O Paleolítico Médio no território português
Telmo Pereirai, Jonathan Hawsii e Nuno Bichoiii
Resumo: No presente artigo apresenta-se um breve resumo sobre o estado da arte do Paleolítico Médio em Portugal abordando-se a indústria lítica, o registo faunístico e os padrões de assentamento. Embora o número de jazidas ainda não seja muito grande, parece ser claro que o território português terá sido aquele onde sobreviveram os últimos Neanderthais. Ao mesmo tempo, parece também ser claro que, pelo menos desde há pelo menos ~240 mil anos, estas comunidades apresentavam um leque de características comportamentais singulares, que as distinguiam dos grupos situados além Pirenéus. De facto, enquanto estes eram especializados na caça e exploração da rena com utensílios de sílex, os localizados no território português eram especializados na exploração eclética dos recursos disponíveis. Tal diferença poderá estar relacionada com as substanciais diferenças climáticas e paisagísticas, dado que o território em causa não apresenta indícios de forte impacto das fases mais rigorosas das glaciações. Esta exploração variada dos recursos parece estar na base da tardia sobrevivência dos grupos neanderthais no extremo ocidental da Ibéria. Palavras-chave: Paleolítico Médio; Moustierense, Exploração de recursos; Portugal.
Resumen: En este artículo se presenta un breve resumen sobre el estado del arte del Paleolítico Medio en Portugal enfocandose la industria lítica, el registro faunístico y los patrones de asentamiento. Aunque el número de depósitos no sea muy grande, parece claro que el territorio portugués ha sido donde los últimos neanderthales sobrevivieron. Al mismo tiempo, también parece claro que, al menos por lo menos ~ 240 mil años, estas comunidades tenían una serie de características únicas en su comportamiento que las distingue a los grupos situados más allá de los Pirineos. De hecho, mientras que estos eran expertos en la caza de renos con herramientas de sílex, los situados en el territorio portugués se especializan en la exploración ecléctica de los recursos disponibles. Esta diferencia puede estar relacionada con las diferencias sustanciales en el clima y el paisaje, ya que la zona en cuestión no muestra evidencia de fuerte impacto del endurecimiento de las fases de la glaciación. Esta explotación variada de recursos parece ser la base de la supervivencia tardía de los grupos neanderthales en el extremo occidental de Iberia. Palabras-clave: Paleolítico Médio; Moustierense; Explotacion de recursos; Portugal.
Bolseiro de pós-doutoramento, Núcleo de Arqueologia e Paleoecologia, Universidade do Algarve, Campus Gambelas, 8005-139 Faro PORTUGAL. E-mail:
[email protected]. ii Professor Associado, Department of Anthropology, College of Arts & Sciences, University of Louisville, Lutz Hall Room 228, 2301 S. 3rd St., Louisville, KY 40208, USA. E-mail:
[email protected]. iii Professor Associado, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, University of Algarve, Campus Gambelas, 8005139 Faro PORTUGAL. E-mail:
[email protected] i
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El Paleolítico Medio en el territorio portugués
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Telmo Pereira, Jonathan Haws e Nuno Bicho
The Middle Paleolithic in the Portuguese territory Abstract: In this paper we present a brief synthesis of the Middle Paleolithic in Portugal, focusing both the lithic and faunal assemblages, along with the settlement patterns. Despite the number of sites being small, it seems clear that the Portuguese territory might have been that where the last Neanderthals have lived. At the same time, it also seems that since ~240ka these communities presented a spectrum of particular behavioral features that allow us to distinct them from those located at East of the Pyrenees. In fact, while these were specialized in hunting and exploitation of reindeer with flint tools, those located in Portugal were specialized in the exploitation of a wider diversity of available resources. Such difference might be related with strong differences on environment and landscape, once this territory did not present evidence of strong impact in the most rigorous phases of the glacial periods. This diverse exploitation might have been the base of the survival of Neanderthal populations in the southwesternmost part of Iberia. Key-words: Middle Paleolithic; Mousterian; Resource Exploitation; Portugal.
