O Pan-Corporativismo e os Descobrimentos como Universalidade do «Fazer».

June 27, 2017 | Autor: Vasco Medeiros | Categoria: Art History, História da arte, História Da Expansão Portuguesa
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O Pan-Corporativismo e os Descobrimentos como Universalidade do «Fazer». Vasco Medeiros Doutorando / (ARTIS-IHA-FLUL-UL) / Mafra / Portugal / [email protected]

RESUMO: A descoberta recente de um documento inédito, “Carta dos mestres da casa dos vinte e quatro de Goa (…) ” de 4 de Janeiro 1549 revela uma inusitada novidade. Nele tomamos consciência de que na primeira metade do século XVI, a estrutura gremial da Casa dos Vinte-e-Quatro de Lisboa havia sido implantada com sucesso em Goa, ampliando uma rede de produção centralizada que se estendia da Capital do Reino a múltiplas esferas periféricas, distantes e interligadas entre si. Este aspecto configura um primeiro modelo de uma cooperativa gremial à escala global, constituindo uma das mais profícuas e paradigmáticas revoluções da idade moderna e propondo um inevitável sincretismo do «fazer». PALAVRAS-CHAVE: Pan-Corporativismo. Pan-Poiesis. Expansão. Sincretismo. Praxiema. SUMMARY: The recent discovery of an unpublished document, “Carta dos mestres da casa dos vinte e quatro de Goa (…)” [Letter from the masters of the house of the twenty four of Goa], dated 4 January 1549, reveals an unusual novelty. It makes us aware of the fact that in the first half of the 16th century the guild structure of the Casa dos Vinte-e-Quatro of Lisboa had been successfully introduced in Goa, enlarging a centralised production network that extended from the Capital of the Kingdom to the numerous peripheral, distant and interlinked domains. This aspect configures the first model of a guild-style cooperative on a global scale, constituting one of the most fruitful and paradigmatic revolutions of the modern age and positing an inevitable syncretism of “doing”. KEY WORDS: Pan-corporativism. Pan-poiesis. Expansion. Syncretism. Praxiema.

Praxiemas e Pan-Poiesis – Dissidências a uma historiografia tradicional. Este ensaio tem origem na leitura recente de um documento inédito do Arquivo Nacional da Torre do Tombo intitulado, “Carta dos mestres da casa dos vinte e quatro de Goa dando parte ao rei estar acabada a casa que o mesmo senhor mandara fazer para os religiosos de S. Domingos, celebrandose a primeira missa dia de natal, de que o povo estava contentíssimo”1. Datado de 4 de Janeiro de 1549 motivou, no âmbito de uma investigação de doutoramento em curso, uma primeira análise intitulada: O PanCorporativismo e a Casa dos Vinte-e-Quatro de Goa – Novas perspectivas à luz da leitura de um documento inédito2. No seguimento do espírito que o título traduz, a existência comprovada de uma rede gremial de larga escala e tendencialmente Pan-Corporativista que propomos, institui no tradicional panorama historiográfico um rasgo ontológico e uma singularidade que desvelam uma nova dimensão conceptual face ao carácter transitório e migrante dos objectos artísticos, sobretudo no que respeita à circularidade das ideias, dos símbolos, das fórmulas, das técnicas, dos conhecimentos e das redes produtivas. Conhecemos de antemão a complexidade em torno da viagem e transmigração de alegorias e signos, assim como, do problemático atrito epistemológico e físsil entre Ocidente e Oriente. Temos sido inclusive amplamente alertados para as falsas dissidências que um separatismo exacerbado entre estas duas distantes margens, inscreve na tessitura ontológica dos objectos artísticos: “For almost a century ethnologists have worked with two antagonistic theories: díffusion of techniques, ideas, concepts, and art forms versus independent, ‘spontaneous generation’ of culture in different parts of the World (…)”3. O que Wittkower contrapõe como alternativa a uma teoria de geração espontânea, é sobretudo a viabilidade de uma transmigração inconsciente do símbolo através da difusão de culturemas, menosprezando no entanto, uma dimensão seminal desse mesmo processo cognoscente. Esse aspecto prendese com o próprio processo de transmissão de formas eidéticas - O que será um símbolo se não uma sombra cônscia de um «fazer» preciso e cronologicamente comprometido? Ao salvaguardar a anamnese da imagem, Wittkower esquece o processo de fixação da mesma - processo este que se encontra veiculado por todos os sistemas de disseminação linguística e visual, ou seja, mecânicos e formais por natureza. Este mesmo aspecto encontra-se amplamente circunscrito por Cassirer, quando classifica o vínculo unitário entre linguagem, arte, mito e religião não como um escolástico “vinculum substantiale”, mas sim como um “vinculum functionale”4, operativo diríamos

