O papa da paz e o ecumenismo do sangue

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O papa da paz e o

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Francisco com o patriarca Tawadros II, o papa dos cristãos coptas ortodoxos

O papa quis estar perto dos egípcios nesse momento de dor e sofrimento, para retribuir, também, o afeto desse povo desde o início do seu pontificado Moisés Sbardelotto *

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em mesmo as bombas detêm o papa da paz. Na sua visita ao “Egito da paz”, como diz o lema da viagem, Francisco mostrou mais uma vez que o ecumenismo não é apenas diplomacia entre religiões, mas sim “uma contribuição para a unidade da família humana” (Evangelii Gaudium, no 245). Enquanto alguns jogam bombas para matar os cristãos coptas egípcios reunidos em oração – como ocorreu poucas semanas antes da viagem – e enquanto outros jogam bombas para tentar matar aqueles que matam, muitas vezes sacrificando vidas inocentes, Francisco buscou o encontro com o povo egípcio, indo além das fronteiras eclesiais. E fez isso especialmente nas pessoas do grão-imã da mesquita e da universidade de Al-Azhar, o centro de estudos mais 52 revista família cristã

importante da teologia islâmica do mundo, Ahmed el Tayeb, e do patriarca Tawadros II, o papa dos cristãos coptas ortodoxos. A viagem foi antecedida pela trágica notícia de dois atentados que tiveram como alvo as catedrais cristãs coptas das cidades de Tanta e Alexandria, no Egito, em pleno Domingo de Ramos. Um dos balanços oficiais falou de quase 50 vítimas nas duas cidades, além de cerca de uma centena de feridos. O autoproclamado Estado Islâmico assumiu a autoria dos dois ataques. Poucas horas depois, no Ângelus, o papa pediu orações pelas vítimas e afirmou: “Ao meu caro irmão, Sua Santidade papa Tawadros II, à Igreja Copta e a toda a cara nação egípcia, expresso o meu profundo pesar, rezo pelos falecidos e pelos feridos. Sinto-me próximo dos familiares e da comunidade inteira. Que o Senhor converta o coração das pessoas que semeiam terror, violência e morte e também o coração daqueles que fabricam e traficam as armas”. Retribuição – Nesse contexto, a viagem ocorreu em um clima de grande tensão e temor, pelo risco de novos atentados, especialmente contra o pontífice. Mas, mesmo assim, o papa quis estar perto dos egípcios nesse momento de dor e sofrimento, para retribuir, também, o afeto desse povo desde o início do seu pontificado. Em maio de 2013, ainda no início do seu papado, Francisco recebeu a histórica visita oficial de Tawadros II. Depois, o papa lhe escreveu em agradecimento e, citando São Paulo, disse-lhe: “‘Se um membro sofre, todos os membros sofrem juntos; e se um membro é honrado, todos os membros se alegram com

A viagem ao Egito foi uma demonstração da Igreja em saída inspirada pelos mártires do “ecumenismo do sangue”; não se deixa levar pelos estereótipos e pelos preconceitos, mas avança na escuta e no encontro com o outro ele’ (1Cor 12,26). Essa é uma lei da vida cristã” – continuava Francisco – “e, nesse sentido, podemos dizer que existe também um ecumenismo do sofrimento: assim como o sangue dos mártires foi semente de força e de fertilidade para a Igreja, assim também a partilha dos sofrimentos cotidianos pode se tornar instrumento eficaz de unidade”. Tais sofrimentos, especialmente para os cristãos coptas do Egito, chegaram recentemente ao limite extremo da morte, do derramamento do sangue. Por isso, quase quatro anos depois, essas palavras de Francisco ganham ainda mais sentido. E remetem àquilo que o papa dissera em outubro de 2014, falando justamente do valor do ecumenismo nestes dias: “Hoje, o sangue de Jesus, derramado pelos seus muitos mártires cristãos em várias partes do mundo, interpela-nos e impulsiona-nos à unidade. Para os perseguidores, nós não estamos divididos, não somos luteranos, ortodoxos, evangélicos, católicos... Não! Somos um! Para os perseguidores, somos cristãos! Não interessa outra coisa. Esse é o ecumenismo do sangue que se vive hoje”. A viagem ao Egito, portanto, foi um modo de

