de etnias foi uma prática cada vez mais disseminada ao longo do século XIX. Por exemplo, em Minas Gerais, puris, coroados e botocudos foram aldeados separadamente. No Paraná, em Francisco das Chagas Lima. “Carta em resposta ao aviso de d. Pedro I...”, 1827. Ibidem. 83 John Manuel Monteiro, a respeito dos aldeamentos jesuíticos, concluiu que “estas missões foram caracterizadas pela mistura de povos e culturas, o que, por um lado, contribuía para a estratégia jesuítica de homogeneização, porém, por outro, desarticulava a sociedade indígena”. John Manuel Monteiro, op. cit., p. 47. 84 “27/7/1845: decreto n.o 426 — contém o regulamento acerca das missões de catechese e civilisação dos índios”. In: Manuela Carneiro da Cunha (org). Legislação indigenista..., op. cit., p. 191-9. 85 Ibidem. 81 82

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1880, os índios do aldeamento de São Pedro de Alcântara habitavam em três aldeias distintas: na aldeia kaiowá, na guarani e na dos coroados (kaingangs).86

A história das rivalidades segundo o cacique kaingang Arãkchó Telêmaco Borba foi diretor do aldeamento kaingang de São Jerônimo na década de 1880. Entre seus diversos escritos sobre os kaingangs, registrou uma conversa com o cacique kaingang Arãkchó, ocorrida em 1886, quando os dois se encontravam “à margem de um ribeiro, junto de um grande fogo, debaixo de belas e copadas árvores”. Borba deu a essa narrativa o título “Combró, narrativa caingangue”.87 Na ocasião, os dois fumavam seus cigarros e discorriam, segundo Borba, “sobre as guerras passadas entre a minha gente e a gente dele, fazendo-lhe notar as vantagens que [...] resultam da paz”.88 Arãkchó, concordando, afirmou que seus antepassados “sofriam de falta de muitas coisas” e viviam sobressaltados. Por outro lado, os portugueses “também não tinham a liberdade de entrar nos nossos sertões e viver descansados”. A seguir, o cacique passou a narrar a história de Combró, que era “pai do pai da mãe de seu pai”. Por sua vez, quem lhe contara a história fora a sua avó paterna. O enredo é um pouco complicado, pois se trata de um encadeamento de combates entre índios e portugueses, índios contra índios e índios aldeados contra índios do sertão. Pode ser compreendido como uma versão kaingang das guerras do contato. Na resumo da história, utilizarei entre aspas alguns termos originais do texto de Borba.

*** Combró, um chefe “guerreiro e valente” sabendo dos machados e facas dos brancos, resolveu, com seus companheiros, atacar uma casa que encontraram na orla do sertão. Ali trucidaram seus habitantes, levando tudo que “consideravam útil”. No ínterim desse combate, outros índios atacaram os arranchamentos de Combró, aprisionando muitas mulheres, entre as quais a do chefe guerreiro. Este último, ao voltar 86

Marta Rosa Amoroso. Catequese e evasão: etnografia do aldeamento indígena São Pedro de Alcântara, Paraná (1855). Tese de doutoramento. São Paulo: Departamento de Antropologia, FFLCH-USP, 1998, p. 92. 87 Telêmaco Borba. Actualidade indígena. Curitiba: Typ. E Lytog. A Vapor Impressora Paranaense, 1908, p. 28-33. 88 Ibidem. 50

do combate contra os brancos, perseguiu os índios inimigos e recuperou suas mulheres. Enquanto isso, os brancos e seus índios aliados armaram uma vingança contra Combró, devido ao morticínio dos brancos. Quando Combró regressava da retomada de suas mulheres, encontrou seu toldo incendiado e os fugitivos contaram o que havia ocorrido. Combró seguiu até o acampamento dos brancos e ouviu o choro de seu filho, que estava sendo castigado por um branco. Enfurecido, atacou o acampamento e foi morto, assim como vários de seus companheiros. Tandó, o filho de Combró, foi criado pelos brancos. Quando ele completou dezoito anos, sua mãe o incentivou a vingar a morte do pai e voltar para a companhia dos índios do sertão. Tandó seguiu os conselhos maternos e, rapidamente, tornou-se chefe dos seus. Depois de rondar o povoado de Guarapuava por alguns dias, travou batalha com os índios mansos e houve muitas perdas de ambos os lados. Tandó partiu ferido, carregado pelos seus companheiros numa padiola, e sua mulher foi capturada pelos índios mansos. “Passados dois anos deste acontecimento, o capitão dos brancos mandou a mulher de Tandó, com presentes, convidá-lo a fazer pazes e viver com ele.” Tandó e parte de seus companheiros aceitaram o convite. Seu irmão, no entanto, não concordou, observando que “os brancos eram bons, mas os índios mansos, maus e traidores”. Tandó e seus companheiros, quando chegaram a Guarapuava, foram bem recebidos pelo capitão, que os presenteou com facas, machados, foices e fazendas, dando-lhes uma casa para pernoitarem. Os companheiros de Tandó, desconfiados, resolveram dormir no mato. Tandó e a esposa permaneceram, e quatro índios mansos trouxeram-lhes milho, como demonstração de hospitalidade. Enquanto Tandó assava o milho, foi morto a facadas por seus anfitriões indígenas. A mulher correu e contou o que acontecera para o capitão, que mandou prender os matadores de Tandó. O capitão pediu à mulher de Tandó que contasse a seus companheiros sobre o castigo e os convidasse a voltar. Eles não quiseram e “continuaram a viver nos matos em contínua guerra com os brancos e os índios mansos”.89

***

89

Ibidem. 51

As narrativas de Chagas Lima e Arãkcho têm em comum a percepção das nuances nos relacionamentos entre os índios do sertão, os índios “mansos” (certamente os aldeados) e os brancos. Arãkcho associa o primeiro ataque aos brancos com o desejo por suas mercadorias. Por outro lado, não condiciona as guerras entre índios à chegada dos brancos, mas sua narrativa apresenta com clareza as transformações das rivalidades, principalmente com a inserção dos “índios mansos”, resultado do contato. A inimizade inicial entre os índios do sertão e os brancos vai se desfazendo, pouco a pouco, enquanto as diferenças entre os “índios mansos” e os do sertão aumenta. Difícil saber até que ponto tanto Chagas Lima como Telêmaco Borba forjam um discurso dos índios a favor dos brancos. A questão talvez resida no fato de que, quanto maior a proximidade dos bens materiais dos portugueses, maior a disposição de não guerrear contra eles, o que incita uma disputa interna pela proximidade desses bens. O frei Cemitille, diretor do aldeamento de São Jerônimo na década de 1860, transcreveu um diálogo no qual o interesse dos kaingangs pelas mercadorias é tão claro que acabou sendo citado em diversos trabalhos sobre os kaingangs. Em 1866, ele narrou uma conversa que teve com o cacique/capitão Manoel Aropquimbe sobre religião, a qual lembrava um diálogo entre Robson Crusoe e “seu índio” Sexta-Feira. Para o frei, Sexta-Feira tinha quase as mesmas opiniões sobre religião que Aropquimbe. A diferença era que, quando Crusoé começara a discorrer sobre “as verdades principais da religião”, Sexta-Feira o ouvira atentamente, julgando-se feliz por achar-se em companhia de homem tão instruído, dando sinais de que se transformaria. Segundo o frei, Aropquimbe, ao contrário de Sexta-Feira, não mostrava disposição de transformarse. Não se convencia de que a poligamia fosse pecado, dizendo-se valente (tremani) por possuir quatro mulheres. Cemitille continua a expor as opiniões de Aropquimbe: Se estava morando conosco continuou não era por encontrar a felicidade, pois mais feliz se achava nas matas virgens, onde a caça o peixe e a furta eram mais abundantes e nunca lhe faltara mantimento suficiente para o próprio sustento e o da numerosa família. O verdadeiro motivo que justificava sua permanência entre nós era porque não podia mais passar mais sem as nossas ferramentas; que já era tarde para aceitar uma nova religião, sendo já velho, tanto que nunca pudera aprender a fazer o sinal-da-cruz. Enfim, despediu-se com uma risada e deu-me as costas, dizendo-me sarcástico adeus.90 [grifo do autor]

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Frei Luiz de Cemitille. Citado em: visconde de Taunay. Entre os nossos índios..., op. cit., p. 99. 52

Para compreender essa rede de relações conflituosas, creio ser proveitoso recorrer aos mitos kaingangs para pensar suas divisões internas, e depois refletir sobre o efeito da chegada dos portugueses nesse grupo, e sobre o grau em que aderiram, ou não, às culturas materiais e espirituais dos brancos.

As guerras, segundo o conceito de dualismo e o mito de origem kaingang Ao contrário do que fizeram muitos agentes de contato desde o século XVI, Chagas Lima nunca mencionou mitos dos kaingangs. Talvez, se conhecesse o mito de origem dos camés e votorons, saberia que as nações não eram nações, e sim clãs de uma nação, que tinham um mito de origem diretamente relacionado com suas guerras internas. Telêmaco Borba (1882), Curt Nimuendajú (1913), Herbert Baldus (1933) e Egon Schaden (1959) coletaram alguns mitos desses índios, que foram utilizados pelos antropólogos que os sucederam para criar “o modelo tradicional” que organizava sua vida social. Para Kimiye Tommasino e Ricardo Cid Fernandes, “todos os parâmetros de organização social [apontados no modelo tradicional] estão, de alguma forma, presentes na construção da sociabilidade dos kaingangs da atualidade”.91 Até onde pude alcançar, o que os antropólogos chamam de modelo tradicional seria uma síntese da organização social dos kaingangs ao longo do contato, baseada em mitos coletados, documentos históricos e entrevistas com os kaingangs atuais. Esta é uma das dificuldades da união da antropologia com a história: quais são os limites do sincrônico e do diacrônico? John Manuel Monteiro identificou um “instigante problema de método” em relação aos estudos dos guaranis: No que diz respeito à etnologia, o conhecimento dos guarani às vésperas da conquista e durante os primeiros séculos de colonização apresenta um instigante problema de método, uma vez que a reconstituição dos aspectos sociais, políticos e religiosos dessas populações tem sido elaborada tanto a partir de um registro documental (fragmentário e tendencioso, diga-se de passagem), quanto a partir de inferências provenientes dos estudos etnográficos realizados neste século [XX].92

Mesmo considerando que “os séculos de contato com os europeus teriam redundado em transformações irreversíveis [...]”, Monteiro observa que “deve-se Kimyie Tommasino; Ricardo Cid Fernandes. Verbete “Kaingang”. In: Enciclopédia dos povos indígenas no Brasil, op. cit. Disponível em: . Acesso em: maio 2004. 92 John Manuel Monteiro. “Os guarani e o Brasil meridional”. In: op. cit., p. 475. 91

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reconhecer que certos aspectos essenciais do ‘modo de ser’ dos guarani — tais como o discurso profético e o profundo senso de identidade — são manifestos de forma constante e consistente seja nas fontes históricas, seja nas etnografias.93 Procurarei com todo o cuidado me valer de alguns “aspectos essenciais do modo de ser” kaingang, sintetizados pela antropologia recente, com base em mitos colhidos a partir de 1867, e que coincidam com as pistas etnográficas deixadas por Chagas Lima. Acredito ser possível usar conclusões da antropologia contemporânea em relação aos kaingangs do começo do século XIX, pelo menos para a compreensão das rivalidades internas acima narradas e dos matrimônios. Os antropólogos Ricardo Cid Fernandes e Kimiye Tommasino, no verbete sobre os kaingangs da Enciclopédia dos povos indígenas no Brasil, definiram-nos da seguinte maneira: Os kaingang, como outros grupos da família lingüística Macro-Jê, [...] reconhecem princípios sociocosmológicos dualistas, apresentado um sistema de metades. Entre os kaingang as metades originadoras da sociedade recebem os nomes de Kamé e Kairu. [...] No mito de origem coletado por Telêmaco Borba (1882) encontra-se uma versão resumida da cosmologia dualista kaingang. Neste mito os heróis culturais [os irmãos] Kamé e Kairu produzem não apenas as divisões entre os homens, mas também a divisão entre os seres da natureza. [...] A expressão sociológica mais forte desta concepção dualista é o princípio da exogamia entre as metades. Segundo a tradição kaingang os casamentos devem ser realizados entre indivíduos de metades opostas; os Kamé devem casar-se com os Kairu e vice-versa.94

Em 1946, Claude Lévi-strauss, em Estruturas elementares do parentesco, definiu o que seria o dualismo em certos grupos sociais: [As organizações dualistas] definem um sistema no qual os membros da comunidade — tribo ou aldeia — são distribuídos em duas divisões que mantêm relações complexas, as quais vão da hostilidade declarada à intimidade mais estreita. [...] dois heróis culturais, ora irmãos mais velho e mais moço, ora gêmeos, desempenham importante papel na mitologia. [...] Finalmente as duas metades são ligadas uma a outra não somente pelas trocas de mulheres, mas pelo fornecimento de serviço e de retribuição de serviços recíprocos de caráter econômico, social e cerimonial.95

Em 1913, Curt Nimuendajú, referindo-se aos kaingangs, afirmou ser a divisão em Kañeru e Kamé “o fio vermelho que passa por toda a vida social e religiosa desta nação”. E completava, antecipando-se a Lévi-Strauss: “Isto está de pleno acordo com as tradições de muitas outras tribos brasileiras que também se dizem descendentes de dois

93

Ibidem, p. 476. Ibidem. 95 Claude Lévi-Strauss. Estruturas elementares do parentesco, op. cit., p. 108. 94

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irmãos gêmeos de caráter sempre essencialmente diferente: Nanderinquey e Tyvyry dos guarani, Keri e Kamé dos Bakairi etc. etc.”.96 Assim, através do que já chamei de uma tradição de estudos sobre os kaingangs na antropologia do século XX, complementada pelos estudos das sociedades macro-jê, fica mais fácil destrinchar os significados das guerras entre os grupos indígenas relatadas por Chagas Lima. Os camés seriam os descendentes do herói Kamé, e os votorons, descendentes dos Kanherú ou Kairú. Essa descendência é explicada por uma outra versão do mito, coletada por Egon Schaden, em 1947. Depois de Kamé e Filtón (chefe dos Kanherú, ou Kairu) voltarem à Terra, houve uma nova “subdivisão em Votôro e Venhiky, por causa das festas que iam realizar”.97 Nesse mito, os votorons pertenciam a metade Kairu, e os venhiky, à metade Kamé. Provavelmente, o fato de votorons e camés aldearem-se juntos em Atalaya, e o de não haver relatos de disputas graves entre eles, aponta para a necessidade de estarem próximos, a fim de promover as associações próprias de uma sociedade dualista, como casamentos e funerais. Por outro lado, há uma guerra permanente dos aldeados contra os cayeres/dorins. Os aldeados caçavam-nos e vendiam-nos aos portugueses, como tantos outros índios fizeram em situação de contato. De qualquer maneira, o mito coletado por Telêmaco Borba também explica a escravização. Segundo essa versão, depois de um grande dilúvio, os Kamés e Cayurucrés (Kairus) foram morar no centro de uma serra; Caingangs e Curutons permaneceram nos galhos das árvores, transformados em macacos e bugios. Depois que as águas baixaram, Kamés e Kayrus voltaram à superfície e “mandaram os Curutons para trazer os cestos e cabaças que tinham deixado embaixo; estes, porém, por preguiça de tornar a subir, ficaram ali e nunca mais se reuniram aos Caingangues: por esta razão, nós, quando os encontramos, os pegamos como nossos escravos fugidos que são”.98 Se retomarmos as traduções dos nomes das “nações”, atribuídos por Chagas Lima, podemos inserir os cayeres dentro desse mito. O informante das traduções era provavelmente votoron, uma vez que os significados demonstram haver uma hierarquia dentre os nomes. Assim, os camés significam “covardes”; os cayeres, “macacos”; e os votorons, “habitantes do morro Votoruna”, ou seja, não têm nenhuma conotação 96

Curt Nimuendajú, op. cit., p. 60. Citado em: Kimyie Tommasino, op. cit., p. 38. 98 Citado em: ibidem, p. 39. 97

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negativa. Além disso, segundo os mitos coletados por Borba e Nimuendajú, os irmãos que originaram os kaingangs habitaram inicialmente o interior de uma serra. O morro Votoruna poderia ser, na concepção dos votorons, parte dessa serra, ou a serra em si. A partir de 1826, Chagas Lima, mais próximo dos cayeres, passou a chamá-los de dorins, pois viviam nas margens do rio Dorim. Provavelmente, eles devem ter negado a denominação de macacos dada pelos aldeados. Não se pode afirmar que os cayeres ou dorins sejam os curutons do mito coletado por Telêmaco Borba, mas certamente podem ser relacionados. O mito informa que curutons, quando ficaram na terra, haviam se transformado em bugios, e cayere, como já foi dito, significa “macaco”, sentido confirmado nos vocabulários kaingangs de Nimuendajú e Herbert Baldus. Na década de 1860, antes de o mito ter sido registrado, no aldeamento de São Pedro de Alcântara, seu diretor, o frei Timotheo de Castelnovo, narrou um episódio que envolvia um cativo curutom dos kaingangs (chamados, à época, de coroados). Mencionava-se nesse documento não um curutom mítico, mas existente: “No riozinho da corredeira o índio Feliciano dito coroado quase matou a socos um outro velho chamado Manoel Cufá — por feiticeiro — este Manoel era cativo deles de outra nação chamada curutom. Este é o segundo caso acontecido neste aldeamento”.99 Tanto do mito como da existência de escravos, mencionada por frei Castelnovo, infere-se uma organização social que, numa situação de contato, obviamente se transformou, mas mantém alguns de seus princípios. Entre eles, a hierarquização e a escravidão, observadas por muitos autores, tanto aqueles que trabalharam com dados históricos como os de vertente etnográfica. Lévi-Strauss, décadas mais tarde, acrescentou à definição de dualismo uma atribuição muito importante para esta análise. “Os povos que ocupam uma área geográfica certamente imensa, mas circunscrita, escolheram explicar o mundo pelo modelo de um dualismo em perpétuo desequilíbrio, cujos estados sucessivos se embutem uns nos outros: dualismo que se expressa de modo coerente, ora na mitologia, ora na organização social, ora em ambas”.100 Assim, esse “perpétuo desequilíbrio” significa absorver as mudanças que sempre ocorrem numa sociedade. Os portugueses e as mercadorias, aos poucos, passariam a fazer parte de uma realidade, que impulsionaria rapidamente a mudança da relação com 99

Frei Timotheo de Castelnovo, citado em: Marta Rosa Amoroso. Catequese e evasão..., op. cit., p. 139. 100 Claude Lévi-Strauss. História de lince. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 215. 56

os bens materiais, e entre os próprios clãs, mas não necessariamente na cosmologia. Nesse sentido, adquirir mercadorias seria cada vez mais desejável, e isso impulsionaria a concorrência, e mesmo a associação, entre os clãs, no afã de possuir os objetos da cultura material dos portugueses, que passariam a ser objetos de sua própria cultura. Por outro lado, como veremos na seção a seguir, houve nas primeiras décadas de contato uma adesão quase nula ao cristianismo.

A catequese: o cristianismo e a religião kaingang Chagas Lima, baseado em seus mapas de população extremamente variáveis, relatava o abandono e a adesão dos índios à aldeia e ao cristianismo. Depois de várias tragédias, derrotas e alguns pequenos ganhos, nunca desistiu de aumentar o número de conversos, ainda que assumisse as perdas. Nos seus últimos anos, num texto escrito ora em primeira pessoa, ora em terceira, afirmou: [...] os índios aldeados foram como uma matéria úmida, que custa a incendiar-se, e isto lentamente [...] correspondiam mui pouco aos trabalhos e diligência do seu diretor espiritual [...]; eles não quiseram jamais abster-se de freqüentar com excesso os bailes obscenos, entre bebidas embriagantes [...]; cujos entretenimentos sempre acabavam em desenvolturas brutas; e quando eram argüidos, metiam-se nos matos, em malocas, tantos os homens como as mulheres, em que gastavam dias e semanas com tais obscenidades.101

Eduardo Viveiros de Castro identificou uma longa tradição de escritos sobre indígenas, dos primeiros jesuítas aos historiadores do século XX, os quais concluíam pela inconstância desses indígenas. Segundo o autor, essa “proverbial inconstância” do índio passou [...] a ser um traço definidor do caráter ameríndio, consolidando-se como um dos estereótipos do imaginário nacional: o índio mal-converso que, à primeira oportunidade, manda Deus, enxada e roupas ao diabo, retornando feliz à selva, presa de um atavismo incurável. A inconstância é uma constante da equação selvagem.102

Tal inconstância hoje pode ser interpretada como certa autonomia indígena ante à colonização. Foi por meio de uma religião considerada pelo padre um conjunto de superstições e vícios que os kaingangs mantiveram uma parte substancial de seu modo de vida e lidaram com a colonização.

Francisco das Chagas Lima. “Memória...”, op. cit., p. 55. Eduardo Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naif, 2002, p. 186. 101 102

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Se aceitavam o batismo, carregavam, junto com o nome cristão, o nome indígena, o que gerava nomes duplos. Batizados, não deixavam de promover seus próprios ritos. O padre apresentou o seguinte balanço dos índios aldeados na memória que escreveu sobre Guarapuava, provavelmente, no ano de 1828:

Número total de índios em 15 anos de

513

aldeamento103

(362 que vieram residir e 151 que nasceram)

Número de índios batizados

448

Pagãos

65

Morreram batizados

193 (148 em Atalaya e 45 nos sertões)

Abandonaram a aldeia

84 (58 votorons, 11 dorins e 15 no campo de Curitiba)

Índios em Atalaya em 1827

171

Número de casamentos entre índios

48

neófitos Número de casamentos entre índias e

6

brasileiros

De uma população de 513 pessoas, a maioria foi batizada. Porém, é fundamental observar que muitos o foram in extremis: “O padre correu para batizar a um moribundo que ainda respirava e gemia: o mesmo fez a outros quatro debaixo da condição sivivis, mas estes não mostraram já mais algum sinal de vida”.104 Pelo menos 151, número de nascidos na aldeia, foram batizados ainda inocentes. Com exceção desses casos, o padre só admitia o batismo com mais de um ano de catecismo, “como determinam os cânones”. De uma população com mais de doze, catorze anos, cerca de um terço se casou. Porém, o próprio padre admitiu que depois dessa cerimônia muitos voltaram à

Francisco das Chagas Lima. “Memória...”, op. cit., “Tabela do número de índios que se renderam à expedição, seu progresso e alterações”, p. 62. 104 Elias de Araújo, cabo e comandante interino de Guarapuava, 15/12/1827. AESP, Ofícios de Castro, caixa 987. 103

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poligamia. Finalmente, em quinze anos, mais de um terço da população morreu de “peste, guerras, outras enfermidades, deserção”,105 sendo homens a maioria dos mortos.106 Apenas seis índias se casaram com brasileiros. Não foi possível saber se Chagas Lima era contra o casamento de portugueses com índias, mas certamente ele dificultava a aproximação. O alvará de 4 de abril de 1755, depois incorporado ao Diretório Pombalino de 1757, incentivava os portugueses a se casarem com índias. É digna de nota a opinião de Antônio M. Rangel, o almoxarife da expedição de 1810, sobre o assunto. Antes mesmo de haver aldeamento, sugeriu ao então ministro da Guerra, conde de Linhares, a respeito das “índias que se forem domesticando”, mover “algumas pessoas a se esposarem com elas, de cujas alianças dimanariam felizes resultados”.107 Mais tarde, nos aldeamentos do Paraná, instalados de acordo com o Regulamento de 1845, os capuchinhos teriam uma concepção de catequese diferente da de Chagas Lima. De acordo com Marta Rosa Amoroso, o objetivo dos capuchinhos não era tanto a cristianização, mas, sobretudo, a civilização. “O exemplo era a essência da pedagogia dos capuchinhos. Convivendo com a nossa sociedade, os índios aprenderiam a trabalhar, perderiam os ‘maus costumes’.”108 O frei Timotheo de Montefalco, missionário de São Pedro de Alcântara, chegou a escrever: “Dai-me povos morigerados para entreverar entre os índios. Dai-me terras para distribuir a gentes laboriosas. E eu dar-vos-ei o melhor sistema, e a melhor catequese do Brasil”.109 O frei, como Chagas Lima, os jesuítas e tantos outros agentes de contato, não via os portugueses pobres como bom exemplo para os índios: “Deus nos livre que os índios fossem tão corrompidos como as nossas camadas mais baixas”.110 No entanto, pelo menos em relação à produção, o convívio era fundamental. O frei Luís Cemitille descreveu, em 1867, seu procedimento com os kaingangs do aldeamento de São Jerônimo, onde era missionário: O sistema de catequese que eu tenho seguido é procurar por todos os meios ao meu alcance ensinar alguns dos jovens índios mais inteligentes a ler e escrever [...] sem, Francisco das Chagas Lima. “Memória...”, op. cit., p. 59. Segundo Chagas Lima, “nas hordas dos gentios guaranis”, os homens são geralmente um quarto da população. Ver: “Memória...”, op. cit., p. 52. 107 Manuel Antônio Rangel, almoxarife da expedição. Carta para o ministro conde de Linhares, 22/7/1810. AESP, Ordenanças de Castro, caixa 303. 108 Marta Rosa Amoroso. Catequese e evasão..., op. cit., p. 253. 109 Citado em: ibidem, p. 254. 110 Ibidem. 105 106

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contudo, pretender governá-los; deixando-os com seus costumes, sua alimentação e seu modo geral da vida, socorrendo-os em algumas de suas maiores necessidades, e somente fazendo o que puder para evitar qualquer desordem.111

Nos aldeamentos kaingangs do Paraná, dirigidos por capuchinhos, praticamente não houve cristianização, assim como em Atalaya, décadas antes. No principal aldeamento da região, São Pedro de Alcântara, em quarenta anos, apesar de um alto número de batismos, as várias etnias que ali viviam separadamente não se converteram ao catolicismo.112

Céu, inferno e o mundo dos mortos Para intimar os preceitos do decálogo apelei para os princípios do direito natural, que ainda que escurecidos não podiam estar em todos totalmente extintos.113 [...] passei a dar-lhes conhecimentos das verdades e princípios que deve saber o cristão, e crença da imortalidade das nossas almas, para o que aproveitei as suas mesmas idéias e cerimônias que praticavam nos seus enterros, pondo ao pé do cadáver um facho aceso, para que, segundo diziam, pelos reflexos da luz subisse a sua alma ao céu.114 [grifo meu] A respeito do céu e do inferno lancei mão das cerimônias dos seus enterros, de tocha acesa, acrescentando, porém, que assim sucederia aos bons que fossem batizados, mas que a alma dos pagões e dos maus era o mesmo que uma pedra que caía no fogo e que daí descia para um abismo mais profundo de onde nunca mais sairia, eternamente abrasada no dito fogo que nunca se extingue: donde veio eles darem o nome numbé ao inferno que quer dizer voragem da terra e também pim-banc, grande fogo.115

Herbert Baldus, em 1943, observou que o culto central dos kaingangs são as cerimônias de enterramento. A antropóloga Juracilda Veiga presenciou o Kiki, o ritual dos mortos, no toldo de Xapecó, Rio Grande do Sul, em 1993. Sua descrição de grandes fogueiras, união dos clãs em torno de um interesse comum e preparação de bebidas 111

Citado em: ibidem, p. 250. Ver ibidem. 113 Francisco das Chagas Lima. “Memória sobre o descobrimento e colônia de Guarapuava”, s. d., versão manuscrita. IHGB, p. 44. A partir desta nota, será citado “Memória...”, versão manuscrita, para diferenciar da “Memória...” publicada, citada apenas como “Memória...”. Este texto, publicado no IHGB em 1842 e trazido pelo sócio Daniel P. Muller, foi escrito certamente entre 1828 e 1832. Muller foi o responsável por um quadro estatístico publicado em 1838 sobre a província de São Paulo e talvez possa ter encomendado o texto ao padre. Este é o único documento utilizado que não é correspondência, e sim uma reflexão sobre seu trabalho e um panorama geral da expedição. O manuscrito, escrito em letra que parece ser de Chagas Lima, ainda se encontra no Instituto e contém cerca de dez páginas eliminadas da publicação. É um trecho em que Chagas Lima conta violências cometidas pelos índios polígamos contra mulheres, além de descrever o método de sua catequese e algumas informações etnográficas. 114 Francisco das Chagas Lima. “Memória...”, op. cit., p. 59. 115 Francisco das Chagas Lima. “Memória...”, versão manuscrita. IHGB, p. 44-5. 112

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espirituosas coincide com algumas das fontes dos aldeamentos da segunda metade do século XIX que descreveram o Kiki.116 Segundo Marta Rosa Amoroso, era o momento de comunicação entre vivos e mortos. Chagas Lima não chegou a descrever os rituais de sepultamento, mas os menciona mais de uma vez. Talvez os “bailes obscenos, entre bebidas embriagantes”, que os aldeados faziam longe da aldeia fossem o Kiki promovido pelos aldeados de Guarapuava e seus pares do sertão. Numa de suas explicações dos insucessos da catequese, afirmou: Riscado tinham toda a idéia do Criador, como conservador do universo e remunerador dos bons, e castigador dos maus na vida futura, e pensavam, segundo as suas idéias, na livre satisfação de suas paixões, assentando que as almas iam para o céu sem diferença de mérito ou imérito, como se notou na cerimônia de seus enterros.117

O padre, até suas últimas linhas, insistiu no catecismo e na não-assimilação de seus ensinamentos pelos aldeados, que misturavam o tempo todo os seus costumes com aqueles imputados pela colonização, ou simplesmente ignoravam estes últimos. Ele tentou conceber uma didática que traduzisse os preceitos básicos do cristianismo: “Os mais agudos logo entendiam, outros mais broncos com algum custo, e havia outros que quanto mais lhes explicava menos percebiam”.118 Ao explicar que as almas boas subiriam aos céus como as tochas acesas de seus enterros, Chagas Lima, como os jesuítas e outros religiosos, tinha “plena consciência do ‘enxerto’ das cerimônias novas nas antigas para o sucesso na catequese”. 119 Procurou explicar o inferno de maneira material, procurando passar seus ensinamentos através da sensibilidade física: uma pedra que queimava perpetuamente, caindo num abismo em direção ao infinito. Daí que a tradução que os índios fizeram do inferno fosse a “voragem da terra” ou “grande fogo”. Do ponto de vista dos índios, esse abismo dificilmente poderia ser um espaço para se viver após a morte. O próprio padre afirmou não haver a idéia de inferno entre os kaingangs, já que tanto as almas boas como as más subiam aos céus nas cerimônias de enterramento, que tinham no reflexo da luz do fogo o veículo para a passagem. Por que 116

Ver Juracilda Veiga. Organização social e cosmovisão kaingang: uma introdução ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade Jê meridional. Dissertação de mestrado. Campinas: UNICAMP, 1994, p. 162-74; e Marta Rosa Amoroso. Catequese e evasão..., p. 25761. 117 Francisco das Chagas Lima. “Memória...”, op. cit., p. 61. 118 Francisco das Chagas Lima. “Memória...”, versão manuscrita, p. 45. 119 Cristina Pompa, op. cit., p. 405. 61

os kaingangs adeririam à triste idéia de inferno, se na sua concepção todos iriam para o céu, ou para o mundo dos mortos? Como dividir o mundo dos mortos em dois, se na concepção dos kaingangs existiam apenas o mundo dos mortos e o dos vivos?