nós. Também Warburg nos seduz com uma «biologização imagética» patente no seu conceito de «Nachleben», perene organicidade visual de formas e signos sobreviventes últimos da entropia espácio-temporal. Essa sobrevivência dinâmica encontra-se a nosso ver estabelecida precisamente por uma universalidade do gesto, um rasgo heurístico que o «fazer» institui e que a universalidade imanente ao gesto do homem legitima na sua dimensão Panpoiética. Esta dimensão universalizante de um «fazer» ingénito encontra-se sediada num mecanismo simbólico natural do homem, uma mecânica mediada por uma praxis que inscreve uma simbólica no plano sensível - estrutura onomática de inscrição que doravante apelidaremos de Praxiema. Não será por certo despiciendo a inscrição destes dois novos conceitos vocabulares no plano semântico de uma tão desejada história crítica da arte. A sua mera formulação institui uma forçosa singularidade semiótica e constitui a abertura de um novo modelo analítico dos fenómenos de troca, interacção e sincretismo do «fazer» artístico. Deste modo, como não intuir que a resposta ao dilema que Wittkower formula em East and West: the Problem of Cultural Exchange5 encontra precisamente eco premente nesse veículo primaz que a expansão Portuguesa representa? Esta insere uma globalidade perene aos contactos estabelecidos entre ocidente e oriente, formalizando uma nova e fecunda realidade paradigmática na troca e partilha de novas/velhas semânticas simbólicas, instituindo segundo Barreto uma espécie de “missão de troca do mundo e mundo da troca”6. Esta missão encontra-se portanto intermediada por fórmulas processuais físicas, dissimulando-se sob a forma de indícios paralelos tais como: sincretismos de proveniência, de construção, de técnica, de estilo, de virtuosismo, mas sobretudo de encontro - manifestação daquilo que Barreto claramente designa como “cultural vivencial”7. É certo que esta particularidade configura uma característica inteiramente agregada ao fenómeno da expansão marítima Portuguesa e à forma como a relação com o «outro» e com o fazer do «outro» se estabelece. Manifesta-se precisamente pela integração de mecanismos operativos alóctones nas estruturas sociais/mesteirais espalhadas pelo orbe vivencial do reino e na concretização de uma inovadora Pan-Poiesis. Para tal, importa, ampliar a habitual esfera redutora que insiste em ver no fenómeno da expansão marítima uma expressão solipsista vinculada a uma bipolar hierarquia social – marinheiros e mercadores. O que o documento do A.N.T.T. nos confirma é precisamente a existência de uma íntegra terceira coluna nessa estrutura social que se estabeleceu fora do reino na primeira metade do século XVI, i.e., um corpo mesteiral organizado e estruturado de acordo com os regimentos do reino, apto a formalizar através da via operativa essa fecunda cultura vivencial do

