O Pântano - Uma Reflexão Sobre o Ordinário

July 17, 2017 | Autor: Patrícia Dos Anjos | Categoria: Semiotica, Cinema Argentibo
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Patrícia de Campos Louzada

O PÂNTANO UMA REFLEXÃO SOBRE O ORDINÁRIO

O Pântano: Uma Reflexão sobre o Ordinário apresentado como requisito de avaliação do curso de Comunicação Social – Habilitação em Cinema e Vídeo do Centro Universitário UNA para obtenção do título de Bacharel.

Professor orientador: Carlos de Brito e Mello

BELO HORIZONTE 2009

APRESENTAÇÃO Este trabalho teve como foco primeiro efetivar um estudo relativo à mulher latino americana, sua religiosidade e seus papeis sociais. Durante essa busca o filme “O Pântano”, dirigido e roteirizado por Lucrecia Martel, nos apareceu como algo que concentrasse e até expandisse tais conceitos e pensamentos. Nosso foco, então, se voltou para as mulheres retratadas na obra apontada acima. O caráter infame de suas vidas foi o foco principal de nosso olhar. Sabemos que estes indivíduos se fazem existir na imagem, que o filme é trabalhado de forma primorosa na construção de cena, na montagem e em diversos outros aspectos relativos à construção cinematográfica. Porém, nosso olhar aqui se direcionou aos indivíduos, personalidades construídas através de uma história que se faz através do comum, do cotidiano, do banal. Tendo, então, como base de nossa pesquisa as mulheres retratadas na obra citada, escolhemos duas delas, que são Mecha e Tali. Mães das famílias que são apresentadas ao espectador, estas serão o nosso objeto de estudo. Mães, mulheres, argentinas, católicas, que encorporam pensamentos, emoções e reações, serão analisadas dentro de um percurso metodológico-analítico que passará pelos aspectos verbal, imagético e sonoro. Para construirmos uma leitura a cerca dessas personagens, abrimos este trabalho com o contexto social, político e econômico em que a obra se fez. Em seguida, apresentamos de forma breve a história narrada, algumas questões relativas ao roteiro cinematográfico e aos personagens infames que a obra narra. Em seguida, trazemos, de forma didática, uma revisão bibliográfica, seguida pela análise em si. A semiótica peirceana entra na lista desta revisão com um caráter de ferramenta metodológica, e dialoga com autores como Maria Rita Kehl, Giorgio Agamben, Michel Foucault e Michel de Certeau, sendo este último a base maior de nosso estudo. Procuramos efetuar uma análise que vá além do senso comum, fundamentando nossas bases teóricas na compreensão de conceitos que serão apresentados à frente, e que são de fundamental importância para nosso estudo, como a fenomenologia e suas características fundamentais: primeiridade, secundidade e terceiridade.

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1 Contextualização “Para se saber algo a respeito de alguém em particular, devemos saber tudo a respeito de todos.” - Oscar Wilde 1.1 Nuevo Cine Argentino Diversas obras cinematográficas com carga narrativa indiretamente relacionada à uma Argentina sustentada por grande fragilidade econômica, surgiram nos últimos anos. Em meio à uma crise que varreu este país em meados dos anos 1990 e no início dos anos 2000, com altos índices de desemprego, um produto interno bruto que se retraia, a renúncia de Fernando de La Rúa, um povo descrente com relação ao contexto em que se encontrava e uma dívida externa enorme, surgiu um movimento cinematográfico, não organizado, conhecido como Novo Cinema Argentino. Uma reestruturação e uma reafirmação da qualidade de obras que nascem através da simplicidade e riqueza de um olhar apurado, ressurge dentro de um cinema com uma história de nascimento através de um olhar estrangeiro, e que passa, ao longo dos anos, por processos de construção, apreensão e compreensão da própria auto imagem e que se firma agora como linguagem de referência e reconhecimento internacional. 1.2 Lucrecia Originado através de realizadores independentes, este novo cinema conta com obras como “La Ciénaga” (“O Pântano”), realizado por Lucrecia Martel, produtora, diretora e roteirista responsável, também, pelo “La niña santa” (“A menina santa”) e “La mujer sin cabeza” (“A mulher sem cabeça”), dentre outras obras para a televisão, obras documentais e curtas metragens ficcionais. “La Ciénaga” (2001) recebeu prêmios diversos, e é um cinema de autor com boa repercussão tanto crítica quanto de público. Lucrecia Martel, nasceu em Salta, uma pequena cidade no norte da Argentina, no ano de 1966 e, quando pequena, filmava seu cotidiano familiar, explorando as pequenas nuanças das relações interpessoais que a cercavam.

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Muda-se, em 1986, para Buenos Aires. Com o intuito de investir em seus estudos, ingressou no curso de Ciências da Comunicação, e educou-se sofre a linguagem cinematográfica de uma forma auto didata. 1.3 La Ciénaga Em “La Ciénaga”, seu primeiro longa metragem, Martel acompanha a história de duas famílias, que tem como matronas duas primas distantes, Mecha e Tali. Estas, muito amigas durante a juventude, se reencontram no hospital local após a primeira se machucar em uma queda e Luciano, filho da segunda, se ferir. Após este reencontro, elas se reaproximam, possibilitando que suas famílias façam o mesmo. A história se abre ao som de tiros e relâmpagos, com uma a vermelhidão de pimentões e vinhos, com a embriaguez de Mecha, com sua queda e com a proximidade afetiva de sua filha com a criada. Paralelamente, se desenvolvem ações na casa de Tali, onde esta conversa com uma amiga sobre os encantos da Bolívia, e a possibilidade de cruzar a fronteira para a realização da compra dos materiais escolares de seus filhos, ao mesmo tempo que seu caçula, Luciano, se machuca com um corte. A chuva que cai faz com que a luz fique oscilante e mesmo ausente. Sem energia elétrica disponível de forma completa, Luciano e Mecha são atendidos no hospital à luz de um lampião, ao mesmo tempo que Jose, filho de Mecha, recebe a informação de que sua mãe está machucada, decidindo retornar à sua cidade, com a desculpa de visita-la. A partir dessa introdução aos personagens centrais, varremos os ambientes, podendo observar um pouco de seus cotidianos durante o período do verão carnavalesco da região. Os filhos de Mecha e Tali se divertem em caçadas na mata, ou no carnaval, no dique de água, ao redor da piscina, convivendo de forma próxima. Ao redor da piscina não tratada, e abandonada, todos os jovens e crianças se reúnem, cercados por cachorros, para contar histórias que prendem a atenção dos maiores e alimentam a imaginação dos pequenos. Com a desculpa de comprar os materiais escolares para os filhos de Tali, ela e Mecha, alimentam uma esperança de se escapar da região, em direção à Bolívia, para passarem juntas um final de semana. Esse desejo se esvai com a compra efetuada pelo esposo de Tali. Com a vida fixa na região, elas seguem suas vidas, presas à suas casas e famílias. Compreendemos melhor o contexto das vidas destas mulheres ao observarmos seus diálogos e formas de entretenimento. Assim como as diversas ações paralelas de seus familiares e empregados. 4

Jose, filho de Mecha, vende os pimentões produzidos por sua família em Buenos Aires com Mercedes, antiga amiga de sua mãe e ex amante de seu pai. Com a cobrança de trabalho e presença de Mercedes, que agora também é sua amante, ele retorna ao seio da família e aproveita para festejar sua juventude. Vero, irmã de Jose, acompanha com interesse seu irmão, moldando-se entre eles um ar de intimidade e desejo, que fica em aberto para o espectador, que não desvenda até que ponto tal proximidade pode ter chegado, ou não, ao incesto. Momi “Suja”, possui um interesse aberto com relação à Isabel, criada da casa. Mecha acusa esta de furtar toalhas, orientando a família que irá demiti-la, porém, quando Isa pede demissão, sua patroa se sente ofendida e agride verbalmente a empregada. Momi, que já havia percebido a afeição existente entre sua amada e outro empregado da casa, sofre com essa partida. Este rapaz, durante um baile carnavalesco, alcoolizado, sente que os olhares e brincadeiras de Jose direcionados à Isa passam dos limites e agride o filho da patroa em defesa de Isabel. Luciano, carinhosamente chamo de Luchi, é filho de Tali, e uma criança meiga, quieta, obediente e observadora. Têm uma mania de brincar de prender a respiração, fala pouco e escuta curioso os latidos roucos do cachorro que habita ao lado de sua casa. Curioso, questiona sua mãe sobre a possibilidade do animal derrubar a parede, observa sua irmã Mariana e a amiga brincarem, chamando o animal de “rato-do-banhado”, dando asas à sua imaginação. Curioso, quando seus familiares se distraem, sobe escadas postas por sua mãe para a jardinagem, quando um dos degraus que esta remendado se quebra e Luciano cai em encontro com a morte. Mariana é uma criança alegre e inteligente que dispersa todas suas energias com brincadeiras, aproveitando as férias escolares. Distrai-se com uma amiga e, ocasionalmente, direciona suas peripécias infantis ao irmão mais novo, Luchi. Os outros filhos de Tali e Mecha, vagueiam a histórias, assim como outros personagens que aparecem, construindo o ambiente, e contextualizando-nos com relação às relações pessoais, aos preconceitos sociais e preferências comportamentais. Estes, porém, são pouco expostos, se comprados aos outros acima citados. Os dias colocados em evidência são cingidos por transmissão televisiva que acompanha uma suposta aparição de uma santa, alimentando a curiosidade, a fé e a imaginação das pessoas que visitam o local e que acompanham o fato pela TV. Esta revelação casa com os lares recheados de símbolos do cristianismo católico, evidenciando o vínculo regional à tal fé.