Sardanapalos e epicúreos: a poligamia e o casamento [...] riscando de suas imaginações a idéia de Deus se haviam abandonado as mais enormes abominações: vivendo como epicúreos dados unicamente ao ventre, sem levarem avante suas esperanças; e como Sardanapalos entregues à sensualidade, sem guardarem nem ainda a honestidade que naturalmente requer a aliança matrimonial; ou seja, pelo indefinido número de esposas que tomavam e retinham simultaneamente; ou pelo modo violento, com que as adquiriam à força d’armas [...].120

Em 1821, num relato ao bispo e ao presidente da província, Chagas Lima narrou longamente o comportamento polígamo dos recém-contatados e como a providência divina os tinha castigado por esse pecado. Quando os primeiros aldeados chegaram, o padre tratou de instruí-los nas leis da Igreja, por intermédio de seu intérprete, o capitão Antonio José Pahy, líder dos indígenas que sempre o auxiliou. Nos primeiros meses do contato, este último avisou ao padre que a poligamia continuava a ser praticada entre os índios, em seus “conventículos nas casas particulares”. Chagas Lima foi tirar satisfações com Fandungrá, um dos polígamos. Este, segundo o padre, falava com moderação “para que eu melhor o entendesse, tomando em um dos braços a um pequeno filho seu [...] o pôs nos ombros; e com outro braço apontando a duas mulheres que tinha [...]”. Pahy traduziu as palavras de seu companheiro, dizendo que eles só ficariam entre os brancos se os deixassem viver com suas mulheres. Caso isso não acontecesse, eles se retirariam para os sertões. O padre pediu para ficarem, e disse que ao poucos tratariam dessa questão “amigavelmente e sem enfado”.121 Ao narrar o carinho que Fandungrá devotava à sua família não cristã, a moderação de sua fala, Chagas Lima atribuiu-lhe alguma respeitabilidade. Um diálogo semelhante ocorreu na colônia francesa da América do Norte, atual Canadá: um pai huron foi questionado por um jesuíta: como, tendo práticas poligâmicas, as pessoas poderiam saber quem era seu filho? O índio respondeu: “Vocês, franceses, amam apenas suas

Francisco das Chagas Lima. “Carta em resposta ao aviso de d. Pedro I”, 1827. Francisco das Chagas Lima. “Relatório sobre o estado atual...”, op. cit., 1821, in: Arthur Martins Franco , op. cit., p. 238. 120 121

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próprias crianças; nós amamos todas as crianças do nosso povo”. 122 Apesar de os episódios dizerem respeito a relações de parentesco de ordens diferentes, interessa extrair das narrativas dos religiosos o reconhecimento, ainda que furtivo ou acidental, de certa coerência nos povos que julgam tão rudes. São fragmentos narrativos que permitem uma aproximação maior do sentimento do missionário em relação àquele que pretende transformar. Não há somente intolerância, mas lapsos de compreensão do outro: “As ambigüidades que emergem das entrelinhas dos textos revelam a influência que a vida cotidiana na região colonial e o contato estreito com os índios tiveram sobre as obras teóricas e práticas dos [...] missionários”.123 No episódio da convivência com os polígamos, apesar de mostrar-se disponível a abrir mão de sua ortodoxia, Chagas Lima recobriu seus princípios morais e atribuiu mais uma vez à providência divina a resolução do problema: Quando eu banzava sobre o modo, com que poderia desembaraçar-me deste lance, em que me era preciso de uma parte salvar a doutrina da Igreja; e de outra não dizer, nem fazer cousa, que pudesse afugentar os índios: tomou Deus a si minha causa; porque imediatamente enviou uma peste horrível que prostrou em breves dias a maior parte dos índios dos quais logo entraram a morrer vários.124

A explicação providencialista de Chagas Lima não correspondia exatamente à realidade que ele próprio expunha. Segundo sua narrativa, Deus, por meio da peste, levara muitos homens polígamos e diversas mulheres que “tinham companheiras no leito conjugal”. Mas não foram só homens e mulheres praticantes de poligamia que morreram. Crianças também se foram, além de diversos polígamos terem sobrevivido. A peste fez com que muitos índios abandonassem o aldeamento. Mais adiante no texto, para reiterar o que dizia, narra como os 21 homens polígamos restantes tiveram fins trágicos: a maioria teria morrido, longe de Atalaya, entre os anos de 1812 e 1817. Chagas Lima finalizava seu raciocínio sobre o castigo que abateu os polígamos citando uma das epístolas de São Paulo aos romanos (capítulo 9, versículo 18): “[...] os juízos

Natalie Zemon Davis. “Iroquois women, european women”. In: Peter C. Mancall; James H. Merrel (ed.). American encounters: native and newcomers from European contact to indian removal, 1500-1850. Nova York: Routledge, 2000, p. 99-100. Tradução minha. 123 Maria Regina Celestino de Almeida. “Um tesouro descoberto: imagens do índio na obra de João Daniel”. Tempo, vol. 3, n.o 5, jul. 1998, p. 148. 124 Francisco das Chagas Lima. “Relatório sobre o estado atual...”, op. cit., 1821. In: Arthur Martins Franco, op. cit., p. 238. 122

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de Deus são inescrutáveis: Ele é Senhor das suas graças, podendo conceder a uns o que não concede a outros, conforme for sua vontade”.125 Em suas argumentações acrobáticas, o padre não quis levar em conta que a taxa de mortalidade foi alta devido às pestes e aos diversos conflitos ocasionados pelo próprio contato. A poligamia não foi extinta em Atalaya, os aldeados praticamente não aderiram aos preceitos cristãos, mantendo muito de seus hábitos, indo e vindo aos “seus antigos lares”, ou pelo menos mantendo contato com seus pares do sertão. Segundo Lima, a catequese teve sucesso até 1819, enquanto o líder Pahy esteve vivo: “Depois que faleceu Pahy, não houve jamais entre os índios aldeados algum dos seus, que propriamente os comovesse com seus exemplos e exortações para deixarem os costumes de barbaridade, e seguirem a vida cristã”.126 Antônio José Pahy, ao que parece, foi o único índio realmente converso, segundo seus escritos. Não sei se porque há poucos escritos entre 1810 e 1819, mas não há menção a índios praticantes do cristianismo, a despeito de a maioria ter sido batizada e de vários terem se casado. Chagas Lima atribuía as mortes dos aldeados aos pecados que cometiam. Usava os mesmos argumentos, tanto nas cartas que escrevia para os governantes como entre os índios. Mas era difícil acreditar, do ponto de vista dos indígenas, que tantas tragédias estivessem ocorrendo justamente pelo problema da poligamia. Relembremos Rita de Oliveira, que depois de dez anos de casamento com Antônio José Pahy, uma vez viúva, voltou para o mato com seu segundo companheiro, que também se associou a outra mulher. Ao mesmo tempo, o fato de não ser mencionado nenhum castigo que não fosse divino leva a crer que, entre perder os índios e mantê-los, Chagas Lima optou pela segunda opção e fez vista grossa a alguns costumes “bárbaros”. Vale lembrar o episódio em que ele narra que a morte de cinco aldeados num confronto contra um grupo inimigo teria resultado em nove viúvas. Como pode haver, na concepção de um padre, nove viúvas para cinco índios mortos?

***

125 126

Ibidem, p. 243. Francisco das Chagas Lima. “Memória..”, op. cit., p. 56. 64

O padre relatou “ser costume entre eles, o que casava com a primeira filha, ir recebendo outras cunhadas; que sim faziam era pai não casar com filha, mãe com filho, o irmão com irmã”.127 Sem dúvida, como entre a larga maioria dos grupos sociais do planeta, o incesto era proibido. Lima, no entanto, seguia no seu solilóquio, dando mais algumas pistas: Explicaram-se os índios sobre os casamentos da seguinte maneira: nós a primeira vez que casamos é com uma mulher, isto é a nossa prohèvè, ou mulher legítima, porém depois de nascer o primeiro filho, é-nos necessário ter já duas e assim progressivamente até a morte; porque se umas adoecem ou morrem, tendo filhos novos, as outras os criam.128

O padre respondeu à sua própria pergunta com os seguintes argumentos: [...] morrendo vós, deixando esta caterva de filhos, quem os há de sustentar? [...] Haverá boa ordem, haverá paz na vossa família, aonde cada mulher com três ou quatro rivais, cada filho com três ou quatro madrastas e dez, doze irmãos que não uterinos? As vossas casas são moradas de prantos e lamento.129

A permissão de casar com cunhadas coincide com as conclusões dos antropólogos, que afirmam serem os kaingangs uma sociedade exogâmica patrilinear. Ou seja, os filhos são parte da linhagem do pai, que em princípio deve ser de um clã diferente do da mãe. Igualmente, cada membro de um determinado clã kaingang teria, em princípio, de casar-se com membros de outro clã. As cunhadas de um homem sempre seriam do clã de sua esposa, portanto, oposto ao seu. Na década de 1880, o indigenista Telêmaco Borba, diretor do aldeamento de São Jerônimo, no norte do Paraná, confirma a prática exogâmica com outras observações sobre as regras de casamento. Segundo ele, os kaingangs não se casavam com as filhas de seus irmãos, pois as consideravam como suas filhas, mas podiam se casar com as filhas de suas irmãs. Dessa maneira, os filhos dos irmãos são do clã dos irmãos, e os filhos das irmãs são dos clãs dos cunhados, o que permitia casamentos entre tios e sobrinhas de clãs opostos.130

Francisco das Chagas Lima. “Memória...”, versão manuscrita, p. 47. Ibidem, p. 49. 129 Ibidem, p. 51. 130 Telêmaco Borba. Actualidade indígena. Curitiba: Typ. E Lytog. A Vapor Impressora Paranaense, 1908. 127 128

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Descompassos culturais

Condói, [...] além de polígamo era supersticioso; pois continuando a sua enfermidade se devia recorrer a Deus, mandou fazer corpos de cera, e com penas de papagaio formou duas figuras destas aves, com asas abertas, e as pôs sobre seu leito suspensas por duas linhas, de maneira que se moviam com a agitação do ar e do fumo do fogo. A estas aves é que fazia seus votos com muita reverencia, dizendo: “Iongjó! Iongjó! cangantomy caraça pano tom, isto é, papagaio! Papagaio! se eu sarar nunca mais despedirei setas contra vós”: no que se vê que temia morrer, e quanto era aferrado a seus princípios, apesar das instruções já recebidas. Eram contudo, dolosos, os seus votos; porque apenas restabeleceu a sua saúde, fez uma grande caçada de papagaios.131 [grifo meu]

As esparsas incursões etnográficas de Chagas Lima não mostram, nos costumes indígenas dos aldeados de Guarapuava, “antes e depois” definidos: eles simplesmente sobrepunham velhos e novos costumes, com larga predominância dos primeiros. Nessa análise não é possível adotar uma perspectiva de hibridismo cultural, pois, segundo a narrativa de Chagas Lima, quase não houve permeabilidade entre os novos costumes dos índios e os velhos. Ele não se refere, por exemplo, a nenhum culto católico praticado pelos índios, ou a mudanças significativas do modo de morar. Havia certamente intersecções culturais; porém, observa-se, sobretudo, uma convivência — bastante conflituosa — de culturas distintas. O padre até sugeriu misturar algumas técnicas indígenas com as dos portugueses. Depois de criticar a demora de seis meses para concluir as mantas de sete palmos de comprimento por cinco palmos de largura que as índias fiavam a partir de um “certo linho”, ele sonhava com mais eficiência e produtividade: “Se nesta aldeia houvesse um rebanho de ovelhas para misturarem a lã com o linho [...] se estas mulheres aprendessem a fiar e tecer com instrumentos próprios; [...] seus trabalhos haviam de luzir, porque não deixam de ser mui hábeis para todas as manufaturas”.132 Ao comentar os “aferrados princípios [dos índios], apesar das instruções já recebidas”, o padre admitia a pouca adesão ao cristianismo. Ele era tolerante, mas nunca desistiu de aos poucos extirpar os hábitos “paganais” dos índios. De qualquer forma, segundo seu raciocínio, todos aqueles que insistiam nos seus erros de fé seriam castigados por Deus. Este foi o caso de Condói, de quem, para o padre, até “os votos da sua estranha superstição eram dolosos”, uma vez que prometeu nunca mais caçar Francisco das Chagas Lima. “Memória...”, op. cit., p. 48. Francisco das Chagas Lima, “Relatório sobre o estado atual...”, op. cit., 1821. In: Arthur Martins Franco, op. cit., p. 263. Uma das blusas feita com essa técnica foi colhida pelo naturalista alemão F. Sellow quando visitou Guarapuava. Hoje é parte do acervo da Universidade de Humboldt, em Berlim. 131 132

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papagaios se obtivesse a cura e, logo que ficou bom, promoveu uma grande caçada dessas aves. Os “princípios aferrados” dos índios ocasionaram os freqüentes abandonos da aldeia. Tanto a etnografia dos séculos XIX e XX como a recente os descrevem como povo originalmente nômade. Antes e durante o contato, uma vez esgotados os recursos do lugar onde construíam suas moradias, eles partiam para outro lugar a fim de encontrar caça e peixe e plantar uma nova roça. Ao mesmo tempo, o fato de voltarem ao aldeamento, espaço reservado aos índios dentro do “território civilizado”, creditava algum êxito aos procedimentos da colonização. A volta sempre foi narrada como interesse em adquirir bens como tecidos, ferramentas e armas, e aproveitar os frutos da colheita das lavouras. Talvez o maior êxito da colonização tenha sido o interesse dos índios pelos bens que os agentes colonizadores deliberadamente distribuíam. Quanto à religião, eles foram tão resistentes que os próprios agentes civilizadores admitiram como quase nula sua adesão ao cristianismo, de Chagas Lima, em 1827, ao frei Montefalco, em 1880. A partir dos aldeamentos dos capuchinhos, os kaingangs incorporaram muito lentamente elementos da religião católica, como cruzes e certa identificação com a comemoração da Páscoa. A crença num mundo dos mortos que nada teria a ver com a distinção entre céu e inferno, a centralidade do culto aos mortos e o forte dualismo que dirigia a vida em sociedade, de alguma maneira, criaram uma fraca permeabilidade à colonização religiosa. Os bens materiais foram o elo mais forte dos índios com os portugueses. Os kaingangs jamais desistiriam de obtê-los. Era um jogo de forças que aos poucos incorporava sinais de comunicação e traduções que gerariam novas linguagens, religiões, culturas, sem necessariamente destruir os velhos costumes, mas certamente transformando-os. Em contato, nenhuma das partes jamais seria a mesma. Mesmo havendo essa lenta transformação, o início da colonização seria um momento de indefinições e lutas culturais. As permanências e as mudanças seriam resultado dos conflitos permanentes entre os kaingangs e os colonizadores. Em outubro de 1828, numa carta contundente ao Governo da província, Antônio da Rocha Loures, comandante da expedição, anuncia a partida de Chagas Lima,133 e, em 133

Ainda não cheguei a uma conclusão sobre se o padre de fato partiu de Guarapuava em 1828, ou se lá permaneceu até 1832, como consta do decreto de sua aposentadoria, assinado pelo regente Feijó. Segundo Arthur Martins Franco, que investigou o primeiro livro de assento de batismos de Guarapuava, o último batizado celebrado por Chagas Lima data de outubro de 1828, assim como a carta de Loures que anuncia sua partida. 67

relação aos índios, é categórico: “Eu não me atrevo mais com esta qualidade de gente”. Loures informava que haviam fugido da expedição 59 índios, e dentre estes restavam apenas sete homens e o “Tambor”. Além disso, dois deserdados que ali viviam também fugiram, levando armas e cartuchos. Loures também anunciava a partida de Chagas Lima, que não melhorara de suas doenças. Restavam em Guarapuava, sob a responsabilidade da expedição, alguns poucos soldados e 78 índias, entre mulheres e crianças. O propósito de encerrar o capítulo com o diagnóstico de Loures não é anunciar a decadência da expedição. A intenção é apenas anunciar a provável partida de Chagas Lima e o fim de seus escritos sobre o aldeamento, pois foi ele o narrador dessa história. A história dos kaingangs do Paraná segue até hoje. Eles são um dos maiores grupos indígenas existentes no Brasil. Tantos combates serviram certamente para a continuidade dessa história.

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CONHECER, TOLERAR, CIVILIZAR: Guido Thomaz Marlière e os botocudos do leste mineiro, década de 1820 Certamente, se nos dirigirmos à região que Ailton Krenak chamou de “território tradicional do meu povo”, localizada “do litoral do Espírito Santo até entrar nas serras mineiras, entre o vale do rio Doce e o São Mateus”,1 além de outras áreas adjacentes, ouviremos inúmeras histórias de índios, contadas pelos próprios, ou pelos moradores antigos, muitos deles netos, bisnetos ou tataranetos de índios. Os krenaks, descendentes dos botocudos, segundo dados do Instituto Sócio-Ambiental, somavam, em 1997, 150 indivíduos,2 e hoje em dia, segundo Ailton Krenak, são 220 pessoas, morando em Minas Gerais e em São Paulo. Os botocudos — nome genérico dado pelos portugueses a partir dos botoques colocados nos lábios e nas orelhas — foram estimados em 20 mil por Guido Marlière, em 1828, nos territórios de Minas Gerais e Espírito Santo.3 A região do rio Doce era famosa durante todo o século XIX por seus “indômitos botocudos”, antropófagos e incivilizáveis. Em 1808, uma carta régia instituiu guerra justa contra esses índios, concomitantemente ao início de uma colonização sistematizada na região. Colonizar a área significava achar minérios, promover a agricultura e tornar o rio Doce navegável do litoral do Espírito Santo ao interior de Minas Gerais. Como tantas vezes, os índios eram um obstáculo a ser transposto. A memória da década de 1820 da colonização e das relações luso-ameríndias no rio Doce será tratada, principalmente, do ponto de vista de um único e privilegiado narrador: o militar Guido Thomaz Marlière. Ele chegou ao leste mineiro em 1813, tornando-se diretor dos índios da região do rio Pomba. A partir de 1820 até 1829, foi responsável tanto pela civilização dos índios de todo o leste mineiro como pela inspeção, e depois pelo comando, das sete divisões militares do rio Doce. Os índios sob sua administração foram primeiramente os coropós, os coroados e os puris, e depois os botocudos, os maxacalis e os malalis, segundo as denominações da época.

Ailton Krenak. “O eterno retorno do encontro”. In: Adauto Novaes (org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 2 Verbete “krenak”. In: Enciclopéia dos povos indígenas. Disponível em: . Acesso em: jan. 2005. 3 Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, 28/3/1828. Revista do Arquivo Público Mineiro (doravante, RAPM), ano 12, 1907, p. 530. 1

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Neste texto, serão prestigiados os escritos de Marlière sobre os botocudos,4 procurando entender por que ele se autodenominou o civilizador desses índios, título de muito prestígio na época. Eles eram o paradigma do selvagem incivilizável, e despertavam grande interesse nos naturalistas e nos debates políticos da Corte.

Guido Thomaz Marlière: “quarenta anos de viagem da Europa até vir parar no meio dos botocudos”5 Guido Thomaz Marlière nasceu em 3 de dezembro de 1767 na vila de Jarnage, antiga província de Marche, na França. Entrou para o Exército francês aos dezoito anos. Numa de suas crônicas publicadas no jornal mineiro Abelha do Itaculumy,6 ele mencionou brevemente sua formação: “Minha mocidade tormentosa, principiada no tumulto dos combates e das revoluções, não me deu tempo a freqüentar os liceus. A vontade de saber, que sempre tive, me sirva de desculpa para quem me ler”.7 Em 1791, emigrou para um acampamento na Bélgica, onde foi incorporado à legião de Mirabeau como sargento-mor dos voluntários. Alguns anos depois, transferiuse para um regimento sustentado pela Inglaterra, formado pelo duque de Montmart. Como oficial desse regimento, depois de passar pela Holanda e pela Inglaterra, estabeleceu-se em Portugal, onde recebeu, em 1800, a missão de auxiliar em combates contra a Espanha. Em 1802, incorporou-se como porta-estandarte à recém-criada Guarda Real portuguesa.8 Casou-se com Maria Vitória Conceição Rosier, filha de uma família de origem franco-portuguesa com tradição militar. Segundo José Otávio Aguiar, Maria Vitória “tinha acesso à Corte e, através dela, Marlière ganhou a amizade do príncipe regente, d. João”.9

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Nos escritos de Marlière, as informações sobre os botocudos são incomparavelmente maiores que as sobre os demais índios. 5 Guido T. Marlière. “Memória”, dirigida ao presidente e Conselho de Minas Gerais. Quartel central do Retiro, 25/7/1825. In: Leda Maria Cardoso Naud (org.). “Documentos sobre o índio brasileiro (2.a parte)”. Revista de Informação Legislativa, jan.-mar. 1971, p. 316. 6 O Abelha do Itaculumy foi o segundo jornal da história de Minas Gerais, tendo sido publicado de janeiro de 1824 a julho de 1825. Helio Vianna. Contribuição à história da imprensa brasileira (1812-1869). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, p. 33. 7 Guido T. Marlière. “Notícias dos botecudos continuadas de n. 8. Sobre os mesmos, educação religiosa, civil e militar dos índios”. Abelha do Itaculumy, 24/1/1825. 8 As informações sobre sua vida e carreira militar na Europa foram extraídas de José Otávio Aguiar. Olhares estrangeiros: a trajetória de vida de Guido Thomaz Marlière no Brasil (18081836). Tese de doutoramento. Belo Horizonte: FFCH, UFMG, 2003. O autor consultou uma memória no Arquivo do Exército Francês relativa à trajetória militar do francês. 9 José Otávio Aguiar, op. cit., p. 72. 70

Em 1808, o alferes Guido T. Marlière e sua esposa foram dois dos 15 mil componentes do séqüito que acompanhou d. João VI na transferência da Corte para o Rio de Janeiro. Três anos depois, mudou-se para Vila Rica, nomeado tenente agregado ao regimento de cavalaria de linha de Minas Gerais, com a graduação de capitão. Passados alguns meses, recaiu sobre ele a suspeita de ser “emissário de Bonaparte e ligado com ele para subverter estes estados”.10 Em poucos dias, o ministro conde de Linhares determinou ao governador de Minas, conde de Palma, a prisão imediata de Marlière e a apreensão de seus papéis e cartas, além de exigir informações sobre as pessoas com quem convivia.11 No momento em que foi preso, Marlière alegou inocência. O ouvidor que cumpriu a ordem de prisão, descreveu Maria Vitória como “sua miserável mulher entretida nos ofícios domésticos mais humildes e penosos pela sua extrema pobreza”. 12 Ao saber da notícia da prisão do marido, ela se desesperou, conjurando “os infames delatores, e que já não era a primeira vez, que na Corte haviam atraiçoado a reputação de seu marido”. Acrescentou ainda que “correria aos pés do trono a implorar o real socorro”. 13 Na humilde moradia do casal, o desembargador ouvidor encontrou, além de duas pequenas caixas com poucas roupas, “nada de livros”, e “uma gaveta de uma só mesa” com sua correspondência apreendida. O desembargador ainda informou ao governador que o francês possuía conhecimento de várias línguas, embora sua formação fosse “medíocre” e “de orelha”. De fato, além do português e do francês, Marlière dominava o inglês, o alemão, e mais tarde conheceria algumas línguas indígenas. É verdade que sua formação intelectual fora em grande parte de “orelha”, ou seja, ele foi um autodidata, como ele próprio atestou. Mas tal formação não era nem um pouco medíocre, como veremos ao longo deste trabalho. Baseado no ofício do ouvidor sobre a prisão do francês, o governador de Minas informou ao ministro conde de Linhares que papéis nas línguas francesa e portuguesa

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Ministro conde de Linhares. Aviso para o conde de Palma, governador de Minas Gerais. Rio de Janeiro, 4/7/1811. RAPM, ano 11, 1906, p. 13-4. 11 Ministro conde de Linhares. 2.o aviso para conde de Palma. Rio de Janeiro, 9/11/1811. RAPM, ano 11, 1906, p. 14. 12 Desembargador ouvidor Lucas A. M. de Barros. Ofício ao governador de Minas Gerais. RAPM, ano 11, 1906, p. 18-20. 13 Ibidem. 71

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nada provavam contra ele. Afirmou ainda que era “muito livre em matérias de religião e os seus repetidos e insensatos discursos neste objeto tinham indisposto a maior parte das gentes contra si”.14 A população de Vila Rica não o via com bons olhos, “tal é o ódio que se tem aqui ao nome francês e aqueles que faltam ao respeito às coisas santas”.15 Segundo a devassa feita em sua vida, seus amigos se resumiam a um espanhol que viera de Portugal com a Corte e um cabo de esquadra alemão, ambos de conduta ilibada.16 Um dia depois de preso, Marlière escreveu uma carta ao governador, que, por sua vez, a remeteu ao ministro. Nela, discorria dramaticamente sobre “o fatalismo que desde o meu nascimento constante me persegue”; reclamava que “pessoas nobres” queriam torná-lo criminoso e que ele há “vinte e tantos anos anda boiando no mar dos infortúnios”. Enumerou ainda suas qualidades: “estudos aplicados, coragem nos perigos, constância nos meus trabalhos, conduta política”. Pediu proteção à sua mulher, frisando que não era francesa, e sim portuguesa. O desfecho desse drama foi um pedido no post-scriptum, de fato atendido algum tempo depois: mande-me [...] para um deserto da capitania que S. A. R. me deixe por esmola o meu pequeno soldo, a fim de que eu possa com as minhas mãos cultivar a terra e sustentar a minha deplorável mulher e família; acabar-se-ão as suspeitas, e eu gostoso me afastarei da sociedade, que sempre olha para mim com dois exércitos nas algibeiras, que nem dois vinténs, às vezes, tem.17

Marlière foi escoltado para a Corte e entregue a Paulo Fernandes Vianna, o famigerado Vidigal, intendente-geral da polícia da Corte. O Governo foi benevolente com sua esposa, que passou a receber uma pensão de 10$000. Em 1813, o francês, de volta a Minas, teve seu cargo restituído e foi promovido a capitão. Antes da nomeação, porém, o então ministro da Guerra, conde de Galveas, preocupado com os eventos ocorridos anos antes, inquiriu o governador de Minas sobre a conduta do francês. O conde de Palma, simpatizante de Marlière, respondeu tranqüilizando o ministro: [...] tendo sido este oficial algum tanto livre em suas palavras avançando proposições aéreas, talvez filhas de falta de educação sobre objetos de religião, depois que voltou dessa Corte, e foi restituído ao exercício de seu posto não me consta que continuasse tais