«outro». Este facto é reforçado quando analisamos os números dos efectivos directamente implicados na expansão em meados do século XVI - cerca de 150.000 homens espalhados por todo o império, para um total populacional de cerca de 1.300.0008. A expressividade deste número pressupõe a existência de um corpus social genuinamente comprometido com uma experimentação vivencial do império em todas as suas dimensões. Esta mesma percepção sai reforçada quando cotejada com a divisão por actividades da população activa masculina em meados do século XVI – cerca de 99.600 nobres e mercadores articulados com cerca de 18.400 marinheiros e pescadores, o que nos reserva um excedente activo de 32.000 potenciais artesãos e trabalhadores mecânicos espalhados um pouco por todo o vasto império ultramarino9. Tomando em conta, segundo Gaspar Correia, que por volta de 1540 a população de Goa ascenderia a cerca de 1800 reinóis10, tomamos consciência desta impressiva força operativa e das espectáveis trocas culturais que operaram e sobretudo, da sua enorme dispersão. Essa vasta mancha populacional activa e dispersa a oriente, não apenas comercializou, como certamente por via sincrética, integrou e fundiu novos Praxiemas com o modus operandi oficinal préexistente, reformulando, traduzindo e integrando essas novidades processuais nos padrões produtivos da metrópole e das futuras colónias a ocidente conforme veremos.

Os Vinte-e-Quatro de Goa e a Universalidade do gesto. Criado em 1383 por iniciativa régia de D. João I, o «regimento» dos oficiais «mecânicos» visava sobretudo uma organização socio-topográfica da cidade, encontrando-se claramente sobrepostos interesses macroestruturais a aspectos vivenciais, quotidianos e socioeconómicos do reino. Por outro lado, ao impor uma estrutura hierárquica evidente: aprendiz, artífice e mestre estabelecia uma graduação natural no acesso aos diversos «mesteres», regulando e fiscalizando por via dessa estrutura, vínculos laborais, empreitadas, valores cobrados, salários e critérios de qualidade - constituintes segundo Serrão, das “obrigações inerentes ao ofício relativamente à sua corporação”11. Esta estrutura generalizou-se em breve trecho aos restantes centros populacionais do reino, caso de Santarém, Coimbra e Évora em 1459, Porto em 1518, Tavira em 1539, Guimarães em 153612 e naturalmente, Goa em 1549 - ampliando cada vez mais uma estrutura normativa de óbvia relevância sociocultural e estratificando uma nova topografia humana emergente e de carácter universalista. Quando confrontada com a descoberta desse «outro» civilizacional, a ruptura com esta regulamentação generalizada e transversal de práticas, de

«fazeres» precisos e conformistas, instituirá a nosso ver inevitáveis Praxiemas, constituindo um dos aspectos físseis da nova estrutura PanCorporativista a oriente implantada. Na Regulação do Oficios, no respeitante aos critérios de admissibilidade, exigia-se dos candidatos que fossem “de boa vida, e costumes, e de idade a quem se tenha respeito”13, assim como, que fossem casados, naturais do reino, sabendo ler e escrever. Aos forasteiros era exigido que mostrassem aos oficiais da vereação das respectivas cidades “carta demxyminaçam de seu officio”14. Já o sistema Goês parece manifestar um espirito de integração e de excepcional informalidade, fundamentalmente no que respeita à multiculturalidade dos seus membros. É certo que o documento analisado não o revela através dos signatários [apesar da ilegibilidade de algumas das assinaturas], mas a existência de um vasto acervo documental oriundo da chancelaria de D. Manuel I e produzido entre 1519 e 1529 é disso revelador. Tratam-se sobretudo de provisões em nome dos Ourives-Mores de Goa, o mouro [Sic] Relaxatim ou Ranluxatim e o seu sobrinho Bauxetim15. Nestas provisões são garantidos privilégios vários que evidenciam a excepcional notoriedade dos ditos ourives, tais como: O direito de comprar 1 cavalo dentro da cidade de Goa sem pagar direitos; a isenção de pagamento de direitos das terras lavradas; a nomeação de ambos como Ourives-Mores e Mestres dos Ourives de Goa; a atribuição a Ranluxatim de uma tença anual; o privilégio concedido a ambos de serem criados do rei à sua guarda e encomenda e finalmente o privilégio de não pagar o direito do arroz nem dos mantimentos para despesa da sua casa. Esta exaustiva lista de concessões revela uma extraordinária singularidade no panorama mesteiral inclusive para os parâmetros do reino, atestando por certo a notoriedade dos mestres nativos e sobretudo dos praxiemas que representavam e que contribuíam para a propagação de uma imagética universal no reino. Também aqui sai reforçada a noção de que os próprios monarcas terão instituído e fomentado uma notória assimilação de todos os praxiemas exógenos como afirmação estatutária global16. Porem, não se esgota em Goa esta aura de notória novidade nas relações corporativas e mesteirais estabelecidas a oriente. Se aí existe uma evidente intenção de anexar todos os culturemas endógenos, já em Malaca existem indícios em sentido contrário, i.e., da adaptação de um sistema social interno aos requisitos estéticos e funcionais do reino. Falamos especificamente da utilização do sistema esclavagista herdado dos malaios em 1511, e que constituiu segundo Benjamim Pires, “um achado para o regime português”17. Em troca de uma ração mensal de arroz e de roupa nova duas vezes por ano, esta força de trabalho nativa encontrava-se distribuída por diversas funções