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Introdução Durante a centúria que vai da década de 1870 e a de 1970, a Comissão Geológica de Portugal, posteriormente designada de Serviços Geológicos de Portugal, teve o quase monopólio da investigação do Paleolítico Inferior e Médio em Portugal. O primeiro contexto de Paleolítico Médio escavado em Portugal foi a Gruta da Furninha1, cuja escavação teve um rigoroso registo vertical e horizontal da proveniência dos artefactos, bem como uma rápida publicação e divulgação internacional dos resultados. Apesar deste promissor início e da existência de vastas regiões cársicas, a investigação neste período derivou ainda durante o século XIX para métodos incipientes, onde a escavação de jazidas deu lugar a simples prospecções recolha de artefactos descontextualizados existentes nos terraços mé-
dios das bacias dos grandes rios e das praias elevadas do litoral2. A idade dos sítios era inferida pela combinação dos princípios altimétricos e eustáticos do ciclo alpino3 em associação com o “Método das Séries”4. Esta metodologia foi utilizada sempre da mesma forma e nunca foi substituída, calibrada ou corrigida pelos progressos introduzidos pela arqueologia científica5. Não é pois surpreendente que de tal abordagem simplista tivessem resultado, por um lado, a incapacidade de caracterizar este período tecno-tipologicamente, reconhecer-lhe variações internas como em França6 e, por outro, tivesse permitido obtenção de inferições como a evolução directa do Acheulense para o Languedocense7 ou do Moustierense para o Solutrense8. Apesar deste status quo se tivesse mantido até à primeira década do Século XXI9 , o corte epistemológico deu-se na década de 1970 pela
1 DELGADO, J. (1884). 2 BREUIL, H. E ZBYSZEWSKI, G. (1942); BREUIL E ZBYSZEWSKI, G. (1945); ZBYSZEWSKI, G. (1958); ZBYSZEWSKI, G. (1943A). 3 PENCK, A. E BRÜCKNER, E. (1909). 4 BREUIL, H. E ZBYSZEWSKI, G. (1942). 5 BORDES, F. (1961b); SONNEVILLE-BORDES, D. E PERROT, J. (1954); SONNEVILLE-BORDES, D. E PERROT, J. (1955); SONNEVILLE-BORDES, D. E PERROT, J. (1956). 6 BORDES, F. (1961b). 7 ZBYSZEWSKI, G. (1974). 8 ZBYSZEWSKI, G. et al. (1977). 9 ZBYSZEWSKI, G. E CARDOSO, J. (1989); ZBYSZEWSKI, G. E FERREIRA, O. (1989).
O Paleolítico Médio no território português
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mão do Grupo para o Estudo do Paleolítico Português (G.E.P.P.) com que introdução dos princípios da escola antropológica francesa e da arqueologia científica. As intensivas prospecções na bacia do Tejo permitiram localizar dezenas de jazidas inéditas (Figura 1) e escavar as mais significativas como Milharós10, Vilas Ruivas11, Foz do Enxarrique12. A partir daí, a continuação dos trabalhos tem permitido enriquecer o conhecimento sobre a ocupação neanderthal no extremo ocidental da Península, principalmente graças à vinda de investigadores estrangeiros, ao crescente número de projectos interdisciplinares financiados e à multiplicação de datações absolutas. Apesar deste incremento, salienta-se a ainda pouca quantidade de trabalhos académicos, existindo menos de uma dezena de mestrados e nenhum doutoramento.