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Conde de Palma, governador de Minas Gerais. Ofício para o ministro conde de Linhares. Vila Rica, 20/7/1811. RAPM, ano 11, 1906, p. 15-6. 15 Ibidem. 16 Ibidem. 17 Guido T. Marlière. Carta para o conde de Palma, governador de Minas Gerais, 20/7/1811. Anexa ao ofício enviado pelo governador para o ministro conde de Linhares. RAPM, ano 11, 1906, p. 17-8. 73

proposições, antes sim, que comedindo-se, e procurando ser exato no desempenho de suas obrigações se circunscreve ordinariamente ao centro de sua família.18

Nesse mesmo ano, Marlière recebeu a missão de apaziguar conflitos de terras entre portugueses, coropós e coroados, estes últimos aldeados desde 1767 na região do rio Pomba, na zona da mata mineira, onde estava situado o Presídio de São João Batista. Após enviar uma memória bastante detalhada da situação dos índios na região, Marlière foi nomeado diretor-geral dos índios das freguesias de S. Manoel da Pomba, S. João Batista e aldeias anexas. Na região, ganhou uma sesmaria. Pediu três meses de licença, concedidos pelo conde de Palma, devido a sua “nímia pobreza”, e instalou-se definitivamente com a família na fazenda que intitularia Guidowald, “terra de Guido”, em alemão. A partir de 1814, além de administrar coropós e coroados já aldeados, ocupou-se da civilização dos puris, fundando diversos aldeamentos. O Governo aos poucos lhe delegaria a inspeção de algumas divisões do rio Doce, até que em 1820 ele foi nomeado, pela Junta Militar da Conquista e Civilização dos Índios da Corte, inspetor-geral de todas as divisões militares do rio Doce. Nesse ano, o governador de Minas, d. Manoel de Portugal e Castro, lhe atribuía “a obrigação simultânea de dirigir as operações militares e a civilização dos índios, para que se tem manifestado muito apto, evitando as freqüentes dissensões que ocorriam entre as mesmas e os portugueses estabelecidos nas diferentes aldeias”.19 Em 1824, tornou-se diretor-geral dos índios de Minas Gerais e comandante de todas as divisões.20 Militar enérgico com seus subordinados, era bastante tolerante com os índios e antiescravagista, ainda que em algumas passagens tenha demonstrado certo desprezo pelos negros. Recebeu os hábitos das ordens de São Luiz e de Cristo e chegou a pedir um título de barão, mas não obteve resposta positiva. Foi reformado, como coronel, em 1829, aos 62 anos, envelhecido e doente, depois de mais de quarenta anos de serviço militar, 32 no Exército português e doze em exércitos europeus. Em 1826, numa memória sobre a civilização de índios, dirigida ao presidente de Minas Gerais, com palavras modestas oferecia “algumas reflexões [...] não para instruir, sim para lembrar algumas cousas que aprendeu em quarenta anos de viagens na Europa,

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Conde de Palma. Ofício para o conde de Galveas. Vila Rica, 18/2/1813. RAPM, ano 10, 1905, p. 390-1. 19 D. Manoel de Portugal. Ofício para o ministro Thomaz Antônio de Villa Nova Portugal. Vila Rica, 15/4/1820. RAPM, ano 10, 1905, p. 421. 20 José Otávio Aguiar, op. cit., p. 32. 74

até vir parar no meio dos botocudos”.21 Marlière começara sua vida profissional no furacão da Revolução Francesa e a terminou no sertão de uma colônia portuguesa. Estava em sintonia com as duas pontas do mundo, vivendo intensamente as contradições do Iluminismo diante do colonialismo. Portava idéias iluministas no sertão mais remoto, numa frente de expansão, onde a lei do “olho por olho, dente por dente” convivia com um Estado imperial que desejava se impor militarmente, colonizando terras e almas — diga-se de passagem, com algum sucesso. Dois meses antes de ser reformado, numa carta para o presidente da província, Marlière assumia o cansaço: Os anos, as fadigas, e a debilidade permanente em que me acho, resultado necessário delas, não me permitindo sem auxilio sobrenatural, sem oficiais subalternos e de confiança nos lugares, executar tanto serviço em desertos tão pestiferados e por esta causa incultos, qual aqueles.22

Guido Marlière teve dois filhos naturais, criados por sua esposa, os quais foram transformados em legítimos pelo imperador, segundo seu pedido. Um deles, Leopoldo, fruto do relacionamento de Marlière com uma moça que conhecera no Presídio de São Batista,23 tornou-se cadete aos nove anos. Morreu — ou melhor, seguindo o estilo literário de Marlière, despediu-se — em 1836, “deste grande teatro chamado mundo que tranqüilo espero como Voltaire; sem desejo sem remorso e sem susto”,24 e foi enterrado, na serra da Onça, num cemitério indígena. Conviveu e manteve correspondência com naturalistas que freqüentaram o Brasil no início do século XIX, como Eschewege, Freyreiss e Saint-Hilaire, entre outros. Com o primeiro, também funcionário do Estado português, manteve relações desde pelo menos 1811. Nos seus relatos sobre o Brasil, os estrangeiros sublinhavam as qualidades e particularidades de Marlière, as quais não encontrariam eco na sociedade oitocentista mineira. Para Eschewege, “é certo que muito contribuiu não só para restaurar a paz entre eles [índios], mas também para que diminuísse a opressão a eles feita pelos portugueses”.25 Segundo Saint-Hilaire, “Marlière deu aos luso-brasileiros a posse de Guido T. Marlière. “Memória”, dirigida ao presidente e Conselho de Minas Gerais. Quartel central do Retiro, 25/7/1825. In: Leda Maria Cardoso Naud, op. cit., p. 316. 22 Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais. Quartel-general de Guidowald, 2/4/1829. RAPM, ano 11, p. 575. 23 José Otávio Aguiar, op. cit. , p. 157. 24 Guido T. Marlière. “Noticias dos botecudos continuadas de n. 8. Sobre os mesmos, educação religiosa, civil e militar dos índios”. Abelha do Itaculumy, 24/1/1825. 25 Wilhelm Ludwig Von Eschewege. Jornal do Brasil 1811-1817 ou Relatos diversos do Brasil, coletados durante expedições cientificas. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2002, p. 98. 21

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uma extensão imensa de florestas e fez aos índios todo o bem que lhes podia fazer”.26 E, finalmente, Georg Freyreiss declarou: “A intenção de Marlière é a melhor do mundo e ele faz tudo para que os coroados olvidem as ofensas recebidas e para evitar novas”.27 Por outro lado, esses estrangeiros não eram muito otimistas quanto ao futuro dos indígenas da região. Saint-Hilaire referiu-se a sua “ingenuidade cavalheiresca que não pertence mais a nossa época”, para afirmar logo em seguida: “O vestígio de seus nobres benefícios se apagará dentro em breve; e não terão conseguido, realmente, senão o resultado de acelerar a destruição daqueles de quem ele queria fazer a felicidade”. 28 Esta também era a opinião de Freyreiss: “Acontecerá talvez que depois dele virá outro que num momento destruirá tudo isso que ele edificou com tanto trabalho e tanto amor”.29 Saint-Hilaire confirmava sua previsão citando uma carta, na qual o próprio Marlière se descrevia como mártir e insubstituível: Cinqüenta e oito anos batem a minha porta — escrevia-me ele — tenho dois ferimentos: tenho quarenta anos de lutas; viajei inúmeras vezes e quase sempre tinha de me contentar com má alimentação. Teria necessidade de algum repouso, mas procuro em vão um sucessor; ser-me-á necessário morrer por esta pobre gente e entre eles.30

Na primeira metade século XX, a memória de Guido Marlière foi intensamente reavivada em Minas. A partir de 1905, toda a sua correspondência, na maior parte ativa, foi publicada nas quase oitocentas páginas de três volumes da Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM). Todos os trabalhos sobre Marlière31 foram baseados nos documentos publicados nessa revista, inclusive este. Em 1920,32 o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) inaugurou um posto indígena na região do rio Doce com o nome de Marlière. Em 1928, numa homenagem promovida pelos municípios de Ubá, Rio Branco, Cataguases e Rio Pomba, seus restos mortais foram transferidos do antigo cemitério indígena na serra da Onça para o território onde havia sido sua fazenda Guido-wald. Ali foi construído um obelisco onde se lê, nas 26

Auguste de Saint-Hilaire. Viagem ao Espírito Santo e rio Doce. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 95-6. 27 Georg W. Freyreiss. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, p. 106. 28 Auguste de Saint-Hilaire, op. cit., p. 95-6. 29 Georg W. Freyreiss, op. cit., p. 106. 30 Guido T. Marlière. Carta para Auguste de Saint-Hilaire. Citado em: Saint-Hilaire, op. cit., p. 95-6. 31 As primeiras biografias publicadas sobre Marlière tiveram um enfoque mais factual e exaltador: Afrânio de Mello Franco. Guido Thomaz Marlière: o apóstolo das selvas mineiras. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1914; e Oiliam José. Marlière, o civilizador. Belo Horizonte: Itatiaia, 1958. Sua biografia mais completa e recente é a tese já citada de José Otavio Aguiar. 32 A partir daqui todas as informações foram baseadas em José Otávio Aguiar, op. cit., p. 16-20. Para uma visão crítica de biografias produzidas de Marlière, ver o mesmo trabalho, principalmente a introdução. 76

lápides: “Desbravador das selvas e civilizador dos índios, abrindo estradas e semeando núcleos de população”. Em 1948 e 1953, respectivamente, dois municípios foram criados em sua homenagem: Guidoval, antigo povoado de Sapé, município de Ubá; e Marliéria, antigo povoado de Babilônia, município de São Domingos do Prata, próximo ao rio Doce. Diversas praças dos municípios da região de Ubá também receberam seu nome, sendo que em Cataguases existe uma estátua de bronze feita em sua homenagem . Até hoje, em Guidoval, há uma grande festa para comemorar o dia 5 de junho, data de sua morte. Segundo Octávio Aguiar, há recitais de poesias, e entoa-se o hino da cidade: “O nome que a história há de guardar, Marlière, Marlière, Guidoval é o teu altar”.33

Botocudos: etnonímia e breve história do contato De acordo com John Manuel Monteiro, “o primeiro encontro entre sertanistas e índios evidentemente botocudos”34 foi narrado no Códice Matoso, compilação de histórias orais do sertanismo paulista do século XVII, organizada pelo ouvidor de Ouro Preto Caetano da Costa Matoso, em 1752. O narrador anônimo de “Notícias do que ouvi” menciona uma aldeia no rio das Mortes, chamada Cataguases, onde havia “muito gentio do beiço e orelhas furadas”.35

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José Otávio Aguiar, op. cit., p. 19. John Manuel Monteiro. Tupis, tapuias e historiadores..., op. cit., p. 104. 35 Código Matoso, citado em John Manuel Monteiro, op. cit., p. 103. 34

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MAPA ETNO-HISTÓRICO: AIMORÉS, GRENS, BOTOCUDOS36

Copiado de Charlotte Emmerich e Ruth Montserrat. “Sobre Aimorés, Krens e Botocudos: notas lingüísticas”. Boletim do Museu do Índio, 3, out. 1975, p. 9. 36

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Para a maioria dos autores, do século XIX aos contemporâneos, os botocudos são os descendentes dos chamados aimorés, ou grens, contatados e aldeados nos dois primeiros séculos da colonização, nas capitanias da Bahia e de Ilhéus. Maria Hilda B. Paraíso inicia seu texto “Os botocudos e sua trajetória histórica” da seguinte maneira: “As primeiras notícias sobre os botocudos, ainda chamados de aimoré ou tapuia, datam dos primeiros anos da colonização do país”.37 As lingüistas Charlotte Emmerich e Ruth Monserrat chegaram à conclusão, partindo de alguns vocábulos, de que de fato teria existido “um vínculo genético [...] entre a língua dos antigos aimorés e grens e a dos botocudos”.38 Soma-se a esse fato, na documentação, que a menção aos aimorés/grens teria começado a desaparecer concomitantemente à aparição do termo botocudos. Segundo as autoras, a primeira referência à palavra botocudo data da década de 1760, por ocasião da fundação da povoação de Pessanha, às margens do rio Suassuí, em Minas Gerais.39 Teófilo Otoni foi talvez o primeiro autor a questionar essa descendência, já em 1858, quando escreveu sua “Notícia sobre os selvagens do Mucuri”, para a Revista do IHGB. Otoni propôs a tese de que os botocudos seriam descendentes dos tupis e não dos aimorés, tapuias por excelência.40 Por sua vez, Bert Barickman questionou a descendência aimoré, primeiro, pelos fracos indícios lingüísticos demonstrados por Emmerich e Monserrat; segundo, porque na descrição dos aimorés de Gabriel Soares de Souza não há referências aos botoques usados nas orelhas e na boca, tão característicos dos botocudos, a ponto de nomeá-los.41 Os termos aimoré e botocudo foram largamente usados para denominar índios hostis da região que se estendia dos litorais e sertões das capitanias de Espírito Santo, Ilhéus e Bahia ao sertão de Minas Gerais. Aimoré em tupi significa “pessoa má” ou “assassino”.42 Os aimorés eram os índios inimigos; portanto, eram tapuias na dicotomia tupi/tapuia, na qual tupi se localizava em geral no litoral e tapuia era o nome genérico para os índios do sertão, inimigos dos tupis e dos portugueses. Tapuia, segundo o jesuíta Maria Hilda B. Paraíso. “Os botocudos e sua trajetória histórica”. In: Manuela Carneiro da Cunha (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 413. 38 Charlotte Emmerich; Ruth Montserrat. “Sobre Aimorés, Krens e Botocudos: notas lingüísticas”. Boletim do Museu do Índio, 3, out. 1975, p. 10. As autoras realizaram um minuncioso levantamento de fontes históricas sobre a língua botocuda. 39 Ibidem. 40 Teófilo Otoni. Notícias sobre os selvagens do Mucuri. Regina H. Duarte (org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 40-1. 41 Bert Barickman. “Tame indians, ‘wild heathens,’ and settlers in southern Bahia in the late eighteenth and early nineteenth centuries”. Ethnos: Revista Vrasileira de Etno-história, n.o 3, jul.-dez. 1998 (versão para Internet), nota 29. 42 Ibidem, p. 2. 37

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Simão de Vasconcelos, significava, na língua tupi, “contrários” ou “inimigos”. Sendo ou não descendentes dos aimorés, os botocudos herdaram destes a imagem de índios hostis, bárbaros, inimigos por natureza — portanto, passíveis de guerra justa, ou destruição. O denominador comum entre os dois grupos seria a identificação de ambos como índios inimigos, ou gentio bravo de uma área determinada, sendo que tais nomes encobririam diversos grupos diferentes. No seu vocabulário botocudo,43 escrito em 1833, Marlière dividiu os botocudos em três subgrupos: “botocudo: Pejaurum”; “botocudo do norte: Naknenuk”; “botocudo do sul: Grakmum”. Em sua correspondência da década de 1820, já usava essa distinção, mas mesmo assim, na maior parte das vezes, empregava apenas o termo botocudo. Segundo Wied-Neuwied, os botocudos do sul da Bahia, na década de 1810, tinham “grande aversão” a serem chamados como tal e se autodenominavam engereckmung.44 Um informante krenak da antropóloga Izabel Missagia de Mattos, na década de 1990, explicou que krekmum significava o que vai e volta, e engrekmun, andarilho.45 O líder Ailton Krenak, falante de borum, língua descendente da língua botocuda, me explicou que Naknenuk significa: “nak = terra, nuk = negação, gente não da terra, nômades, andarilhos, fugitivos”.46 Teófilo Otoni, em 1858, classificou os botocudos da seguinte maneira: tribos confederadas dos naknenuks, bakuês; tribo do capitão Casimiro; tribo de João Imã; “domínios do enérgico e inteligente Pojichá”, jiporoks, tribos de batata e pohorum.47 Foi, talvez, a partir de Otoni que se começaram a identificar os subgrupos botocudos pelos nomes de seus líderes. No começo do século XX, Krenak — nome de um chefe de um ajuntamento de sobreviventes de vários clãs, responsável pela comunicação com as autoridades do Estado — acabou nomeando todos os sobreviventes do contato,48 que passaram a ser conhecidos como os krenaks até os dias de hoje. Os krenaks também são chamados de buruns. Burum é o nome da língua que eles falam.

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Vocabulário português-botocudo por Guido Thomaz Marlière, cavalheiro das ordens de São Luiz e de Cristo, coronel de cavalaria do Estado Maior do Exército e ex-diretor geral dos índios da província de Minas Gerais. Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, 1, 1, 3. 44 Maximiliano de Wied-Neuwied. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989, p. 284. 45 Izabel Missagia de Mattos. Borum, bugre, krai: constitução social da identidade e memória étnica krenak. Tese de mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 58-9. 46 Ailton Krenak. E-mail enviado em 3/2/2005. Arquivo da autora. 47 Teófilo Otoni. Notícias sobre os selvagens do Mucuri. Regina H. Duarte (org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 86-7. 48 Ailton Krenak. E-mail enviado em 3/2/2005. Arquivo da autora. 80

Colonização e divisões militares no rio Doce Antes de 1808 Hal Langfur investigou os anos que antecedem a declaração de guerra justa contra os botocudos, em 1808, e chegou à conclusão de que a militarização deste conflito [entre índios e colonos] começou cinqüenta anos antes: apesar das proibições reais, virtualmente todo governador de Minas Gerais, dos anos de 1760 em diante, praticou uma política de conquista indígena violenta, ainda que nenhum tenha comandado recursos militares [...].49

Hal Langfur. “Uncertain refuge: frontier formation and the origins of the Botocudo war in late colonial Brazil”. Hispanic American Historical Review, 82, n.o 2, 2002, p. 217. Tradução minha. 49

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MAPA DO LESTE MINEIRO, CIRCA 180050

Copiado de Hal Langfur. “Uncertain refuge: frontier formation and the origins of the Botocudo war in late colonial Brazil”. Hispanic American Historical Review, 82, n. 2, 2002, p. 217. 50

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Segundo Langfur, foram enviadas cerca de 64 expedições, oficiais ou não, para os sertões do leste, entre 1765 e 1804. As motivações eram a busca de novos recursos, o combate aos índios, a procura de contrabandistas e escravos, a limpeza de trilhas legais, ou uma combinação desses fatores.51 José Eloi Ottoni, por exemplo, em 1798, conclamava a Coroa a enviar bandeiras em busca de metais preciosos nas florestas do leste de Minas e a estimular a permanência dos colonos em troca de privilégios e prêmios.52 Langfur questiona uma longa historiografia sobre o leste mineiro, baseada na repetida citação da frase de Luís Cunha de Meneses, governador de Minas Gerais (1783-8): “Sertão para a parte leste, denominado áreas proibidas, na hipótese de servirem os ditos sertões de uma barreira natural a esta capitania para segurança de sua fraude”.53 Essa descrição teria sido interpretada acriticamente, como se essa parte do território fosse um vazio demográfico, como se não tivesse relação nenhuma com a colonização no século XVIII. Retomando a categorização de José de Souza Martins observada na introdução deste trabalho, deve-se considerar a distinção entre dois tipos de fronteira: a econômica (frente pioneira) e a demográfica (frente de expansão): “[...] a fronteira econômica não coincide, necessariamente com a fronteira demográfica (via de regra aquela está aquém desta)”.54 Em 1746, foi fundado o Presídio de Cuieté, destino de criminosos degredados. Acreditava-se que os índios representariam uma barreira para os possíveis fugitivos. No ano de 1769, chegou à região do presídio o vigário Nunes, o primeiro padre que iria catequizar os índios da região. O segundo, irmão de Tiradentes, chegou em 1770. Conflitos entre portugueses e índios eram comuns. O vigário Nunes chamou os índios da região de bandidos, inimigos, malfeitores, que “escandalosamente persistem em ser nossos algozes e inimigos capitais do contrato civil e humano”.55 A detração dos índios da região, principalmente botocudos, continuaria nas décadas seguintes, criando a base do discurso da carta régia de 1808.

51

Ibidem, p. 243-4. Ibidem p. 241. 53 Citado em: Caio Prado Jr. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1996 [1942], p. 76-7. No início do século XIX, Diogo de Vasconcelos já havia citado essa frase em seu História média de Minas Gerais. 54 José de Souza Martins. Capitalismo e tradicionalismo: estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1975, p. 45. 55 Citado em Hal Langfur, op. cit., p. 239. 52

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Nos mapas elaborados em 1780 pelo cartógrafo José Joaquim da Rocha, os botocudos estavam localizados na fronteira de Minas com o Espírito Santo, e eram descritos como “devorador de carne humana” e, por existirem em grande quantidade, “só com excessivo trabalho se poderá extinguir e não domar”.56 Em 1801, J. Vieira Couto, ao exaltar as riquezas dos vales dos rios Doce e Jequitinhonha, afirmava que aqueles rios “só servem como bebedouros para os monstros feios e pessoas bárbaras”.57 Anos mais tarde, em sua Breve descrição geográfica, política de Minas Gerais, escrita em 1806, Diogo de Vasconcelos declarava guerra aos índios: “O botocudo, devorador dos animais da mesma espécie, insensível às vozes da razão e humanidade [...], deve ser ofensivamente perseguido e apunhalado [...]”.58 Em abril de 1808, Luís T. N. de Campos, emissário do rei, apresentou um relatório sobre a viagem que havia feito da Bahia ao Rio de Janeiro. Baseado na opinião do comandante de milícia Francisco Alves Tourinho, que vivera 22 anos entre os botocudos e outros grupos no sul da Bahia, concluiu que a violência era o meio mais apropriado de transformar essas terras tranqüilas para a colonização.59 Um mês depois, a guerra justa contra os botocudos estava declarada oficialmente.

As cartas régias de 1808: guerra justa e trabalho compulsório no rio Doce A carta régia de 5 de maio de 1808 declarava guerra justa aos botocudos. Justificava-se que os “meios humanos” de tentar civilizar e aldear, para que gozassem dos “bens permanentes de uma sociedade pacífica e doce debaixo das justas e humanas leis”, não foram correspondidos pelos botocudos, o que dava “justos motivos” para suspender os “efeitos de humanidade que com eles tinha mandado praticar”. Declaravase guerra justa contra esses “índios antropófagos” que assassinavam os portugueses e os

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José Joaquim da Rocha. Geografia histórica da capitania de Minas Gerais: descrição geográfica, topográfica, histórica e política da capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995 [1780], p. 192. 57 J. Vieira Couto. Memória sobre as minas da capitania de Minas Gerais. Citado em: Maria Leônia Chaves de Resende. Gentios brasílicos: índios coloniais em Minas Gerais setecentista. Tese de doutoramento. Campinas: Departamento de Antropologia, IFCH, UNICAMP, 2003. 58 Diogo de Vasconcelos. Breve descrição geográfica física e política da capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994, p. 155-7. 59 Citado em: John Hemming. Amazon frontier: the defeat of the Brazilian indians. Cambridge: Harvard University Press, 1987, p. 91-2. O Relatório da viagem por terra da Bahia athé Rio de Janeiro, de Luiz T. N. Campos, encontra-se, segundo Hemming, na Royal Geographical Society, em Londres. 84

índios mansos “por meios de feridas, de que sorvem depois o sangue , ora dilacerando os corpos, e comendo os seus tristes restos”.60 As principais orientações da “Conquista e civilização dos índios bárbaros e da navegação do rio Doce”, expostas na carta régia, foram as seguintes: 1. começar a guerra justa até que os botocudos peçam a paz e se tornem “vassalos úteis”; 2. instalar seis divisões em pontos estratégicos ao longo do rio Doce. 3. os índios, prisioneiros de guerra, seriam obrigados a prestar serviço ao comandante por dez anos, ou enquanto não desistissem da antropofagia; e 4. foi criada a Junta da Conquista e Civilização dos Índios Bárbaros e da Navegação do Rio Doce, presidida pelo governador de Minas, Pedro Maria Xavier de Ataíde e Mello, composta de altas autoridades da capitania e subordinada ao Ministério da Guerra. O príncipe termina a carta observando que essas “saudáveis providências contra os índios botocudos” possibilitariam o preparo dos “meios convenientes para se estabelecer para o futuro, a navegação do rio Doce, favorecer aqueles que quiserem ir povoar aqueles preciosos terrenos auríferos abandonados hoje pelo susto, que causam os índios botocudos”.61 Concedia, ainda, incentivos fiscais àqueles que se estabelecessem na região — o não-pagamento de dízimo e a livre importação e exportação de gêneros de comércio transportados ao longo do rio — e uma moratória de seis anos para os devedores que ali se estabelecessem. Sete meses depois, a carta régia de 2/12/180862 complementava alguns pontos: 1. os territórios conquistados aos índios seriam considerados devolutos. Os comandantes seriam responsáveis pela demarcação das terras dos novos colonos; 2. novas igrejas e pontes seriam construídas, e párocos seriam contratados para catequizar os índios. Esses eclesiásticos receberiam os dízimos das novas culturas feitas pelos índios por doze anos; 3. os índios seriam aldeados apenas quando não pudessem ser distribuídos entre fazendeiros e se apresentassem em grande número. Os pequenos grupos poderiam ser “13/5/1808: Carta régia ao governador e capitão-general da capitania de Minas Gerais sobre a guerra aos índios botecudos”. In: Manuela Carneiro da Cunha (org.). Legislação indigenista no século XIX, op. cit., p. 56-60. 61 Ibidem. 62 “2/12/1808: Carta régia — Sobre a civilisação dos índios, a sua educação religiosa, navegação dos rios e cultura dos terrenos”. In: Manuela Carneiro da Cunha (org.). Legislação indigenista..., op. cit., p. 66-9. 60

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distribuídos pelos fazendeiros e agricultores, sob a condição de que estes últimos os sustentassem, vestissem e instruíssem na religião, em troca de usufruir do seu trabalho por doze anos e, no caso de menores, pelo tempo de vinte anos; e 4. ainda era recomendada a mistura de índios com “famílias industriosas e morigeradas de portugueses”.63

***

Essa longa síntese foi necessária para contextualizar a orientação do contato nos anos anteriores à década de 1820, quando Marlière acumulou os cargos de diretor-geral de índios de Minas Gerais e inspetor de todas as divisões do rio Doce — aumentadas, na época, para o número de sete. A base de seu discurso seria combater o chamado “sistema antigo” das relações luso-ameríndias na região, o qual se valia da autorização para ataques aos índios, mas nem sempre dentro das condições permitidas pelas cartas régias. Outra prática que se instituiu a partir dessas leis foi a do trabalho compulsório por um tempo determinado, “em troca” de sustento, educação e vestimentas, principalmente de crianças. Tal prática controversa oscilou entre o trabalho escravo e o administrado,64 sendo às vezes motivo de denúncia, outras vezes de comemoração por parte de Marlière. O modo de civilizar de Marlière absorveu algumas das orientações das cartas régias e rejeitou outras, como veremos.

A colonização na década de 1820 Na década de 1820, Marlière acumularia dois cargos que lhe dariam plenos poderes em boa parte do leste mineiro. Foi nomeado pelo imperador diretor-geral dos índios de Minas Gerais e tornou-se inspetor em 1820, e depois, em 1824, comandantegeral de todas as divisões militares do rio Doce.