tipologicamente reinícolas: carpinteiros, ferreiros, e pedreiros, encarregues da construção da fortaleza de Malaca A Famosa sob as ordens do Mestre das Obras d’El Rei, Tomás Fernandes18. Durante o governo de D. Aleixo de Menezes (1607 – 1609) iniciou-se inclusive o pagamento em numerário a estes escravos de acordo com a sua classificação como artífices mecânicos. Este facto, ainda que transitório, revela o papel que uma tessitura PanCorporativista adaptada e aplicada a oriente poderá ter constituído como conferente identitário das classes desvalidas, conferindo através da aprendizagem e do «fazer», um papel determinante numa estrutura gregária, fixando esses marcadores socioculturais de forma perene. De facto, evidencia-se esta perenidade pela fixação oral de determinados termos oriundos directamente do mundo mesteiral português e cuja origem cremos directamente associada à presença centralizadora e tutelar da Casa dos Vinte-e-Quatro de Goa, que terá coordenado a disseminação de uma força laboral de cariz reinol um pouco por todo o oriente. Falamos especificamente de uma tradição oral ainda presente na Indonésia, em Sikka e Adonara na ilha das Flores, onde se fixaram diversas comunidades descendentes de Malaio-Portugueses e de emigrantes Goeses. Presentemente, num dialecto crioulo de origem Portuguesa, surgem inevitáveis ecos desse passado corporativo e mesteiral. Todos os anos pelo natal é celebrada uma espécie de dramatização iniciática ao casamento, onde uma jovem escolhe o noivo entre vários pretendentes: “ (…) um serdado (soldado), um pintor, um pidagu (fidalgo), (…) um oriwis (ouriyes) e um caschador (mercador ou comerciante) ”. A escolha incidirá sobre o último porque tem “Munto dinjeru (dinheiro) ”19. A presença insólita de um ourives e de um pintor nesta estranha tradição oral das pequenas ilhas de Sunda na Indonésia, constitui certamente uma prova dessa dispersão laboral emanada de Goa fundamentando certamente mais uma prova do Pan-Corporativismo que ora propomos.

As reveladoras Lacas quinhentistas do Malabar e o pragmatismo sincrético Português. Apesar da evidente miscigenação corporativa de Goa ou da referida evocação vocabular mesteiral do arquipélago das Flores constituírem culturemas reveladores de uma Pan-Poiesis, não conferem per se a tão desejada firmeza ao corpus teórico empreendido. Para comprovar a existência clara de uma hibridização operativa e de um evidente sincretismo dialogante entre forma, símbolo e praxiema, serão necessários objectos que confiram esse carácter ambíguo e de multiforme culturalidade. Este carácter singular encontramo-lo nas invulgares Lacas quinhentistas de Bengala, do Coromandel