Durante décadas a cronologia das estações de Paleolítico Médio era inferida pela classificação dos artefactos segundo o seu aspecto moustieroide em combinação com o “Método das Séries”13, o qual partia do princípio do uniformitarismo. Considerava-se que aqueles tinham estado sujeitos a índices de erosão estáveis e constantes ao longo do tempo pelo que, quanto maior fosse a sua alteração maior seria a sua antiguidade. Dado que se tratavam de jazidas de superfície ou provenientes de cascalheiras, a presença de artefactos com patinas distintas denunciava a existência de palimpsestos e das várias épocas que tinham contribuído na formação do conjunto arqueológico. Essas séries de patinas eram ordenadas e subdivididas da mais para a
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Figura 1. Mapa dos sítios do Paleolítico Médio, Centro e Sul de Portugal. 1. Buraca Escura; 2. Pedrõgão; 3. Casal do Azemel; 4. Casal Santa Maria; 5. Mira Nascente; 6. Praia Rei Cortiço; 7. Lapa dos Furos; 8. Estrada do Prado; 9. Gruta do Caldeirão; 10. Santa Cita; 11. Galeria Pesada; 12. Gruta da Oliveira; 13. Lapa dos Coelhos; 14. Ribeira da Atalaia; 15. Vilas Ruivas; 16. Foz do Enxarrique; 17. Furninha; 18. Gruta Nova da Columbeira; 19. Vale do Forno; 20. Quinta da Boavista; 21. Arneiro Cortiço; 22. Salemas; 23. Santo Antão do Tojal; 24. Correio-Mor; 25. Conceição; 26. Gruta da Figueira Brava; 27. Gruta do Escoural; 28. Sapateiros 2; 29. Vinhas; 30. Porto Meirinho; 31. Lagoa Funda 1; 32. Lagoa Funda 2; 33. Lagoa Funda 3; 34. Lagoa do Bordoal; 35. Vale Boi; 36. Ibn-Amar; 37. Praia da Galé.
menos intensa (Ia, Ib, etc.), sendo a primeira a mais antiga e sempre correspondente à Série I. Um dos problemas deste método era o de, por um lado, o número das séries só fazer sentido dentro de cada conjunto, não representando
RAPOSO, L. (2001); RAPOSO, L. (1996). G.E.E.P. (1979); G.E.E.P. (1983). RAPOSO, L., et al. (1985). BREUIL, H. (1913); BREUIL, H. E ZBYSZEWSKI, G. (1942).
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Cronologia do Paleolítico Médio em Portugal
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uma cronologia concreta, pelo que é, ainda hoje, impossível qualquer comparação inter-sítio fazendo-se uso apenas da bibliografia. Paralelamente, o depósito geológico onde a jazida se encontrava era datado por princípios altimétricos e eustáticos do ciclo alpino14. Com este protocolo de análise, a equipa dos Serviços Geológicos conseguiu relacionar esta “cultura” aos terraços médios e baixos das bacias dos grandes rios, cuja formação era atribuída à glaciação de Würm15. Nas últimas décadas, contudo, este problema foi ultrapassado pela obtenção de um conjunto alargado de datações absolutas, que ultrapassam já as oitenta datações utilizando diferentes métodos, nomeadamente, 14C, AMS, U-Th, OSL e TL (Tabela 1). Infelizmente, algumas delas têm desvios padrões demasiado grandes, o que faz com que sejam virtualmente inúteis na tarefa de enquadrar cronológica e com pormenor as diferentes particularidades de cada ocupação, de forma a gerar-se uma sequência-chave regional detalhada. Paralelamente, existem outras obtidas para contextos subjacentes a camadas com artefactos característicos do Paleolítico Superior, mas em contextos com intensa bioperturbação, o que faz com que não seja possível perceber se o resultado corresponde a uma ou outra fase, levando a que fique aberta a possibilidade de discussão dos processos de substituição das comunidades neanderthais com tecno-comple-
Telmo Pereira, Jonathan Haws e Nuno Bicho