63

Ibidem. A controvérsia de trabalho indígena escravo ou administrado se remete ao uso do trabalho indígena na São Paulo colonial. A esse respeito, ver John Manuel Monteiro: Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 129-53; e Pasquale Petrone. Aldeamentos paulistas. São Paulo: EDUSP, 1995, p. 51-100. Segundo os autores, a carta régia de 19/2/1696 regulamentou o trabalho administrado, o que não impediu os “administradores” de usar os índios, segundo John Manuel Monteiro, “de uma forma muito particular de escravidão”. Os argumentos dos colonos, segundo esse autor, eram que “comida, roupa, atendimento médico e doutrinação espiritual apresentavam-se como compensação justa e suficiente pelo serviço dos índios”. Como vimos, essa moeda de troca seria incorporada nas cartas régias de 1808 às relações de trabalho entre colonos e índios. 64

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No leste mineiro, em relação aos índios e aos militares, era a autoridade máxima. Tal poder acabou incidindo sobre os colonos. A polícia do interior de Minas era responsável pelos delitos e pelas desordens causadas pela população da região. Mas acabava não sendo bem-sucedida, devido à distância da capital, Ouro Preto, e ao fato de não haver cadeias, juizados e outras instituições numa larga região de arraiais, sem vilas, que fazia parte da extensa comarca de Mariana. Na vasta correspondência ativa de Marlière, além de assuntos militares e relativos à civilização de índios, ele tratava de disputas de terras à reescravização de homens forros; de construção de capelas e pontes a assassinatos; de prostitutas com sífilis a suicídio de escravas. Seu quartel central foi inicialmente o Presídio de São João Batista, atual município de Rio Branco, e depois o Quartel da Onça Pequena, na zona da mata mineira, de onde saía com alguma freqüência para inspecionar as diversas partes sob seu comando. Na região do rio Doce, passou diversas temporadas no Quartel do Retiro. Depreendem-se de sua correspondência, em geral, desprezo pelos soldados e colonos, e intolerância para com eles, fato que deve ter gerado inúmeras inimizades. Quanto aos soldados, valeu-se da hierarquia militar e do rigor, aplicando castigos aos desobedientes. Quanto aos colonos, a situação sempre foi tensa, derivada de sua tolerância com os indígenas. É o próprio Marlière quem escreve ao tenente-general da província, constatando a dificuldade de impor seu sistema: Impossível, ex.mo sr., acertar como desejo na civilização, quando os soldados da 3.a [divisão] e os colonos da mesma, criados no oficio de carniceiro dos índios, se deleitam em matar esta interessante porção de vassalos de Sua Majestade em desprezo das minhas ordens tolerantes, que proíbem qualquer agressão.65

Ao longo do tempo, essa tolerância diminuiria seu prestígio junto ao Governo, uma vez que o fim máximo era a colonização, a ocupação do território. Os indígenas deveriam, na prática, ser assimilados a serviços subalternos e, caso resistissem, deveriam ser eliminados como obstáculos à colonização. Em 1825, 143 moradores do distrito de Ponte Nova, onde houvera um ataque de índios à fazenda de Jiquitiboca, subscreveram uma representação contra Marlière, exigindo maior repressão contra os índios. Nas palavras de Marlière, nenhum os assinantes, “que poderão contar entre si 20 pares de sapatos sofreu o menor dano dos índios nem os viu”. O que de fato queriam “é

65

Guido T. Marlière. Ofício para o tenente-general, 12/11/1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 647. 87

que se faça nova guerra aos índios”.66 Marlière reclamou que o dono da fazenda, Antônio Guimarães,67 subscritor da representação e ex-soldado da 3.a divisão, iniciou a guerra contra os índios “com seus coletes68 e bandittis”, pois mandara atirar em botocudos “vestidos e de paz, sem previamente eles haverem feito o menor insulto”. No final propunha como punição que “o mandasse para a 6.a divisão para expiação dos seus crimes”.69 Este era um conflito típico daqueles sertões. Havia mobilidades possíveis naquela sociedade: soldados que se tornavam pequenos proprietários, índios que viravam soldados, soldados que desertavam e se juntavam a índios etc., sempre sob o signo do conflito. Muitos soldados desejavam, e alguns conseguiam, se tornar proprietários, como aconteceu com Antônio Guimarães.

Os soldados e os oficiais Acho-me tão sobrecarregado de semelhantes monstros que metade dos soldados bons se acham ocupados em observar a conduta dos maus.70

Em geral, esta foi a tônica do discurso de Marlière sobre os soldados. Era um militar, digamos, “linha-dura”. Ele se valeu da lei da chibata, diversas vezes, para punir faltas, como a deserção de um soldado que levou sessenta varadas “na forma das últimas imperiais ordens”.71 Também usou esse recurso para reprimir o levante dos soldados do quartel de Petersdorff, que queriam roubar as mulheres dos índios: “Dei remédio a isto, e o remédio se acha no mato: são varas”.72 Marlière comunicou várias 66

Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, 19/11/1825. RAPM, ano 12, 1907, p. 656. 67 “Este Antônio José, oriundo de Portugal, principiou a sua carreira de soldado da 3.a divisão da qual obteve baixa para negociar poalha com os índios puris quando foi aberta a estrada de Minas à cidade da Vitória, em 1818, da qual eu fui inspetor; com a poalha comprou burros e com os burros conduzia os mantimentos para o ten. coronel Ignacio Pereira Duarte Carneiro [...]”. Guido T. Marlière, Quartel central do Retiro, 11/7/1825. RAPM, ano 11, 1906, p. 35. 68 Esses coletes antiflechas eram usados no início da guerra justa pelos soldados das divisões e foram objeto de algumas denúncias de Marlière, pois, para ele, comprovavam a manutenção da guerra contra os índios e, para estes, era um sinal de que a colonização lhes era hostil. 69 Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, 19/11/1825. RAPM, ano 12, 1907, p. 656. 70 Guido T. Marlière. Ofício para o governador das Armas, 18/4/1827. RAPM, ano 11, 1906, p. 243. 71 Guido T. Marlière. Ofício para o comandante da 4.a divisão, capitão Lizardo José da Fonseca, 3/1/1827. RAPM, ano 11, 1906, p. 193. 72 Guido T. Marlière. Carta para o deputado à Assembléia, coronel João J. L. Mendes Ribeiro. Quartel do Retiro, 11/7/1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 613-7. 88

vezes a punição aos soldados e colonos que eram permissivos com as índias. Chegou a justificar os assassinatos de uns soldados do Espírito Santo, no caminho do rio Pardo, cometidos por puris, os quais por muitos anos “tiveram paciência com aqueles perversos, que lhes tiravam as mulheres com ameaças de tiros para abusarem delas e faziam trabalhar aos homens na extração da poalha,73 sem paga e pouco sustento”.74 Ser soldado não era exatamente um bom negócio, normalmente o recrutamento era forçado e poderia ser considerado literalmente uma punição. João J. L. Mendes Ribeiro afirmou, em 1822, que a repugnância que os indivíduos da província têm à praça de soldados [...]; a facilidade de passarem-se de uns a outros distritos e a entranharem-se nas matas e sertões como por vezes tem acontecido, podem malograr, se não houver segredo, muita parte desta diligência.75

O recrutamento era forçado na Colônia, e no Império, de acordo com Fabio Faria Mendes, havia uma enorme hostilidade ao serviço militar, uma “barreira oculta” e de sentimento sinistro, nas palavras do juiz de direito de Minas Novas,76 em 1833. Os oficiais de maior patente não levavam varadas, mas certamente recebiam palavras ásperas, quando cometiam erros. O comandante da 5.a divisão foi advertido após ter castigado o índio intérprete Xaote. Para Marlière, ele puniu um botocudo encarregado de trazer os outros à civilização, algo que ele jamais faria, “por conhecer que não são maduros para isto”. Continuava o ofício mostrando quem dava as ordens, e alertando-o de que o comandante anterior fora assassinado por não ter prendido um colono, autor de quatro tiros num índio: “E vm. espera pelo mesmo se não mudar de vida. Saiba mais que os intérpretes todos são agentes desta direção e não estão debaixo “Apenas um desses remédios da mata atlântica [...] tornou-se artigo importante do comercio exterior. Foi a ipecacuanha ou poaia, cujo rizoma é um emético. Na virada do século XIX, o Rio de Janeiro exportava cerca de quatro toneladas dela por ano. A ipecacuanha é uma planta comum que constituía parte da cobertura de solo da floresta primária.” Waren Dean. A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 146-8. 74 Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, 12/11/1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 647-8. 75 Citado em: Fabio Faria Mendes. “Encargos, privilégios e direitos: o recrutamento militar no Brasil nos séculos XVIII e XIX”. In: Celso Castro; Vitor Izecksohn; Hendrik Kraay (org.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: FGV Editora; Bom Texto, 2004, p. 118. Esse volume, devido a sua inovadora abordagem, é muito útil na compreensão de várias questões militares, pouco esclarecidas na história do Brasil. O artigo de Hendrik Kraay — “O cotidiano dos soldados na guarnição da Bahia (1850-89)” — traz uma análise interessante da condição dos soldados, e de suas opções entre desertar e manter-se no Exército, procurando melhores condições dentro da instituição. 76 Fabio Faria Mendes, op. cit., p. 125. 73

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de seu domínio senão para os dirigir a bem dos índios”.77 Essas ordens de Marlière deviam ser cumpridas, mas por outro lado devem ter corroído aos poucos as relações com seus subordinados, que decerto ficavam desgostosos com as ordens de tolerância, que geravam crises de hegemonia nos quartéis. Deserções eram freqüentes, como as dos mulatos Manoel Francisco e Manoel Dias. Marlière acusava-os de chefiar bandos de índios na serra Negra, em cujos campos faziam correrias e assolavam criações e plantações dos colonos. Ele os chamavam de bandittis, vadios, e afirmava que os índios não se atreveriam a tanto, se não fossem guiados por eles.78 Uma deserção que afetou profundamente Marlière foi a do sargento e intérprete Norberto Rodrigues de Medeiros, anos antes alvo de elogios do diretor-geral. Norberto, quando soldado, juntamente com o famoso capitão botocudo Guido Pokrane,79 promoveu expedições para atrair botocudos. Em outubro de 1824, um ofício de Marlière publicado no Abelha do Itaculumy informava que, mediante a distribuição de brindes, os dois trouxeram 57 índios para o quartel da 6.a divisão.80 Três anos depois, já como sargento intérprete da 5.a divisão, ele foi enviado por Marlière para comandar uma “patrulha de índios mansos” que faria os primeiros contatos com os índios dos sertões de S. Mateus, “pejados de pedras preciosas”. Nas palavras de Marlière, ele [Norberto] que vive há anos naqueles sertões se recusa a qualquer aparelho militar nessa diligência, como nocivo; e protesta como eu que os únicos meios capazes de reduzir aqueles gentios são a comunicação da palavra, a beneficência e oferecer-lhes o cachimbo da paz (le calumet de la paix). Expeço portanto pelas canoas da 5.a [divisão] ao alferes comandante sessenta machados, sessenta facões e o resto de roupa que tinha em armazém.81

Pouco tempo depois, sua opinião sobre Norberto havia mudado radicalmente. Provavelmente foi nessa diligência que o sargento desertou e, juntamente com um grupo 77

Guido T. Marlière. Ofício para o comandante da 5.a divisão, 11/12/1827. RAPM, ano 11, 1906, p. 186-7. 78 Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, 26/3/1828. RAPM, ano 12, 1907, p. 523. 79 Guido Pokrane foi um líder botocudo que auxiliou Marlière desde o início da atuação deste no rio Doce Seu nome cristão foi uma homenagem ao francês. Em 1855, foram publicados os Apontamentos sobre a vida do índio Guido Pokrane e sobre o francez Guido Marlière, escritos por José Feliciano França e oferecido ao Instituto pelo cons. Luiz P. do Couto Ferraz. Revista do IHGB, t. 18, 1855, p. 426-34. Sobre Pokrane, ver artigo de Maria Hilda Paraíso, Guido Pokrane: o imperador do rio Doce. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/ihb/Textos/MHParaiso.pdf. 80 Guido T. Marlière. Abelha do Itaculumy, 17/11/1824. 81 Guido T. Marlière. Ofício para o vice-presidente de Minas Gerais, 22/9/1827. RAPM, ano 12, 1907, p. 472-3. 90

de indígenas, invadiu catorze ou quinze fazendas no distrito de Pessanha, degolando o gado. Marlière, atônito, escreveu ao governador das Armas: “Coisa estranha esta, que um homem branco, e civilizado depois de haver feito muitos serviços, e haver sido remunerado por eles por S. M. o imperador com o posto que tem, de soldado que era, tenha tomado partido contra os civilizados a favor dos botocudos!”.82 Um ano depois, o sargento Norberto dava continuidade à sua rebeldia. Em janeiro de 1829, Marlière pediu a transferência de Norberto para o Quartel do Retiro, “embaixo de prisão para ser trazido perante um conselho de guerra”. Norberto estava sendo seguido por um grupo de índios, chefiados pelo capitão Quitinhak. Marlière havia dado ordem a todas as divisões para captura do réu, pois ele se tem literalmente homogeneizado com os índios, andando nu, e vivendo com eles, e até adestrou uma mulata do Pessanha com quem casou, a seguir a mesma doutrina. Este homem é um desertor dos civilizados, nos pode fazer muito mal.83

Como observou Ronaldo Vainfas, “quaisquer europeus estavam sujeitos a essa aculturação às avessas, indianizando-se ao invés de impor a sua cultura aos nativos”.84 Maria Leônia C. de Resende narrou alguns episódios de “indianização” nos sertões de Minas no fim do oitocentos, como o dos dez pedestres da companhia dos dragões, amigados com índias e que seguiam os ritos de suas companheiras, vivendo nus.85 Segundo Marlière, Norberto não era mestiço, era branco — mas quem era realmente branco naqueles sertões? No entanto, a mestiçagem cultural não dependia apenas da mistura do sangue. A própria convivência cultural e as diferentes circunstâncias indicariam o caminho mais vantajoso a seguir, entre, por exemplo, ser um soldado e um branco indianizado. Enfim, a colonização, aqui entendida não apenas como o período colonial, mas como processo civilizatório, criou situações diversas de recriação identitária. Assim, não só os índios se ocidentalizavam, mas portugueses e brancos nascidos no Brasil se tornavam um pouco indígenas, um pouco africanos. Era o que

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Guido T. Marlière. Ofício para o governador das Armas de Minas Gerais, 15/1/1828. RAPM, ano 12, 1907, p. 496. 83 Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, 4/1/1829. RAPM, ano 12, 1907, p. 565. 84 Ronaldo Vainfas. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 148. Vainfas notou que essa ambivalência cultural era mais profunda nos mamelucos “ambíguos por origem e vocação. Ora lutavam junto ao índio contra os seus inimigos, ora ajudavam os portugueses em seus resgates e massacres”. 85 Maria Leônia C. de Resende, op. cit., p. 319. 91

Vainfas chamou, referindo-se ao século XVI, de “aculturação errática e multiforme”.86 No tocante à concepção de civilização de Marlière, ficava claro que sua tolerância em relação aos costumes indígenas se restringia aos índios: uma adesão ao modo de vida nativo era inaceitável. Norberto foi preso, mas fugiu novamente no início de 1829, “com seus sequazes”, em direção à Corte, onde pretendia falar com o imperador. Marlière, desesperado, escreveu ao presidente da província e ao governador das Armas, comunicando a empreitada de Norberto, o qual, segundo Marlière supunha, intentava se queixar sobre o comandante da 5.a divisão e sobre ele próprio.87 Índios, soldados e colonos sabiam que o “Gi-Paqueju” (chefe dos chefes) era o imperador e, quando descontentes com o “paqueju” local, era para a Corte que endereçavam suas queixas. Em 1841, quando teve problemas com as autoridades locais, o líder botocudo Guido Pokrane dirigiu-se ao imperador. D. Pedro concedeu-lhe audiência e ofereceu-lhe presentes e proteção.88 Assim também haviam feito os moradores da região em 1827, ao escrever uma carta diretamente ao ministro do Império reclamando de Marlière, como veremos adiante. Além de depreciar soldados e oficiais, Marlière procurava reconhecer quando prestavam bom serviço, escrevendo às autoridades para pedir recompensas e aumentos de patente para os “bons soldados”. Afinal, ele não poderia sobreviver só da antipatia alheia e precisava cultivar parceiros. Em 1827, narrou a história do salvamento de um naufrágio protagonizada por uns “pobres soldados” da guarnição da canoa militar da 6.a divisão. “Orgulhoso de comandar a tais homens”, pedia uma gratificação pecuniar de 50$ réis como “prova de que tais ações ficam na imperial lembrança e animar a continuação destas virtudes filantrópicas entre os soldados divisionários que navegam o rio Doce”.89

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Ibidem, p. 150. Guido T. Marlière. Ofício para o presidente e para o governador das Armas de Minas Gerais, 2/3/1828. RAPM, ano 12, 1907, p. 518-9. 88 Maria Hilda B. Paraíso, Guido Pokrane: o imperador do rio Doce..., op. cit. 89 Guido T. Marlière. Ofício para o visconde de Caeté, presidente de Minas Gerais, 25/3/1827. RAPM, ano 11, 1906, p. 239. Cabe atentar para a observação de Marlière sobre o fato de esses “pobres homens” serem de cor: “Eu os comparo ex.mo sr. presidente à castanha de cor morena, mas cujo fruto é branco e saboroso”. O francês fez comentários parecidos sobre homens de cor ao longo de sua correspondência, deixando claro que todo o seu apreço aos índios não se estendia aos homens de cor, muitos deles, mestiços, não apenas de origem africana, mas indígena também. 87

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Os colonos No final de 1825, Marlière ensinava o “ABC do estabelecimento” no rio Doce para o ano seguinte. De maneira bem objetiva, sem o estilo sentimental das palavras que devotava aos índios, instruía os candidatos a colonos a trazerem sal, rede de pescar, telhas, remédios antifebris, aguardente para misturar com água do rio para beber, barracas de lona, gamelas, pratos de madeira, cuias de chifre, caldeirões de ferro, chocolateira, café, açúcar e rapadura. Orientava ainda aos novos moradores: Em Inglaterra os viajantes costumam levar uma bolsa de reserva para os ladrões: será bom levar, cada um, alguma coisa para os índios, por quem freqüentemente serão visitados; o mais são rapaduras, fumo e alguma farinha e para os convidar ajudar a trabalhar [sic] ao que eles se prestam de bom grado: principalmente nas plantações.

Marlière, que já lidava com os conflitos de índios e colonos, avisava de antemão que os pretendentes a colonos no rio Doce deveriam tolerar o roubo por parte dos índios. Finalmente avisava, assinando emblematicamente “o patrão-mor”: “Os petitmaîtres90 acostumados a viverem nas delícias e na moleza, não venham cá, pena de ficarem arranchados para sempre no cemitério da cachoeira de Leopoldo”. 91 De fato, ser colono nessas áreas não devia ser fácil. E, do ponto de vista dos colonos, Marlière não ajudava muito. Em 1827, uma representação, subscrita por moradores de Ribeira de Santa Ana da Onça Pequena, Onça Grande, São João do Alfiél, freguesia de São Miguel do Termo do Caeté, foi endereçada ao ministro dos Negócios do Império, visconde de São Leopoldo, que, por sua vez, pediu satisfações ao visconde de Caeté, presidente de Minas Gerais. Os colonos reclamavam dos “vexames e prejuízos que de contínuo estão sofrendo por causa dos índios botocudos e se queixam do diretor-geral pela notável conduta que tem desenvolvido”.92 Em síntese, as reclamações eram as seguintes: 1. os índios estavam roubando roupas, animais e alimentos, e destruindo lavouras; 2. Guido Marlière prometia providências para evitar os prejuízos, mas não fazia nada e ainda argumentava que “para a civilização dos ditos botocudos é preciso esta freqüência deles, mas contudo tal freqüência é muito gravosa”; 3. Marlière não praticava o catolicismo. Extraviava em benefício próprio os recursos enviados pelo Governo. E ainda aumentou suas fazendas Petit-maître significa “homem elegante, de ares e maneiras afetadas e pretensiosas”. Guido T. Marlière. “Trabalho por fazer no rio Doce em o ano próximo de 1826”. Artigo escrito para O Universal, nov. 1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 655-6. 92 Visconde de São Leopoldo. Ofício para visconde de Caeté, presidente de Minas Gerais, Rio de Janeiro, 5/9/1827. RAPM, ano 12, 1907, p. 418-9. 90 91

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com mão-de-obra dos soldados, e dois deles foram castigados duramente e obrigados ao trabalho nas suas lavouras: “Os soldados [...] não podem respirar com tanta injustiça”; 4. desde que chegara à região, Marlière não havia catequizado ou civilizado um só casal de índios. Os colonos terminavam a representação retumbantes: “Se não se compadecer das aflições desta porção dos seus fiéis súditos tudo ficará perdido, e balda a civilização dos índios e não haverá um só colono que intente ir cultivar e povoar aqueles sertões, como é tão recomendado pelo Governo iluminado de Sua Majestade imperial”.93 Nessa representação, elencava-se toda a conflituosa relação de Marlière com os colonos. O comandante defendeu-se desmentindo as acusações de cunho pessoal, e não tocou no assunto de sua política indigenista. Provavelmente porque os colonos confirmavam aquilo que ele próprio comunicava às autoridades: que não se deviam atacar os índios, mesmo quando estes tivessem invadido e roubado as propriedades. Marlière insistia em convencê-los de que esta seria a melhor solução. Em 1826, Antônio J. Coelho, fazendeiro em Minas Novas, pediu-lhe soldados para protegê-lo dos ataques de índios. O francês recusou-se a usar armas de fogo contra eles: “Isto não farei eu, senão quando tiver esgotado os meios filantrópicos. Mando lá uns homens da minha confiança que falam bem o idioma dos índios”. Marlière tentava persuadi-lo de que, “em lugar de um bezerro que lhe matam, senhor Coelho, dê-lhes dez; faça-lhes bem e mal algum, e verá como eles se chegam”.94 No mesmo dia, num ofício ao presidente da província, chamava Antônio Coelho de “estúpido”, pois mesmo com dez homens da 7.a divisão protegendo sua propriedade, pedia mais homens da 5.a divisão, “porque são mais prontos em matar índios: este estúpido não sabe, que por um índio que manda matar, atrai sobre si, e sua fazenda um século de represálias”. 95 Em seguida, culpava os colonos da região por fazerem guerrilha a índios já considerado mansos. Episódios como este indispunham colonos contra o diretor-geral, criando uma resistência em torno dele, e convenciam, aos poucos, os governantes de que sua atuação era questionável. Mas este não era o único tipo de problema enfrentado por Marlière. Como tantos outros seus contemporâneos, desprezava especialmente os chamados desclassificados — para usar a expressão de Laura de Mello e Souza —, os quais descreveu de diversas 93

Requerimento dos habitantes da Ribeira de Sta. Anna da Onça Pequena, Onça Grande, Alfiel e S. João. Freguesia de S. Miguel do Termo de Cuieté. Cópia inclusa no ofício do visconde de S. Leopoldo para o visconde de Caeté, presidente de Minas. RAPM, ano 12, 1907, p. 419-20. 94 Guido T. Marlière. Carta para o fazendeiro Antônio J. Coelho, Onça Pequena, 14/12/1824. RAPM, ano 10, 1905, p. 527-8 95 Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, 14/12/1824. RAPM, ano 10, 1905, p. 524-5. 94

maneiras: vadios, banditts, vigaristas, canalhas, rústicos, negros fugitivos, “gente sem meios intelectuais e sem escravos”, habitantes indolentes e estúpidos (referindo-se aos capixabas). Colocava no mesmo balaio criminosos, negros fugidos e homens livres pobres, a ponto de declarar: “É mais dificultoso desabusar a um rústico, do que civilizar quantos índios há”.96 Na análise clássica de Laura de Mello e Souza, em Minas Gerais, “os desclassificados do ouro” eram vistos de duas maneiras: “como utilidade e como ônus”, e o atributo da vadiagem passava a englobar toda uma camada social desclassificando-os no meio fluido dos homens livres pobres, todos passavam a ser vadios para a óptica dominante. [...] A percepção de sua utilidade se assentava na idéia de que, onerosos em todas as nações civilizadas, os vadios seriam úteis na região de Minas, onde havia demanda considerável de mão-de-obra alternativa à escrava e que servisse para reprimir quilombos, vigiar os índios do sertão, agriculturar terras longínquas cobertas ainda por florestas virgens, descobrir novos regatos auríferos.97

O mineralista Eschwege, amigo de Marlière, sem a perspectiva crítica da historiadora, fez essa mesma distinção entre onerosos e úteis, nomeando dois tipos de vadios: o útil e o perigoso: Indivíduos desse tipo [...] raramente se demoram muito no mesmo lugar, conhecem tudo, acompanham o viajante para onde ele quer ir, pois não têm nada a perder. [...] Especialmente nos sertões onde se sofre falta de tudo, onde se tem de abrir caminhos em matas fechadas e cruzar rios caudalosos, aí essas pessoas são incomparáveis: também poucos perguntam por pagamento. Este eu chamo o tipo de vadio útil; os outros mais numerosos é o tipo perigosos. São esses vadios que intranqüilizam os vizinhos, cometem assassínios por encomenda, dão falso testemunho, roubam cavalos e semeiam discórdia, em uma palavra são a ralé da humanidade contra os quais se tem de precaver e dão muito trabalho à Justiça.98

Assim, réus condenados iam para a região do rio Doce, desde o século XVIII, fazer serviços que ninguém queria. Por exemplo, em 1828, Francisco Gomes da Silva foi condenado a servir como praça na 1.a divisão por cinco anos; a ré Maria Carneira foi condenada a cozinhar para os soldados da 3.a divisão na fatura da estrada para os

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Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, 14/12/1824. RAPM, ano 10, 1905, p. 524-5. 97 Laura de Mello e Souza. Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 2.a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 216-7. 98 Eschwege, op. cit., p. 39-41. 95

campos dos Goitacases, e Eufrazia Maria Joaquina foi remetida ao Cuieté para trabalhar para os índios, como costureira, lavadeira e cozinheira.99 Marlière, por sua vez, também pediu degredo para aqueles que cometiam crimes na região sob seu comando: “A polícia do interior da província sendo do seu atributo devia mandar-se prender e recrutar para o Exército do Sul, todo o malfeitor, desertor e vadio que freqüentam as aldeias, não trabalham, roubam aos maridos, abusam das mulheres e dão pancadas em todos”.100 O índio botocudo Firmino Durains — que, depois de ter acompanhado Saint-Hilaire em suas viagens pela região, se tornou soldado na 7.a divisão, no Jequitinhonha — foi “degredado” para o Exército do Sul por Marlière, pois, além de matar reses, espalhava entre os índios que os diretores eram ladrões. O comandante chamou-o de “hipócrita dangeroso” e lamentou ter de “expatriar um índio que amava como a filho”.101 Para concluir esta seção, assim como concluímos a dos militares, é necessário considerar que Marlière elogiou alguns colonos, como Bernardina Ferreira, “mulher pobre e interessante” de Antônio Dias-Abaixo, que cuidava de uma velha de cem anos, a qual fora refém dos botocudos por cinco anos. O francês escreveu no jornal O Universal uma crônica sobre a história delas, com o fim de pedir esmolas para seu sustento. Com isso procurava mostrar para o público que sua benevolência não se direcionava apenas aos índios, que todos aqueles que cometiam boas ações eram dignos de serem exaltados e terem suas histórias contadas: Maria Pereira, moradora em Antônio Dias-Abaixo, rua do Bonfim; de mais de cem anos de idade foi cinco anos cativa dos botocudos, que a levaram do porto da Onça Pequena (aonde nasceu) com mais outra por nome Thereza, e um rapaz chamado Antônio, roubando a casa, na ausência do pai Manoel de Vasconcellos, o qual, no fim de cinco anos de pesquisas, a resgatou do poder dos índios, depois de um renhido combate, que lhe deu, unido à primeira bandeira que passou à banda meridional do rio Doce e neste encontro morreram muitos selvagens.102

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Guido T. Marlière. Ofício para o sargento secretário, Ouro Preto, 18/4/1828. RAPM, ano 12, 1907, p. 535. 100 Guido T. Marlière. Carta para o deputado à Assembléia, coronel João J. L. Mendes Ribeiro. Quartel do Retiro, 11/7/1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 610. 101 Guido T. Marlière. Ofício para o tenente-general, 2/1/1826. RAPM, ano 11, 1906, p. 121-2. 102 Guido T. Marlière. Artigo escrito em 9/5/1826 para O Universal. RAPM, ano 11, 1906, p. 166. 96

O discurso indigenista de Marlière Marlière era leitor dos filósofos iluministas do século XVIII e filiava-se ao discurso filantrópico de alguns deles. Sua formação militar não excluiu uma formação humanista. É o próprio militar, numa carta ao deputado Mendes Ribeiro que lamenta: “Se na minha mocidade, em lugar de ler Ponjsegur d’Alembert, Clairac e outros matadores de gente tivesse estudado Raynal, Penn103 e outros amigos do gênero humano [...]”.104 É na leitura de Raynal e outros iluministas que ele vai extrair uma boa parte de seu discurso sobre a história do contato e da civilização de índios. O francês, como já observado, conviveu, tornou-se amigo e correspondente de diversos naturalistas, como Eschewege, Saint-Hilaire e Freyreiss. Citava poemas, hagiografias, textos filosóficos e de prosa nos seus escritos; autores como Lacroix, o poeta inglês Goldsmith, Bartolomeu de las Casas, jesuítas. Lia os jornais com freqüência. Enfim, o fato de estar instalado nos sertões nunca o privou de acompanhar os debates intelectuais mais contemporâneos. Esse arcabouço intelectual influencia sobremaneira seu discurso indigenista, aliado à lida diária com os indígenas de carne e osso, tornando-o um narrador privilegiado do indigenismo e dos indígenas, sintonizado ao mesmo tempo com as idéias européias, os debates na Corte e o dia-a-dia do sertão. No modo como construía seu discurso, cada um desses aspectos confirmava o outro. Assim, ele poderia aplicar o que pensava na prática, e valia-se da experiência para confirmar sua filantropia. Em seu primeiro artigo impresso no Abelha do Itaculumy, Marlière empregou diversos termos usados no discurso iluminista sobre a colonização. Do lado do colonizador: tirania, crueldade, engano, dureza; e da parte do colonizado: ódio, ressentimento, vingança, rancor, fereza. Receitava a cura desses males com outras palavras-chave do discurso iluminado: brandura, beneficência, convencimento das doçuras da vida social, humanidade.105 Por exemplo, a expressão “antipatia de ressentimento” foi cunhada por Diderot, para justificar o desprezo dos índios pelos colonizadores: “Eles se tornaram, por 103