e do Malabar, um espólio crescente, tanto em dimensão como em relevância, de cerca de três dezenas de exemplares cuja especificidade se adequa certamente aos pressupostos que defendemos. O seu hibridismo já havia sido determinado através da nomenclatura habitual com que esse vasto espólio de objectos é classificado - Luso-Orientais ou Indo-Portugueses. Esta simples conjugação onomática, já intui per se a existência de complexas trocas de estilemas e praxiemas, conferindo uma inortodoxia evidente e promissora ao objecto artístico e à sua concepção. A viagem da técnica, inerente à viagem do gosto, terá certamente criado ampla curiosidade nos círculos mesteirais do reino. A este respeito, Teresa Morna aponta o facto de Filipe Nunes em 1615 descrever um método de produção do acharoado vermelho no seu tratado Arte da Pintura, Symmetria e Perspectiva20. Apesar de discordarmos desta atribuição21, não deixamos no entanto de desconsiderar a hipotética introdução da técnica nas oficinas do reino mediante artífices comprometidos com o domínio técnico e processual e recém-regressados do oriente. E se comprovadamente trouxeram para o reino a técnica de produzir o acharoado, levaram certamente para oriente os modelos e técnicas de construção de mobiliário ao gosto Europeu, assim como, todo um ideário iconográfico totalmente exógeno aos padrões decorativos locais. Este aspecto salienta-se na caracterização dos diversos exemplares de mobiliário indo-português levada a cabo por José Felgueiras e Pedro Carvalho22, onde uma clara multiplicidade tipológica e um ecletismo de centros de produção se tornam evidentes. Existem caixas-escritório lacadas a negro e decoradas a ouro, técnica habitualmente empregue por artífices Tailandeses e/ou Birmaneses mas cujos elementos esculpidos denotam influência europeia, muçulmana e hindu. A somar a este prévio sincretismo iconográfico, o facto de muitos exemplares representarem no seu interior figurações mitológicas greco-romanas baseadas em gravuras Europeias. Um outro grupo de caixas-escritório cuja decoração interior denota forte influência chinesa, possui no entanto ao nível da construção semelhanças formais com as chamadas arcas de «angelim» produzidas em Cochim, sugerindo a Felgueiras a existência de um núcleo de produção de mobiliário lacado nestas paragens. A presença de caracteres e chinoiseries típicas deste tipo de decoração não invalida o facto de as mesmas poderem ter sido produzidas em contextos totalmente diversos dos originalmente esperados. A apreciação de Pedro Carvalho não poderia ser menos ambígua quanto à possível origem das peças, “Efectivamente, nos séculos XVI e XVII era possível encontrarem-se comunidades chinesas ao longo da costa Indiana, mas tal não poderá ser encarado como uma indicação de que as peças foram produzidas pelos

mesmos. Estes poderão ter sido realizados por artesãos indianos para fazer passar as suas peças por originais chineses (…) Os caracteres são normalmente indecifráveis, sendo este um tema que necessita de investigação mais aprofundada”23. Recordemos as provisões de D. Manuel a favor do Ourives-Mor de Goa, Ranluxatim e poderemos conjeturar a existência de núcleos de produção de lacas em Pangim integradas no sistema mesteiral Goês. Acreditamos que se trata de uma área a necessitar de um outro olhar em profundidade, que assuma integralmente o hipotético domínio do Praxiema em questão por parte de artesãos Reinóis. Não percamos de vista a pragmática dimensão axial que movia homens e paixões a oriente - o lucro e o enriquecimento célere. Um expediente que permitisse abastecer os mercados Europeus com a vantagem do centro de produção se localizar a meio caminho, sugere-nos um estímulo mais do que suficiente para a sua introdução e factura na costa do Malabar.