xo moustierense pelas de humanos anatomicamente modernos com tecno-complexo típico de Paleolítico Superior16. São, entre outros, os casos da Gruta do Caldeirão17 e Gruta Nova da Columbeira18. Finalmente, registam-se ainda alguns sítios, muitas vezes escavados em áreas significativas e como medida preventiva da sua destruição pela construção de habitações e infra-estruturas, que nunca foram e nunca poderão ser datados. Nalguns destes casos, tal informação teria sido da maior importância, uma vez que são dotados de grandiosas colecções artefactuais, especificamente indústria lítica, e a obtenção de um valor absoluto cronométrico permitiria enquadrar numa sequência temporal, os padrões tecnológicos e tipológicos das comunidades neanderthais. Entre estes casos encontram-se, por exemplo, Sapateiros 219, Porto Meirinho20, Santa Cita21, Estrada do Prado22, Quinta da Boa Vista23 ou Arneiro Cortiço24. Os resultados existentes, e particularmente aquele obtido para a camada inferior das Galerias Pesadas (Grutas do Almonda), parecem indicar que, no território em causa, o Paleolítico Médio já estaria presente há ~240ka25. Porém, esta datação é, também ela problemática, e poderá corresponder apenas a cerca de metade deste valor, isto é, ~120ka. Este valor mais recente está em concordância com outros contex-
14 PENCK, A. E BRÜCKNER, E. (1909). 15 BREUIL, H. E ZBYSZEWSKI, G. (1942); BREUIL, H. E ZBYSZEWSKI, G. (1945); ZBYSZEWSKI, G.(1958); ZBYSZEWSKI, G. (1943a); RAPOSO, L., SALVADOR, M. E SILVA, A. (1985); RAPOSO. L. (2001); RAPOSO, L. (1996); G.E.E.P. (1979); G.E.E.P. (1983). 16 ZILHÃO, J. et al. (2010); BICHO, N. (2005A); ZILHÃO, J. et al. (2011). 17 ZILHÃO, J. (1997). 18 ZBYSZEWSKI, G. (1963); CARDOSO, J. et al. (2002); FERREIRA, O. (1984); ZILHÃO, J. et al. (2011). 19 CURA, S. (2003). 20 CARRONDO, J. (2006). 21 BICHO, N. E FERRING, R. (2001); BICHO, N. (1997); LUSSO, T. et al. (2001). 22 GEMA CHACÓN, M. E RAPOSO, L. (2001); MATEUS, J. (1984). 23 MORAL DEL HOYO, S. et al. (2003). 24 GASPAR, R. E ALDEIAS, V. (2005). 25 MARKS, A. (2005); MARKS, A. et al. (2002); MARKS, A., MONIGAL, K. E CHABAI, V. (1999); MARKS, A. et al. (2000).
tos datados também neste complexo cársico26. Contudo, esta cronologia, anterior ao MIS 5, indica portanto que a atribuição de vários sítios arqueológicos, nomeadamente no Vale do Forno, tidos como Paleolítico Inferior, são de facto Paleolítico Médio, independentemente do facto de terem no sei das suas colecções alguns bifaces. Relativamente ao seu terminus, a bateria de datações disponível parece ser bastante mais clara, não impedindo contudo que seja um tópico pacífico. De facto, enquanto há autores que marcam o final do Paleolítico Médio há cerca de 38,000 anos27 outros afirmam a sua continuação, na Estremadura e no Algarve, até ao início do Heinrich 3, há cerca de 33,5 mil anos28.
Paleoambiente A informação ambiental disponível para o Paleolítico Médio em território português é composta por dados provenientes dos cores oceânicos MD99-2331, MD95-2039, MD952042, 3KL SO75-, SO75-6KL, SO75-12KL, SO75-26KL e SU18-8129 e em dados faunísticos provenientes de jazidas paleontológicas e arqueológicas30. Destas duas fontes de informação, a primeira é aquela que tem oferecido uma sequência de maior resolução capaz de permitir a construção de um quadro diacrónico rigoroso. A data de ~240ka parece corresponder ao Estádio Isotópico Marinho (MIS) 7, uma fase aparentemente quente, apesar de uma quebra e posterior acentuada recuperação por volta dos ~225ka. Com o MIS6 entra-se abruptamente
26 27 28 29
15