Marlière refere-se ao missionário quacre William Penn, que atuou junto aos índios da Pensilvânia, no final do século XVII. O sertanista Teófilo Otoni também era admirador da colonização promovida pelos quacres na Pensilvânia e, na década de 1850, nomeou a vila de Filadélfia, em homenagem à capital do estado norte-americano. 104 Guido T. Marlière. Carta para o deputado à Assembléia, coronel João J. L. Mendes Ribeiro. Quartel do Retiro, 11/7/1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 609. 105 Guido T. Marlière. Abelha do Itacolomy, 12/11/1824. 97

represálias, duros e cruéis em relação a nós. A aversão e o desprezo que nós fizemos que eles concebessem em relação aos nossos costumes, lhes hão sempre distanciado de nossa sociedade”.106 Marlière respondeu a essa antipatia com empatia. Neste trabalho há uma seção que trata dessa empatia, por meio de histórias reais de índios, narradas romanticamente por Marlière, nas crônicas que escrevia para os jornais. Todas elas bastante emotivas, as quais buscavam demonstrar a humanidade desses índios reputados cruéis e insensíveis. Segundo Michele Duchet, a condenação da colonização violenta no Novo Mundo era corrente entre os filósofos da Ilustração. No verbete “ferocité”, escrito por Voltaire na Encyclopédie, a colonização espanhola da América foi lembrada como a violência do homem contra o homem: “Os espanhóis trataram os índios como bestas e não entes humanos”.107 Era necessário planejar um novo modelo de contato, baseado num processo de civilização dos nativos. Como esse movimento era pautado num balanço histórico, a atuação dos jesuítas e dos quacres nas Américas foi retomada, e dividiu a opinião dos filósofos.108 Havia uma admiração pelo trabalho dos jesuítas e dos quacres nas Américas, por parte dos filantropos do Brasil do século XIX, seguindo a tradição de uma parte dos filósofos iluministas do século XVIII. Para Voltaire, “os quacres na América setentrional e os jesuítas na meridional, ofereceram um novo espetáculo ao mundo”.109 Raynal, ele próprio um ex-jesuíta, apontava o trabalho dos padres da Companhia de Jesus como modelo: “Se alguém duvidar desses venturosos efeitos da beneficência e da humanidade nesses povos selvagens, que compare os progressos que os jesuítas fizeram em tão pouco tempo, na América meridional, com aqueles que as armas e os navios de Espanha e Portugal não puderam fazer em dois séculos”.110 O naturalista conde de Buffon concordava: “As missões formaram mais homens nestas nações

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Diderot. Pensées detachées sur les nations sauvages et Histoire de deux Indes, vol. VIII. Citado em Michele Duchet, op. cit., p. 216. 107 Michele Duchet, op. cit., p. 197. 108 Ibidem. 109 Voltaire. Essai sur les moeurs... Citado em: Michele Duchet, op. cit., p. 211. Tradução minha. 110 Abade Raynal. O estabelecimento dos portugueses no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional; Brasília: Editora da UnB, 1998, p. 54 (livro 9 de Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des européens dans les deux Indes). 98

bárbaras que os exércitos vitoriosos que as subjugaram. [...] Nada honra mais a religião do que ter civilizado essas nações [...] sem outras armas que a virtude”.111 Marlière, com várias restrições, também louvou os jesuítas, a quem chamou de “nossos mestres, e nossos modelos na civilização”.112 Para o francês, com a partida dos padres da Companhia de Jesus, “voltaram os índios do Brasil a um estado pior que o primitivo”.113 Ele admirava o fato de os jesuítas terem aprendido a língua dos índios, algo que para ele era fundamental na civilização. Por outro lado, escreveu ao deputado Mendes Ribeiro, em sua memória sobre a civilização de índios: “Os jesuítas erravam inteiramente o seu modo de civilização, fechando as aldeias no beira-mar; deixando aos índios o refugio das matas: foi querer, como dizem, criar sapos ao pé da lagoa”. Em seguida, defendia o que chamou de método mineiro, ou seja, o seu método: “Ocupar lentamente as suas montanhas e matas e como os rios descer ao mar com a civilização; tendo sempre cuidado de fazer anualmente para eles plantações nas mesmas matas enquanto por si não forem adestrados ao trabalho [...]”.114 Segundo Marlière, a educação civil tinha de vir antes da religiosa: “Os [...] jesuítas davam o pão espiritual aos índios e faziam esganar as crianças em cantar ladainhas [...]; os mineiros dão aos índios de comer e vestir [...]”.115 Para a educação religiosa, sugeria que fossem solicitados capuchinhos franceses, idéia de seu amigo Auguste de St.-Hilaire. Marlière lembrou que eles haviam sido bem-sucedidos em nove missões por quarenta anos, e foram expulsos “provavelmente por intriga dos jesuítas”.116 Desprezava, com algumas exceções, os padres seculares, tendo apelidado seu amigo padre Lidoro, diretor dos índios no vale do rio Jequitinhonha, de “rara avis interris”.117 Em seus Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Brasil, apresentados na Assembléia Constituinte quando era ministro dos Negócios do Reino e deputado, José Bonifácio também retomou e elogiou os jesuítas. Com a ressalva de que eles “mais teriam feito se o seu sistema não fora de os separar da comunicação dos 111

Citado em: Michele Duchet, op. cit., p. 211. Tradução minha. Guido T. Marlière. “Noticias dos botecudos continuadas de n. 8. Sobre os mesmos, educação religiosa, civil e militar dos índios”. Abelha do Itaculumy, 24/1/1825. 113 Ibidem. 114 Guido T. Marlière. Carta para o deputado à Assembléia, coronel João J. L. Mendes Ribeiro. Quartel do Retiro, 11/7/1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 609-14. 115 Ibidem. 116 Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais. RAPM, ano 10, 1905, p. 653-5. 117 Guido T. Marlière. Carta para Auguste de Saint-Hilaire. Traduzida e publicada em Abelha de Itaculumy, 17/1/1825. 112

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brancos, e de os governar por uma teocracia absurda e interessada”, era preciso “imitar e aperfeiçoar os métodos que usaram os jesuítas. Eles por meio da brandura, e benefícios aldearam infinidade de índios bravos”.118 A memória de José Bonifácio foi publicada em forma de panfleto, em 1823, e Marlière a recomendou em artigo do Abelha do Itaculumy. O francês agradecia ao ex-ministro “em qualquer parte do globo que habita, porque nela provou que amava os índios”, e declarou que suas próprias idéias em tudo convergiam com a do ex-ministro.119 John Hemming, em seu enciclopédico Amazon frontier, sobre a história dos índios no Brasil, deu grande destaque a Marlière e Bonifácio em seu capítulo “As soluções dos idealistas”.120 Não creio que idealistas seria o termo correto para o discurso desses dois. John Manuel Monteiro categorizou-os como filantropos. Palavra bastante utilizada na época por aqueles que portavam um discurso humanista em relação às populações marginalizadas, como índios e escravos. Monteiro polarizou os dois lugares do discurso indigenista “entre o gabinete e o sertão”, título, inclusive, do texto que escreveu sobre projetos civilizatórios no Brasil imperial. Para o autor, durante o século XIX, persistiu por muito tempo [...] a cisão entre aqueles que defendiam políticas filantrópicas e outros que subscreviam a práticas agressivas e intolerantes. Não se tratava de uma clivagem entre estes nas fronteiras da nação e aqueles nos salões das capitais; encontravam-se filantropos no sertão, como Marlière, por exemplo, do mesmo modo que se encontravam patrocinadores de chacinas nas cidades, às vezes ocupando o mais alto posto da província.121

As dicotomias não diziam respeito apenas àqueles que achavam que se deviam exterminá-los ou absorvê-los à população. Ao longo dos oitocentos, haveria ainda os que defendiam opiniões monogenistas ou poligenistas, se os índios eram perfectíveis, ou seja, civilizáveis (Bonifácio) ou não (Von Martius e Vanhargen). Tal debate iniciou-se, a partir do século XVI, na teologia, intensificou-se na filosofia iluminista do século XVIII e migrou para a ciência ao longo do século XIX, quando, em geral, a visão sobre os índios se tornaria ainda mais detratora. José Bonifácio de Andrada e Silva. “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”. In: Miriam Dolhnikoff (org.). José Bonifácio de Andrada e Silva: projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 110. 119 Guido T. Marlière. “Noticias dos botecudos continuadas de n. 8. Sobre os mesmos, educação religiosa, civil e militar dos índios”. Abelha do Itaculumy, 24/1/1825. 120 John Hemming, op.cit., p. 162-180. 121 John Manuel Monteiro. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese de livre-docência. Campinas: Departamento de Antropologia, IFCH, UNICAMP, 2001, p. 131. 118

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Marlière, por seu turno, considerava os índios “filhos vermelhos de Adão”, passíveis de civilização (perfectíveis), e que podiam ser admirados fisicamente. No seu ponto de vista, como no de Bonifácio, a civilização ocidental só ganharia com sua assimilação, pois poderiam trabalhar na agricultura, na navegação dos rios, e conseqüentemente diminuir o tráfico de escravos africanos, e até pôr fim a ele. Como vimos no capítulo sobre os debates indigenistas na Corte, esse discurso filantrópico e assimilacionista era comum entre os políticos ilustrados. Outro aspecto do pensamento de Marlière tributário dos iluministas era a ideologia da miscigenação. Raynal observara que “políticos mais esclarecidos” haviam adotado o incentivo a casamentos mistos, e recomendava a adoção desse “grande sistema de civilização” na Flórida e em Caiena, onde colonos franceses deveriam se casar com moças nativas. Para Michele Duchet, dentro de uma certa ideologia iluminista, a qual tinha entre seus partidários, além de Raynal, De Pauw, a miscigenação era uma maneira de evitar o desaparecimento dos povos nativos, à medida que os colonos ocupassem o território. Na América portuguesa poderíamos incluir no grupo de “políticos esclarecidos” o primeiro-ministro de Portugal, o marquês de Pombal. A orientação assimilacionista de sua política indigenista teve continuidade nos debates do século XIX. Um exemplo disso é o alvará régio de 4/4/1755, o qual declarava “que os vassalos do Reino e da América que se casarem com índias não ficam com infâmia alguma, antes serão preferidos nas terras em que se estabelecerem”.122 Marlière conseguiu que o alvará fosse publicado em Ouro Preto no jornal O Universal, e em janeiro de 1826 enviou cópias para os diretores de índios e vigários de vários arraiais do leste mineiro.123 Esta foi uma ação originada de seu discurso; meses antes, ele reclamara que “leis a favor dos índios apodrecem nos cartórios”.124 Assim, desenterrou uma antiga lei, publicou no jornal e enviou aos agentes indigenistas. Ele criticava e agia, valendo-se de seus conhecimentos e de seu poder para instituir a política indigenista que achava mais adequada, usando a palavra escrita. Procurava, dessa maneira, aliar discurso e prática.

“1755 4/4 Alvará”. In: Manuela Carneiro da Cunha (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; FAPESP, 1998 [1992], p. 557. 123 Guido T. Marlière. Ofício “aos reverendos párocos das freguesias que têm cura de índios”. Quartel Central do Retiro, 7/1/1826. RAPM, ano 11, 1906, p. 123. 124 Guido T. Marlière. Carta para o deputado à Assembléia, coronel João J. L. Mendes Ribeiro. Quartel do Retiro, 11/7/1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 609-12. 122

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Empatia e romantismo Numa crônica do Abelha do Itaculumy, Marlière descreveu a cena de um embate ocorrido entre botocudos e os soldados do quartel de d. Manoel, exaltando o índio capitão, num estilo eminentemente romântico: O capitão do lote agressor, que, depois de haver empreendido inutilmente de os matar a mão, subiu em um tronco d’árvore, [...] suas frechas soltas aos pés, e com dois serventes que lhe assistiam, as despedia alegremente sobre os soldados concentrados no Quartel, mostrando-lhes o peito, e que lhe atirassem, esta fanfarronada, que denota coragem mais que juízo no valente selvagem, lhe saiu cara [...]. De sorte que posso dizer do guerreiro naknenuk, combatendo só, da sua pequena eminência, contra quatro armas de fogo (abstração feita da causa por que combatia) que o mais belo instante da sua vida foi o mais vizinho da sua morte.125

Em diversos textos de Marlière, principalmente naqueles publicados no Abelha do Itaculumy, podemos encontrar traços daquilo que Antonio Candido denominou préromantismo franco-brasileiro: “atitudes e escritos dum certo número de franceses encantados com o nosso país”.126 Autores como Ferdinand Denis, Teodoro Taunay e Edouard Corbière, que viveram algum tempo no Brasil, escreveram relatos de viagem e textos literários que exaltavam a natureza e o indígena. Ferdinand Denis teve papel fundamental na inserção da temática indígena na literatura brasileira. Em 1826, no seu manual sobre literatura portuguesa e brasileira, ao propor que o maravilhoso “tão necessário à poesia” estaria presente nos costumes indígenas. As lutas indígenas e seus sacrifícios nas conquistas dos brancos seriam inspiradores para a literatura da nova nação.127 Segundo Antonio Candido, nos poemas de Edouard Corbière, publicados em 1823, “se encontra a idéia de que os nossos selvagens eram nobres, independentes, preferindo a morte à escravidão; encontra-se a tristeza ante a sua cultura destruída, a impotência na defesa contra o colonizador, a admiração por suas paixões, reputadas espontâneas e violentas”.128 Não foi possível verificar se Marlière conhecia pessoalmente ou lia esse grupo de intelectuais, mas suas observações sobre os indígenas coincidiam com essa visão, e provavelmente ele tinha a mesma matriz romântica européia. Além desse aspecto pré-romântico dos textos de estrangeiros franceses,

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Guido T. Marlière. Abelha do Itaculumy, 16/2/1825. Antonio Candido. Formação da literatura brasileira, vol. I. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000 [1975], p. 262. 127 Jean Ferdinand Denis. Résumée de l’histoire littéraire du Portugal suivie du Resume de l’histoire littéraire du Brésil. Paris: Lecointe et Durey, 1826, p. 529. 128 Antonio Candido, op. cit., p. 263. 126

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Candido vê a influência dos naturalistas, sobretudo alemães, entre os românticos brasileiros de meados do século XIX. Debret, que desenhou os botocudos enviados à Corte na década de 1820, saudou os legisladores de 1831 que revogaram a lei de servidão temporária dos índios conquistados nas guerras justas de Guarapuava e do rio Doce. Ele nomeou esse ato de filantropia fraternal, e chamava a atenção para o direito que os indígenas tinham de possuir suas próprias terras, para desenvolver sua indústria. Com essa política de boa vizinhança, poderiam entender as vantagens da civilização e acelerar o progresso tão necessário para o território brasileiro.129 Como seu conterrâneo Marlière, Debret via a possibilidade da civilização dos índios depois de um período de tolerância com as diferenças culturais e de acesso a certos direitos. Política, literatura e relatos de viagem de temática indígena se tornaram indissociáveis nessas primeiras décadas do século XIX, e Marlière não se furtou de fazer parte dessa corrente. Há um interessante conjunto de histórias sobre índios publicado no Abelha do Itaculumy, incluindo a citação que serve de epígrafe a esta seção, que mostra sua narrativa romântica associada às situações com as quais convivia no sertão. Além das características românticas, considero que Marlière procurava demonstrar a seu público do Abelha do Itaculumy a empatia que tinha pelos índios. Empatia num dos sentidos registrados no dicionário Houaiss: “Processo de identificação em que o indivíduo se coloca no lugar do outro com base em suas próprias suposições ou impressões, tenta compreender o comportamento do outro”.130 Assim, liberdade, nobreza, amor, coragem foram atributos dos personagens reais romantizados pelo francês.

A cega Merangang, “tal é o teu poder, oh, amor da independência!”131 Merangang, uma das mulheres do índio Poatú, “cega guiada pelo seu filho de seis anos (é o amor que precede a loucura, e não esta ao amor)” em suas visitas ao quartel, provavelmente em busca de mantimentos, sempre recusou as ofertas de Marlière de abrigá-la e sustentá-la. Voltava para as matas, “carregando um enorme tang”, um tipo de

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Jean Baptiste Debret. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, 2 vols. São Paulo: Círculo do Livro, vol. 1, p. 71. 130 Verbete “empatia”. In: Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 131 Guido T. Marlière. “Notícias continuadas do n. 135”. Abelha do Itaculumy, 19/12/1825. 103

balaio, “e às vezes o filho por cima quando este cansa, e outra índia, por caridade (e para isto são exemplares) lhe serve de guia”. Terminava sua elegia à admirada índia, exclamando: “Tal é o teu poder, oh, amor da independência!”.

As mortes dos “desditosos e jovens amantes”132 As mortes de Há-gemm e de sua companheira, a “graciosa” Gemm-táne, causadas por um mergulho no rio de Santo Antônio, depois de terem tomado um emético, foram descritas pelo francês como causadoras de grande infelicidade. Há-gemm, um dos índios que desde o princípio dos trabalhos no rio Doce o acompanhara, deixou-o por Gemm-táne, filha do capitão Orotinon, “a qual pela sua juventude e graças naturais bem o merecia”. Marlière declarou que, quando visitasse suas sepulturas, plantaria ali um cipreste ou uma araucária: “E se apesar dos meus cabelos brancos me escapar alguma lágrima de saudade, na ereção deste mausoléu indiático, no deserto do rio Doce, não estranhe-o meu leitor”. De fato, numa crônica publicada no Jornal Universal,133 Marlière descreveu sua visita ao túmulo do jovem casal, mencionando que plantara as araucárias planejadas, e os vestígios do ritual fúnebre botocudo, numa mistura de etnografia e comoção.134 Informou, ainda, a seus leitores que tomara o cuidado de desviar dos túmulos do jovem casal indígena as plantações que mandara fazer.

A cena dramática da morte de uma família indígena135 Em janeiro de 1824, o capitão Jacu e sua família chegaram a Onça Pequena, quartel-general de Marlière, vindos das praias “insalutíferas” do rio Doce, trazendo “no seio o fatal germe morbífico [...]. Apenas chegados, adoecem todos; as casas se acham soalhadas dos pobres índios”. Jacu, Punang e uma filhinha foram os primeiros a morrer. A cena demonstra uma das faces trágicas do contato, o genocídio indígena pela doença ou, nas palavras de Luiz Felipe de Alencastro, “a vulnerabilidade dos índios ao choque

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Ibidem. Guido T. Marlière. Artigo escrito para O Universal, Naknenuk, 30/9/1825. RAPM, 12, 1907 p. 641. 134 Ver seção “Usos fúnebres”, mais adiante. 135 Guido T. Marlière. “Notícias sobre os botecudos”. Abelha do Itaculumy, 5/1/1825. 133

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epidemiológico”.136 Marlière descreveu, bastante emotivo, a reação desesperada de Kijame, o membro restante da família do capitão Jacu: Kijame, mais robusto em aparência, prometia escapar à doença; vendo os seus pais estendidos dobram as suas forças; toma primeiro o cadáver do pai sobre os seus joelhos, assentado na cama, entoa a sua canção fúnebre, e por acenos pede o tang em que estavam a farda e roupas mais finas, que costumo dar aos chefes da nação: a mortalha ao pai com todo o asseio, e por um esforço inesperado, levanta-se e vai amortalhar também a sua mãe Punang; depois por outro aceno, mandou-se lhe desse a sepultura, já preparada, no Campo do Descanso, pelos cuidados dos soldados, tão tristes como o virtuoso índio. Acabada a cerimônia lúgubre, Kijame desperta aos outros do letargo em que jaziam, e lhes grita: “Fujamos”. [...] O comandante das divisões os seguiu com animais carregados para os socorrer, mas em vão: o primeiro morto que apareceu a poucos passos, foi o terrível Kijame com a face voltada para o túmulo de seus pais. Os mais não caminharam duas léguas antes de morrer.137

Marlière civilizador Em 1824, no Abelha do Itaculumy, Marlière defendia seu método de civilização em oposição àqueles usados antes de sua atuação. Afirmava serem as sete divisões “inutilmente empregadas desde 1808 para os civilizar [os botocudos] com chumbo. Mineiros! Com os índios, mais vale derramar patacas, que sangue; o resultado o comprova”.138 O militar explicava que o gastos com a pacificação dos botocudos, no valor de 4:900$ nos anos de 1823 e 1824, incluindo ferramentas, vestidos e “outras coisas do seu agrado”, além de sua sustentação, não davam para o pagamento de um trimestre das sete divisões.139 De acordo com Pels e Salemink, as expedições geográficas e militares são mais dependentes “de relações horizontais de negociação e trocas táticas com informantes indígenas ou oponentes, do que de relações verticais de observação e disciplina”.140 Guardadas as devidas proporções, essas palavras poderiam sair da boca de Marlière. 136

Luiz Felipe de Alencastro. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 127. 137 Ibidem. 138 Guido T. Marlière. Abelha do Itaculumy, 19/11/1824. 139 Em outro relatório de 1826, ele demonstrou os gastos com as divisões entre 1824 e 1826, em média, 22:000$000 por ano. Em 1829, calculou que recebera para a civilização de índios, de 1823 a 1828, um total de 11:300$000, o que resultava, em média, 1823$000 por ano. No orçamento das divisões, não incluiu seu soldo anual de 1:255$ ao ano até 1826, quando o valor aumentou, por ter sido promovido a coronel. Ver RAPM, ano 11, 1906, p. 78; e ano 12, 1907, p. 565. 140 Peter Pels; Oscar Salemink. “Introduction: locating the colonial subjects of anthropology”. In: idem. Colonial subjects: essays on the practical history of anthropology. The University of Michigan Press, 2000, p. 24. Tradução minha. 105

Mesmo com a lei da guerra justa em vigor durante toda sua atuação, ele defendia uma aproximação “amistosa”, ainda que tenha praticado guerrilhas, talvez contra índios mais resistentes, usando muitas vezes, como soldados, grupos de indígenas opositores, uma velha prática colonial. Ele se valeu de diversas fórmulas militares, muita leitura e de sua experiência no trato com os índios para elaborar seu sistema, como veremos.

A receita de Marlière: comunicação da palavra, beneficência e oferecer-lhes o cachimbo da paz Em novembro de 1824, Malière narrou ao presidente da província um episódio em que soldados de uma das divisões encontraram numa cachoeira do rio Doce um grupo de naknenuks. Em resposta a uma flechada dos índios, os soldados responderam que “eram de paz e que chegassem a receber facas e de comer”. Os índios aproximaram-se com muita cautela para receber os presentes. Um dos índios caiu na correnteza e os soldados o salvaram. O naufragado, com muitas lágrimas, pedia a vida aos seus libertadores que, com abraços e presentes, o restituíram aos seus. Esta cena causou aos selvagens uma sensação extraordinária e se despediram, prometendo nunca mais ofender aos carantonhas (assim nos chamam) e fazerem com que os seus parentes o imitassem, só sim me pedissem muitos machados para eles.141

Episódios como este foram narrados por Marlière para exemplificar como era o primeiro contato dos soldados das divisões sob seu comando. No final de 1824, o militar encarregou o capitão botocudo Guido Pokrane da pacificação dos botocudos da margem norte e dizia-se bastante satisfeito com a atuação de Pokrane. Este localizaria índios em suas diligências de canoas e lhes ofereceria presentes, convidando-os a “participar do sossego e bem-ser de que gozam os da margem meridional”.142 Ele queria mostrar para as autoridades que era possível desfazer a inimizade entre portugueses e indígenas com estratégias simples e antigas, valendo-se de línguas (intérpretes entre portugueses e índios) e brindes. Ao longo de sua correspondência, Marlière discorreu várias vezes sobre o que chamou de “meu fiel sistema que nunca me abandonou”.143 O vice-presidente da 141

Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, Onça Pequena, 12/11/1824. RAPM, ano 10, 1905, p. 510. 142 Guido T. Marlière. Ofício para o marechal de Minas Gerais. RAPM, ano 10, 1905, p. 483. Ver também outro ofício para o marechal, datado de 15/10/1824, na p. 500 da mesma revista. 143 Guido T. Marlière. Ofício para o vice-presidente de Minas Gerais, 22/9/1827. RAPM, ano 12, 1907, p. 472-3. 106

província perguntou-lhe, em 1828, qual era o sistema seguido na civilização. A resposta foi a seguinte: Falar-lhes sempre a verdade, fazer-lhes bem quanto posso, e mal nenhum, usando da língua deles para comunicar-lhes os meus pensamentos, consolá-los nas suas aflições e prometer-lhes justiça do Governo para com os seus injustos opressores; mandar fazer pelos soldados das divisões que hoje comando, plantações anuais em todos os pontos da mata que freqüentam, ranchos para os abrigar e dar-lhes de comer e vestir quanto baste para a vida e remédios que lhes são ministrados pelos cirurgiões das divisões [...]144

Destrinchemos essas palavras tão cheias de boas intenções. O título desta seção é trecho de uma carta dirigida ao vice-presidente da província, na qual ele Marlière que o “os únicos meios capazes de reduzir aqueles gentios são a comunicação da palavra, beneficência e oferecer-lhes o cachimbo da paz”145 (lê-se “le calumet de la paix”). A primeira etapa do contato era não atacar (“oferecer o cachimbo da paz”). A segunda consistia em levar “línguas” para os primeiros encontros (“comunicação da palavra”). A terceira etapa era a entrega de presentes, como ferragens e armas, para os homens, e miçangas e espelhos, para as mulheres (“beneficência”). Há diversos pedidos e acusações de recebimentos desse material para distribuição entre os índios. Como vimos, entre 1823 e 1824 o militar gastou cerca de 5:000$ de réis com artefatos, vestimentas e sustento para os índios. No âmbito de sua política de relacionamento com os líderes indígenas, em abril de 1825, Marlière ordenou ao comandante da 1.a divisão do rio Doce que se presenteassem, primeiramente, os chefes de diferentes lotes recémcontatados com tecidos e instrumentos de metal; e às suas mulheres com miçangas e espelhos.146 Mary-Louise Pratt trata dessa questão da troca entre colonizadores e colonizados com bastante profundidade em seu estudo sobre viajantes e imperialismo no século XIX. Baseando-se em Marcel Mauss, ela afirma: “Ao mesmo tempo em que elimina a reciprocidade como base da interação social, o capitalismo a retém como lastro de uma das histórias que ele mesmo conta sobre si. A diferença entre troca igual e desigual é suprimida”.147 Não havia agentes de contato ou viajantes que não contassem

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Guido T. Marlière. Ofício para o vice-presidente de Minas Gerais, 20/1/1828. RAPM, ano 12, 1907, p. 510-2. 145 Guido T. Marlière. Ofício para o vice-presidente de Minas Gerais, 22/9/1827. RAPM, ano 12, 1907, p. 472-3. 146 Guido T. Marlière. Ofício para o comandante da 1.a divisão, João Evangelista. 11/4/1825. 147 Mary Louise Pratt. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999 [1992], p. 152. Segundo a autora, em Essai sur le don, “Marcel Mauss argumenta 107

com um suprimento de presentes para os povos nativos. Nos relatos de contato negociado, ou seja, naqueles que os assassinatos não precedem nenhuma ação, sempre existe a troca. Para impor-se, a colonização vale-se, nas sociedades do Novo Mundo, desse princípio de interação social que é a troca. Se um naturalista queria saber para que servia tal raiz, devia recompensar seu informante; se Marlière queria que os botocudos se aproximassem, dava-lhe instrumentos de ferro. Os exemplos são inúmeros, a troca era uma regra no contato com povos nativos em todo o mundo. Uma vez que, cada vez mais, índios necessitariam dos bens dos colonizadores, aos poucos seriam pacificados, até começarem a trabalhar em troca das benesses da civilização. Na cena do naufrágio narrada, o índio é devolvido a seu grupo com “abraços e presentes”, e seus companheiros avisam que não atacarão mais os “caratonhas”, e ainda prometem pedir aos parentes que façam o mesmo, em troca de machados. Marlière, no final de sua administração, lamentou não ter mais nada para dar aos índios, o que poria a perder todo o esforço civilizatório até então. A quarta etapa era instituir aldeamentos para índios com plantações e alguns ranchos para oferecer abrigo, os quais seriam postos permanentes de distribuição de alimentos, roupas e ferramentas e escola de canoeiros (“beneficência”). Em 1824, Marlière listou diversas plantações de milho, bananas, mandiocas, cana-de-açúcar e abóboras nos arredores dos aldeamentos de Bananal Grande, quartel geral de Cuiaté, quartel da Barra, Rio de Santo Antônio, Sacramento Grande (depois Petersdorff, em homenagem a d. Pedro I). Essas áreas foram um território permanente de contato com os indígenas, os quais, aos poucos aumentariam a freqüência de suas visitas, para que futuramente morassem ali. Marlière chamou esses lugares de aldeamentos. Anos antes, em 1824, num ofício ao presidente da província sobre o regulamento que fora instituído no Espírito Santo, ele argumentou que [...] o querer porém obrigá-los a domicílio fixo seria uma quimera, que não se verá realizar; nem eu vejo exemplo disto nos coroados e coropós que se estão civilizando desde 1767. Cada família vive separada das outras, e a nação se reúne em dias festivos na povoação ou capela onde recebem alguma instrução dos ministros do culto; e será prudente seguirmos a esta regra pelo futuro para a cristianização dos botocudos.148

que, em sociedades sem Estado, não capitalistas, a reciprocidade funciona como base da interação social [...]”. 148 Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, Onça Pequena (4.a divisão), 4/11/1824. RAPM, vol. 10, 1905, p. 506. 108

Vários botocudos chegaram a morar nos aldeamentos, como demonstra uma estatística produzida pelo próprio Marlière em 1828 (ver mapa adiante). Mas Malière não conseguia precisar o número de botocudos em cada um dos aldeamentos que administrava, à exceção daqueles do Jequitinhonha, que não foram fundados por ele e datavam de 1810. Ali viveriam, entre naknenuks e maxacalis, 1631 pessoas. Nos outros aldeamentos botocudos, o item “população” era preenchido com palavras como “ambulantes (não se pode contar)”, “imenso”, “incógnito” e “indeterminado”. Segundo o diretor de índios, a ocupação principal dos índios nessas localidades era caça, pesca, agricultura e “o exercício dos índios nos trabalhos dos soldados”.149

Guido T. Marlière. “Mapa fazendo conhecer os aldeamentos das diferentes tribos de índios da província de Minas Gerais... Guidowald em 20/1/1828”. RAPM, ano 12, 1907, p. 497-509. 149

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Na década de 1820, portanto, a imensa maioria dos botocudos apenas visitava os aldeamentos. Na categorização de Marta Rosa Amoroso, em relação aos aldeamentos, tais índios seriam denominados “agregados” e “do sertão”, ou seja, os primeiros orbitavam em torno dos aldeamentos, participando de sua rede de trocas de mercadorias e brindes, e os segundos eram aqueles “que freqüentavam as unidades do sistema para se abastecerem de mercadorias, visitar parentes, participar das festas”. 150 No caso dos botocudos, durante esse período, é difícil delimitar as fronteiras entre aldeados, agregados e índios do sertão. Um mesmo índio poderia oscilar entre as três categorias conforme a conveniência. O próprio Marlière não conseguiu contabilizar os aldeados. Essa situação corresponde a uma declaração que Marlière fez em 1825. Numa carta para o deputado Mendes Ribeiro, admitiu que “não se pode chamar civilização ao estado atual dos índios, principalmente botocudos: é somente pacificação e decerto não foi pouco: agora pode-se ocupar toda a margem direita do rio Doce”. 151 Isso nos leva a crer que muitas vezes ele usou o termo civilização como sinônimo de pacificação. A pacificação era satisfatória do ponto de vista do Estado, uma vez que a intenção maior era a ocupação e exploração das riquezas da região, as quais décadas antes eram prejudicadas pelos ataques dos índios. É necessário, no entanto, observar que nem sempre Marlière fumou o cachimbo da paz. Em certas ocasiões, índios mais resistentes eram atacados ou castigados. O próprio Marlière admitiu fazer algumas guerrilhas contra os puris, utilizando milícias de coroados, seus inimigos tradicionais, e, depois, ter-se valido do mesmo método em relação aos botocudos mais rebeldes. Na 4.a divisão, mandou picar, “na vista dos outros”, arcos e flechas de índios do lote do capitão João, responsáveis por flechadas em animais de colonos. Depois ordenou que fossem levados a outra banda do rio Doce, e, enquanto os soldados estivessem retornando, o intérprete deveria adverti-los, em nome de Marlière, “que se voltarem em povoado a fazer mal serão punidos de morte infalivelmente”.152 Cabe ainda mencionar o castigo que mandou aplicar ao capitão índio Paulo, pois estava saqueando as casas dos brasileiros. Ordenou ao comandante da 4.a divisão que lhe desse cinqüenta varadas, quando ele roubasse novamente, e o enviasse algemado a Marlière, que lhe daria destino “conveniente ao Imperial Serviço”, servindo 150

Marta Rosa Amoroso. Catequese e evasão..., op. cit., p. 95. Guido T. Marlière. Carta para o deputado à Assembléia, coronel João J. L. Mendes Ribeiro. Quartel do Retiro, 11/7/1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 612. 152 Guido T. Marlière. Ofício para o capitão Lizardo da 4.a divisão, 2/4/1826. RAPM, ano 11, 1906, p. 152. 151

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esse castigo de exemplo para os outros. Segundo Marlière, “o tempo acabou em que podia haver risco de sublevação entre eles se se castigasse algum malfeitor”. Outras estratégias, como vimos ou veremos, foram bastante exploradas, tais como acordo com os chefes dos grupos, crianças órfãs criadas por soldados, incentivo a casamentos mistos etc.