A Ocidente - A organização mesteiral no Brasil e o legado dos 24. Esta permanente objetificação permutativa que os descobrimentos promovem, longe de se esgotar no campo das trocas de estilemas e praxiemas, assume contornos verdadeiramente paradigmáticos. Constitui para Barreto uma legítima “contaminação”, cujas oscilações e alterações nos hábitos quotidianos por via de uma comunicação intercivilizacional, instituem uma “zona investigativa praticamente em branco, uma dimensão secreta onde se encontram os tesouros da expressão imediata das formas de vida”24. Esta propagação sincrética de culturemas atingirá o seu pleno com a incorporação do espaço colonial do Brasil. Em 1549, enquanto os Vinte-e-Quatro de Goa celebravam a primeira missa na recém-construída Casa dos Dominicanos, chegava ao Brasil o primeiro governador Tomé de Sousa. Esta evidente dessincronia irá por certo manifestar-se sob duas formas: A) Uma introdução tardia da estrutura corporativa pré-experienciada e harmonizada a oriente B) Um evidente refluxo e absorção de todos os artificies e praxiemas exógenos quando esgotado o modelo oriental a partir de 1580. Apesar desta realidade tardia, a constituição e implantação da Casa dos Vinte-e-Quatro no Brasil torna-se factual a partir do século XVII. Segundo Lopes Gonçalves, a referência documental mais remota surge em 1641 com a eleição de doze mestres na Câmara municipal de Salvador [apud MARTINS, 2007, p. 36], no entanto os primeiros indícios da presença de oficiais mecânicos em território Brasileiro surgem logo em 1549, vinculados à Companhia de Jesus e à instalação da máquina colonial. Caberá aos Jesuítas um papel vital na transmissão aos índios dos praxiemas ocidentais, vinculando-os a esta

doutrinação laboral através de escolas de artes e ofícios e responsabilizandose pelo seu ensino e formação. Segundo Mónica Martins, os desígnios estruturais de um Pan-Corporativismo que ora propomos, tornam-se evidentes quando analisamos a introdução de um alóctone sistema formal, hierárquico e formativo numa realidade colonial tão dispare e exótica, “Os oficios organizavam-se, portanto, atrelados ao aparato colonizador português (…) Embutido ao ideal doutrinário e cristianizador colava-se o objectivo de organizar o trabalho e formar os nativos (…)” 25. Esta comunidade nativa, acrescida de todos os demais expatriados do reino e dos territórios ultramarinos e alheia aos princípios normativos que estruturavam a sociedade europeia desde a Idade Média, seria doravante classificada segundo a tradicional hierarquia laboral há muito instituída: aprendiz, oficial e mestre. Apesar da condição cativa de parte da mão-de-obra empregue se assemelhar em tudo à vivenciada em Malaca, tal não objectou que se criassem estruturas semelhantes às existentes no reino, antes, poderá ter potenciado a sua integração. Serafim Leite, refere a existência de um “Pelouro dos Mesteres” nos recém criados municípios Brasileiros e a sua manifestação formal na estrutura socioeconómica das primeiras urbes é descrita da seguinte forma, “(…) em 1611, quando a estátua de S. Inácio chegou a Pernambuco, foram ostentados também os homens do trabalho manual na festa da recepção. (…) Logo a seguir aos soldados (…) iam os ‘oficiais mecânicos’ com as suas bandeiras (…) e os seus diversos distintivos (…)”26. Esta vivência normativa e ritual comum a todas as cidades portuguesas, i.e., a participação das irmandades de oficios nas diversas manifestações religiosas, vincula e unifica todas as estruturas sociais dispersas pelo império ultramarino Português a uma macro realidade socio-religiosa e litúrgica. Constitui uma realidade esparsa no espaço e no tempo que parece unificar todos os polos Pan-Corporativos a uma lógica comum e unitária, facto que segundo Márcia Bonnet inscreve uma transversalidade curiosa ao fenómeno, “(…) Por vezes, tem-se a sensação de que a freguesia de São José, no Rio de Janeiro, constituía um bairro de Lisboa, tal a familiaridade com que se menciona, nos documentos, questões relativas à representação dos ofícios na casa dos Vinte e Quatro, às Corporações de Ofício e seus regimentos (…)”27. No entanto, os indícios de que complexos Praxiemas inerentes a um sistema Pan-Corporativista, terão acompanhado a deriva dos territórios ultramarinos orientais para o Brasil, não se esgota nestas evidências documentais. Existem de facto indícios de um formal e completo sincretismo oriundo de modelos exógenos, transpostos para este território virgem, um sistema onde segundo Roberto da Matta, “o valor fundamental, é relacionar,