se unir e manifestar proximidade àqueles que vivem, cotidianamente, a experiência desse ecumenismo tão desafiador, que, segundo Francisco, deve ser acolhido com fé para que a sua força leve todos os cristãos a se converterem a uma fraternidade cada vez mais plena. Mas a viagem foi além das fronteiras cristãs. O papa encontrou-se, também, com a comunidade muçulmana, na pessoa do grão-imã de Al-Azhar. É importante lembrar que, em 2011, a Al-Azhar decidira suspender totalmente o diálogo com o Vaticano, em protesto pelas declarações do então papa Bento XVI sobre a necessidade de proteger os cristãos – sem mencionar a proteção aos muçulmanos – no Egito e no Oriente Médio. O pontífice havia se pronunciado logo depois de outro atentado à catedral copta em Alexandria, no Natal de 2010. No ano passado, contudo, o grãoimã El-Tayeb já havia sido recebido em audiência pelo papa Francisco, no Vaticano. O encontro fora marcado pelo diálogo e pela paz, sendo reconhecido como um importante passo na relação entre a Igreja Católica e o Islã, e no diálogo inter-religioso. Agora, o pontífice maio de 2017 53

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O grão-imã El-Tayeb foi recebido pelo papa no Vaticano, em 2016

quis retribuir a visita e, principalmente, “ouvir”. Foi o que Francisco explicara a uma delegação de líderes muçulmanos da Grã-Bretanha, no início de abril passado. Na ocasião, o papa falou sobre o “trabalho do ouvido”. “Escutar-nos sem pressa de dar a resposta. Acolher a palavra do irmão, da irmã, e pensar, depois, para dar a minha palavra. A capacidade de escuta é importante. É interessante: quando as pessoas têm essa capacidade de escuta, falam com um tom baixo, tranquilo... Em vez disso, quando não a têm, falam forte e até gritam. Entre irmãos, todos nós devemos falar, escutar-nos e falar suave, tranquilos, buscar juntos o caminho. E, quando se escuta e se fala, já se está no caminho.” 54 revista família cristã

Igreja em saída – Francisco reconhece a importância do diálogo inter-religioso também no combate ao terrorismo. Ele mesmo já dissera, em sua mensagem ao Encontro dos Movimentos Populares realizado em fevereiro deste ano, que “nenhum povo é criminoso, nenhuma religião é terrorista. Não existe o terrorismo cristão, não existe o terrorismo judeu, não existe o terrorismo islâmico. Não existe! (…) Existem pessoas fundamentalistas e violentas em todos os povos e em todas as religiões, que, além disso, se revigoram com as generalizações intolerantes, alimentando-se com o ódio e a xenofobia. Enfrentando o terror com o amor, nós trabalhamos a favor da paz”. E a Evangelii Gaudium, no 253, reforça essa postura:

“Frente a episódios de fundamentalismo violento que nos preocupam, o afeto pelos verdadeiros crentes do Islã deve nos levar a evitar odiosas generalizações, porque o verdadeiro Islã e uma interpretação adequada do Alcorão se opõem a toda a violência”. A viagem ao Egito, desse modo, foi mais uma demonstração da Igreja em saída desejada pelo papa Francisco, que, inspirada pelos mártires do “ecumenismo do sangue”, não se deixa levar pelos estereótipos e pelos preconceitos, mas avança na escuta e no encontro com o outro. * Moisés Sbardelotto é jornalista, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e La Sapienza, em Roma. É também autor de E o Verbo se fez bit (Editora Santuário).

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