Relações de poder: a hierarquia dos paquejus e a militarização dos índios O respeitável retrato de Sua Majestade imperial fica neste quartel onde concorrem os índios das diferentes tribos da minha direção: estimo tanto mais esta ocasião que em vão me esforçava de persuadir aos botecudos, que tinha um amo que os mandava por mim beneficiar, e socorrer, eles teimavam em considerar-me o Gi-Paqueju (muito grande), agora desenganar-se-ão à vista do seu Gi-Paqueju, e ficarei sendo para eles o simples Paqueju.153 Caciques ou chefes índios — devem ser tratados pelos diretores com muita distinção e honra, de que eles se pagam muito; deixar-lhes aparentemente toda a autoridade sobre o povo índio de cada aldeia, e se servir deles para castigar e repreender aos delinqüentes: este método vai longe. É o que se chama em francês “Se servir de la patte du chat pour tirer les marrons du feu”, provérbio tirado da fábula de La Fontaine: “Le chat et le linge” [singe], fábula ao meu ver, que contém uma refinada política.154

Marlière compreendia bem as relações de poder. Seja dentro da hierarquia do Império, seja entre os próprios botocudos. O incessante prestar de contas às autoridades, entremeado de pedidos de aumento de patente, em geral deferidas, assegurava seu posto de direção. Ao mesmo tempo, as estreitas relações com os líderes nomeados capitães garantiam-lhe respeito entre os índios. A prática de prestigiar lideranças vinha desde o século XVI, tanto na América portuguesa como na espanhola.155 Era certamente um acordo bilateral, ainda que os 153

Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais. Quartel Central da Onça Pequena, 18/2/1825. RAPM, ano 10, p. 570. 154 Guido Thomaz Marlière. “Reflexões sobre os índios da província de Minas Gerais, março de 1826”. In: Leda Maria Cardoso Naud (org.), op. cit., p. 311. A frase de La Fontaine tinha, já na época, sua versão em português. Em 1826, o padre Chagas Lima escreveu: “Tirar a sardinha das brasas com a mão do gato” (ver cap. II desta dissertação). A fábula conta o episódio em que um macaco convence seu amigo gato a roubar algumas castanhas que estavam sendo assadas num braseiro. O gato, ingenuamente, as roubou, foi punido, e o macaco comeu tudo sozinho, sem sofrer um só arranhão. La Fontaine conclui: “Assim é a maior parte desses príncipes, que lisonjeados com tais missões, vão se escaldar nas províncias, para o proveito de um rei qualquer (“Aussi ne le sont pas la plupart de ces Princes qui, flattés d’un pareil emploi, vont s’échauder en des Provinces pour le profit de quelque Roi”). Aqui os caciques são os príncipes e o imperador (ou Marlière), o rei. A tradução do verso é minha. 155 A esse respeito, ver Maria Regina Celestino de Almeida. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 112

índios em geral saíssem perdendo. Do ponto de vista da colonização, era uma etapa necessária do processo, em muitos casos inevitável, para que se pudesse governar. Do ponto de vista dos nativos, o líder indígena, intermediário de dois mundos, adaptava-se às novas hierarquias, não ficando de fora do mundo do poder e ganhando algum prestígio entre os portugueses, ainda que o prestígio entre os liderados pudesse ser prejudicado. Não deixava de ser um processo de dominação, digamos, “suavizado”. Como observou Marlière, em relação aos chefes indígenas, era necessário “deixar-lhes aparentemente toda a autoridade sobre o povo índio”. O militar comparou as nações indígenas do Brasil às diversas nações russas, como cossacos, calmucos e tártaros. Segundo Marlière, o Império russo dava aos chefes dessas nações o título de hettman, que significava chefe, cabeça ou general: “O imperador do Brasil tem muitos cossacos, e pode tirar deles, com o tempo, o mesmo partido, dando-lhes um ou muitos hettmann que tenham cabeça, inteligência e coragem”.156 Propunha, em relação aos botocudos, o mesmo método de guerrilha que aplicara na civilização de puris. Quem os combateu a partir de 1815 foram exércitos de coropós e coroados, aldeados desde meados do século XVIII. Cada chefe de grupo que contava com cinqüenta ou sessenta arcos era condecorado com o título de capitão, e este, por sua vez, escolhia seus alferes, sargentos, cabos e soldados: Com estes capitães é unicamente que o diretor se corresponde tanto para as levar a guerra, como para manter uma espécie de ordem no interior das aldeias e prender nas matas algum índio delinqüente digno do castigo ou de uma forte admoestação. Este método me tem acertado sobremaneira [...]: consigo a prisão de qualquer índio sem dificuldade mandando ao capitão uma ordem tapera, como lhe chamam para este fim: e ordinariamente os executores das mesmas ordens são os filhos e genros do mesmo capitão. Estas graduações não têm conseqüência para o Estado; são de uma infinita vantagem para ele, e aumentam consideravelmente a sua força política: uma farda, e alguma roupa para o capitão e o alferes fazem o negócio.157

Em outro artigo publicado, descreveu como praticava essa política de boa vizinhança com os capitães indígenas. O capitão Paqueju Orotinon foi recebido à sua mesa com carne e vinho: “Este índio se não é rei, cuida que o é: não pode sofrer que na

2003, p. 150-68. Segundo diz a autora, na p. 164, “os líderes reconhecidos e valorizados pelas autoridades coloniais detinham maior poder de barganha na nova sociedade e, muito provavelmente, isso contribuía para manterem a admiração e o respeito junto aos seus liderados, embora estes pudessem se assentar sobre novos critérios”. Sobre o mesmo assunto, no México, ver: Serge Gruzinski. “La red agujerada: identidades étnicas y occidentalizacion em el México colonial (siglos XVI-XIX)”. América Indígena. México, ano XLVI, n.o 3, jul.-set. 1986. 156 Guido T. Marlière. Abelha do Itaculumy, 7/1/1825. 157 Ibidem. 113

sua presença se trate a outro índio de capitão, dizendo: ‘Capitão eu, e mais ninguém’. [...] Tive a honra de o hospedar, e à sua família, a qual brindei, e vesti com a possível distinção em outubro de 1824”.158 Marlière comparou seu comportamento à mesa com o de “qualquer gastronome europeu”, e observou, sem preconceito, que seu agradecimento era dançar diante dele no fim de cada comida. Quanto aos cinqüenta, sessenta arcos a que nos referimos acima, cabe notar que Marlière, além de usar essas milícias indígenas, transformou indígenas em soldados. Organizou coroados para atuarem nas guerrilhas contra os puris; malalis se tornaram soldados nas 5.a e 7.a divisões; e num episódio típico da sua administração escreveu ao tenente-general: Peço ao sr. presidente a suspensão do recrutamento que ordenou aos vários termos para o acréscimo de trinta praças na 6.a divisão por me mandarem a escória de celerados e das cadeias que vem furtar um fardamento e desertar: prefiro assentar praça a índios botocudos e aos filhos dos soldados das divisões.

Nesse trecho, Marlière volta atrás no pedido que fez do envio de “vadios” de vários termos da província para se tornarem soldados na 6.a divisão. Antes ainda, havia pedido ao diretor dos coroados que atendesse à ordem imperial de aumento de trinta soldados na 6.a divisão e que recrutasse índios coroados “que menos falta fizerem as suas famílias, e mais dano a sociedade, bem como os que deixaram por morto sem provocação alguma ao meu escravo Joaquim”.159 Ou seja, quando necessitou de soldados, primeiro optou por coroados, índios considerados mansos e civilizados; não conseguindo, solicitou “vadios”; sem sucesso, solucionou seu problema com botocudos e filhos dos soldados, provavelmente crianças. Criar milícias com os chamados “vadios” e “índios mansos” e degredá-los para regiões de fronteira não era novidade. Maria Leônia Chaves de Resende demonstrou brilhantemente os mecanismos dessa prática nas Minas Gerais do século XVIII.160

158

Guido T. Marlière. Abelha do Itaculumy, 7/3/1825. Guido T. Marlière. Ofício para o diretor dos índios coroados C. Gonçalo, 18/8/1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 624. 160 Maria Leônia Chaves de Resende. Gentios brasílicos: índios coloniais em Minas Gerais setecentista. Tese de doutoramento. Campinas: Departamento de Antropologia, IFCH, UNICAMP, 2003. 159

114

“Dar de comer ao cão ainda que haja de morder” Marlière utilizou diversas fórmulas militares para conquistar a confiança dos índios e submetê-los à civilização: “Amor e lealdade a eles, meus amigos, e temos homens”.161 Numa ocasião, um grupo de naknenuks (subgrupo botocudo) armados invadiu o pequeno quartel de d. Manoel, ligado a 6.a divisão, ocupado por uma guarnição de apenas quatro soldados. Esse grupo teria tomado conhecimento da distribuição de ferramentas para outros índios, e foram reivindicá-las também. Como não havia mais nenhum suprimento, resolveram atacá-lo. Os soldados prontamente atiraram, e acabaram matando três naknenuks. Marlière enviou reforço de guarda para a região e afastou os soldados que ali estavam, mandando dizer aos índios atacantes que os soldados haviam sido castigados, “de outro modo nunca viriam, senão hostilmente”. Providenciou plantações para esse mesmo grupo e o envio das ferramentas desejadas. Numa outra ocasião, justificou o assassinato de um colono por um índio da localidade de Arapuca. Segundo Marlière, não poderia considerar o índio culpado, pois ele se viu “agarrado a um ajuntamento de armas escondidas [sic], julgou na sua rudeza que o queriam matar e qualquer civilizado em caso semelhante julgaria o mesmo”.162 No seu ponto de vista, no primeiro episódio, não poderia punir os índios pelo ataque, e sim persuadi-los de que aquilo fora um incidente de contato e de que os portugueses queriam a paz, mesmo tendo sido atacados. Era o que chamaria, dias depois, numa crônica publicada no Abelha do Itaculumy, de “sistema adotado dos orientais: dar de comer ao cão ainda que haja de morder”. 163

Do entusiasmo à melancolia Na correspondência oficial e nos artigos do Abelha do Itaculumy, no final de 1824 e durante o ano de 1825, Marlière se autopromoveu como o responsável pela paz no rio Doce, bastante entusiasmado, usando afirmativas como: “Creio que a civilização dos botocudos não será mais um problema para os incrédulos”; “Os colonos perderam o seu antigo assombro e vivem hoje abraçados com os naknenuks”; “Fui tratado por 161

Guido T. Marlière. Carta para o deputado à Assembléia, coronel João J. L. Mendes Ribeiro. Quartel do Retiro, 11/7/1825. RAPM, ano 10, 1905, p. 616. 162 Guido T. Marlière. Ofício para o comandante da 5.a Divisão do Rio Doce, 12/6/1826. RAPM, ano 11, 1906, p. 176. 163 Guido T. Marlière. Abelha do Itaculumy, 26/2/1825. 115

visionário quando clamava [...] que pelos meios opostos dos então usados, os botocudos deporiam seu furor; ei-los mansos: este é o meu aleluia”.164 Um artigo bastante literário publicado no Abelha pinta esse quadro de triunfo. Marlière mistura provavelmente realidade e ficção, demonstrando com bastante riqueza o seu estilo emotivo e literário: “The deserted village”165 [...] sábias medidas do Governo [...] reuniram em um só quadro, dois inimigos julgados dantes irreconciliáveis: os brasileiros, e os botocudos; na igreja de S. João. Falta-me o gênio do imortal poeta inglês Goldsmith, que o inspirou quando pintou em versos sublimes o seu Deserted Village, a aldeia deserta, para descrever a de S. João do Alfiel, [...] que tem sido abandonada pelas freqüentes devastações dos índios [...] Cheguei ali para assistir pela primeira vez, depois de reedificada a primeira igreja, a celebração da páscoa do Espírito Santo, que como se sabe dura três dias, seguido de uma coluna de índios pejaurum, de muitos soldados e da minha família: atravessei um povo numeroso de brasileiros hospedados pela maior parte nos bosques, por não caberem nas casas; e tive o gosto de ver os meus índios negociar francamente em todas as vendinhas algumas bagatelas do seu gosto, pagando com os cobres que d’antemão tinha repartido a cada um para este fim. [...] Outra emoção e algum arrepiamento causou, quando os índios ajoelhados na igreja, sobre os ossos dos muitos que ali jazem, mortos por eles, observaram um silêncio e um respeito que não se acha mais nos cristãos velhos que pela maior parte escolhem a igreja para conversações e negócios profanos. [...] Voltam os índios bem satisfeitos, vestidos, carregados de panelas e galinhas para criarem nas suas respectivas aldeias. [...] Edifícios novos se levantam; os velhos se consertam; o comércio, a indústria, a lavoura, a mineração e a confiança no Governo, nos encaminham sem susto, ao rio Doce; não falta quem queira vir derribar as suas antigas florestas. Retiro em 26 de maio de 1825.

Nesse artigo, Marlière demonstra literariamente os frutos de sua “fórmula mágica” de civilização, depois de atrair índios com demonstrações de amizade, distribuição de brindes e sustento, de misturá-los, aos poucos, com os “brasileiros”, pelo convívio, pelo incentivo a casamentos mistos, pela construção de estradas (segundo ele, “um poderoso meio de os civilizar por via do comercio e freqüentação”) etc. Notem-se, porém, vários artifícios nessa idílica cena. O dinheiro gasto pelos índios nas vendinhas fora distribuído pelo próprio Marlière. Os índios mostram-se arrependidos pelos assassinatos cometidos, assistindo à missa com gravidade (explicação um tanto inverossímil). Um ano e meio depois, a opinião dos colonos não era certamente a mesma. Os habitantes de São João do Alfiel foram alguns dos subscritores da representação que acusava Marlière de administração ilícita e de não tomar providências em relação aos ataques que sofriam 164

Guido T. Marlière. Ver ofícios para o marechal (9/9 e 26/10/1824) e para o presidente da província (19/9/1825). RAPM, ano 10, 1905, p. 483, 503 e 638. 165 Guido T. Marlière. “The deserted village”. Abelha do Itaculumy, 15/6/1825. 116

dos índios, os quais roubavam roupas e alimentos, destruíam suas plantações e atiravam-lhes flechas. Os colonos não aceitavam o argumento de Marlière de que “para a civilização dos ditos botocudos é preciso esta freqüência deles”, e reclamavam que “tal freqüência é muito gravosa”. Acusavam Marlière de não ter civilizado, nem catequizado um só casal de índios. Pintavam, portanto, um quadro oposto àquele publicado no Abelha do Itaculumy. A maior curiosidade, entretanto, é a estranha comparação da cidade descrita no poema Deserted village com a São João do Alfiel do sertão do rio Doce. O poema épico de Goldsmith retrata “a doce Auburn”, transformada pelo comércio e pela indústria crescentes da Inglaterra do século XVIII de idílica vilazinha do interior em um lugar descaracterizado no contexto dos cercamentos. Versos como: “But times are alter’d;/ Trade’s unfeeling train/ Usurp the land/ and dispossess the swain” (Porém os tempos mudaram;/ O trem insensível do comércio/ usurpa a terra/ e desapropria o camponês”166 fazem uma crítica ao progresso, que é festejado por Marlière em São João do Alfiel. Na análise do crítico Raymond Williams, “a lembrança da ‘doce Auburn’ evoca um tipo de comunidade, um tipo de sentimento e um tipo de poesia que não podem mais sobreviver sob a pressão do comércio insensível”.167 Williams encontra nos últimos versos do poema (“[...] o império do comércio há de acabar,/ como as ondas desmancham o quebra-mar [...]”)168 o que denominou de “estrutura romântica de sensibilidade — a afirmação da natureza em oposição à indústria e da poesia em oposição ao comércio; o isolamento da humanidade e da comunidade na idéia de cultura em oposição às pressões sociais concretas da época”.169 Esse sentido é justamente o contrário do que está ocorrendo no arraial de São João do Alfiel: é o próprio Marlière quem dá, no texto, um desfecho heróico ao “trem do progresso”: edifícios se levantam, o comércio, a indústria e a mineração se encaminham “sem susto” para o rio Doce, e suas florestas vão sendo derrubadas. No poema de Goldsmith, o passado é exaltado em detrimento de um presente amargo, ao passo que, na crônica de Marlière, o presente e o futuro são festejados em relação a um passado sombrio, quando a vila ficara deserta devido a invasões de índios. Quatro meses depois, Marlière enviou um artigo para ser publicado

166

Oliver Goldsmith (1730-1774). The deserted village. Disponível em: . Tradução minha. 167 Raymond Williams. O campo e a cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 [1973], p. 112-3. 168 Oliver Goldsmith. The deserted village. Citado em Raymond Williams, op. cit. 169 Raymond Williams, op. cit., p. 112-3. 117

no jornal O Universal no qual claramente promovia seu trabalho de civilizador de atrair colonos. No artigo, verdadeira propaganda colonizadora, enumerava as maravilhas que estavam acontecendo no rio Doce, como “meninos índios deitados e brincando sobre um colete velho dos outrora terríveis caçadores de índios”; alegres naknenuks nas canoas de Marlière, rumo ao aldeamento; fragmentos de pedras cravadas com ouro, provavelmente achadas no rio Doce; soldados derrubando “árvores sempiternas” para plantar o sustento dos índios “com quem vivem abraçados”, entre outras benesses. Pintava não mais a doce Auburn, mas o verdadeiro Eldorado. No final, lamentava: “O que desejava ver e não vi foi os numerosos sesmeiros darem principio à grande obra no rio Doce”.170 É difícil analisar os ganhos e perdas do método de civilizar de Marlière, para os índios e o Estado. No período que atuou, Marlière forneceu poucas informações de mistura efetiva entre índios e portugueses ou brasileiros (ele usa os dois termos). Não mencionou casamentos mistos. Não mencionou índios vendendo o fruto de seu trabalho, apenas vendendo sua força de trabalho — com exceção da atividade extrativista da poalha, na qual, segundo Marlière, em geral os índios eram enganados pelos atravessadores. O que aparece nas entrelinhas de seus escritos é a militarização de uma parte pequena dos botocudos; a criação de crianças botocudas por soldados e colonos, sobre as quais não discorreu profundamente; botocudos que se tornaram jornaleiros em pequenas propriedades, mal pagos ou sem pagamento algum. No início de 1829 — portanto, perto do fim de sua atuação —, em ofício ao presidente ele afirmava não haver guerra contra os botocudos, e que os que ainda não quiseram deixar a vida de povo caçador divagam amigavelmente pelas aldeias. O que nos deixa a certeza dever se executar a fusão da mocidade destes índios na massa brasileira, é a imensa quantidade de meninos de ambos os sexos, que se dão voluntariamente às famílias dos soldados das divisões e aos moradores dos arraiais vizinhos onde são ensinados ao trabalho e na religião.171

Não há informações sólidas sobre a vida desses kurukas (crianças botocudas) em meio às famílias de soldados e colonos. Nem sobre quanto de voluntário tinha essa “fusão da mocidade destes índios na massa brasileira”. Não teriam sido vendidos ou capturados? Eram eles “ensinados” ou forçados ao trabalho e à religião? O próprio

170

Guido T. Marlière. Artigo escrito para O Universal, Naknenuk, 30/9/1825. RAPM, 12, 1907 p. 641. 171 Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais. Quartel geral de Antônio Dias, 7/1/1829. RAPM, ano 12, 1907, p. 565-6. 118

diretor-geral se contradizia. Ora falava em exploração dos índios, ora pintava um quadro harmonioso entre colonos e índios. O plano de Marlière teve o fim da arguta previsão de Pierre-Victor Malouet. Em 1776, sobre a civilização dos índios em Caiena, Malouet diagnosticou: “Do momento que colocarmos uma enxada na mão desses índios, que os impedirmos de andar em bandos, não estarão eles assimilados aos nossos escravos? Certamente será menos difícil do que os tornar burgueses ou pequenos proprietários”.172 Do ponto de vista da questão da mão-de-obra, a maior parte dos botocudos, aos poucos, seria absorvida, assim como diversas outras nações, à classe mais baixa da sociedade: trabalhadores, mal pagos ou mesmo semi-escravizados. Para Saint-Hilaire, o resultado dos esforços de Marlière seria “acelerar a destruição daqueles de quem ele queria fazer a felicidade”. 173 Ao contrário do que pensava Saint-Hilaire, o método civilizatório de Marlière retardou a integração dos botocudos à sociedade nacional pelo inevitável andar de baixo. O método marlieriano foi chamado por John Manuel Monteiro de “transformação civilizatória em doses homeopáticas”.174 Talvez, pelo menos em relação aos botocudos, este foi o mérito do Marlière civilizador. Anos depois, já sem o apoio do Governo, o entusiasmo de Marlière foi esmorecendo. Em 1829, dois meses antes de aposentar-se, escreveu melancólico para o presidente da província, notando que suas boas intenções talvez tenham sido em vão, e que, sozinho, não poderia dar conta da felicidade dos seus filhos da selva: Os índios por todos os lados estão nus, pedem para se cobrir sendo eles já acostumados a vestir roupas, infelizmente nada mais tenho, vivem desgostosos e tristes; e eu escondo-me deles [...] Quando o ano passado fui mandado pelo Ex.mo Conselho de província inspetar a 5.a divisão e as aldeias, pedi, a V. Ex. um conto de reis em prata para acudir ao necessário em caso tão delicado: não se me respondeu; o que equivale a uma negativa. [...] Para poder servir bem, são indispensáveis os meios, e se estes se me negam, não me impute pelo futuro o retrocesso da civilização e o perdimento do que o Estado utilmente gastou nela; da minha parte teria, que perder o meu crédito, a minha reputação e também o amor,

“Du moment qu’on voudra mettre un bêche à la main de ces Indiens, qu’on le fera garder des troupeaux, ne se verra-t-il pas alors assimilé à nos esclaves? Certainement il serait moins difficile de les engager à se faire bourgeois ou rentiers [...]”. Lettre de M. Malouet sur la proposition des administrateurs de Cayenne relativement à la civilisation des indiens. Toulon, 16/7/1786. Citada em: Michele Duchet. Anthropologie et histoire au siècle dês Lumières. Paris: Albin Michel, 1995 [1971], p. 223. Tradução minha. 173 Auguste de Saint-Hilaire, op. cit., p. 95-6. 174 John Manuel Monteiro. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese de livre-docência. Campinas: Departamento de Antropologia, IFCH, UNICAMP, 2001, p. 140. 172

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e a confiança filial dos miseráveis índios, o que é pior que a morte para o homem sensível.175

Marlière etnógrafo Não é novidade que a etnografia praticada por acadêmicos ou por agentes de contato e o colonialismo sempre se combinaram. Conhecer os nativos para melhor catequizá-los já era uma prática jesuítica desde o século XVI. A partir do século XIX, muitos naturalistas vieram para o Brasil e produziram conhecimento sobre os índios no âmbito da história natural. Esse conhecimento não deixava de ser um interesse colonial, mas passava a ser igualmente científico. Nesse período, os agentes de contato continuaram a produzir conhecimento etnográfico, muitas vezes, mais qualitativo e quantitativo que os naturalistas. Estes últimos ficavam pouco tempo entre as diversas tribos e, geralmente, produziam assertivas apressadas, apoiadas em seu status científico e em teorias preestabelecidas. Spix e Martius, por exemplo, a respeito dos indígenas de Minas Gerais, escreveram poucas linhas, muitas delas baseadas em outros naturalistas e em conceitos preconcebidos, como foi o caso dos botocudos. Já Eschewege, Freyress e o príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied produziram uma etnografia mais cuidadosa, baseada em estadas mais demoradas nos sertões. Nesta seção, utilizaremos textos de Spix e Martius e de Wied-Neuwied como contraponto ao conhecimento produzido por Marlière. Muitas informações etnográficas podem ser encontradas ao longo da correspondência de Marlière, mostrando como esse conhecimento era útil ao seu trabalho de civilização dos índios. Porém, os textos iminentemente etnográficos foram publicados nos periódicos Abelha do Itaculumy e O Universal, e neles o francês descrevia a cultura dos botocudos de acordo com o modelo descritivo dos povos nativos praticado pelos naturalistas, elencando diversos aspectos, como religião, casamento, usos e costumes, língua etc. Nesses textos, ele também desenvolveu uma veia romântica, uma poética indigenista, transformando os índios com quem convivia em personagens românticos, como vimos. Apesar de ter definido três subgrupos indígenas — quais sejam, naknenuks, pejauruns e grakmuns —, diferenciou-os muito pouco ao longo de seus escritos, 175

Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, Guidowald, 13/4/1829. RAPM, ano 12, 1907, p. 577. 120

tratando-os normalmente por botocudos. Em geral, sempre manteve um discurso compreensivo em relação aos costumes indígenas. Raramente desdenhou-os. Uma dessas exceções foi quando comentou os botoques, ou imató, na língua botocuda: “A mocidade botocuda facilmente abandona este ridículo ornamento: os velhos o não podem, por perderem a saliva pela brecha enorme que deixa o imató”.176 Mesmo chamando o ornamento de ridículo, ele compreendia a manutenção do uso pelos mais velhos, querendo dizer que eles não teriam problemas culturais em deixar de usá-lo. Mais além dessa análise, a descrição mostra como o militar era tolerante com os hábitos tradicionais, sempre prevendo o fim deles, à medida que a civilização avançasse, a começar pelos mais jovens. Afinal, ele era um civililizador. Um civilizador que via a tolerância cultural como parte do processo. Há uma emblemática passagem de um de seus artigos, a qual remete para as conclusões da antropologia do século XX: a questão da troca, da reciprocidade nas sociedades indígenas. Tema fundamental em Lévi-Strauss e em Marcel Mauss, e bastante discutido até hoje. O caçador não prova da caça que mata; dá a outrem e este reciprocamente; pela razão, dizem eles, que se comessem, nunca mais acertariam os seus tiros. Uso comum dos botocudos, coroados, puris e coropós e por isso quando vou caçar com eles, eles tomam o que mato sem pedir, pensando talvez que uso o mesmo, também são muito liberais para comigo do que matam.177

“Pensando talvez que uso o mesmo”: essa frase atesta aquilo que chamamos de empatia de Marlière para com os índios. Em alguns momentos, ele procura pensar como os botocudos. Parece entender, esse sistema de reciprocidade dos índios como um etnólogo profissional. Permite que se apoderem de sua caça e reconhece que são generosos com o que caçam. É nesse tipo de passagem que podemos apreender mais do modo de ser botocudo. É a esse tipo de observação de um agente de contato que podemos aplicar as reflexões da antropologia do século XX, como a de James Clifford: A narrativa ou as narrativas da interação devem [...] tornar-se mais complexas, menos lineares e teleológicas. O que muda quando o sujeito da “história” não é mais ocidental?