misturar, juntar, confundir, conciliar (…) incluir (jamais excluir) ” [apud PANASIEWICZ, 2009, p. 35]. Este amalgamar intui-se claramente na conjugação vernacular do Barroco Mineiro com elementos parasitários, cuja presença configura uma singularidade única. Para lá dos indícios genéricos e indocumentados que poderão formular um praxiema oriental, como a factura repetitiva de olhos amendoados e orientalizantes num vasto espólio escultórico, existem alguns aspectos incontornáveis. Falamos especificamente da Igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, Belo Horizonte, cuja factura da decoração se supõe da lavra de artesãos oriundos das possessões Portuguesas a oriente. O aspecto relevante prende-se com uma hipotética atribuição da pintura dos sete painéis lacados com diversa chinoiserie, a um tal de Jacinto Ribeiro, natural da Índia. Esta mesma informação consta da ficha do monumento disponibilizada pelo IPHAN, “ (…) Rodrigo M. F. de Andrade, com base nos estudos existentes no arquivo do IPHAN, no Rio de Janeiro, suspeita que o pintor Jacinto Ribeiro, seja autor das "chinesices" [Sic] da capela de Sabará, uma vez que o documento datado de 1721, refere-se ao artista como natural da Índia e morador na capitania das Minas desde 1711”28. Esta hipótese, apesar de inconclusiva, confere inusitado relevo à tese formulada por Pedro Carvalho sobre a existência de núcleos produtivos de lacas na Índia – mais, formaliza a sua existência na cidade de Goa, de onde seria originário o tal Jacinto Ribeiro. Esta conjetura não sugere apenas a presença de complexos praxiemas integrados na estrutura mesteiral Goesa, como reafirma a sua perpetuidade no espaço-tempo, edificando a sua migração e justaposição a todo o sistema colonial Português. A existência de um sistema Pan-Corporativista institui desta forma práticas Pan-Poiéticas, i.e., de um «fazer» de cariz universalizante, constituindo o veículo por excelência para a instauração de Praxiemas entidades operativas de carácter sincrético, visual, morfológico e multicultural. Ao inscrever uma manifestação processual e identitária de estruturas sociais de perene afirmação, a existência de um longevo sistema Pan-Corporativista, unificou desta forma antagónicas realidades geográficas, sociais, culturais e religiosas de paradoxal e difícil conciliação. Esta centralização de modelos e práticas constituiu um dialecto comum, transversal a todo o império ultramarino, fomentando e facilitando a circulação de homens, técnicas, ofícios e formas de «ver» e de «fazer». Uma unificação inscrita numa estrutura cultural e vivencial, conferente de fórmulas claras e de fácil harmonização com as diversas realidades socioculturais encontradas - um «fazer» “chão” disperso de oriente a ocidente.

BIBLIOGRAFIA Barreto, Luís Filipe. Os Descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma Análise Sociocultural. Gradiva. Lisboa. 1987. Bonnet, Márcia. Entre o Artifício e a Arte: pintores e entalhadores no Rio de Janeiro setecentista. Secretaria Municipal de Cultura: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2009. Carvalho, Pedro de Moura. [et al]. O Mundo da Laca. 2000 Anos de História. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 2001. Martins, Mônica de Souza Nunes. Entre a Cruz e o Capital: Mestres, aprendizes e corporações de ofícios no Rio de Janeiro (1808-1824). [Tese de doutoramento]. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2007. Moreira, Rafael. Goa em 1535. Uma Cidade Manuelina. Nº 8, vol. 2. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Lisboa. Lisboa. 1995. pp. 177-221. Panasiewicz, Roberlei; Et al."Sincretismo religioso: uma análise a partir da Arte, da Arquitetura e das Ciências da Religião em distintas Igrejas Católicas da região metropolitana de Belo Horizonte". Anais do 22º Congresso Anual da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião Soter, vol. 2. Paulinas, 2009. Pp. 33-55 Pires, Benjamim Videira, S. J. Taprobana e Mais Além... Presenças de Portugal da Ásia. Instituto Cultural de Macau. Macau. 1995. Reis, Lysie. Os “homens Rudes e muito honrados dos mesteres”. Revista da Faculdade de Letras Ciências e Técnicas do Património. I série vol. IV. Faculdade de Letras do Porto. 2005. Pp. 235-259. Serrão, Vitor. História da Arte em Portugal. O Renascimento e o Maneirismo 1500-1620. Editorial Presença. Lisboa. 2001. Serrão, Vitor. O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. Lisboa. 1983. Wittkower, Rudolf. Allegory and the Migration of Symbols. Thames and Hudson. New York. 1977.