numa fase de progressivo arrefecimento até ao início do MIS5. A primeira metade deste ciclo é particularmente quente e a segunda temperada. O MIS4 é curto e retoma uma fase fria. Por fim, o MIS3 representa, mais que um novo ciclo quente, uma ligeira recuperação térmica com a paragem do arrefecimento e marcado por uma constante oscilação entre quente e frio. Observando-se o registo polínico, parece que tais variações terão tido um forte impacto na composição da vegetação, levando a uma constante variação da frequência das espécies características da floresta temperada quente, temperada, boreal, conífera euritermica, pradaria de arbustos e estepe xerófita. O pólen das espécies de pradaria de arbustos e estepe xerófita é sempre o mais frequente, sendo que estas duas paisagens parecem ter uma relação directa inversamente proporcional entre si. As florestas conífera euritermica e Quercus decidual estão sempre presentes, sendo a frequência da primeira maior nas fases mais frias e da segunda nas mais quentes. De salientar que tanto a florestas temperada quente como a temperada, se manterem sempre presentes mesmo nos momentos mais frios. O registo faunístico é coerente com o botânico, apresentando recorrentes combinações de espécies hoje apenas presentes em climas quentes/tropicais (elefante, hipopótamo, rinoceronte, macaco, leão, pantera, hiena) com outras de clima temperado (auroque, cavalo, veado, gamo, cervo, coelho), pontualmente com alguns exemplares associados a zonas de topografia acidentada (Capra ibex) mas nunca com espécies
ZILHÃO, J. E MCKINNEY, C. (1995). AUBRY, T. et al. (2011); ZILHÃO, J. et al. (2010). BICHO, N. et al. (NO PRELO). FLETCHER, W. et al. (2010); SANCHÉS-GOÑI, N. et al. (2000); SCHONFELD, J. (2003); THOMSON, J. et al. (1999); MORENO, S. et al. (2002). 30 CARDOSO, J. (1993); MARKS, A. et al. (2002); DAVIS, S. (2002); ANGELUCCI, D. E ZILHÃO, J. (2009); HAWS, J. et al. (2011); BENEDETTI, M. et al. (2009); HAWS, J. et al. (2010).
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O Paleolítico Médio no território português
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Telmo Pereira, Jonathan Haws e Nuno Bicho
árcticas (lebre do árctico, raposa do árctico, rena, mamute, rinoceronte lanudo)31. Neste aspecto salienta-se o facto de tanto o hipopótamo como a tartaruga estarem sempre presentes. No primeiro caso, tal indica que existiriam grandes e diversas massas de água não congelada mesmo nos momentos mais frios32. No segundo que, durante esses momentos, existiriam períodos onde a temperatura estaria acima dos 20ºC. No entanto, os dados obtidos para a Gruta da Oliveira apontam para que, pelo menos durante o estadial Heinrich 4 (~40 ka), o ambiente fosse mais hostil, dado que a quantidade de tartaruga diminui consideravelmente33. Em conjunto, os registos faunísticos e botânicos deixam perceber a existência de uma rica biodiversidade, com associação de diversas espécies de clima tropical, temperado/quente, temperado e temperado/frio, mas nunca árctico, o que parece negar profundas afectações na ecologia, mesmo durante os picos máximos das fases glaciares. Estes dados confirmam o carácter de refúgio desta região, muito provavelmente, graças ao efeito termo-regulador do Oceano Atlântico34, bem como uma resiliência clara da tendência ecológica mediterrânica35.
desde o coelho e tartaruga, passando pela cabra, veado, gamo ou cervo, até ao cavalo e auroque. A esta dinâmica mais incisiva na paisagem, há que acrescentar a exploração de espécies pertencentes ao grupo das megafaunas, de que são exemplo o elefante, o hipopótamo ou o rinoceronte. Dentro da dieta destes grupos humanos esteve desde muito cedo o consumo de recursos marinhos, que através da exploração de mamíferos marinhos36, podendo estes resultar apenas de encontros fortuitos das respectivas carcaças latentes na linha de costa, mas também de moluscos e crustáceos37, por vezes de grandes dimensões38. Dados indirectos, provenientes de análise traceológica em utensílios líticos, apontam para que a preparação de peixe marinho se desse há pelo menos ~40ka39. Finalmente, são ainda recorrentes os vestígios de diversas espécies de carnívoros de pequeno, médio e grande porte, indicador de um frequente abate de espécimen desta ordem que, tendo em conta as partes anatómicas e padrões de fragmentação, não parece estar associado ao consumo da sua carne.