Guido T. Marlière. “Reflexões sobre os índios da província de Minas Geraes, março de 1826”. In: Leda Maria Cardoso Naud (org.), op. cit., p. 313. 177 Guido T. Marlière. “Usos fúnebres dos botocudos e outros índios desta província. Idéias religiosas, superstições e comparadas com outros povos”. Abelha do Itaculumy, 17/2/1825. 176

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Como se apresentam as narrativas de contato, resistência ou assimilação do ponto de vista de grupos para os quais é a troca, não a identidade, o valor fundamental a ser afirmado?178

A narrativa de interação de Marlière teria dois propósitos: 1. mostrar às autoridades e ao público dos jornais que sua interação com os botocudos era responsável pela pacificação destes; 2. fazer etnografia como seus conterrâneos europeus vinham fazendo com seu auxílio. Assim, não era apenas mais um informante, e sim um naturalista amador que não publicava livros, e sim artigos em jornais. Enfim, a etnografia no âmbito da história natural estava em voga na Europa e vendia livros. Eram botânicos, mineralogistas, zoólogos que estavam escrevendo relatos etnográficos, pois atingiam o grande público, e não apenas o especializado. Assim, por exemplo, o assunto mais destacado do livro Jornal do Brasil 1811-1817, do mineralista Eschwege, publicado em Weimar em 1818, foram as populações indígenas do leste mineiro. Marlière publicava artigos em Ouro Preto, na expectativa de criar um público leitor dos costumes indígenas, como já havia na Europa. A empatia de Marlière com os índios permitia que desfrutasse momentos de convivência intensos. Foi o caso de uma festa puri feita em sua homenagem. O evento, que atravessou a noite, foi narrado por Marlière em carta endereçada a Eschwege, que a incluiu no Jornal do Brasil. Ao fornecer informações etnográficas para o amigo germânico, Marlière deixou transparecer seu prazer em fazer parte da festa. Num outro trabalho, comparei a descrição da dança puri de Marlière com a de Spix e Martius, e cheguei à conclusão de que o tom de cada narrativa era simplesmente oposto. Enquanto o primeiro, participante da festa, descrevia as danças com vivas cores — chamando as mulheres de “belo sexo”; sua pintura corporal, de “toilette” —, nos segundos, frios observadores, as danças despertaram “sentimentos melancólicos sobre a degeneração do humano neles [...] pelo caráter tristonho dessa festa, na escuridão da noite, a nossa impressão de pena ainda era maior”.179

178

James Clifford. The predicament of culture: twentieth century ethnography, literature, and art. Cambridge, Mass.: Harvard Univ. Press, 1988, p. 344. Citado em: Eduardo Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naif, 2002, p. 196. 179 Spix; Martius. Viagem pelo Brasil, 1817-1820, vol. 1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981 [1828], p. 228. Silvana C. Jeha. Nus ao redor do fogo: naturalistas germânicos na zona da mata mineira 1814-1818. UFF, 2003. mimeo. 122

Etnografia comparada Os botocudos levavam suas ferramentas e armas, além de mel e água, os israelitas levavam pão e vinho. Quando os falecidos tinham cães, os matavam para enterrar com o dono e informavam que alguns dos reis da África eram acompanhados na sepultura por seus servidores ainda vivos.180

Ao longo de seus escritos, Marlière comparou os costumes botocudos com os de povos antigos, como os citas e hebreus; de contemporâneos de outros continentes, como cossacos russos, africanos e indígenas canadenses; além dos vizinhos puris e coroados. Num outro episódio, fez uma comparação histórica e não etnográfica, ao relacionar a colonização de Portugal na América à Antiguidade: A prática que fez o capitão botocudo [...] me faz lembrar da dos citas a Alexandre, ainda, que diferente, vós, diz ele: ‘Ereis maus e cobardes. Por uma espiga de milho que os nossos filhos tiravam para saciarem a sua fome, os matáveis, quando nós não matamos a ninguém por comer as nossas bananas.’181

“Usos fúnebres dos botocudos e outros índios desta província. Idéias religiosas, superstições e comparadas com outros povos” foi o nome de um artigo de Marlière publicado no Abelha do Itaculumy de 4 de março de 1825. Vale lembrar o título da obra do padre jesuíta Lafitau, que serviu na colônia francesa da América do Norte, publicada cerca de cem anos antes: Moeurs des sauvages ameriquains, comparées aux moeurs des premiers temps (Costumes dos selvagens americanos, comparados aos costumes dos primeiros tempos). É muito provável que Marlière tenha tido algum contato com a obra de Lafitau ou com outras afins. Como o padre, era monogenista, ou seja, considerava os índios e europeus filhos do mesmo Deus: “A grande família dos homens é uma só, assim eu a contemplo, e tenho muitos companheiros na minha pátria desta opinião”.182 Ao valer-se de comparações com outros povos contemporâneos, ou antigos, queria mostrar que os botocudos eram passíveis de serem civilizados, unidos à “grande família dos homens”. A diferença é que Lafitau, assim como o pastor protestante do século

Guido T. Marlière. “Usos fúnebres dos botocudos e outros índios desta província. Idéias religiosas, superstições e comparadas com outros povos”. Abelha do Itaculumy, 4/3/1825. 181 Guido T. Marlière. Abelha do Itaculumy, n.o 135, 19/11/1824. 182 Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, 16/5/1825. RAPM, ano 12, 1907, p. 635-7. 180

123

XVIII, Charles Beatty, missionário dos índios da Pensilvânia,183 pautava seu argumento na Bíblia, querendo provar que os americanos seriam as tribos perdidas de Israel. Marlière, mais laico, ao comparar botocudos a outros povos, procurava elevar o status deles, visto que normalmente eram comparados com animais — como fez Blumenbach, ao dizer que o crânio botocudo era o crânio humano mais próximo do orangotango.184 Por sua vez, em 1827, o presidente de Minas, Francisco Pereira de Santa Apolônia, declarou peremptoriamente: “De tigres só nascem tigres; de leões, leões se geram; e dos cruéis botocudos (que devoram e bebem o sangue humano) só pode resultar prole semelhante”.185 E ainda vale citar “a medonha declaração”, para Teófilo Otoni, de “um oficial das divisões do rio Doce [...], pessoa de boas qualidades, e excelente militar”. Segundo Otoni, “quando os seus cães davam no rasto de algum destes infelizes, sentia ele as mesmas emoções que os outros caçadores quando os cães dão na batida de um veado”.186 Para Michele Duchet, ao utilizar comparações entre povos separados por séculos, mesmo considerando seus propósitos religiosos, Lafitau lança as bases de uma ciência do homem universal; ele substitui uma perspectiva histórica e geográfica por uma antropológica. [...] É significante, portanto, que seja pela tendência de uma etnologia comparada que a humanidade exótica, presente depois de dois séculos nos horizontes do pensamento moderno, entra no campo do saber.187

No ponto de vista de Duchet, a antropologia iluminista se desenvolve a partir de dois aspectos: Primeiro, pela sistematização de várias informações sobre povos recolhidas nas diversas viagens desde o século XV. Segundo, pela comparação do homem europeu primitivo ao selvagem. Segundo a autora, a metamorfose do homem selvagem no homem primitivo faz daquele um ser histórico, e ao mesmo tempo produz uma visão antropológica. [...] Assim se constitui o par selvagem/civilizado, que por um jogo de paralelos e antíteses, de uma escala de seres e de

Marlière citou Beatty: “Antes de findar a minha carreira posso dizer com o reverendo doutor Carlos Beatty d’América: ‘Abençoados aqueles que os beneficiam!’ ”. “Carta para João Stuart, solicitador da companhia do rio Doce sobre o estabelecimento desta companhia”, Guido-wald, 20/2/1833. IHGB, lata 12, pasta 15. 184 Manuela Carneiro da Cunha. “Política indigenista no século XIX”. In: idem (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 134. 185 Francisco Pereira de Santa Apolônia. Ofício para o visconde de São Leopoldo em resposta ao aviso de 1826. In: Leda Maria Cardoso Naud, op. cit. , p. 319. 186 Teófilo Otoni. Notícias sobre os selvagens do Mucuri. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002 [1858], p. 42. 187 Michele Duchet. Anthropologie et histoire au siècle des Lumières. Paris: Albin Michel, 1995 [1971], p. 15. Tradução minha. 183

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valores, comanda todo o funcionamento do pensamento antropológico até o começo do século XIX. O homem selvagem confunde-se com seus pares, citas ou germânicos [...].188

Creio que Marlière está inserido nesse pensamento. Além de comparar botocudos com citas e hebreus, o francês quer que se evitem no processo civilizatório erros já cometidos e condenados na história, como nas conquistas de Alexandre, o Grande, por exemplo. As palavras ditas pelo líder botocudo, condenando a colonização, eram também suas. Está ali parte de seu discurso indigenista, filiado ao discurso iluminista, que culpava a colonização pelos conflitos do contato.

“A mais bela e louvável nação de índio”. Aspectos físicos e morais Quanto ao físico e ao moral são eles a mais bela e louvável nação de índio que eu conheço; de talhe superior aos das outras nações, mais valorosos e de cor mais se aproxima a branca do que a de cobre [...]189

A nação mais estimada por Marlière — que havia lidado intimamente com pelo menos mais três grupos indígenas — eram os botocudos. Apreciação essa não compartilhada pela maioria dos brasileiros e mesmo pelos naturalistas, que os temiam e, portanto, lhes pintavam feia figura, apoiando-se no canibalismo e no botoque como elementos desfiguradores e estendendo essa impressão ao corpo físico, como fizeram Spix e Martius, ao encontrar um bando de botocudos no termo de Minas Novas, em 1817: As suas feições embrutecidas estavam desfiguradas horrorosamente pelos batoques de algumas polegadas de diâmetro, que eles metem [...] era de horror a nossa impressão, à vista destes homens, que, na sua aparência feia, quase não têm traço de humanidade. Indolência, embotamento e rudeza animal, estampam-se-lhes nos rostos quadrangulares, achatados, nos pequenos olhos esquivos; voracidade, preguiça e grosseria, patenteiam-selhes nos lábios inchados, na barriga, assim como em todo o torso troncudo e no andar de passos curtos.190

O príncipe Maximiliano de Wied descreveu-os com mais boa vontade, aproximando-se da opinião de Marlière: “A natureza dotou esses índios de boa compleição sendo eles mais bem conformados e mais belos do que os das demais tribos [...] são fortes [...] mas sempre bem-proporcionados, mãos e pés delicados”.191 Ainda

188

Ibidem. Guido T. Marlière. “Carta para João Stuart...”, Guido-wald, 20/2/1833. IHGB, lata 12 pasta 15. 190 Spix; Martius, op. cit., vol. 2, p. 55. 191 Maximiliano de Wied-Neuwied. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989, p. 285. 189

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completou, dizendo que quando “tratados com franqueza e benevolência não raro correspondem com mostras de bondade e até fidelidade e dedicação”. 192 Como Marlière, no entanto, não pode deixar de criticar os botoques, os quais faziam com que os rostos adquirissem “um aspecto altamente repugnante”.193 Assim, o problema não era o corpo, e sim os adereços do corpo. Num artigo do Abelha do Itaculumy, Marlière retratou seu herói botocudo, o capitão Orotinon, da seguinte maneira: “Saúde robusta, [...] corpulento, rosto nobre e animado, olhos pretos e bem rasgados, nariz grande sisudo por natureza, e não por estudo. Sangue frio inalterável, falando pouco, e comedido em todas as suas ações; em uma palavra infundindo respeito”.194 Mais uma vez, esta poderia ser a descrição de um personagem indígena de um romance. O indígena forte, imponente, em vez do índio fraco e feio de Spix e Martius. A novidade de Marlière era que esse lindo índio, literário até, era um botocudo. Apesar de, para o grande público local e europeu, a primeira descrição mais aprofundada dos botocudos ter sido a de Wied-Neuwied, as descrições que os depreciavam foram as que mais se alastraram durante todo o século XIX. Os botocudos corresponderiam às imagens bastante disseminadas do selvagem bruto, feio e incivilizável dos hotetontes da África e dos aborígines australianos. Segundo Bronwen Douglas, o viajante e naturalista Dumont d’Urville, ao comparar maoris e aborígines australianos, atribuiu apenas aos primeiros a possibilidade de civilizar-se, condenando os segundos ao desaparecimento por incapacidade de civilização. Sobre sua volta ao mundo, no fim da década de 1820, D’Urville escreveu: “Os ilhéus da Austrália e Tasmânia [...] são provavelmente os seres mais limitados e estúpidos e essencialmente os mais próximos da brutalidade irracional”.195 Assim, para Douglas, a descrição dos aborígines australianos de D’Urville “confluiu aparência física com moral, unido os dois numa rígida hierarquia de ‘perfeição’ política”.196 A aparência e a moral botocuda foram também fundidas para diagnosticá-los como seres “próximos da brutalidade racional”, seja no domínio científico, seja no domínio da política. O príncipe

192

Ibidem, p. 293. Ibidem. 194 Guido T. Marlière. Abelha do Itaculumy, 7/3/1825. 195 Citado em Browen Douglas. “Science and the art of representing ‘savages’: reading ‘race’ in text and image in South Seas voyage literature”. History and Anthopology, vol. 11, n.o 2-3, 1999, p. 159. Tradução minha. 196 Browen Douglas, op. cit., p. 169. Tradução minha. 193

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Maximiliano, Guido Marlière e, mais tarde, Teófilo Otoni seriam algumas das poucas vozes dissonantes. Antropofagia Marlière abordou com muita parcimônia a questão da antropofagia, o assunto botocudo mais polêmico — inclusive, como vimos, uma das bases para justificar a guerra justa a partir de 1808. Por duas vezes, afirmou que os botocudos da margem meridional do rio Doce, os grakmuns e os pejauruns foram antropófagos no passado, sendo que os naknenuks (da margem norte) nunca o foram, além de não usarem botoques. O passado a que Marlière se referia era a segunda metade do século XVIII, época em que o Presídio de Cuieté, fundado em 1746 [...] era seguro outrora para o fim a que se fundou por ser cercado dos gentios antropófagos botecudos, a quem não escapava um só fugitivo degredado sem ser comido; mas hoje que são amigos e mansos, eles são os próprios que guiam aos degredados para o interior não sabendo que obram mal.197

Portanto, Marlière atribui mais uma vez à pacificação uma qualidade, ou seja, os botocudos deixaram de ser antropófagos graças à ação dele como diretor de índios. Ainda foi mais longe, quando questionou o verdadeiro motivo da antropofagia no Abelha do Itaculumy: “Um problema que deixo para resolver, é se estes valorosos índios nasceram antropófagos, ou se nós os reduzimos a este excesso pelas nossas injustas agressões?”.198

Guido T. Marlière. “Reflexões sobre os índios da província de Minas Geraes, março de 1826”. In: Leda Maria Cardoso Naud (org.), op. cit., p. 313. 198 Guido T. Marlière. Abelha do Itaculumy, n.o 135, 19/11/1824. 197

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1.“Botocudos banhando-se no rio Grande de Belmonte, outubro de 1816”. 2.“Caçada sem sucesso a anta no rio Grande de Belmonte em outubro de 1816”. Cenas idílicas no rio Belmonte desenhadas pelo príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, mostrando os botocudos de maneira menos pejorativa que os viajantes posteriores. Na segunda cena, um botocudo caça junto com o europeu e “índios da expedição, em harmonia. Reproduzido de Viagem ao Brasil do príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied. Petrópolis: Kapa Editorial, 2001, p. 126-7. Biblioteca Brasiliana da Robert Bosch GMbH.

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O percursor da etnografia botocuda, o príncipe Wied-Neuwied,199 não presenciou práticas antropofágicas. Segundo seus informantes botocudos do rio Belmonte, no sul da Bahia, eles não praticavam a antropofagia, mas o capitão botocudo Jonue e outros patrícios, sim. Quack,200 o botocudo que foi para a Alemanha e principal informante de Wied-Neuwied, narrou histórias de antropofagia de outras facções, cujo conteúdo, segundo o príncipe, “tirava qualquer dúvida a respeito”. Spix e Martius se limitaram simplesmente a chamá-los de antropófagos. Segundo Izabel Missagia de Mattos, os relatos de antropofagia dos naturalistas e cronistas eram sempre baseados em observações indiretas ou informações de terceiros, o que Alfred Métraux, em seu Handbook of South-American indians, chamou de boatos — “hearsay histories”. Mattos aventa a hipótese de a atribuição da antropofagia ter perdurado por tanto tempo por ir ao encontro do próprio universo sociocosmológico dos botocudos: um informante de Curt Nimuendaju narrou o mito de um “povo semiengendário, os Tombréks, composto apenas de homens, antropófagos e habitantes das raízes nas imensas gameleiras das florestas do norte do rio Doce”. 201 Outros autores também questionaram o canibalismo botocudo, sublinhando que a atribuição era uma estratégia colonial para justificar os ataques. No meu ponto de vista, é possível que os botocudos tenham sido antropófagos até um certo período, e tal antropofagia deveria fazer parte de rituais muito específicos, não sendo uma prática cotidiana. A insistência em remover as más atribuições dos botocudos era um discurso contrário àquele vigente no período, dentro do Império, e condizente com certo discurso de iluministas como Raynal, que justificavam os defeitos dos índios como efeitos da colonização. A colonização os corrompeu. Não depreciar os selvagens seria portanto uma opção ideológica — assim como demonizá-los, como veremos adiante. Nesses autores, segundo Michele Duchet, “a antropofagia provém mais da dura condição do Segundo Wied, antes de seu livro, apenas “Blumenbach fez menção deles em seu tratado de Generis humani varietate nativa e Mawe tambem incidentemente a eles se refere”. Maximiliano de Wied-Neuwied, op. cit., p. 283. 200 Na correspondência de Marlière, há menção a um certo “botecudo João e sua família [...] já viajou à Alemanha, aonde lhe morreu a mulher, e veio buscar outra, que escolheu bem feia e pretende voltar, diz ele: sinto que fizesse tão poucos progressos na língua germânica: já o fardei e vou lhe dar outra espingarda que me requer porque tudo quanto recebeu da generosidade de Sua Majestade imperial teutônica bebeu: até uma magnífica espingarda, que um escrupuloso brasileiro (na forma do costume) lhe comprou por três patacas [...]”. Creio que se trata de Quack, pois não obtive notícia de outro botocudo que tenha ido à Alemanha. Guido T. Marlière. Ofício para o presidente de Minas Gerais, 18/2/1825. RAPM, vol. 10, 1905, p. 570. 201 Izabel Missagia de Mattos. Civilização e revolta: os botocudos e a catequese na província de Minas. Bauru: EDUSC; ANPOCS, 2004. 199

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homem selvagem do que de seus hábitos ferozes”.202 Marlière queria falar bem dos índios e, para tanto, usava freqüentemente a justificativa de que sua violência era uma defesa em resposta à colonização.

Guerra: superstição e valentia [...] são terríveis para com os inimigos e leais para os amigos. 203

Estranhamente, outro assunto pouco abordado pelo francês eram as guerras intertribais: elas foram apenas mencionadas. Izabel Missagia de Mattos, ao analisar o período da catequese capuchinha entre os botocudos no Mucuri, na segunda metade do século XIX, valeu-se, para compor seu estudo etnográfico, de uma freqüência considerável, nas fontes, de indícios do sistema de xamanismo relacionados à vingança e à guerra. Marlière limitou-se a mencionar o ódio que os botocudos cultivavam aos puris, aos quais chamavam “masvon”.204 Teófilo Otoni informou que “mavones” eram “jiporoks mal-intencionados”, segundo um índio naknenuk.205 Nas fontes consultadas por Missagia de Mattos, o termo também era empregado por botocudos para identificar os maxacalis. O etnônimo mavon servia para “identificar integrantes de grupos de pele escura, ‘roxa’, recobrindo-os de um valor pejorativo”.206 Marlière afirmou ter persuadido alguns chefes a cessar as guerras de facções e atribuiu a tribos de beira-mar (leia-se: de botocudos do Espírito Santo) a continuação destas. O francês também atribuiu à sua atuação a fraternização entre naknenuks e krakmuns e pejauruns, pois “viviam em guerra de tempos imemoráveis”.207

202

Michele Duchet, op. cit., p. 216. Tradução minha. Guido T. Marlière. Carta para João Stuart, solicitador da companhia do rio Doce sobre o estabelecimento desta companhia, Guido-wald, 20/2/1833. IHGB, lata 12, pasta 15. 204 Segundo Eschwege, puri era um vocábulo dos coroados que significava “homens ousados” ou “ladrões”: “Interessante é que os puris também [chamavam] os coroados de ‘puris’ ”. Wilhelm Ludwig von Eschewege. Jornal do Brasil, 1811-1817 ou Relatos diversos do Brasil, coletados durante expedições cientificas. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2002, p. 90. 205 Teófilo Otoni, op. cit., p. 68. 206 Izabel Missagia de Mattos, op. cit., p. 134. 207 Guido T. Marlière. Artigo escrito para O Universal, Naknenuk, 30/9/1825. RAPM, 12, 1907, p. 641. 203

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“Quando morre um botecudo principal, sempre o puri, ainda que bem afastado tem a culpa: e vai-se sobre eles como em romaria para os matar.”208 A esse hábito botocudo Marlière denominou de “lei do talhão”, numa ocasião, e “crença fanática”, em outra. Essa informação vai ao encontro da relação entre xamanismo e guerra, analisada por Izabel Missagia de Mattos, com base na etnografia de Curt Nimuendaju, realizada na década de 1930: Toda mortalidade indígena era concebida [...] como uma espécie de assassinato perpetrado pelos inimigos, responsabilizados pelo lançamento de flechas invisíveis e “envenenadas”. Todavia, a punição pelas mortes sobrenaturalmente provocadas, de forma paradoxal, ocorria através de ataques cuidadosamente planejados contra os inimigos, quando flechas [...] reais e mortíferas [...] eram disparadas contra as lideranças acusadas como responsáveis pela mortalidade sobrenatural.209

O fato de Izabel Missagia de Mattos ter encontrado fontes consideráveis sobre a guerra, no período pós-1845, e isso não acontecer nos documentos escritos por Marlière mais uma vez confirma a tolerância deste com os costumes indígenas, pois nem mesmo punições às eventuais batalhas foram mencionadas. Chegou a comentar uma única vez, contrariado, uma dessas expedições para matar puris organizada por seu aliado indígena, o capitão Pokrane, em vingança pela morte de parentes. Mas restringiu-se a informar que trouxeram despojos e prisioneiros, deixando transparecer que, apesar de não concordar com a prática, fazia vista grossa.210 Marlière deve ter interferido pouco nas guerras intertribais, para não colidir com princípios tão arraigados nos capitães, o que poderia afetar as parcerias. Não mencionou o destino desses prisioneiros; não informou se os botocudos os mantinham ou vendiam para os colonos. Numa carta a St.Hilaire, Marlière comentou que, em 1821, fora “informado horrores” sobre a compra e venda de filhos de índios em São Miguel.211 Porém, raramente voltou a tocar no assunto, uma vez que a tônica de seu discurso não estava em criticar os índios. A prática de prisioneiros de guerra é atestada por Wied-Neudwied numa aquarela entitulada “Um botocudo com seu prisioneiro”,212 onde o segundo é retratado com uma corda no pescoço, mantida pelo primeiro.

Guido T. Marlière. “Usos fúnebres dos botocudos e outros índios desta província. Idéias religiosas, superstições e comparadas com outros povos”. Abelha do Itaculumy, 17/2/1825. 209 Izabel Missagia de Mattos, op. cit., p. 68. 210 Guido T. Marlière. Ofício para o tenente-geral, 6/4/1825. RAPM, vol. 10, 1905, p. 596. 211 Guido T. Marlière. “Carta para St.-Hilaire”. Abelha do Itaculumy, 17/1/1825. 212 Ver Viagem ao Brasil do príncipe Maximiliano de Wied-Neudwied. Biblioteca Brasiliana da Robert Bosch GMbH. Petrópolis, Kapa Editorial, 2001, p. 109. 208

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Embora Marlière tenha evitado discorrer sobre episódios de violência entre botocudos, no pequeno vocabulário que elaborou em 1825, há indícios dessa violência. Entre os poucos grupos de palavras que elencou, tais como pronomes pessoais, cores, partes do corpo, dois deles dão pistas do cotidiano hostil vivido naqueles tempos. Além da tradução dos verbos ir e ser, traduziu apenas três verbos num grupo denominado “ação”, quais sejam: “dar até matar”, “espancar” e “bater”. O grupo “nomes das partes do armamento” continha dez palavras, abarcando os componentes do arco e da flecha, além do verbo “atirar a flecha”.213 Por outro lado, discorreu mais sobre a guerra dos colonos contra os indígenas, dando uma ou outra informação do modo de guerrear botocudo. Numa carta ao presidente da província, informou que os soldados aprisionaram e mataram muitas mulheres e crianças na guerra contra os botocudos. Explicou que não seria possível, já que “na historia dos botocudos não há exemplos deles levarem as suas famílias quando vão atacar; e eles as deixam ao longe na sua retaguarda”. Em seguida denunciou o modo de guerra praticado pela colonização: “[...] as famílias reunidas nas suas cabanas, dormindo incautas eram assassinadas no meio de uma noite escura pelos pedestres (indignos então do nome de soldados) que não tinham a coragem de fazer frente de dia, cobertos de coletes e bem armados a uns índios sem camisa!”.214 Marlière sempre condenou como covardes os ataques de emboscada da parte de colonos ou soldados. Em contrapartida, conforme seu discurso polarizador, o francês, num artigo no Abelha, elogiou a coragem de um capitão botocudo que, como vimos, atacou de peito aberto, a flechadas, soldados armados.