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Momi, impulsionada talvez pelas perdas de Isa e de Luchi, se direciona ao local narrado na tela, contando à sua irmã Vero que lá nada viu, sendo esta a cena de encerramento do filme. 1.4 O Roteiro e os Personagens Infames Aspectos como as falas, os locais e horários, são sugeridos e detalhados no roteiro cinematográfico, que é a base textual que antecede à movimentação de equipes de produção de uma obra fílmica. Esta ferramenta de trabalho é a base de estruturação emocional dos personagens, propondo-se, de igual maneira, à expor pistas comportamentais para a compreensão destes. Como na obra em estudo a roteirista é, também, a diretora, compreender a parte escrita, material ao qual não temos de forma concreta em mãos, é possível através das escolhas imagéticas e sonoras. Como ferramenta de análise utilizaremos a semiótica, que encabeçará e guiará a análise fílmica. As formas de construção e de planejamento narrativo expostos na tela serão refletidos via Peirce e estudiosos de suas teorias. Nesta análise, ao passar por diversos aspectos da construção da imagem fílmica, como a montagem precisa, a ausência de trilha sonora e a busca do detalhamento da construção de ambiência sonora, nos fixaremos na base da primeira de análise, que é o roteiro cinematográfico. Dos personagens da obra posta em evidência, Mecha e Tali serão o foco maior de nosso estudo. Mulheres que são indivíduos comuns, sem destaque, fora de modelos fixos, que possuem um caráter ordinário e infame, e que se constroem por pequenos detalhes, sem grande passagens, escândalos ou redenções. 2 Diversos Olhares sobre o Comum “Mas a vida que começa na terra depois do último dia é simplesmente a vida humana.” - Giorgio Agamben 2.1. O Comum Para refletirmos sobre o herói comum, o homem ordinário, que se mistura com os ruídos da história, recorremos a diversos autores. A aquele que abre nosso debate é Michel de Certeau, especificamente a obra: “A invenção do Cotidiano”. 6

Para compreender melhor este herói anônimo, de Certeau o introduz como um indivíduo precedente aos textos, que cresce nas “representações escritas”, e que se torna, aos poucos, o centro dos panoramas científicos, essa abundância de indivíduos anônimos que se molda como “partes tomadas pelo todo”. Recorda-nos ele que as massas foram as primeiras a se subordinar a um enquadrar das “racionalidades niveladoras”1, e que a língua se tornou um discurso, ou mesmo uma citação superficial do outro. Para compreender tais aspectos e nos ambientar este raciocínio, Michel faz uma interessante ponte com o passado. No século XVI, “aurora da modernidade” 2, o homem ordinário aparece desenhado com uma desenvoltura transformada em escárnio. Moldado de forma irônica, se insere em um tracejar da vida modulada pelo “extravio” e pela “perda”, expondo-se como humanamente insensato e mortal. Lançado à uma sorte “comum”, este homem sem nome, vinculado ao outro, enxerga e transfere a culpabilidade ao outro, ao destino. Com o seu lugar-próprio limitado pelas propriedades particulares, observa um destino comum a todos, a morte, como algo que reduz a nada a intenção de se eximir o que se almeja. O morrer é o apagar das diferenças e diversidades. A literatura, um simulacro, se torna a verdade de um mundo condenado à morte, o que leva a uma fusão conceitual entre mundo e literatura. Há então uma postura em que todo o mundo e ninguém dizem uma relação universal de produções escritas pelo destino, pela morte. O homem ordinário dá como representação uma literatura ao qual não se encontra representado. Reconhece o caráter universal do lugar particular, onde se tem a sabedoria como obtentora do saber. O outro, um ser anônimo, aparece na escritura elitista como um locutor “vulgar” e como uma metalinguagem sobre essa elite. Este homem ordinário traça o extravio da escrita, que esta fora do seu lugar próprio. Metáfora de dúvidas, figura da relação da escrita com todo o mundo. 2.1.A. O Comum Freudiano De Certeau ainda nos traz pinceladas relativas ao olhar de Sigmund Freud sobre este homem ordinário. Este, segundo Michel, ao tomar o homem comum, ordinário, para tema de análise dedicada à civilização, à religião, não só opõe as luzes da Psicanálise ao estado de 1

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escuridão da maioria ou articula em um saber novo as crenças comuns. Usa, sim, a ilusão do espírito do infortúnio social combinado ao homem comum. Abandona aqueles capazes de modular o trabalho em prazer e assume um compromisso com o homem ordinário. Esse comprometimento fornece à teoria um lugar seguro, onde se estende ao universal e encontra arrimo no real. Este homem comum, que pertence a um universo abstrato, é apontado como conhecedor de uma totalidade e de obtentor de uma garantia de seu estatuto, dadas a ele pelo “Deus da religião”3. O homem ordinário, confundido com o comum supersticioso, se faz reconhecer por seus efeitos. Fornece ao discurso um modo de generalizar um saber particular e garantir por toda a história a sua validade. Ele autoriza um discurso que supera os limites da linguagem, privado do real que tem como referencia. O discurso esclarecido, diverso ao discurso comum, exprime e explica a experiência comum. Funcionando à maneira do Deus de outrora, o homem ordinário presta ao discurso o serviço de aparecer como princípio de totalização e reconhecimento. Retomado por Freud, o ordinário é insinuado em “campos científicos constituídos” 4, o que levou a uma quebra importante de barreiras. Como o comum, o ordinário não tem voz própria, por ser “indizível”, nem tão pouco de conduta inabalável, atribui-se a sua historicidade aspectos que remodulam pela frivolidade que, no século XVI, dizia sobre “Ninguém”. 2.1.B. A Linguagem Ordinária e As Palavras que Andam Certeau tem como principal foco de reflexão a oralidade. Essas vozes múltiplas que não se fazem mais ouvir, a não ser dentro dos sistemas escriturísticos onde reaparecem no campo do outro. Ele expõe como a linguagem define nossa historicidade, nos supera e envolve sob o modo do ordinário. Esclarece como a “every day language”5 e sua relação com o ordinário são esquecidos ou supostamente dominados e como o homem se lança contra os limites da linguagem. Nos demonstra as relações do falar usual não traduzível aos discursos filosóficos, como a fala comum contem maior riqueza que a filosófica. Existem, segundo o autor, pesquisas que visam o comum dentro do discurso científico, que tentam rearranjar peças hierarquizadas e desconexas da linguagem. Questões que buscam 3

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uma ciência do ordinário, que demonstram que mesmo não identificados à linguagem ordinária, estamos sujeitos à ela. Há uma busca pelas vozes que foram perdidas, que voltam agora as sociedades “escriturísticas”, vozes que a partir dos séculos XVII e XVIII, da “modernidade”, que não se fazem ouvir fora da escritura. Segundo o autor, essa voz, em relação à escritura, isola o povo e reprime sua voz, que foi registrada de diversas formas, foi colonizada e mistificada pela história recente do Ocidente. Onde ela se apresenta, muitas vezes, é o imitar do que já fora produzido pela mídia. De qualquer modo, segundo Michel de Certeau, não há uma “voz pura”, pois ela sempre será determinada por um conjunto de princípios social e familiar, e ainda tem de ser codificada pelo processo receptivo. A oralidade é um fio que faz parte do processo da trama escriturística. Não há, então, uma oposição entre oralidade e escritura, pois são de origem única. A escrita assume um “discurso fragmentado que que articula sobre práticas heterogêneas de uma sociedade e as articula simbologicamente”6. O produto textual é , agora, o que produz a sociedade, não mais aquilo que se narra. A oralidade se aproxima dos processos de tradição, enquanto a escritura o faz com o “progresso”. Michel de Certeau toma a escritura como construção de um texto que tem poder sobre aquilo da qual foi isolado, a exterioridade. Ele passa pela página em branco, que é local “desenfeitiçado das ambiguidades do mundo”7, onde desenha trajetos que moldam um sistema, que tem como meta a eficácia social. 2.1.C. A Escritura por Excelência: A Bíblia A produção escrita cientifica-intelectual efetuada pelo homem ganha forças com o passar dos tempos. Michel de Certeau, em “A invenção do Cotidiano”, nos esclarece tal ponto, ao retomar o origem da força do fazer escrito do ser humano. Ocidente tem uma relação fundamental com a Bíblia, a “Escritura por excelência”, e de Certeau a avalia como um modelo, pelos efeitos que produz na sua interpretação. Até os séculos XVI-XVII essa Escritura fala, ela é uma voz que ensina, onde o “querer dizer” do Deus que espera do leitor um “querer ouvir”, para que este tenha acesso à verdade.

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À medida que a “modernidade” se forma, percebe-se que não se ouve mais essa Palavra. A verdade depende, agora, de um querer fazer, a identidade depende de uma produção, de um corte, um desapego. Sob formas científicas, outra escritura se impõe, agora a escritura não é mais o que fala, mas o que se fabrica, não é mais uma origem, é uma prática, uma identidade mantida apenas pelo fazer. Relacionada ainda à sua origem, essa nova escritura é uma prática, uma produção relacionada ao fazer, avança ao mesmo tempo que “a voz própria de uma cultura cristã se torna o outro”8 e a sua significação se transforma em passado. A conquista capitalista se articula nessa perda e no esforço das sociedades “modernas” para se redefinirem sem essa voz. Escritura e linguagem se transformaram, o ato de enunciar ganha valor, busca-se, agora, um novo locutor, uma linguagem que se deve fazer e não somente ouvir. O indivíduo surge, nasce como sujeito que se apodera do espaço e se coloca como produtor de escritura. A linguagem se objetiva, é necessário fazê-la, não mais lê-la. Se inaugura um novo modo de usar a escritura, há um esforço por se colocar o corpo social/individual sob a lei de uma escritura que domina o corpo. Os seres vivos são postos num texto e se transformam em “significantes das regras”. A escritura encarna no ser, há uma articulação entre texto e corpo, e permite que os gestos que farão da “ficção” textual o modelo reprodutor das realizações do corpo. Distinto do grupo, o corpo individual se torna o corpo social, se transformando em unidade de referência. O homem agora pode produzir e remodular, e o corpus textual muda, marcado pela escritura sobre corpos do saber. O texto refaz a história e encontra sua efetividade nos séculos XVIII e XIX, onde é aplicável sobre o público e o privado. 2.1.D. A Ficção, a Representação e os Espelhos de Vidro Segundo Michel de Certeau, ao surgir, a ficção foi modulada por representações ou fábulas de um corpo que é “o significante de um contrato”. Esses saberes foram introduzidos à realidade através de uma mudança na ficção, uma multiplicação dos instrumentos artesanais e industriais que se propagam em torno dos “significantes da comunicação social” 9, onde os corpos e os heróis são transformados em ilustrações. Os instrumentos transitam entre ruínas e um agir econômico, entre uma paralisação e um trabalho. Se diferenciam pela ação que empregam, seja de retirada, seja de colocação. 8