Subsistência
Ao longo de todo o Paleolítico Médio, as populações do ocidente peninsular utilizaram quartzito, quartzo e sílex para fabricar os seus utensílios em pedra. As fontes preferenciais da obtenção destes três recursos foram os terraços fluviais e as praias elevadas da costa, como é in-
A informação disponível parece indicar que as populações neanderthais desta região desenvolveram actividades cinegéticas sobre uma grande variedade espécies de diversos portes,
Indústria lítica
31 BRUGAL, P. E RAPOSO, L. (1999); BRUGAL, P. E VALENTE, M. (2007); MARK, A. et al. (2002); MARKS, A. et al. (2000); CARDOSO, J. (1993); ANTUNES E CARDOSO (2000); CARDOSO J., RAPOSO, L. E FERREIRA, O. (2002); VALENTE, M. (2000). 32 CARDOSO, J. (1993): p.520. 33 NABAIS, M. (2010); NABAIS, M. (2012). 34 HAWS, J. (2003). 35 HAWS, J. (2011). 36 ANTUNES, M. (2000); HAWS, J. et al. (2011). 37 HAWS, J. et al. (2011); BICHO, N. (2004); HOCKETT, B. (2007). 38 ZILHÃO, J. 2011 - Comunicação pessoal no eshe meeting. 39 HAWS, J. et al. (2011); BENEDETTI, M. et al. (2009); HAWS, J. et al. (2010).
Figura 2. Biface micoquense em quartzito, Galerias Pesadas, Almonda (Marks, 2005:205).
dicado pela presença de córtex de seixo em quase todos os casos. Porém, era também frequente a exploração directa das jazidas primárias ou dos clastos presentes nas suas imediações, quando o assentamento se localizava perto destas. A maior ou menor frequência de cada uma destas matérias-primas parece ter uma relação directa com a sua disponibilidade num raio inferior a 3km. Do ponto de vista tecno-tipologico, o início do Paleolítico Médio parece ter já ocorrido aquando da ocupação da base da sequência das Galerias Pesadas (241 +30 -22 ka B.P.)40, onde a indústria se caracteriza por uma baixa frequência de debitagem discoide e levallois associada a típicos bifaces simétricos (Figura 2), pequenos bifaces assimétricos, peças foliáceas, facas de dorso bifacial e raspadores bifaciais, mas sempre sem machados-de-mão. Estas características são relativamente congruentes com as do nível médio de Vale do Forno 8 ou Milharós41, datadas de até 100ma, e por sua vez semelhantes às do
17
Casal do Azemel e Casal de Santa Maria, na bacia do Rio Lis42. No entanto, são claramente distintas das registadas nas camadas inferiores do Vale do Forno43, em Monte Famaco44, ou Quinta do Cónego/Pousias45, claramente Acheulenses, marcados pela elevada presença de bifaces, machados-de-mão e triedros. A produção de utensílios configurados fez-se sobretudo através da redução de lascas de grandes dimensões enquanto a debitagem se fez essencialmente sobre seixos com menos de 15cm de comprimento e 500gr de peso. As indústrias micoquenses parecem, assim, representar uma fase de transição do Paleolítico Inferior para o Paleolítico Médio. Os resultados provenientes de um programa dedicado à datação por métodos absolutos dos depósitos do Tejo parecem indicar que as camadas de alguma forma associadas a vestígios arqueológicos são sempre mais recentes que 225ka46. A partir de 25,850±550 (N/A)
46,070±1330
44,080±990
42,610±390
37,100±830
35,760±280
6,055±45
>49,600
53,781±2,055
>49,600
50,356±1,854
4,448±56
101,010±7870
15,060±980
40,744±1,025
41,717±311
26,110±499
20,628±292
42,175±461
150,920±12,575
>110,050±8460
34,300±2630
40,450±2980
33,905±2690
36,035±2750
>124,000
117,000 + infinite/-26,000
119,000 + infinite/32,000
127,000 + infinite/26,000
33,632±1180
>29,200 (N/A)
30696±1142
28118±924
27457±1127
24090±533
28118±924
Baixo valor de cologénio
Datação sobre fracção alcalina
Datação sobre fracção alcalina
Intrusivo (recolhido numa toca)
Não calibrado
Observações
Referências
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