NOTAS 1

Documento do Arquivo Nacional Torre do Tombo - PT/TT/CC/1/82/5. Medeiros, Vasco. In: http://lisboa.academia.edu/VascoMedeiros 3 Wittkower, Rudolf. Allegory and the Migration of Symbols. p. 10. Thames and Hudson. New York. 1977. 4 Cassirer, Ernst. Ensaio sobre o Homem. p. 68. Guimarães Editores. Lisboa. 1995. 5 Wittkower, Rudolf. Op cit. p. 10. 6 Barreto, Luís Filipe. 1987. Os Descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma Análise Sociocultural. p. 11. Gradiva. Lisboa 7 Idem. p. 6. 8 Idem. p. 20. 9 Serrão, Vitor. O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses. p. 71. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. Lisboa. 1983. 10 Moreira, Rafael. Goa em 1535. Uma Cidade Manuelina. p. 179. Nº 8, vol. 2. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Lisboa. Lisboa. 1995. pp. 177-221. 11 Serrão, Vitor. Op cit. p. 49. 12 Idem. p. 50-51 13 Reis, Lysie. Os “homens Rudes e muito honrados dos mesteres”. p. 237 Revista da Faculdade de Letras Ciências e Técnicas do Património. I série vol. IV. Faculdade de Letras do Porto. 2005. Pp. 235259. 14 Serrão, Vitor. 2001. História da Arte em Portugal. O Renascimento e o Maneirismo 1500-1620. p. 84. Editorial Presença. Lisboa. 2

15

A.N.T.T. Referências - PT/TT/CC/2/155/100 - PT/TT/CC/2/80/20 - PT/TT/CC/2/80/91 PT/TT/CHR/K/44/31-165 PT/TT/CHR/K/44/31-166 PT/TT/CHR/K/44/31-167 PT/TT/CHR/K/44/36-192 - PT/TT/CHR/K/44/36-193V - PT/TT/CHR/K/44/36-194V. 16 Apesar da polémica inerente, como não rever no Manuelino um traço irrefutável deste praxiema oriental? Reforçamos a convicção de que elementos estruturais orientalizantes terão sido integrados e fundidos com estilemas pré-existentes constituindo um verdadeiro e sincrético universalismo visual. 17 Pires, Benjamim Videira, S. J. 1995. Taprobana e Mais Além... Presenças de Portugal da Ásia. p. 171. Instituto Cultural de Macau. Macau. 18 Ibidem. 19 Idem. p. 124. 20 Idem. p. 196. 21 O que na realidade o tratadista descreve é um processo de imprimitura de madeira para pintura a óleo e a preparação de vermelhão para pintura de iluminação. Vd, Nunes, Philippe. 1615. A Arte da Pintura. Symmetria E Perspectiva. p. 101 e 120. Editorial Paisagem. Porto 22 Carvalho, Pedro de Moura. [et al]. O Mundo da Laca. 2000 Anos de História. p. 128-130. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 2001. 23 Idem. p. 141. 24 Barreto, Luís Filipe. Op cit. p. 15. 25 Martins, Mônica de Souza Nunes. Op cit. p. 39 26 Idem. p. 40. 27 Bonnet, Márcia. Op cit. p. 35 28 IPHAN – Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional. In http://www.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Linha=tc_belas.gif&Cod=1419 (2015.04.27;12h)

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