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Os corpos se tornam corpos, através de uma correção de algum defeito referente a um código, relacionada desde aspectos emocionais a comportamentais. Os desejos que motivam as ações que fecham os corpos dentro de uma lei são mobilizados pela crença, “fazer crer é fazer fazer”. Acreditando naquilo que se crê real, esses corpos se tornam sinais, em uma “unidade de sentidos”, um fragmento citável. Esse diálogo com o corpo, toda essa experiência é escrita pelo sistema social em que se está. Surgem mitos, ficções, rompimentos, janelas e pinturas de vidro que são a única saída para o mundo. Os personagens, pintados no “vidro”, se misturam com os objetos que estão à sua frente ou atrás dele, transparência que promete a comunicação. Os espectadores não os articulam, mas os associam. “A figura pintada no vidro”, que mais para a frente iremos associar ao cinema e à algumas cenas do filme “O Pântano”, “é a ilusão de ótica desnudada para e por voyeurs”10. A página em branco é, agora, um vidro que atrai leituras, a escritura é um sonho que se ocupa através daquilo que se quer falar. 2.2. Homens Infames Uma outra maneira da figura do ordinário fazer sua aparição é avaliada por Michel Foucault em seu texto “A vida dos homens infames”, de 1977. Motivado por pesquisa relativa à textos documentais datados entre os anos de 1660 e 1760, de arquivos de internamento do Hospital da Bastilha e Geral e de cartas régias de prisão, Foucault reflete sobre vidas reais, ínfimas, encontradas em fragmentos, relativas à personagens de vida “obscura” e “desventurada”, contadas de forma breve, que tiveram um efeito de beleza e de terror. Descritos em palavras rápidas, esses seres humanos, que já viveram e morreram, com existências destinadas a passar sem deixar rastro e a desaparecer, são relatados de modo não fiel ao real, porém carregados com a realidade da qual fazem parte.

Essas

vidas

obscuras, fadadas a passarem por baixo dos discursos e a nunca serem lembradas/evocadas, que tem as únicas evidências do seu existir a partir dos contatos com o poder, tornam-se irrecuperáveis em sua essência. As poucas frases ditas sobre esses seres humanos, devido a sua unicidade e raridade, fazem com que o real e o ficcional se assemelhem. São por breves linhas que esses homens e mulheres perpetuam sua existência. Reprodução do que foi dito um dia, essa existência verbal

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de pessoas sem importância trazidas à luz pelo acaso, retornam ao real, sem nenhuma forma de glória. O cotidiano passa para o discurso, em um teatralizar das desordens e desgraças comuns e insignificantes. Se concretiza sob a forma de escritura, estabelecendo diferentes relações entre o poder, o discurso e o cotidiano. A vida comum renasce em uma nova mise en scène, coberta de imagens prematuras dos rostos desses indivíduos infames. O insignificante não mais pertence ao silêncio, são escritos os detalhes sem importância, a obscuridade, os dias sem glória, que compõe o comum. Nasce uma possibilidade de discurso, um “saber do cotidiano”, conjuntamente a uma grade de inteligibilidade de nossas ações e gestos diversos, um discurso sobre a banalidade. O corpo dos anônimos fala de si mesmo. O discurso, o poder, a vida cotidiana e a literatura se enlaçam, se relacionam. Para merecer ser dita, a vida não mais necessita ser extraída para fora dela mesma pelo heroísmo, pela façanha. Essa vida não é mais fatalmente marcada para ser dizível, agora, o que a assinala para torna-la expressa por palavras, não é o que sai do comum, mas o dizer da própria mediocridade. Se conta o ordinário, se faz aparecer o que não aparece: o real. Agora, ao dizer o ínfimo, o que não se dizia, o que não merece glória, o 'infame', um novo imperativo se forma, não mais ligado ao clamor, mas à busca do que é de difícil percepção, que não se é contado, que são os segredos mais comuns. 2.3 O Qualquer Em Giorgio Agamben, na obra “A comunidade que vem”, o ordinário, “o qualquer”, também aparece. Agamben reflete sobre esse ser qualquer, como único, “verdadeiro, bom ou perfeito” 11, que, possui relação com o desejo. Este qualquer supõe apenas o seu ser tal qual é, porém não compreende que é indiferente à propriedade comum (ser vermelho, brasileiro, católico). Possuidor de uma singularidade que não obriga mais o conhecimento a escolher entre o caráter indescritível do indivíduo e o aspecto compreensível do universal. O ser-tal não percebe suas atribuições e poder, nem oque lhe concerne. Esse indivíduo deseja todas as coisas em suas qualidades, características, atributos, o seu ser tal qual é. Quer o qual enquanto tal, assim é a inteligência de algo que é compreensível, movimentando-se para a Ideia, com uma singularidade amável.

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A origem da singularidade dessas pessoas, dotadas de uma consciência natural e não sobrenatural, possui uma natureza límbica, com uma ausência da visão de Deus. São seres que não se prendem a um mundo de culpa, nem de justiça, apenas criaturas extraviadas, que esquecem de Deus, neutros em relação à salvação, com vidas em que nada se tem para salvar, com uma “límbica impassibilidade face à justiça divina”12, pessoas que possuem uma ambiguidade. Este ser linguístico, que é um conjunto, uma singularidade e a mediação do sentido, não pode preencher a lacuna em que as partes conseguem se mover com destreza. Há uma contradição entre o individual e o universal que se origina na linguagem e transforma aquilo que é singular em membros de uma só classe, ao qual o “sentido define a propriedade comum”13, a definição do significado linguístico, com paradoxos emaranhados das classificações. Definindo o lugar do ser linguístico, uma classe que pertence e não pertence a si própria, e a classe de todas as classes que não pertence a si é a língua. O ser utilizado como exemplo é puramente linguístico, pois é um ser dito como algo que não é. O puramente singular indica o espaço vazio do exemplo, não se ligando à propriedades comuns.

Um exemplo, que é algo que se vale para todos os casos de um

mesmo gênero, sendo algo singular entre outros, e que escapa à uma contradição. Mesmo que todo exemplo seja tratado como algo particular e real, se vale em sua particularidade se dando a ver como um objeto. Porem o lugar próprio do exemplo é ao lado de si mesmo. Esses seres, ao perceberem que o bem não é aquilo que se concebe acima do mal, compreendem a ética. O mesmo ocorre ao perceber que o real e o verdadeiro não são atributos de objetos semelhantes ao que é contrário à realidade e não autêntico. A ética só se manifesta quando o bem se revela como uma forma de se assimilar o mal e quando o autêntico revela ser não autêntico. É onde “a verdade não pode manifestar-se a si própria sem manifestar o falso”14, onde o verdadeiro se manifesta dando lugar ao que não é verdadeiro. A conquista do que é bom está diretamente relacionada à um acrescentar do que é mal. Uma apropriação do que é impróprio se abre, e um não errar daquele que é perfeito se deve ao fato de que “o perfeito se tinha apropriado de toda a possibilidade do mal e da impropriedade”15 e não pode, “por isso, fazer o mal.” 16. Tendo que “Deus está em cada coisa

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AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 14 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 15 14 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 18 15 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p.19 16 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 19 13

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como o lugar em que cada coisa é, ou como a determinação e a totalidade de cada ente.” 17, este ter-lugar em tudo é o que o faz puro. Para Agamben, “Deus, ou o bem, ou o lugar, não tem lugar, mas são o ter-lugar dos entes, a sua íntima exterioridade. Divino é o ser-verme do verme, o ser-pedra da pedra. Que o mundo seja, que algo possa surgir e ter rosto, que existam exterioridade e não latência como determinação e limite de cada coisa: isso é o bem. Assim, é precisamente o seu ser irremediavelmente no mundo. O mal é, pelo contrário, a redução do ter-lugar das coisas a um facto igual aos outros, o esquecimento da transcendência inerente ao próprio ter-lugar das coisas. Em relação a estas, o bem não está porém num outro lugar: é simplesmente o ponto em que elas alcançam o seu próprio ter-lugar, tocam a sua intranscendente matéria. Neste sentido – e apenas nele -, o bem deve ser definido como uma auto-apreensão do mal, e a salvação como próprio facto de o lugar advir a si próprio.”18 2.3.A. O Qualquer e a Vontade O autor pensou sobre as faculdades da singularidade, onde se pode refletir sobre seu ser e sua individuação, buscada como algo relativo do lugar do ser na matéria ou como fator que se soma ao natural e ao comum, onde se põe termo à própria forma. Aquilo que é singular nada acrescenta

ao comum, na individuação da forma esta deve ser indiferente à

singularidade, não sendo nem particular, nem universal, não evitando que seja colocada como algo único e singular. Agamben reflete sobre a natureza comum como uma realidade anterior e indiferente à qualquer singularidade, e a qual acrescentaria algo que faça com que uma essência se individualize

e esteja no mundo. Ai, a indiferença se torna a raiz fundamental da

individuação, e, como a ideia está presente em cada indivíduo, não há diferença entre a natureza comum e a individuação da forma. Onde a ideia e natureza comum não são a essência da singularidade, onde a singularidade não é mais essencial, e a relação entre o comum e singular não é pensado como permanência de uma mesma essência em cada indivíduo. Se pensa o comum como algo que toma todos os corpos, que expressa a extensão, porém, aquilo que é comum não constitui a essência do singular. O ter-lugar, a comunicação das singularidades na extensão, dispersa os corpos na existência e não os une na essência. O 17

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qualquer se constitui de todas as propriedades, sem que estas constituam diferenças. “A indiferença em relação às propriedades é o que individua e dissemina as singularidades, as torna amáveis”19. O rosto é o “rosto qualquer, no qual o que pertence à natureza comum e o que é próprio são absolutamente indiferentes.”. A individuação de algo singular não é pontual, mas algo que oscila entre duas esferas e se torna perceptível através da passagem do comum ao singular, da potência ao ato, que são variações do modo. “O comum e o próprio, gênero e indivíduo são apenas duas vertentes que descem a partir do cume do qualquer.”20. A passagem da potência ao ato, do comum ao próprio acontece nos dois sentidos, se tornam reversíveis e se penetram reciprocamente. Este homem, ao chegar em seu estado final, recebe o lugar do outro, em um acontecer de sua singularidade, como ser qualquer, tal qual é. Um espaço próximo e não representável, um “lugar próprio do amor”21. Este ser, em sua emergência, como indicação intelectual, demostrada de uma forma quando significa outra, singular, múltiplo e não indiferente, possuindo um livre uso de si é a própria definição da maneira usual de ser. Nós, humanos, em nossa incapacidade de reação perante o demoníaco, o medo com que recuamos perante ele para exercer um qualquer poder de ser, baseado na fuga, isso seria o mal. Em um mundo onde o demoníaco desapareceu, o demônio é uma criatura afastada de Deus, impotente, é a que necessita de mais orações. E, esse demônio é, em cada ser, a possibilidade de não ser, que implora socorro. Ao fugirmos de nossa impotência, abrimos mão daquilo que torna o amor possível, o outro que se apresenta em sua fragilidade. Há uma inocência da tentação, em que o demônio é um ser suscetível de ser tentado. O qualquer, inerente à possibilidade e à potência, diversa da realidade, é o ser que “pode a sua própria impotência”22 que “face à habilidade”23 “nega e abandona a própria potência”24. Se o pensamento fosse apenas potência de pensar, então ele desapareceria, se tornando inferior ao próprio objeto. O pensamento é potência pura, onde pode virar para si próprio, onde se torna pensamento do pensamento. O que ele pensa é sua pura potência, onde escreve a própria passividade. A ação de escrever vem de uma impotência que vira para si própria e se realiza como um ato puro.