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(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Benedetti et al. 2009)
(Mozzi et al. 2000)
(Mozzi et al. 2000)
(Mozzi et al. 2000)
(Mozzi et al. 2000)
(Raposo 1995)
(Raposo 1995)
(Raposo 1995)
(Zilhão 2000)
(Zilhão 2000)
(Zilhão 2000)
(Zilhão 2000)
O Paleolítico Médio no território português 27
Pêgo do Diabo
Almonda
Sítio
Amostra
OxA-15499 OxA-15004
AMS AMS
Osso (Equus sp.) dente
2/3
2/3
230E1 ICEN-491
C14
Equus (dente) Cologénio de osso
EVS, Praia dos Bifaces
3
231E1 228E1
Equus (dente) Equus (dente)
EVS, Cone
307-260E1
SMU-231E1
SMU-308-247E2
SMU-247E1
GrA-29385
GrA-24407
Beta-183537
OxA-13137
GrA-22024
GrA-24410
GrA-24408
EVS, Caos de Blocos
U-Th U-Th
Equus (dente) Equus (dente)
EVS Cone
ES2 Nível 4
U-Th U-Th
Equus sp. (dente) Equus sp.( dente)
Cone Moustierense
Cone Moustierense
AMS AMS
Pinus sylvestris Osso queimado
15
18
AMS AMS
Pinus sylvestris Pinus sylvestris
14
14
AMS AMS
Erica sp. Pinus sylvestris
13
AMS
14
Método
Material Pinus sp.
Camada
12
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38,750± 650
34,900± 1000
21,973±689
170,000±13,000
136,000±8,000
35,000±2,000
131,000-25,000+32,000
35,000±2,000
53,000/+5,600/-5,300
70,250±9000
41,960±330
42,160±340
44,380±960
27,850±550 (N/A)
46,350±2050
43,310±490
26,940/+270/+250 (N/A)
Observações
Cologénio impuro
Baixo racio 230Th/232Th
Second measurement of SMU-247
Anómalo. Idade mínima
Anómalo. Idade mínima
Referências
(Zilhão et al. 2010)
(Zilhão et al. 2010)
(Zilhão 2000)
(Zilhão e McKinney 1995)
(Zilhão e McKinney 1995)
(Zilhão e McKinney 1995)
(Zilhão e McKinney 1995)
(Zilhão, et al. 1993)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
(Angelucci e Zilhão 2009)
28 Telmo Pereira, Jonathan Haws e Nuno Bicho
Interior
Interior
Interior
Gruta
Gruta
Gruta da Oliveira
Gruta do Caldeirão
Litoral
Interior
Gruta
Ar livre
Pêgo do Diabo
Polvoeira
Interior
Interior
Interior
Ar livre
Gruta
Ribeira da Atalaia
Salemas [algar]
Ar livre
Ar livre
Vilas Ruivas
Vinhas
Interior
Interior
Interior
Litoral
Litoral
Mainake, XXXIII / 2011-2012 / pp. 11-30 / ISSN: 0212-078-X
Ar livre
Vale do Forno 8
Interior
Ar livre
Ar livre
Sapateiros 2
Vale da Janela
Litoral
Ar livre
Ar livre
São Pedro de Muel
São Torpes
Interior
Gruta
Ar livre
Salemas [gruta]
Santo Antão do Tojal
Interior
Litoral
Ar livre
Ar livre
Porto Meirinho
Praia Rei Cortiço
Interior
Litoral
Gruta
Ar livre
Pedreira de Salemas
Litoral
Litoral
Interior
Interior
Litoral
Interior
Litoral
Interior
Pedrógão
Gruta
Ar livre
Lapa dos Furos
Mira Nascente
Ar livre
Gruta
Lagoa do Bordoal
Lapa do Picareiro
Gruta
Gruta
Gruta Nova da Columbeira
Ibn-Amar
Gruta
Litoral
Interior
Gruta
Gruta
Furninha
Galerias Pesadas
Gruta
Interior
Interior
Ar livre
Ar livre
Fonte Santa
Foz do Enxarrique
Gruta do Escoural
Litoral
Interior
Ar livre
Ar livre
Conceição
Estrada do Prado
Gruta Figueira Brava
Interior
Gruta
Ar livre
Lapa dos Coelhos
Arneiro Cortiço
Localização
Interior
Tipo de sítio
Gruta
Sítio
Almonda (EVS)
Geologia
Fluvial
Fluvial
Fluvial
Marinho
Fluvial
Marinho
Marinho
Fluvial
Calcário
Calcário
Fluvial
Marinho
Fluvial
Marinho
Calcário
Marinho
Calcário
Marinho
Calcário
Calcário
Calcário
Calcário
Calcário
Calcário
Calcário
Calcário
Calcário
Calcário
Calcário
Fluvial
Fluvial
Fluvial
Fluvial
Fluvial
Calcário
Calcário
Geografia
Terraço
Terraço
Terraço
Arriba costeira
Terraço
Arriba costeira
Arriba costeira
Terraço
Planalto
Planalto
Terraço
Arriba costeira
Terraço
Arriba costeira
Planalto
Praia
Planalto
Arriba costeira
Serra
Serra
Lagoa
Arriba costeira
Serra
Arriba costeira
Planalto
Serra
Serra
Serra
Arriba costeira
Terraço
Terraço
Terraço
Terraço
Terraço
Serra
Serra
Água doce
Rio
Rio
Rio
?