Língua: a dança dos vocábulos [...] os índios muito se afeiçoam àqueles que a entendem [sua língua] e já eles, principalmente os varões, vão entendendo o português.215 Guido T. Marlière. “Idioma ou línguas dos índios”. Abelha do Itaculumy, 12/1/1825. Guido T. Marlière. “Memória ao Il.mo e Ex.mo Sr. barão de Caethé, presidente da província de Minas Gerais”. Retiro, 14/12/1825. RAPM, vol. 11, Belo Horizonte, 1907, p. 114. Essa descrição corresponde à prática denominada décadas depois por Teófilo Otoni como “matar uma aldeia”. Segundo Otoni, “cerca-se a aldeia de noite — dá-se o assalto de madrugada. [...] Procede-se à matança. Separados os kurucas, e alguma índia moça mais bonita que formam os despojos, sem misericórdia faz-se mão baixa sobre os outros, e os matadores não sentem outra emoção que não seja a do carrasco quando corre o laço no pescoço dos enforcados”. Teófilo Otoni, op. cit., p. 48. 215 Guido T. Marlière. “Carta para João Stuart, solicitador da companhia do rio Doce sobre o estabelecimento desta companhia”, Guido-wald, 20/2/1833. IHGB, lata 12, pasta 15. 213 214

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Marlière, como os jesuítas, acreditava no conhecimento da língua como forma fundamental de viabilizar a civilização. Em 1825, publicou no Abelha um vocabulário botocudo: “Descubram-se metais em matéria de línguas indiáticas para as polir e tornar úteis à sociedade”.216 Anos depois, já aposentado, elaborou melhor esse vocabulário rudimentar, organizado num caderninho cuidadosamente manuscrito e intitulado pomposamente: “Vocabulário português-botocudo por Guido Thomaz Marlière, cavalheiro das ordens de São Luiz e de Cristo, coronel de cavalaria do Estado Maior do Exército e ex-diretor geral dos índios da província de Minas Gerais”.217 O militar insistiu várias vezes em que não haveria possibilidade de aproximação dos índios sem que se conhecesse sua língua. Exaltado, numa memória sobre civilização de índios dirigida ao Governo, criticava os padres locais que não conheciam as línguas indígenas: “Dizem que os índios não entendem o português e são uns brutos, e eles [os padres] por que não entendem a língua dos índios? Quem quer servir a Deus aprende: aprendam dos jesuítas. Não aprenderam latim para serem sacerdotes? Aprenderão agora a língua botocuda, puri, para serem missionários”.218 No vocabulário escrito em 1833, chegou a fazer comentários críticos das novas palavras criadas na língua botocuda a partir do contato com os portugueses. Por exemplo, o verbete “aguardente” foi traduzido pelos botocudos como “munhan enkro”. Em seguida ele explica o significado: “Deriva o nome de munham, água, e enkro, meter faca, esfaquear, matar, o que vem a ser pouco mais ou menos água que mata, que derriba a gente. Os selvagens do Canadá lhe chamam água que faz enlouquecer, eau qui rend fou”.219 Munhan enkro, além de ser um neologismo na língua nativa, denotava a percepção dos botocudos dos males que o alcoolismo podia causar. O francês também incorporou palavras do vocabulário indígena, como indica numa carta ao vigário de Jequitinhonha, na qual se dirige a este, carinhosamente, como “meu Juruju”.220 No Abelha do Itaculumy, ele mencionou que os índios o chamavam de capitão Nherame, demonstrando certo apreço por isso. Numa carta ao solicitador João Stuart, sobre a possível implantação da Companhia do Rio Doce, escreveu:

216

Guido T. Marlière. Abelha do Itaculumy, 29/4/1825. Guido-wald, 4/2/1833. Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, 1, 1, 3. 218 Guido T. Marlière. “Reflexões sobre os índios da província de Minas Geraes, março de 1826”. In: Leda Maria Cardoso Naud, op. cit., p. 313. 219 Guido T. Marlière. Vocabulário português-botocudo..., op. cit., 1833. Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, 1, 1, 3. 220 Não sei se essa palavra é botocuda, não a encontrei nos vocabulários de Marlière. 217

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Abençoados aqueles que os beneficiam! então terei o gosto de ouvir que os ingleses não são kings (nomes que eles algumas vezes me deram, quando já não tinha mais que darlhes). Este vocábulo na sua língua significa avaro, parco, vilão e todos os seus derivados; em uma palavra todo o contrário do que nós esperamos das qualidades dos reis. Em Inglaterra nunca se esperou que a palavra king fosse tão mal empregada entre os meus botocudos!221

Apesar de ter mencionado a palavra king pelo jogo de significados na língua botocuda e inglesa, mais uma vez dava pistas de que se expressava por palavras da língua indígena. O mundo em que viveu, desde que chegou ao leste mineiro, era sobretudo indígena, e o francês acabou imergindo nesse mundo, o qual, tantas vezes, traduziu. Segundo Marlière, os botocudos chamavam os brancos de “caratonha”, termo documentado pelo expedicionário Hermenegildo Alves no Mucuri, em 1836, como chretonhe, palavra botocuda para cristão. O termo também se assemelha a “krai krenton”, vocábulos que Izabel Missagia de Mattos identificou como designação dos não-índios do sexo masculino, cujo significado é “branco doido, metaforicamente soldado”.222 Nas relações de poder, como já foi observado, o vocábulo paqueju (chefe) era mantido entre os líderes indígenas, os quais também chamavam Marlière de paqueju. Marlière, por sua vez, instruiu-os que o gi-paqueju (muito grande, chefe dos chefes) era o imperador, e para isso mostrou-lhes um retrato de d. Pedro I. Nóbrega fizera o mesmo com os tupis da costa baiana, apontando, porém, o bispo da Bahia como o pajé-açu.223 Seguindo a hierarquia, Marlière passava ordens aos líderes indígenas chamadas “tapera”. Por outro lado, esses mesmos paquejus recebiam o título de capitães, e seus subordinados, de alferes e cabos. Chegou a referir-se ao seu amigo líder Orotinon como capitão Paqueju Orotinon. Antes mesmo de Marlière chegar, os líderes já eram chamados de capitães, como atesta o relato de Wied-Neuwied. E muito tempo depois, entrando pelo século XX, continuariam a ser chamados assim. Portanto, palavras com o

221

Guido T. Marlière. Carta para João Stuart, solicitador da companhia do rio Doce sobre o estabelecimento desta companhia, Guido-wald, 20/2/1833. IHGB, lata 12, pasta 15. 222 Izabel Missagia de Mattos. Borum, bugre, krai constitução social da identidade e memória étnica krenak. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 56. 223 Ronaldo Vainfas. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 110. Segundo sua análise da santidade Jaguaribe, “na batalha do monopólio da santidade, fundiam-se os sacerdotes, as crenças, os milenarismos”. Foi o que esse autor chamou de “processo aculturador de mão dupla”, em que “não resta dúvida de que os nativos assimilaram mensagens e símbolos religiosos cristãos, [...], mas é também certo que os jesuítas foram forçados a moldar sua doutrina e sacramentos conforme as tradições tupis”. 134

significado de “chefes”, nas duas línguas, foram usadas tanto para portugueses como para índios. Como em tantos outros sertões da Colônia e do Império, do ponto de vista das palavras, o contato se dava numa via de duas mãos, com traduções nas duas línguas.224

Casamento e relações amorosas Em 1828, o presidente da província enviou um questionário para Marlière, no qual, entre outras perguntas, figurava a seguinte: “Qual era o estado desses índios, se viviam em sociedades de famílias, ou em sociedades maiores; se havia nelas alguns costumes que servissem de norma de conduta”. O francês foi conciso na resposta: O seu estado era o de natureza em sociedades de famílias cujo maioral era sempre o reputado entre eles pelo mais valoroso. [...] [...] para os seus casamentos os pretendentes varões pediam aos pais da futura o seu consentimento acompanhado este peditório de presentes. A poligamia existia entre eles e ainda existe nos novamente convertidos à civilização.225

A dúvida sobre se havia “costumes que servissem de norma de conduta” não era apenas do presidente da província. Entre os que não conheciam os índios de perto — e, podemos dizer, entre alguns naturalistas — os botocudos eram animais sem lei. Portanto, perguntar se havia alguma norma de conduta era uma questão pertinente.226 A poligamia, assunto mais aprofundado por agentes de contato religiosos, não mereceu muita atenção de Marlière. Além dessa breve menção, ele comentou rapidamente, numa carta a Saint-Hilaire, as quatro mulheres do capitão Quitoste (cozinheiro), “das quais é zeloso como um tigre”.227 Não fez nenhum juízo de valor desse hábito. Quanto aos casamentos dos botocudos, ele havia fornecido mais informações três anos antes, no jornal O Universal:

224

Ver a questão da reciprocidade das traduções das línguas nativas e portuguesas pelos missionários jesuítas e capuchinhos em Alfredo Bosi. Dialética da colonização; John Manuel Monteiro. Tupis, tapuias e historiadores..., op. cit.; e Cristina Pompa. Religião como tradução..., op. cit. 225 Guido T. Marlière. Carta para o presidente de Minas Gerais, 28/3/1828. RAPM, ano 12, 1907, p. 525. 226 Lévi-Strauss parece responder à mesma dúvida do senso comum existente na época em que escreveu Estruturas elementares de parentesco, sobre a permissividade dos índios: “[...] o casamento deve ser social — isto é, definido nos termos do grupo, e não natural, com todas as conseqüências, incompatíveis com a vida coletiva, [...] em matéria de relação entre os sexos não se pode fazer o que se quer”. Claude Lévi-Strauss. Estruturas elementares de parentesco. Petrópolis; São Paulo: Vozes; EDUSP, 1976 [1946], p. 83. 227 Guido T. Marlière. “Carta para St.-Hilaire”. Abelha do Itaculumy, 17/1/1825. 135

Os seus casamentos são ajustes pelos pais em quanto aos filhos em seu poder [sic]: as viúvas e órfãs solteiras podem casar como e quando lhes parece. As cerimônias do casamento feito pelos pais são pouco mais ou menos estas ajustadas; entregam os noivos pela mão, acendem o seu fogo, fazem a cama nupcial coberta do ki-gemm e se retiram deixando a liberdade aos esposos. Quanto aos segundos; não tem mais cerimônias senão ir de noite o pretendente deitar-se nas costas da noiva: se esta o consente, está contraído; aliás, ele se retira.228

Marlière traduziu nesse mesmo artigo dois interessantes versos cantados durante as danças botocudas, as quais eram circulares; e, quando os participantes declamavam um verso, eram aplaudidos e todos repetiam o estribilho: ere-ré, “muito bom, muito bonito”. Segundo ele, como os puris e coroados, os botocudos dançavam para o Sol, a Lua, estrelas, amores e benfeitores. O primeiro verso seria de uma moça solteira, já o segundo, da mulher do capitão Nho-ene, ouvido no Cuieté: Tu que diz sou feia, porque vens de noite depois de meu fogo aceso, deitar-te devagar nas minhas costas. Não posso mais dançar Vou-me sentando Kejoh está em suor, Já está chorando

Assim, Marlière atribuía não somente normas de conduta aos botocudos, mas também sentimentos e certa complexidade dentro das relações entre homens e mulheres. Além de usar o conhecimento etnográfico como uma das bases de sua política indigenista — atendendo, intencionalmente ou não, ao chamado de Ferdinand Denis, o qual, como vimos, clamava pela coleta dos mitos e das crenças indígenas como base para a elaboração de uma genuína literatura nacional.

A religião

Deus e diabo No vocabulário botocudo de Marlière, Tupã significa Deus. É sabido que quem inventou essa tradução foram os jesuítas, em 1549, durante a catequização dos tupis da costa. O próprio padre Manoel da Nóbrega esclarece: “[...] GuidoT. Marlière. “Botocudos”, Retiro, 14/11/1825, escrito para O Universal. RAPM, ano 10, 1905, p. 650-2. 228

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apenas chamam os trovões Tupana, que é como dizer coisa divina. Assim não temos outro vocábulo mais conveniente para trazê-los ao conhecimento de Deus do que chamá-lo Pai Tupana”.229 Cristina Pompa chamou essa tradução de “linguagem de mediação”: “É a clássica pedagogia jesuítica: a utilização de elementos da cultura nativa como ‘linguagem’ para veicular conteúdos da fé católica [...]”.230 Segundo Pompa, no século XVII, os capuchinhos usaram o mesmo vocábulo para definir Deus entre os kariris e outros indígenas considerados tapuias no interior nordestino, fenômeno que ela chamou de filtro tupi.231 O percurso dessa tradução até os botocudos do século XIX é dificilmente recuperável. Outros agentes de contato do século XIX — como Saint-Hilaire, o expedicionário Hermenegildo Alves, o capuchinho frei Angelo de Sassoferrato e o professor Domingos Pacó — afirmaram que eles tinham noção de um ser supremo, denominado, em alguns, tupã e, em outros, kupan/cuppan. Não dá para saber se, de fato, os botocudos adquiriram esse vocábulo em seus intermitentes contatos com a colonização ou se, simplesmente, os agentes de contato se utilizaram desse filtro tupi para nomear o Deus dos botocudos. O importante é sempre estar atento a esse tipo de troca cultural, ou filtro, para entender a complexidade das traduções nos contatos entre portugueses e índios. Marlière certamente fez uma projeção cristã ao descrever os dois principais entes espirituais botocudos como correspondentes a Deus e ao diabo, e a vida após a morte com destinos correspondentes ao inferno e ao paraíso: Crêem geralmente em dois entes, que acreditam visíveis: Deus a quem chama Tupan; Diabo, que é o Nantshone. Ao primeiro honram com danças e cantigas análogas, e o consideram benfazejo; e dizem se lhes apresenta formoso, vestido de roupas alvas e bonitas. Ao segundo pintam muito mal trajado, malfazejo e feio até meter horror; não lhe tributam senão medo.232

O príncipe Wied-Neuwied grafou o nome do que ele chamou de “espíritos maus, pretos ou demônios” como “janchon”, e ainda especificou que eram divididos, sendo os os grandes chamados de “janchon gipakeiu” (gipakeju, segundo a tradução de Marlière, Manuel da Nóbrega. “Informação das terras do Brasil (carta aos padres e irmãos de Coimbra, Bahia, agosto de 1549)”. In: Serafim Leite (org.). Cartas dos primeiros jesuítas no Brasil (1538-1553). São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, vol. 1, 1954-7, p. 150. 230 Cristina Pompa. Religião como tradução..., op. cit., p. 32. 231 Ibidem. 232 Guido T. Marlière. Artigo escrito para o jornal O Universal, Retiro, 14/11/1825. RAPM, ano 12, 1907, p. 650-2. 229

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era chefe dos chefes) e os pequenos, “janchon kudgi”, afastando a hipótese de haver um só ente do mal, como quis Marlière. Acrescentou que, segundo a crença dos botocudos de Belmonte, sul da Bahia, tais espíritos visitam os túmulos recentes. Se houvesse fogueiras, eles dormiam junto ao fogo para depois irem embora; se não, desenterravam os mortos.233 A descrição do príncipe germânico, além de não conter projeções cristãs, aproxima-se mais da versão contemporânea desses entes, segundo a versão de Ailton Krenak: Nãjdion na verdade é uma ´assombração, espírito de gente que já viveu aqui na terra, mas foi tomado por correntes de energia ruim que ele mesmo aprontou com os outros aqui na terra [sic], então fica dissipando esta onda entre seus iguais até ser integrado nos ciclos de vento, água, sol, terra e fogo, ciclos naturais que limpam o cosmos, a terra.234

Paraíso e inferno Estes índios como os mais que conheço crêem geralmente em outra vida em penas e recompensas: A recompensa que dá Tupan aos que foram bons guerreiros caçadores, amantes das suas mulheres e filhos é matas virgens abundantes de frutas, caça e belos rios fartos de peixe: a pena para os covardes e preguiçosos; terras áridas, sem sombra, sem frutas e sem caça; rios sujos e estéreis de peixe com um sol abrasador.

Marlière utilizou esse conhecimento, que chamou de mito dos índios, para agradálos e com isso facilitar a civilização. Nos tempos áureos do contato com botocudos, escreveu que via com gosto os naknenuks trabalharem nas plantações, que “só deixavam quando o sol ardente os incomodava muito”.235 Ou seja, como sabia que abominavam o sol forte, compreendia que não deveriam ser obrigados a trabalhar nesse período do dia. No verbete “aldeamentos” do ABC da civilização enviado como resposta ao aviso de 1826, escreveu: “Aldeia fundada em campos jamais há de existir. O ardor do sol os mata e afugenta: até segundo a sua mitologia o castigo dos maus na outra vida é viverem em campos com um sol ardente, sem rios e sem caça”.236 Afirmou ter fundado aldeamentos em “matos virgens, pátria dos índios em a vizinhança de rios navegáveis, sendo possível, abundantes de peixe, que determinará sua fixidade pela abundância, daquele sustento, e o deleite dos banhos sem os quais não passam”.237 233

Ver Wied-Neuwied. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989, p. 319. Mais adiante, ver a descrição que Marlière faz do fogo nas sepulturas, na seção “Usos fúnebres”. 234 Ailton Krenak, e-mail enviado em 19/8/2005. Arquivo da autora. 235 Guido T. Marlière. “Memória dirigida ao barão de Caethé, presidente de Minas Gerais, 1825”. In: Leda Maria Cardoso Naud, op. cit., p. 309-10. 236 Ibidem. 237 Ibidem. 138

Assim, o aldeamento correspondia às dádivas concedidas por Tupã para os bons, e os índios veriam a colonização com bons olhos. Além de agradar aos índios, Marlière informava que não deixava de exercer sua função de torná-los úteis ao Estado, já que os aldeamentos funcionavam como escolas de canoeiros.

“Usos fúnebres” O militar conhecia e respeitava os sepultamentos dos botocudos. Num tempo de tantas mortes, os enterros eram freqüentes. Descreveu-os tanto no Abelha do Itaculumy como em O Universal. Neste último, a descrição é minuciosa: Preparam ao cadáver uma cama de cinzas dentro da cova (julgo que para o livrar da umidade), deposto nela é coberto com peles, se as têm, ou de casca de jequitibá batida e branda: cobrem tudo de terra e imolam-lhe os cães que têm, a quem dão também depois de mortos um bocado de carne para subsistência na viagem. Cobertos também os cães e a sua provisão edifica uma casa, a mais durável possível: com uma mesa dentro em que depositam as iguarias todas que podem ajuntar para o defunto e não contentes disto ao redor da casa sepulcral limpam o terreno e nele plantam abóbora, mandioca e milho para sua subsistência. Acendem duas fogueiras de lenha grossa de um e outro lado da sepultura, renovada cada dia enquanto os parentes ali permanecerem; e quando se ausentam abrem o mato de lado oriental para dar entrada ao sol. Cresce [sic] que se é homem tem perto de si armamento e canudos de mel e água; se mulher panela e água somente. Têm a superstição de crer que as almas dos defuntos aparecem debaixo da forma de uma onça magra em quem não penetra flecha por mais que se lhes atire. É certo que eles acreditam ter o diabo direito aos que são privados de sepultura e encontrando um defunto brasileiro recomendam logo, e pedem que o enterrem primeiro, que Nantshone venha.238

Mais uma vez, o conhecimento da cultura dos botocudos lhe proporcionava a vantagem de agradá-los, e comunicar esse agrado ao público dos jornais e autoridades. Nas plantações para índios do ano de 1825, Marlière ordenou aos soldados que desviassem a queimada da sepultura do filho e da nora do capitão Orotinon. Estimava o casal, plantou ali araucárias e comentou emocionado que encontrara as taquaras de mel, as cabaças d’água e plantações circulares de milhos e abóboras em volta do túmulo. Ainda informou que o capitão Paqueju Orotinon, “afastando-se destes saudosos lugares, e não podendo entreter todas as noites os fogos laterais às sepulturas, que costumava

Guido T. Marlière. “Botocudos”, Retiro, 14/11/1825, escrito para O Universal. RAPM, ano 12, 1907, p. 650-2. 238

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acender, abriu a machado do lado oriental uma entrada ao sol para aquecer aos seus filhos dormentes, durante a sua ausência”.239 Na Onça Pequena, uma velha foi enterrada com os mantimentos de costume e Marlière cedeu-lhes ainda uma quarta de farinha, conforme o pedido de seus parentes. Como vimos, quando o pai do pequeno Kijame, o capitão Jacu, morreu, o filho tratou de amortalhá-lo com “a farda e roupas mais finas”,240 que Marlière costumava dar aos chefes da nação. Aos poucos incorporavam-se o alimento e as vestimentas do colonizador, não só para os vivos, mas também para os mortos.

Conhecer, tolerar, civilizar Foi sobre esse tripé que Marlière se relacionou com os botocudos na década de 1820. Ao praticar uma política de aproximação empunhando, em geral, a bandeira branca e distribuindo agrados aos índios, ele afirmou ter conseguido pacificá-los. A partir de acordos com os chefes, logrou introduzir diversos subgrupos dentro de uma hierarquia militar. Ao criar pactos com os líderes indígenas, entendia que seus liderados estavam igualmente subordinados. O francês também se valeu do conhecimento dos costumes dos índios, de sua cultura, para poder planejar melhor seu processo civilizatório. Assim, para tolerá-los, era necessário entender seu modo de vida, procurando transformá-los aos poucos, com a convivência, a necessidade de bens materiais e a educação dos jovens. Essa elaboração vinha de uma combinação de suas idéias iluministas com a prática que foi adquirindo no contato contínuo com indígenas por dezesseis anos. Além disso, escorava-se em práticas coloniais anteriores. Nem sempre as estratégias marlierianas foram bem-sucedidas. Enquanto os presidentes da província e a Corte estavam satisfeitos com seus relatórios, recebia verbas e agia livremente. Porém, os colonos e outros oficiais, desgostosos com a tolerância em relação aos indígenas, fizeram com que as autoridades provinciais e da Corte também as questionassem. Colonos estavam descontentes, soldados desertavam, e

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Guido T. Marlière. Artigo escrito para O Universal, Naknenuk, 30/9/1825. RAPM, 12, 1907, p. 641. 240 Guido T. Marlière. “Notícias sobre os botecudos”. Abelha do Itaculumy, 5/1/1825. 140

os próprios índios deram sinais de desagrado, quando Marlière começou a perder o controle. Aos poucos, ele foi se isolando, e ao mesmo tempo ficava velho e adoecia, até ser reformado. Muitas décadas depois, já no século XX, na memória da região e na Revista do Arquivo Público Mineiro, ele foi evocado como herói, civilizador e desbravador das matas. Na historiografia do século XIX, até onde pude averiguar, apenas o padre Januário da Cunha Barbosa, em 1839, na famosa monografia publicada na Revista do IHGB, defendendo a brandura em detrimento da força, citava o benemérito Marlière, que por mais de vinte anos havia possuído “a maior confiança de indômitos indígenas”.241 Mesmo com a empatia e a tolerância, o fim de seu método era a assimilação dos índios, como era corrente em todo o Império do Brasil e também em outras partes do Novo Mundo. Sua particularidade era querer aplicar a brandura de seu discurso na prática das relações luso-ameríndias e priorizar os índios em detrimento dos soldados e dos colonos. Procurei demonstrar que a vida de Guido Thomaz Marlière, seu discurso, sua profissão e o conhecimento etnográfico por ele produzido eram indissociáveis. A civilização ou pacificação por ele praticada foi fortemente marcada por sua complexa trajetória. Mas, como nenhum homem é uma ilha, foram essas mesmas particularidades que ruíram sua relação com boa parte dos colonos e oficiais, os quais não viam muitas vantagens em seus métodos com os botocudos. À exceção da “menção honrosa” do padre Cunha Barbosa na Revista do IHGB, Marlière passaria a ser cultivado como herói civilizador e desbravador das matas somente a partir do século XX.

Januário da Cunha Barbosa. “Qual seria hoje o melhor systema de colonizar os índios entranhados em nossos sertões: se conviria seguir o systema dos jesuítas, fundado principalmente na propagação do christianismo, ou se outro do qual se esperem melhores resultados do que os actuaes”. Revista do IHGB, t. II, 1840, p. 13. 241

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CONCLUSÃO O período abordado por esta dissertação é de transição. Transição do período colonial para o imperial. Do século XVIII para o XIX. Transição da legislação indigenista. Transição do pensamento etnográfico do campo da filosofia para o da ciência. Procedimentos coloniais como a guerra justa e o trabalho indígena administrado entravam século XIX adentro. Dois agentes indigenistas, aqui chamados de civilizadores, eram agentes de um ideal civilizador propagado pela Corte em sertões violentos. Violência que se originava na própria colonização e também de conflitos anteriores entre os próprios índios, que se transformariam com o contato, tornando mais complexo o sistema de relações nos sertões. Os conflitos se davam entre os diversos atores: soldados, pequenos proprietários, ex-escravos, degredados, índios aldeados, índios do sertão... Chagas Lima era um evangelizador. Seus argumentos sobre a civilização dos indígenas eram baseados na conversão e nas leituras bíblicas. Seu humanismo, enfim, era bíblico. Marlière, por seu turno, estava imerso nas idéias da Ilustração, intermediadas por sua trajetória de vida e pela leitura dos filósofos e dos naturalistas. Acrescia a sua formação militar, sem a qual não sobreviveria tantos anos no sertão. Ao que parece, o que teria possibilitado a sobrevivência de Chagas Lima foi sua fé. Apesar de defender os índios, principalmente da intolerância dos colonos, as reflexões de Chagas Lima e Marlière não alcançavam qual seria o futuro dos índios civilizados. O pensamento assimilacionista da Corte, reproduzido e praticado pelos dois, defendia a civilização dos índios como “aumento dos braços da agricultura”, militarização e cristianização, entre outras atribuições. O processo civilizatório, ao fim e ao cabo, incorporaria os índios às classes mais baixas da sociedade. Ou seja, as ações de ambos, assim como as de tantos outros agentes civilizadores, transformariam os índios naqueles que os próprios agentes civilizadores desprezavam: brasileiros pobres e desapropriados . Este era o paradoxo: como índios, selvagens, e com sua própria lógica de comportamento, eles deveriam ser bem tratados e depois misturados ao resto da população. Esse tratamento diferenciado terminaria por ser o mesmo dado ao povo em geral. Como bem observou Alfredo Bosi a respeito da colonização: “Em todos

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manifesta-se cândida e lisamente o propósito de explorar, organizar e mandar, não sendo critério pertinente para uma divisão de águas a condição de leigo ou de religioso de quem escreve”.1 Os fins foram, em geral, os mesmos; os meios eram, no entanto, diversos. Se os fins da colonização são conhecidos, os meios, nem tanto. Creio que estudar os diversos processos civilizatórios nos sertões brasileiros seja um dos pontos fundamentais para a elaboração de uma história do contato que não trate apenas da extinção. Como ainda escreveu Bosi, “de empatias e antipatias se fez a colonização”. Cabe aos historiadores destrinchar o que o autor chamou de “transplantes bem logrados” ou “superposições que não colam”.2 Do lado dos índios, sejam os assimilados, sejam os que preservaram certa autonomia, houve diversas reelaborações identitárias, como vêm demonstrando vários estudos. No caso desta dissertação, esse tipo de análise foi mais tímido, uma vez que ela trata dos anos iniciais do que chamo de contato contínuo e sistematizado com os kaingangs e botocudos. Apesar de seus grupos ancestrais já aparecerem na documentação desde o século XVI, foi no início do século XIX que narrativas mais consistentes foram elaboradas. Enquanto uma parte considerável dos grupos aqui estudados morreu doente ou assassinada, outra parte sobreviveu e viveu, misturando-se com negros e brancos, entrando no mercado de trabalho ou continuando a viver em aldeias próprias, adaptando seu modo de vida à nova realidade do contato com o colonizador. Procurei recuperar esses aspectos ao analisar episódios cotidianos do contato, em vez de pautar-me pelas estatísticas de desaparecimento. Nas palavras de Isabel Missagia de Mattos, o exame da história dos índios correspondente à implantação de um modelo “civilizador” de administração indígena, se, de um lado, fornece visibilidade aos mecanismos através dos quais este processo de “desaparecimento” foi planejado e efetivado, por outro lado, revela seus malogros, observados nas situações e práticas cotidianas.3

O modo de ser dos kaingangs e botocudos, em alguns momentos, tornaram mais lenta a “marcha da civilização”. O simples fato de manterem parte de sua religião, de suas técnicas de sobrevivência no território em que viviam tradicionalmente — enfim, de terem, em parte, escolhido como lidariam com a colonização —, possibilitou a sobrevivência e vivência de partes dos grupos aqui estudados. Por outro lado, a 1

Alfredo Bosi. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 [1992], p. 34. Ibidem, p. 30. 3 Isabel Missagia de Mattos. Civilização e revolta: os botocudos e a catequese na província de Minas. Bauru: EDUSC; ANPOCS, 2004, p. 438. 2

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sobrevivência também contava com a apropriação de meios do colonizador, como a remissão às autoridades e a adoção dos alimentos e de artefatos manufaturados. Mesmo com sua cultura modificada pelo contato, era possível manter-se índio e usufruir de algumas vantagens desse status. A diferença entre os agentes civilizadores e os contextos de cada região também marcou profundamente suas histórias. Estou convencida de que, cada vez mais, o estudo das populações indígenas depende de abordagens interdisciplinares de história e antropologia. O cotejo dos dados obtidos por estudos das duas disciplinas é instrumento fundamental para a compreensão da história indígena, com todos os riscos que se correm. Assim, a análise da cosmovisão dos kaingangs e botocudos, de sua relação com o meio ambiente, da língua, entre outros aspectos de sua cultura, ajuda a entender suas respostas e adaptações à colonização. As manutenções ou reelaborações identitárias e o genocídio nas relações coloniais, via de regra violentas, são aspectos da mesma história. Finalmente, é preciso refletir sobre a questão da narrativa do contato lusoameríndio. Não cabe aqui lamentar que os índios brasileiros não tenham produzido sua própria narrativa escrita. Em geral, a narrativa dessa história, pelo menos até o século XIX, é feita pelo colonizador. Por intermédio das ações descritas e das falas reproduzidas por esses narradores, mesmo que para amparar seus próprios argumentos, podemos nos aproximar dos índios. Creio que consegui resvalar esse intento, procurando entender o modo de pensar de Chagas Lima e Marlière para melhor analisar seus escritos e cotejá-los com outros autores cujo objeto eram os mesmos grupos indígenas com que eles lidaram. Os dois capítulos centrais deste trabalho apresentaram diferenças em suas estruturas e conclusões, devidas às próprias diferenças dos narradores, do contexto e da documentação. A intenção de uni-los, além de refletir brevemente sobre o pensamento indigenista na Corte, se deve à necessidade de construir a história indígena através da história local, e da compreensão de que, na história do Brasil, apesar de o Estado ser um só — ainda que em formação no século XIX —, as nações são inumeráveis.

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