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AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 23 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 24 21 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 27 22 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 33 23 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 34 24 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 34 20

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O homem, sendo sua própria possibilidade ou potência, está em dívida, possuindo um sentimento de culpa por um ato que ainda não cometeu. Daí que a única experiência ética é ser a sua própria potência e o único mal caberia à um sentimento de repressão relativo a uma culpa sobre a própria potência. Promessas de felicidade relativa ao corpo humano, liberto de um destino biológico e uma biografia individual, fazem com que este surja comunicável não como algo genérico nem individual, nem divino, nem animal, mas simplesmente qualquer. Antes vinculado a um caráter divino, agora esse “qualquer é uma semelhança sem arquétipo, isto é, uma Ideia.”25. A singularidade é, então, uma indeterminação dos limites do ser. A língua humana, antes utilizada para fundar o nome e o poder de Deus, enfrenta agora um pudor relativo ao seu referente. As velhas classes sociais se dissolveram dentro da pequena burguesia e os velhos sujeitos sociais declinaram, como consequência da modernidade., onde estão desligados de uma falsa identidade popular, acabando com identidades sociais, sem dar valor às diferenças. Perdem o sentido da existência individual que se transformou em exibição individual, e ainda buscam uma identidade imprópria e insignificante para eles mesmos. Essa falta de sentido da vida se depara com “a última falta de sentido”26, o puro incomunicável: a morte. O qualquer é a singularidade e a singularidade qualquer é determinada apenas através de sua relação com a ideia. Ela é um ser-tal, uma relação com uma totalidade indeterminada. O ponto de contato com o exterior que deve permanecer vazio, é o limite. O qualquer é uma singularidade indeterminável, que somada ao vazio é uma exterioridade pura. O qualquer é, então, um acontecimento puramente exterior. O exterior é a passagem, a exterioridade que da acesso, a experiência do próprio limite, o ser-dentro de um exterior. O capitalismo, como uma forma de espetáculo onde o que era vivido foi expulso por uma representação, efetuada pelo intermédio de imagens. Acontece aí que “o mundo real se transformou numa imagem e as imagens se tornam reais”27 e inquestionáveis, onde este mundo se dirige à uma certa alienação da linguagem comum. A palavra, como revelação de algo, se separando daquilo que revela, se torna autônoma. Ao se separar o ser humano da coisa revelada, se revela “o nada de todas as coisas” 28. Os homens se separam pela linguagem, por aquilo que os une, sendo poucos a saírem ilesos desse contexto.

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AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 41 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 51 27 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 61 28 AGAMBEN. A Comunidade que vem. p. 64 26

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2.3.B. O Irreparável Agamben reflete sobre a essência e a existência e tem o Irreparável como um fato em que tudo é como é, seja como for, e possui duas formas idênticas, que seriam a da segurança e a do desespero. Essencial seria aquilo em que toda razão de dúvida tenha sido suprimida, onde todas as coisas sejam definitivamente e certamente como são, independente das consequências. Quando se pode perceber o caráter irreparável do mundo este se torna transcendente. O mundo como é, por não ser como parecia, ou como desejaríamos que fosse. Raiz da dor e da alegria, que não são negativas ou positivas, apenas são o puro ser-assim. Ele é o mesmo, com os mesmos atributos, para todos, onde o que muda são os limites. Uma revelação do mundo em seu caráter profano confia ao mundo a profanação da coisa, onde a possibilidade de salvação do seu ser assim começa. O mundo, confiado pela linguagem-revelação ao profano, é por seu caráter profano que será salvo. O “assim”, palavra que representa algo irreparável, (“Por conseguinte, as coisas estão assim.”29), algo que não pode ser de outra maneira, não exprime uma qualidade ou determinação do ser-assim, não é uma essência a determinar uma existência, e individua seu referente. O ser que é irreparavelmente seu assim, “é apenas seu modo de ser”30, uma existência singular e qualquer, que na existência encontra sua essência no seu ser-assim, ser sua determinação. O ser puro, sujeito do discurso, ao qual incide o que se diz, em essência e existência, em seu ser-na-linguagem-do-não-linguístico, pensado como a própria coisa, como a exposição deste ser, em direção ao seu ser tal qual é, não remete para nenhum pressuposto. A existência, como algo inerente à potência do não ser, significa qualificação, submissão ao ser-tal, imbricada na essência, onde o ser-assim é o limite de casa coisa. O sertal de cada coisa é a ideia, onde seus traços se destacam sem ele como uma imagem, não sendo a identidade da coisa, mas não deixando de se-la. Cada coisa se mostra ao seu próprio lado, em um limite. A redenção seria não a sacralização do profano, ou o encontro do que se perdeu, mas a perda do que já estava perdido, o profano enquanto tal. A esperança advêm do que não tem mais cura, daquilo que é irreparável.

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O ser-assim incorruptível, no homem, em seu confronto com as coisas, “se abre ao não-coisal”31, se entregando às coisas. Essa “não-coisalidade (espiritualidade), significa”32 se perder nas coisas ao ponto de não conceber mais nada além das coisas. É ai que se toca o limite, chocando-se com ele. 3 Capítulo 3: Análise “Mesmo sendo o aspecto icônico muito proeminente, em que medida essa pintura ainda guarda resíduos de figuridade, que dizer, em que medida ela ainda é capaz de indicar objetos que estão fora dela e que retrata?” Lucia Santaella 3. 1 Sobre uma leitura semiótica de La Ciénaga Para dar início a esta análise, lembraremos algumas questões fundamentais para a compreensão de nosso texto. Estes pontos são de fundamental importância para se desenvolver uma análise semiótica. Nosso trabalho deve passar pelos preceitos de primeiridade, que está em tudo relacionado com a qualidade, de secundidade, que está ligada às ideias de ação e reação, e de terceiridade, que diz respeito à generalidade. Deve passar, também, por uma ideia de que a forma mais simples de terceiridade manifesta-se no signo(1). Será igualmente considerado que existem três propriedades formais que capacitam algo a funcionar como signo, e que operam de forma conjunta: qualidade (quali-signo); existência (sin-signo) e seu caráter de lei (legi-signo). Como os signos estão ligados a três tipos de propriedades que nos permitem perceber, classificar e compreender os fenômenos, que são a qualidade, a existência e a lei, lembraremos, também, que há três tipos de relação que o signo pode ter com o objeto a que se aplica. Quando um determinado fundamento é um quali-signo, ele se reporta a seus objetos por similaridade, sendo qualidade aquilo que se apresenta e não representa algo. Está, também, aberto para despertar cadeias associativas de semelhança com uma infinidade de outras formas. Neste caso, na sua relação com o objeto, o signo será um ícone; quando o 31

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fundamento de um signo for um existente ele será chamado índice, quando for uma lei, será um símbolo habilitado para representar aquilo que a lei prescreve (legi-signo). Como Tali e Mecha nesta análise serão compreendidas como signos, os interpretantes serão elementos lógicos, racionais, emotivos, sensórios, ativos e reativos, produzidos como efeitos mentais a partir de nossa tentativa de apreensão e crítica. Aplicando um olhar contemplativo sobre a obra fílmica em questão e sobre nossos objetos de análise, compreenderemos suas qualidades como aquilo que apela para nossa sensibilidade e sensorialidade, lembraremos que estas mulheres estão sendo adotadas como signos com compossibilidades qualitativas. Haverá, também, um olhar atento aos sin-signos dos fenômenos, para o modo como sua singularidade se delineia no seu aqui e agora. Mecha e Tali serão, como já foi exposto, tidas como signos. São personagens que tratam-se de se corporificar através de atrizes, direcionadas por um roteiro cinematográfico, adaptando as características existenciais das personagens de modo adequado às propostas da diretora da obra fílmica em questão. Inseridas em um universo decadente e sem esperanças, cercadas por outros signos, se compõem com outros existentes, com outras leis e outras ocorrências em uma classe que lhes é própria, mergulhadas em um universo coberto por sinsignos. Suas relações com as questões do ser infame, qualquer e comum, serão pensadas à frente. Para que haja uma análise mais cuidadosa, haverá uma separação da análise relativa aos aspectos de quali-signo, sin-signo e o legi-signo. Durante a reflexão a cerca do comum e do infame, também refletiremos sobre as relações que se estabelecem com o feminino, onde entrará a leitura da obra “Deslocamentos do Feminino”, de Maria Rita Kehl, já citada como suporte para a tentativa de uma compreensão do modo como a mulher está representada na obra a partir, principalmente, das personagens escolhidas. Como o signo é um símbolo geral, sendo que “geral” aqui é entendido como tudo aquilo que nenhum particular pode exaurir, e que toda interpretação singular é sempre incompleta e falível, compreendemos que nossa leitura não será a única, muito menos a mais completa, porém, nos esforçaremos para realizar um exame cuidadoso da natureza do signos escolhidos, de suas relações com objetos e dos potenciais sugestivos, no seus aspectos icônicos, referenciais, indiciais, significativos e simbólicos. Levaremos, também, em conta que todo símbolo é incompleto, já que só funciona como signo porque determina um interpretante que o interpretará como símbolo. As possibilidades que o signo apresenta serão levantadas e estudadas a partir de nosso ponto de vista como analista.