Rio
?
?
Rio
?
?
Rio
?
Rio
?
?
?
?
?
?
?
Lagoa
Rio
Nascente
?
?
Rio
Nascente
Nascente
?
Rio
Rio
Rio
Rio
Rio
Nascente
Nascente
Fauna
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Sim
Sim
Sim
Não
Não
Não
Não
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Sim
Não
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Não
Não
Não
Não
Sim
Sim
Flora
Não
Não
Não
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Não
Não
Não
Sim
Não
Sim
Não
Não
Não
Sim
Não
Não
Não
Não
Sim
Não
Não
Não
Sim
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Indústria
Moustierense
Moustierense
Acheulense
Não
Moustierense
Não
Não
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Não
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Micoquense
Moustierense
Moustierense
Fontesantense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Acheulense
Estruturas Uma camada
Uma camada
Uma camada Não
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Várias camadas
Uma camada
Uma camada
Várias camadas
Várias camadas
Várias camadas
Várias camadas
Várias camadas
Várias camadas
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Posição secundária
Não corta-
Deposíção Posição secundária
Lareira; vento
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Lareira
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Lareira
Não
Não
Não
Lareira
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
O Paleolítico Médio no território português 29
Tabela 2. Lista dos principais sítios do Paleolítico Médio e respectivo enquadramento físico
Litoral
Interior
Interior
Litoral
Ar livre
Ar livre
Ar livre
Ar livre
Curva do Belixe
Praia da Galé
Vale Boi
Vale da Fonte
Interior
Interior
Interior
Ar livre
Ar livre
Ar livre
Ar livre
Lagoa Funda 2
Lagoa Funda 3
Santa Cita
Vale da Porta
Interior
Interior
Interior
Ar livre
Ar livre
Vale Santo
Lagoa Funda 1
Litoral
Interior
Gruta
Gruta
Buraca Escura
Buraca Grande
Localização
Interior
Tipo de sítio
Abrigo
Sítio
Abrigo 1 de Vale dos Covões
Mainake, XXXIII / 2011-2012 / pp. 11-30 / ISSN: 0212-078-X Geologia
Fluvial
Fluvial
Calcário
Calcário
Calcário
Marinho
Fluvial
Fluvial
Marinho
Marinho
Calcário
Calcário
Calcário
Geografia
Terraço
Terraço
Lagoa
Lagoa
Lagoa
Arriba costeira
Terraço
Terraço
Planalto
Planalto
Serra
Serra
Serra
Água doce
Rio
Rio
Lagoa
Lagoa
Lagoa
?
Rio
Rio
?
?
Rio
Rio
Rio
Fauna
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Sim
Sim
Sim
Flora
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Sim
Sim
Sim
Indústria
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Moustierense
Estruturas
Não
Buracos de poste
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Não
Deposíção
Várias camadas
Várias camadas
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
Uma camada
30 Telmo Pereira, Jonathan Haws e Nuno Bicho