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3. 2 Introdução Para investigarmos as formas de aparição da figura do ordinário, e considerando que o feminino é uma dessas figuras, construímos a seguir uma estruturação que auxiliará no encadeamento da análise. Chamaremos este olhar de “pré-analítico”. Este passo é um desdobramento de questões que foram feitas ao filme, tais como : “quem são estes indivíduos?” e “o que são Mecha e Tali nesse contexto?”. Tudo que é aqui pensado será destrinchado no capítulo próximo. Esta pré-análise fundamentará uma leitura que será construída com base em categorias diversas recortadas dentro de uma reflexão sobre as mulheres em questão. “La Ciénaga” prioriza o ambiente, expondo o mesmo como sufocante para uns e libertador para outros. Com uma narrativa não convencional, o filme explora a fragilidade dos personagens, pessoas que se acomodam em seus sofrimentos, seres comuns em uma abordagem sensorial. As ações, os locais e as personagens reforçam a existência de uma barreira que impossibilita que penetremos nos seres que nos são apontados. Estes universos distintos se desenvolvem e se cruzam, cercados, também, pela inocência infantil que, assim como o universo adulto que os circunda, apresenta momentos de despertar, de busca, além de manifestações de passividade. Percebemos fragilidades físicas e emocionais, a constituição de relações e desejos, bem como um desconhecimento de si e um vazio sentimental. Este permeia os personagens e se torna recorrente na obra, sendo ponto de apoio para nossa pesquisa e estudo que será apresentado a frente. Martel explora as diversas nuanças emocionais daqueles indivíduos, sem expô-las. Há uma construção de personagens frágeis e incompreensíveis que é clara tanto no roteiro quando na fotografia, direção, montagem, mixagem de som, em suma, em todo aspecto cinematográfico possível de ser explorado. A proximidade imagética e estrutural com os personagens impulsiona o espectador a uma tentativa de mergulho nas mentes destes indivíduos, que vivem a vida como algo não questionável, mas plausível de ser explorada de forma concreta e momentânea. A animalidade sempre presente, a fragilidade de uma água impura e não tratada, não translúcida e nunca explorada, exceto por Momi Suya, é o que ronda aquelas vidas que se circunscrevem àquela piscina e àquele pântano. É um atrativo para aqueles indivíduos que têm suas histórias cercadas por animais, suas lendas e histórias, curiosidades inerentes à sua presença e que prendem as pessoas em uma constante busca pela diferença e pela prisão 20

dentro de seus aspectos emocionais, se submetendo constantemente ao mundo e as circunstâncias. Há uma exposição de olhares e sentimentos que nos mostra possíveis desejos, imposições e estimula o espectador a leituras diversas sobre a malícia, o desejo e a fragilidade das pessoas que nos são expostas na tela. É impossível se conhecer por completo qualquer ser humano, e essa impossibilidade de compreender os indivíduos que nos cercam é a que ocorre com os personagens de “La Ciénaga”. Construídos com base em sua impenetrabilidade, estes seres se mostram explorando aspectos emocionais e posturas pessoais, em falas e ações demonstrativas de uma curiosidade pelo espaço que se situam e pela vida. Assim como um respeito e inocência de posturas, olhares e enfrentamento da vida, que se apresenta para estes indivíduos como uma teia que os prende dentro de um círculo de convívio e os entrelaçá em tragédias e esperanças transcendentais e posturas céticas. Oscar Wilde, em “Chá das Cinco com Aristóteles e outros Artigos”, nos presenteia com a seguinte frase: “Para se saber algo a respeito de alguém em particular, devemos saber tudo a respeito de todos.”. Nada cabe melhor na descrição de uma busca para a compreensão dos personagens desta obra fílmica. Impossível nos é conhecer de forma completa qualquer que seja o o indivíduo, por mais que se deseje, pois impossível nos é compreender a todos. Agora que varremos de forma breve algumas nuanças gerais da obra e das personagens, procuraremos aprofundar o trabalho analítico. Como será demonstrado, casaremos o que foi levantado com pontuações estabelecidas por nós, como o acidente que as leva ao reencontro, os vícios que possuem que serão vislumbrados como uma forma de preenchimento das perdas, sendo pelo álcool Mecha e pelo cigarro Tali. Focamos também nas relações que ambas estabelecem com os filhos e maridos, os locais físicos que as personagem se prendem, bem como os diálogos que traçam entre si. Os diálogos estabelecidos pelo telefone, as diversas perdas que tiveram, a fé, os diversos sonhos que tiveram e as relações estabelecidas com a suposta aparição da santa também serão levantados como questões relativas à construção das personagens.

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4 A análise Sígnica “Por estarem no mundo, por fazerem parte dos de sígnos da vida, os efeitos que os signos poderão porventura produzir no seu devir são tão enigmáticos quanto o próprio desenrolar da vida.” –Lucia Santaella

4.1 Preceitos de Qualidade – Quali-signos Para refletirmos sobre estas mulheres comuns dentro dos aspectos de quali-signo, vamos recapitular no filme elementos que apontem para pura qualidade e, mais tarde, estabelecermos uma descrição de nossas reações e interpretações relativas ao objeto destes signos. Estes, que aparecem como qualidade, ou seja, ícones, que se apresentam e que se oferecem à contemplação - como cores, luz, entre outros, que podem representar formas e sentimentos visuais e sonoros - serão aplicados nesta primeira parte da análise. Não procederemos uma análise cena-a-cena, já que este não é nosso foco, bem como é algo que não se mostra como algo necessário. Iremos, em alguns momentos, discorrer sobre alguns detalhes que se mostram importantes para esta leitura. O filme abre com um céu nublado. Estas nuvens de cor cinza que cobrem todos os personagens do filme e que anunciam a chuva, também antecipam ao espectador as características mentais e comportamentais dos personagens. O cinza, cor que é intermediária entre o branco e o preto, é, muitas vezes, relacionada à à tristeza, melancolia e questões fúnebres. Ou seja, o filme se abre mostrando algo que se encaixa entre extremos e que antecede o sofrimento. Anuncia toda a ambientação do filme, abre caminho para que se observe as mentes se cobrem com seus medos e incertezas. Aparecem, também na abertura do filme, pimentões vermelhos expostos ao ar livre. Frutos que podem ser utilizados tanto como alimento quanto como ornamento, que possuem uma cor, mistura do amarelo com magenta, que pode ter associação com diversas ideias paixão, fogo, calor, força, virilidade, dinamismo, vida, agitação, e também com a religião cristã católica (por ser a cor típica dos Cardeais, por fazer referência ao sangue de Jesus Cristo e, assim, ter relação à um luto na Igreja Católica), etc. Adotaremos estas associações que apresentam diálogo direto com os personagens do filme e, também, contrastam com o cinza.

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Mecha possui, ainda, vínculos passionais com seu esposo, mesmo que seu casamento esteja em ruínas. Seu filho José compartilha experiências carnais com Mercedes, ex amante de seu pai, e apresenta certa proximidade afetiva e sexualizada com a irmã Vero. Nem Mecha nem Tali vivem suas vidas com extrema paixão, nem se envolvem de forma ardente com o mundo, não possuem casamentos que transbordem virilidade, dinamismo, nem mesmo vidas que reflitam agitação, muito pelo contrário. Tanto que estes pimentões fazem mal ao estomago de Mecha, que os produz apenas para sustento financeiro. O único ponto de diálogo direto é com a religião, referência constante na obra. Famílias e indivíduos católicos que se prostram em um luto constante por erros (pecados?) que não se mostram claros na tela, apenas deixam suposições. Esta cor entra como fator de contraste com o mórbido e, ao mesmo tempo, dialogando com ele. Os fatores de ornamentação e alimentação características deste fruto se mostram evidentes em dois pontos: um relativo à busca pelo sustento familiar inerente ao pimentão e à sua venda, e outro às posturas meramente sociais. Um exemplo é o de Mecha ao dizer que Tali conversa muito e não evitar de recebe-la em casa para conversar, ou mesmo quando ela atende o telefonema de Mercedes, ex amante de seu marido. Mecha transmite na fala e no tom de voz uma certa alegria, porem expressa gestos que demonstram descontentamento com a conversa e com a possível visita desta mulher em sua casa. Quase todas as cenas do filme recebem pouca luminosidade, com exceção, por exemplo, daquela em que as crianças estão indo para a barragem. O céu nublado é uma constante, assim como sons de tiros e de animais, especialmente de cachorros. Essa penumbra que os personagens permeiam reflete a incompreensão que se tem destas pessoas, que variam entre sombra e luz, de forma literal e constate. As sombras e as penumbras remetem a impossibilidade de compreender estes indivíduos de forma completa. Recobertos por medos, segredos, desejos e vícios, eles passam da luz para a sombra, da estabilidade para a instabilidade, da certeza para a insegurança, da sobriedade para o vício em instantes. Os tiros que não se vê, apenas se ouve serem disparados anunciam uma certa tensão e reforçam as questões de perigo e morbidade. Os animais expostos, especialmente os cães, que vagueiam a casa de Mecha, e avizinham a casa de Tali, possuem leituras diversas e específicas para cada uma dessas personagens. Na casa de Mecha os cães são incontáveis e jogados aos próprios cuidados, possuem pelos macios, segundo Joaquim, e são de cor escura e opaca. Os ares e leituras mais amplas

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destes animais serão analisados à frente, quando abordarmos os caráteres de existência, porém cabem ser lidos aqui dentro das qualidades que possuem. Esses pelos macios e sujos, assim como os cabelos de Momi, refletem uma certa falta de cuidados, que se expressa na própria Mecha. Esta, por mais que se mostre preocupada com o tipo de vestido que deve usar para se deslocar para o Hospital, anda quase sempre de camisola, cobre os olhos com óculos escuros, veste um roupão qualquer e se prende à cama. Na casa de Tali há porém a presença constante apenas do som do animal, que preocupa e aguça a curiosidade de Luciano. Este cão que não é visto, e que emite ladrar forte, dialoga não só com os cachorros que estão na casa de Mecha, como também, e principalmente, com o mistério que nos prende a atenção. Da mesma forma que a tensão anunciada é constante em toda a construção do filme e que convida à enfrenta-lo, vê-lo e absorve-lo, o cão convida os personagens, especificamente as crianças, à criar, indagar e imaginar. O som do cão não perturba Tali, que apenas convive ao seu lado sem questiona-lo, assim como faz com o esposo. Vamos retomar à cena de abertura do filme, onde Mecha, que enche a taça com vinho tinto e gelo, produz um som que chama seus convidados a beberem mais. Este barulho faz referência há duas ocorrências, uma religiosa outra viciosa. A religiosa é clara, já que assim como o vermelho dos pimentões, o vinho tem ligação forte com aos dogmatismos católicos. Questão que se reforça no filme, já que toda aquela casa se cobre de quadros, crucifixos, programas de televisão e conversas relativas ao cristianismo católico. Porém, esta imagem também antecipa as fraquezas daquela família. Toda a residência de Mecha se cobre com garrafas de bebidas alcoólicas. Ela bebe constantemente, oque a leva a cair e se machucar, como também chega a preocupar sua prima. As cores do filme - mesmo as mais fortes como o laranja, o vermelho e o rosa - são opacas. Nada se mostra extremamente vivaz, nem mesmo durante o baile de carnaval em que Perro briga com José por causa de Isa. Estes seres, que se fazem existir na imagem, também o fazem através de cores, como dito antes, opacas. Assim o é por que assim estes serem são. Indivíduos apagados, sem redenção, sem heroísmo preso à clichês. Eles apenas estão ali, vivendo, se expondo ao expectador, eles apenas são. Tali, em sua primeira aparição no filme, conversa sobre a Bolívia ao telefone e demonstra o encanto das cores, narrando ao espectador como tudo lá é muito colorido, em contraste ao seu próprio mundo, ao qual, ironicamente, não poderá escapar.

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O vidro dos carros é sujo, assim como as águas da piscina e da represa que são nada translucidas. Isto reforça o que acima foi dito, especialmente a opacidade, a ausência de cuidados e a impenetrabilidade destes indivíduos. Toda a casa de Mecha possui paredes mal cuidadas, descascadas, e com infiltrações. Todos os ambientes são fechados, tudo é denso e áspero, até o roupão de Mecha. Já na casa de Tali tem a maioria dos cômodos com papel de parede colorido, assim como uma maior entrada de luz, com exceção da pia em que seu marido, Rafael, lava a perna da filha Mariana. Lá não há tanto cuidado, e o quarto onde Tali se isola, para fumar após não receber apoio para a viagem para a Bolívia, é escuro, descuidado e abafado, quase claustrofóbico. Estas questões contrastam e equiparam as residências destas mulheres, já que Mecha apresenta sua vida de forma desgastada e Tali ainda possui certos pontos de referência e apoio familiar. Tali possui pequenos momentos de desencanto, enquanto Mecha os tem como algo constante. A casa de Tali e Mecha são um reflexo de suas escolhas. A casa de Mecha é tensa, a de Tali ainda não. Mecha se apega de forma extrema ao vício, Tali ainda não. Assim como os óculos escuros que estão quase todo o tempo na face de Mecha, e de Tali em poucas. Mecha se isola do mundo como pode, Tali ainda não. Chove no jardim de inverno da casa de Tali. Cai água sobre as plantas, a tartaruga e uma bola de futebol murcha. As crianças estão dividindo e organizando seus materiais escolares. Tali, que está descalça, é observada por Luchi através de uma régua, e se mostra partida. Ela acende um cigarro e traga. Luciano puxa o ar e para de respirar. Mariana e Agustina pedem para que Luchi volte a respirar. Ele respira, Tali solta a fumaça. Ela anda de um lado para outro, há locais com penumbra por onde ela passa. Seu rosto fica fora de foco, ela se movimenta constantemente saindo de quadro e articula ideias, pensando nas possíveis desvantagens de se viajar para a Bolívia com a prima. Esta é uma das cenas que mais se destaca no filme. Lá fora chove enquanto Tali vagueia em sua casa, tentando encontrar uma resposta plausível para convence-la da pertinência da decisão de seu esposo. A água que cai, nutre as plantas e refresca a tartaruga, é a mesma que cai sobre uma bola murcha de uma casa que começa a se mostrar sem ânimos ou diálogos. Esta água da chuva, ainda translucida, limpa e pura, é a mesma que deixa que deixa resquícios de sujeira nos vidros dos carros de Tali, que são sujos e o são por terem recebido chuva e as gotas terem nele se secado. É a água que, se não for cuidada, será a que ofusca como as águas da piscina e da represa.

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Luciano vê a mãe repartida em duas, mas não deixa de vê-la com cores. Mesmo no momento que a mãe se mostra desamparada, perdida e dividida perante suas situações, o filho ainda a vê com determinado encanto. Tali se põe fora de nossos olhares constantemente, reforçando, mais uma vez, que não poderemos compreende-la, por mais que queiramos. Essa fuga dos enquadramentos e da visibilidade também realça como ela não se encontra em suas próprias palavras e como ela busca, de alguma forma, encontrar um caminho e um olhar que seja somente seu. Para pensarmos tudo que foi levantado neste capítulo, especialmente sobre Mecha e Tali, heroínas comuns, mulheres ordinárias, iremos, agora, dialogar com os teóricos que apresentamos em capítulos anteriores. Segundo as questões que nos foram possíveis de abstrair das ideias de Michel de Certeau, podemos perceber os vícios explicitados, seus possíveis desencadeadores e consequências nas características expostas acima. Estes indivíduos que e subordinaram a determinado poder - no caso de Tali o poder do esposo, e de Mecha, o poder de uma ausência de si própria - , que se nivelaram cedendo à tradições, que se vincularam à indivíduos ou ocorrências que lhe fogem ao controle, se fazem aos poucos com ações mínimas, buscando, talvez, apagar as dificuldades e diversidades. Todo o ambiente físico e social em que os personagens se encontram é recoberto de descaso e infortúnios, que se articula com estes seres. Seus efeitos, que possibilitam que sejam reconhecidos, são recobertos por um caráter inexplicável, onde exprimem o comum de forma opaca e “indizível”. A definição de sua própria historicidade se faz através do “every day language”, através de vozes que irão se perder, se já não se perderam, para as questões sociais e familiares. Personagens isolados da exterioridade, enfeitiçados pelas ambiguidades do mundo. Percebendo, também, pontos relativos às ideias de Michel Foucault, podemos refletir sobre essas vidas ínfimas e obscuras, que se exprimem nas cores, assim como seu cotidiano se faz passa para o discurso. Cores, detalhes sem importância, gestos banais de corpos que falam de si e de sua própria mediocridade, sem glória. Percebemos em

Giorgio Agamben pontes com as qualidades referentes à estas

mulheres de natureza ambígua, que são como são. Somados ao natural e ao comum, lembrando que o comum não constitui a essência do singular, estes seres se dispersam, não se unem e tentam fugir de sua impotência. Como o qualquer é o ser que pode sua própria impotência, essas mulheres tentam desequilibrar a relação entre potência e ato, não

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compreendendo que são sua própria possibilidade. Se isolam, se fecham, buscam os vícios e dialogam com o puro incomunicável, com a morte. O filme se fecha praticamente da mesma forma que se inicia, com o morro, o céu nublado, sons de tiros, cigarras, uma música, um barulho da porta de um carro e de passarinhos. Todas estas qualidades dizem respeito à continuidade da jornada destes seres. Ainda nebulosa, ela seguirá tensa da mesma forma que foi antes, e assim se repetirá por algumas gerações, tendo aquelas árvores, que atravessam o tempo, como as únicas testemunhas. 4.2 Preceitos de Existência – Sin-signos Continuamos aqui nosso raciocínio analítico passando para os aspectos de existência, os sin-signos. Consideraremos, então, os seguintes pontos: tudo que se apresenta diante de alguém com um existente singular e material é um sin-signo; algo que seja singular pode ser tomado como signo, já que indica sua origem e suas relações com o universo ao qual está; um índice – que é algo concreto, real e singular - é um signo que indica uma outra coisa com a qual ele está ligado através de um fato; todo índice é habitado por quali-signos; sensações e sentimentos são secundidade, já que suas qualidades não estão em um objeto material e existem ações e reações relacionadas à determinados sentimentos. Recorreremos, também, à uma reflexão sobre o comum baseada nos autores antes citados. Tali e Mecha se tornam aqui o signo maior ao qual nossos olhos se voltará. Com os autores já estudados, vamos refletir sobre estas mulheres anônimas e ordinárias, que se tornaram imagem e, como tal, não deixam de ser mortais, tendo em vista que o suporte ao qual essas imagens se fazem existir é temporário. Essas vidas são moldadas por perdas tão concretas quanto Mecha e Tali. Pessoas lançadas à uma sorte comum, que se vinculam à outras, se submetem ao destino, e tem o seu lugar-próprio limitado pelas propriedades particulares, bem como acompanham a morte como algo que poderia apagar diferenças. Mecha perde o sentimento de ser desejada por seu esposo, perde o filho para o trabalho e sofre pela perda do olho de Joaquim. Perde, também, a filha para os criados, os momentos de afeto e libido entre dois de seus filhos, a empregada para a vida, o sangue e a atenção relativas ao seu ferimento, a esperanças de sair da cama e ir para a Bolívia, para que não seguisse os passos de sua mãe.

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Tali perde a oportunidade de conviver de forma próxima à prima, de ir à Bolívia, cedendo às imposições do marido, perde oportunidades de diálogos com ele, perde detalhes da vida e do comportamento de seus filhos e perde Luciano. Ambras se prendem aos vícios, de forma esporádica ou recorrente. Existem enquanto escapatória o álcool para Mecha e o cigarro para Tali. Ao observar este mundo condenado pelo destino e à morte, pode-se ler que elas, mulheres ordinárias, são referentes a caráteres universais de suas ações particulares, metaforizando dúvidas e se tornando figuras da relação entre essas imagens aos quais se fazem existir, onde se fazem concretas, com o universo que vivenciam suas realidades temporais. Assim como as árvores praticamente imóveis, que aparecem na abertura do filme, elas possuem raízes com o local onde se encontram, especialmente com o universo de seus filhos, que na árvore são os galhos secundários. Todos os personagens marcam, deixam rastros por onde passam, ou se encontram marcados pelo atrito com o universo em que vivem. O arrastar das cadeiras pelos convidados, o cuidado e preocupação de Gregório com a aparência, as bebidas alcoólicas, os cigarros, os óculos escuros de Mecha e Tali – que são usados em horas cruciais, como, no caso da primeira, quando conversando no quarto com a segunda, mesmo tendo o ambiente praticamente sem luz alguma, usa os óculos, e os retira a medida que as crianças entram e ascendem-na - , os sangues, as cicatrizes nos corpos, a boca de Luciano marcada por dentes a mais, Momi tem nos cabelos e nas unhas mal cuidados, Tali tem o rastro da fumaça de seu cigarro – que é sempre abanado com suas mãos-, José se marca com a briga e Perro também, as taças quebradas por Mecha durante sua queda, as hortênsias destruídas por Momi ao dar ré no carro nas primeiras cenas, os peixes mortos com facões, a lebre morta que Luciano sopra, os balões de água que estouram, a maquiagem das meninas que se desfaz, o cadeado que é estourado por Tali para entrar no campo, a tomada no quarto de José que se solta, a escada que Luciano sobe, etc. Tudo são resquícios de ações. A chuva no jardim de inverno da casa de Tali, quando ela é observada por Luchi através de uma régua, e se mostra partida, ela também está marcada. Quando ela acende um cigarro e traga, Luciano puxa o ar e para de respirar. Mariana e Agustina pedem para que Luchi volte a respirar. Ele respira, Tali solta a fumaça. Ela anda de um lado para outro, há locais com penumbra por onde ela passa. Seu rosto fica fora de foco, ela se movimenta constantemente saindo de quadro e articula ideias, pensando nas possíveis desvantagens de se viajar para a Bolívia com a prima. Com resquícios de um ser qualquer sem lugar, esta cena retrata, através das imagens e da construção de cena, ações que são consequências de atos diversos. A asfixia 28

de Luciano é provocada por ele mesmo e é paralela ao ato de fumar de Tali. Ela fuma, perambula, articula palavras, foge da própria imagem. Essas ações são referencias de existência para seu filho, que se põe sem ar a medida que a mãe não direciona atenções à ele e que mergulha em um universo para a criança ainda não é compreendido. Nas relações que Certeau traz do olhar de Sigmund Freud sobre este homem ordinário, podemos pensar que ele se compromete à fornecer à teoria um lugar seguro, onde se estende ao universal e encontra arrimo no real. Aqui, estas mulheres comuns pertencem a um universo hipotético, abstrato, e estão sempre em diálogo verbal ou não não verbal com algo que faça referência direta à religião. Como já foi dito, existem crucifixos, imagens e objetos diversos na obra que remontem à religião cristã católica. Algo que, pela fé que se tem, pode ser apontado como fornecedor de uma totalidade de benefícios físicos ou sentimentais, que garanta um certo estatuto de amparo. Mulheres ordinárias, que confundidas com o comum supersticioso, se fazem reconhecer por suas ações, dando aos seus discursos, relativos a aparição da Santa, uma forma de generalizar saberes e vivências particulares, experimentados por outros. É onde Tali procura recursos que validem uma história de redenção, citando o contato de uma judia com a Santa. Este discurso supera os limites da linguagem, é privado do real que se tem como referencia concreta, apegando-se à suposições e crenças. É, também, ideológico e religioso, e tenta exprimir e explicar, como o discurso esclarecido o faz, toda a experiência comum. Como o Deus de outrora, elas prestam a este discurso o um statos de princípio de totalização e reconhecimento. Comuns, estas mulheres ordinárias não tem voz própria, são “indizíveis”, não possuem uma conduta inabalável e atribuem sua historicidade à aspectos remodulados pela frivolidade que diz sobre “Ninguém”. A expressão oral destas mulheres, seus diálogos, são vozes múltiplas que não se fazem ouvir, a não ser dentro de um sistema qualquer onde reaparecem no campo do outro. Suas ações verbais definem sua historicidade, as supera e as envolve sob o modo do ordinário. Essa “every day language” se relaciona com o ordinário, onde são esquecidas ou supostamente dominadas, mas elas não se lançam contra os limites impostos. Estas vozes se fizeram concretas como a imagem. Se ampliarmos ainda mais os discursos existentes no filme - sejam orais, gestuais ou imagéticos – perceberemos que eles não se fazem ouvir fora da situação específica refletida na imagem. As falas relativas à aparição da Santa, por exemplo, registradas de uma única forma, são um reflexo de uma situação que foi mistificada pela televisão. Onde ela se apresenta, muitas vezes, é o imitar do que já fora produzido pela mídia sensacionalista. As falas, especialmente de Tali, não são uma “voz pura”, pois se faz após uma construção codificada pelo processo receptivo, se 29

transformando em repetições que não se difundirão como algo único e novo, apenas lá estão refletindo sensações e sentimentos das personagens. As expressões orais das personagens dialogam com a construção imagética, com a direção de arte, montagem, construção e posicionamento das luzes e dos atores. É um fio que faz parte do processo da trama cinematográfica. Há uma ação conjunta das falas e de tudo que está na imagem, que possuem origem única. Todas as falas assumem um discurso fragmentado, mas que se articula sobre práticas heterogêneas daquela sociedade de forma simbólica. Essas falas são, então, um reflexo e uma produção social, não apenas aquilo que se narra. Como construção de um texto que tem poder sobre aquilo ao qual foi isolado, a exterioridade, são como algo onde desenha trajetos que moldam e refletem um sistema maior que elas próprias. Especialmente as falas que possuem ligação com a religião, com a Bíblia, a “Escritura por excelência”, onde essa Escritura ainda fala, ensina, onde se deseja comungar com o “querer dizer” de Deus. Mesmo em um universo pós moderno, esta Palavra se faz ouvir, e a verdade está ligada à existência de um credo, que se relaciona, mas não depende de um querer fazer, de uma produção, de um corte ou de um desapego. Aquela voz de uma cultura cristã ainda tem a sua significação como algo presente e real. Mecha e Tali, mesmo sendo novas locutoras, em um mundo onde algo deve ser feito, fabricado e não somente ouvido e falado, surgem, nascem como sujeitos que não se apoderam do espaço, muito menos se colocam como produtoras de ações em um mundo onde se fala, mas nem sempre se ouve. Corpos individuais que existem como algo distinto do grupo, se transformam em corpos sociais, porém não se fazem como unidade de referência. Elas tem o potencial de produzir e remodular, de mudar onde se inserem, porém não o fazem, construindo uma história onde há repetições de destinos, como no caso de Mecha que se prende à cama, assim como sua mãe, e de Momi e Vero que, no final do filme, repetem as ações dos mais velhos, que esta na abertura da história. Mecha e Tali possuem ações que transitam entre ruínas e um agir econômico, entre uma paralisação e um trabalho, mas não se diferenciam pela ação que empregam. Existem mitos, ficções, rompimentos, janelas, pinturas de vidro e uma Santa, que são a única saída para o mundo. Os personagens pintados no “vidro” - aqueles que estão na tela da televisão ou que são vistos através das janelas do carro e da casa, dos óculos escuros ou mesmo da régua - se misturam com os objetos que estão à sua frente ou atrás deles. Essa transparência, que promete a comunicação, também demonstra uma ausência de articulação daquele que vê e não articula, apenas associa.

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Esta “figura pintada no vidro”, assim como a imagem que as crianças observam, através da vidraça do carro, de Vero e José brincarem na lama, é desnudada para e por voyeurs. O mesmo se dá na televisão, quando a repórter tenta invadir a intimidade da moça que supostamente viu a Santa, ou mesmo no cinema, quando nós, espectadores, consumimos as imagens e os sons. Uma vez que os espectadores de uma obra fílmica e os personagens acima citados, direcionam seus olhares para o outro, se colocam como observadores que desnudam os sentidos daquelas imagens que se fazem reais à sua frente. Estas imagens existentes atraem leituras que se podem tornar concretas, como aqui ocorre com esta análise, ou mesmo dentro da obra fílmica, quando se haje em função do que é pela televisão retratado. Mecha e Tali, são, dentro do que podemos ler de Michel Foucault, uma figura do ordinário. Possuem vidas ínfimas, expostas como um fragmento de determinada época. São personagens de

vida “obscura” e “desventurada”, contadas de forma breve –

aproximadamente 96 minutos - que possuem um certo efeito de beleza. Com seus cotidianos expostos em cenas, estas mulheres, que não são heroínas, e possuem uma existência que dialoga de forma firme com a realidade da qual fazem parte, são uma existência imagética e sonora de pessoas sem importância trazidas à luz pelo acaso e sem glória. Tem o cotidiano impresso em imagens e sons, onde se expõe as desordens e desgraças comuns e insignificantes, que se fazem reais em na mise en scène cinematográfica. Pequenos gestos e ações tidas como insignificantes não estão mais fadadas ao silêncio, onde os detalhes sem importância e os dias sem glória, que compõe o comum, nascem como uma possibilidade de se refletir sobre o cotidiano, onde tudo é a ele interligado, como ações, gestos e falas banais e diversas. Mecha possui uma ação peculiar que acompanha o seu vício. Sempre que fuma, ela afasta a fumaça que sai do cigarro. Pequena ação, pequeno gesto, que diz muito sobre suas aspirações pessoais como mãe e esposa. Ela tenta afastar de si uma das consequências de seu cigarro, bem como não incomodar seu esposo e não atingir seus filhos. Age como quem quer afastar de sua face aquilo que encobre seu rosto, tenta se mostrar mais clara e visível aos que ao seu lado se encontram, mas nem assim isto se torna possível. Os corpos de Mecha e Tali falam de si mesmos. Suas falas e seu cotidiano se relacionam. Essas vidas não heroicas, sem façanhas, que dizem de sua própria mediocridade, não ligadas ao clamor, mas à busca dos segredos mais comuns e ordinários. Roupas simples, gestos mínimos e naturais, peles suadas, rostos cansados, expressões faciais mínimas, cortes e cicatrizes que não esbanjam espetáculo e que, como estas mulheres, lá estão, apenas existindo e sendo um rastro de ações que os antecederam. 31

Recorrendo, agora, à Giorgio Agamben, vemos estas mulheres como o ser qualquer, que aparece como único e possui relação com o desejo. Estas mulheres, sendo tal qual são, não percebem que são indiferentes à propriedade comum (ser mulher, argentina, branca, católica), e não percebem suas atribuições e poderes, nem oque lhes concerne. Elas desejam todas as coisas em suas qualidades, características, atributos, ou seja, elas querem o qual enquanto tal. Querem o esposo como esposo, a empregada como empregada, os filhos como filhos, as viagens como viagens, a cirurgia como cirurgia e a cicatriz como cicatriz. A singularidade dessas mulheres se relacionada com uma natureza límbica, porém não se faz nela. Elas não conseguem ver Deus, mas o buscam. Se prendem a uma culpa, uma justiça, procuram uma salvação, mesmo que em suas vidas nada se tenha para salvar. Buscam o bem na Santa, que se faz real através da crença que se tem na narração televisiva. Porém, como na cena final do filme, Momi narra que lá nada viu, este bem que se deseja, esta salvação, será percebida como inexistente na forma como elas a construíram, que é de forma ideológica. Estas mulheres, dentro de uma incapacidade de reação perante o demoníaco, recuam com um certo medo perante ele, para exercer um qualquer poder de ser, baseado na fuga. Não enfrentam suas dores, mas se refugiam em ações viciosas, onde esses demônios, que são em cada ser a possibilidade de não ser, implora socorro. Fogem de suas impotência, e no caso de Mecha, ela abre mão daquilo que torna o amor possível, o outro que se apresenta em sua fragilidade, neste caso, seu marido Gregório. Essas mulheres são seres que podem sua própria impotência e que negam e abandonam a própria potência. Sendo sua própria possibilidade ou potência, elas estão em dívida, e possuem um sentimento de culpa por atos que ainda não cometeram. Constroem promessas de felicidade relativa ao corpo - como a cirurgia plástica que Mecha fará em seu decote, ou que planeja para o olho do filho – onde ele surja comunicável como algo qualquer, onde a singularidade é uma indeterminação dos limites do ser. Mecha, que é de classe média, não se vê ligada a nenhuma identidade popular, destaca as diferenças raciais e sociais, exalta seu preconceito e o difunde para seus filhos. Não perde o sentido da existência individual, que para ela se figura como algo que se transformou em exibição individual. Ela busca uma identidade imprópria e insignificante, onde essa falta de sentido da vida se depara com a perda. Cada pequena ação de Mecha e Tali reflete o qualquer, que é a singularidade. A singularidade qualquer é determinada através de sua relação com a ideia. Ela é um ser-tal, uma relação com uma totalidade indeterminada. O ponto de contato com o exterior que deve 32

permanecer vazio, é o limite. Elas, como o qualquer, são uma singularidade indeterminável, somada ao vazio, uma exterioridade pura. São reflexos de suas ações, uma vez que o qualquer é um acontecimento puramente exterior. Onde, este exterior é a passagem que da acesso, aquilo que comunica, que experimenta o próprio limite. Essas mulheres que se expressam pela palavra, que é a revelação de algo, se separam do que revelam, onde, então, elas revelam o nada de todas as coisas em cada uma de suas colocações cotidianas. Como todas as coisas são como são, independente das consequências, essas mulheres, mesmo que percebam o caráter irreparável do mundo, não se dão como convencidas. Buscam algo onde se possa ter o mundo não como é, mas sempre se deparam com o mundo como é. Sua viagem à Bolívia, como uma busca de se quebrar com os destinos e com suas vidas como são, é bloqueada pela interferência de Rafael. Saem de uma possível construção da alegria e da apreciação das cores, porém voltam para a dor, que são o puro ser-assim. Tali e Mecha existem e tentam relutar com o processo de submissão ao ser-tal, imbricada na essência, onde o ser-assim é o limite de casa coisa, mas não o fazem com todas suas forças. Talvez por isso busquem uma redenção, que na verdade é a perda do que já estava perdido. Alimentam sua esperança na Santa e na viagem, que não se concretizam onde a esperança advêm do que não tem mais cura, daquilo que é irreparável. Mecha, especialmente, se perde na televisão, onde absorve notícias sobre a Santa, e consome comerciais de uma geladeira que chega a comprar. Se prende a estas coisas a ponto de não conceber mais nada além daquilo que é dado a ela, onde ela toca o limite, chocando-se com ele, já que a Santa não esta lá. 4.3 Preceitos de Lei – Legi-signos Para darmos continuidade à análise, entraremos nesta parte, onde o signo extrai seu poder de representação, porque é portador de uma lei que, por convenção ou pacto coletivo, determina que aquele signo represente seu objeto, o legi-signo. Sabendo que o objeto representado pelo signo é tão genérico quanto o próprio símbolo e que simbolo, como lei geral e abstrata, não pode indicar algo que seja coisa particular, mas sim uma especie, sendo que ele mesmo é uma especie, mas não uma coisa única e traz, também, caracteres icônicos e indicais. Tali e Mecha tem suas vidas atravessadas pela cultura, seus pensamentos presos à limites ideológicos das representações, que são, também relacionados à suas historicidades. 33

Mulheres comuns que dialogam com o universo da feminilidade, uma extensão deste ser ordinário, qualquer e infame. Para compreendermos melhor este ponto relativo aos nossos signos, recorremos aqui à Maria Rita Kel, em “Deslocamentos do Feminino”. Tentaremos traçar paralelos e desenvolver uma leitura complementar sobre o filme. Não aprofundaremos em sua obra, onde a autora traça paralelos diversos com a psicanálise de Freud e Lacan, mas pincelaremos pontos de fundamental importância para uma melhor compreensão deste universo ao qual estas mulheres se subordinam. Designadas pela cultura como mulheres, são marcadas por uma posição na ordem familiar. Sujeitos com diferenças não muito simples e com desejos singulares. Trafegam entre a feminilidade e a masculinidade, que são independentes do gênero sexual, e são organizadas em relação ao desejo. O feminino é aquilo que está ligado à falta do falo, e se constituí como sujeito, se organizando neste imaginário da ausência e da castração, onde se oferece para ser tomado pelo falo. O falo, que é tudo simbolizável a partir de qualquer objeto ao qual uma cultura atribua valor. A feminilidade do ser castrado, punido por sua sexualidade proibida, que sofre as consequências de seus desejos sexuais, esta presente em todos os personagens da obra, inclusive nas crianças. O falo está ao alcance de todos e se apresenta, de modo geral, relativo à fugas e prazeres viciosos. Mecha e Tali apresentam recalques, não como o único recurso para o domínio da existência pulsional, mas como um estabelecimento de outros objetos de satisfação. Estas mulheres, na uma tentativa de “dar voz e sentido” aos fenômenos característicos de seu tempo, e de se tornarem sujeito de um discurso, de se desenvolvem derrotando pretensões pessoais, dão lugar à condição feminina. Mecha é recorrentemente masculina e seu esposo, Gregório, feminino, já que se coloca passivo à todas as determinações de Mecha. Tali se apresenta assim, com a masculinidade mais acentuada que a feminilidade somente ao tomar a decisão e agir para quebrar o cadeado do portão que a liga ao campo. Outras referências existentes na obra são relativas à cultura. Como apresentado antes, existem índices diversos relativos à religiosidade desta família, fator que os cerca e os direciona de forma constante. Os cães da casa de Mecha, soltos e entregues à própria sorte, remetem às questões da feminilidade-masculinidade e da religiosidade. Sem um ponto de referência único, todos os seres, principalmente Mecha e Tali, direcionam suas escolhas sozinhas, em uma busca por completude, por preenchimento e por um sentido de redenção, onde vagueiam descuidadas em direção à uma evidência religiosa que foi criada pela televisão. Submersas na cultura, elas 34

cumprem seus papeis sociais, agindo sempre em busca do falo, porém se colocando em condições de possuidoras deste quando determinam ações diversas que são aceitas, acatadas e até admiradas pelos filhos e esposos. Mecha e Gregório, que ainda utilizam alianças em seus dedos, mesmo com seu casamento em ruínas, ainda vivem sob o mesmo teto. Determinam leis uns para os outros, mas se submetem à elas, especialmente os dogmas religiosos, que impedem a concretização de um divórcio. Todos os personagens vivem no mundo, convivem com regras e limitações, abstraem suas imposições, mas não se sentem completos. E, atravessados pela cultura, como sujeitos de desejo, querem algo a mais, que elas não nos deixam perceber e que, talvez, nem eles o saibam. 5 Considerações Finais Tentamos aprofundar em pontos diversos neste trabalho, onde o tempo se tornou nosso inimigo. Nosso ponto de partida foi a mulher, porém ela se tornou o ponto mais frágil desta pesquisa, e o menos explorado. Tivemos a oportunidade de apreender diversas questões sobre o ser ordinário, sobre a feminilidade abordada por um viés psicanalítico, porém condensar todas as ideias possíveis dentro do prazo não foi possível. Pretendemos estender esta pesquisa para artigos científicos e futuramente, burila-la em uma dissertações de mestrado. 6 Referências Bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que vem. Lisboa: Editora Presença, 1990 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. São Paulo: Editora Vozes, 1994 CHANAN, Michael. Cinema in Latin America. The Oxford History fo World Cinema, ed. Geoffrey Nowell-Smith, OUP, 1996; Section 2, Sound Cinema 1930-1960, pp. 427-435 CHION, Michel. La audiovisión. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2007 FOUCAULT, Michel. A Vida dos Homens Infames, Le cahiers du chemin, n°29, 15 de janeiro de 1977, ps.12-29 GUBERN, Romà. El espacio audiovisual em los países de expresión latina. DOCUMENTS I IVESTIGACIONS. Anàlisi, Núm. 9, 1994, 2009 – 212 JUZ, Breno de Souza. A noção de representação da crise no nuevo cine argentino (19992004). Anais Eletônicos do VII Encontro Internacional da ANPHLAC. Vitório, 2008 35

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2007 LA CIÉNAGA. Um filme de Lucrecia Martel. Buenos Aires: 2000. DVD SANTAELLA, Lucia. Semiótica Aplicada. São Paulo: Thomson, 2007 SANTAELLA, Lucia, NOTH, Winfried. Comunicação e Semiótica: Hacker Editores, 2004 SEDLMAYER, Sabrina, GUIMARÃOES, César, OTTE, George, organizadores. O Comum e a Experiência da Linguagem. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007 WILDE, Oscar. Chá das Cinco com Aristóteles e outros Artigos. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999

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