O papel da audição em duas propostas de educação musical

July 22, 2017 | Autor: Patricia Mertzig | Categoria: Music Education, Education, Educación, Educação Musical
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XIV Encontro Anual da ABEM

Belo Horizonte, 25 a 28 de outubro de 2005

O papel da audição em duas propostas de educação musical Patrícia Mertzig Universidade Estadual de Maringá – Uem/ Projeto Guri – Pólo de Maringá [email protected] André Luiz Gonçalves de Oliveira Universidade Estadual de Maringá – Uem [email protected] Resumo. Este estudo tem como objetivo principal refletir sobre o papel da percepção auditiva em duas propostas de educação musical. Iniciaremos realizando uma revisão das propostas de Shinishi Suzuki e Murray Schafer. Posteriormente faremos uma descrição de diferentes atividades que envolvem audição em cada uma das propostas dos autores citados acima. Nossa intenção é investigar as possibilidades funcionais atribuídas à audição no processo de desenvolvimento musical dentro de cada abordagem metodológica.

Introdução O presente trabalho propõe-se a ressaltar aspectos importantes relacionados à cognição musical como forma de fundamentar as propostas e as ações em educação musical. Partindo para uma utilização mais específica da audição por parte dos seres humanos, podemos afirmar que esse é o principal sentido a ser desenvolvido em um trabalho de educação musical, pois, como o próprio nome já sugere, é uma educação que tem por matéria-prima o som. Portanto a proposta deste artigo é focar a audição como parâmetro de análise em duas propostas de educação musical. Os dois autores a serem analisados serão Murray Schaffer e Shinishi Suzuki que, embora possuam propostas e objetivos diferentes em educação musical, abordam a percepção auditiva como condição primordial em suas práticas pedagógicas.

Revisão de duas propostas de educação musical Shinishi Suzuki Violinista de nacionalidade japonesa, Suzuki é considerado um dos grandes educadores musicais do século XX. Seu método de iniciação musical no violino tem alcance em todo o mundo ocidental com bases sólidas e com seguidores fiéis principalmente nos Estados Unidos. Isso deu-se pelo enorme sucesso que sua proposta de

trabalho alcançou a partir de resultados sérios que o autor atingiu com crianças ainda muito novas, em seu Instituto de Pesquisa da Educação do Talento em Tókio. Mas o que o autor considera talento? Para ele o talento não é um acaso do nascimento (Suzuki, 1994 p.9), ou seja, não considera que algumas pessoas privilegiadas nasceram com talento e outras que não o possuem podem desistir de aprender qualquer coisa na área artística, pois, não vão conseguir trabalhos compensadores. Para ele todos são capazes de aprender música e de tocar satisfatoriamente um instrumento musical, basta criar ambientes favoráveis para que isso ocorra. Suzuki chegou a essa conclusão quando percebeu a facilidade com a qual as crianças aprendem a falar sua língua materna. Todas as crianças normais são aptas a falar a língua materna desde muito pequenas, e elas realmente aprendem e falam. Logo, como podemos deduzir qual delas é capaz de aprender um instrumento musical e qual não é? Para Suzuki o problema está na metodologia adotada, pois ela pode falhar por falta de incentivo ou pela utilização de métodos errados. Mas é evidente que, para se alcançar com eficiência o domínio técnico em um instrumento musical, é preciso que se dê a mesma atenção que é voltada à aprendizagem da língua materna. Nas palavras do autor vemos esse ponto com clareza quando ele afirma que:

Todas as crianças que são educadas com perícia e compreensão atingem um alto grau de conhecimento, mas essa educação deve começar no dia do nascimento. Aqui está, na minha opinião, a chave do desenvolvimento integral das potencialidades humanas. (Suzuki, 1994 p. 12)

Mas então como fica a audição para Suzuki? Tendo claro qual é a sua proposta de trabalho no campo da educação musical, acreditamos que o autor também considera o ouvido como peça fundamental para o desenvolvimento de sua metodologia, porém restringe a audição à escuta do repertório tonal que visa desenvolver. Isso dá-se, em primeiro lugar, pelo fato de seu método inserir o aluno direto no instrumento, não importando qual a idade e qual o conhecimento sobre música que venha a ter, e em segundo lugar, porque o método é composto apenas de músicas tonais e de tradição ocidental, portanto é pouco abrangente. Na nossa maneira de entender tal abordagem, Suzuki apresenta três problemas iniciais quanto ao aspecto auditivo. O primeiro está no fato do aluno ouvir apenas uma

interpretação. Sua referência será baseada somente em uma articulação, uma maneira de tocar. Ao invés de pluralizar sua escuta, o método limita-a e a execução do aluno tenderá à imitação, à cópia. O segundo aspecto refere-se ao método que não incentiva a audição nem de sua própria execução, ou seja, além de o aluno ter apenas uma referência de interpretação, ele só ouve uma execução que não a sua. O terceiro aspecto pode ser descrito pela falta de conexão com outros sistemas musicais que não o tonal. O aluno está rodeado de diferentes tipos de música e muitas vezes ele opta em estuda-la para executar algum estilo específico, e o método restringe-o à prática apenas do sistema tonal, ficando assim alienado da arte e da estética contemporânea. É necessário destacar, no entanto, que essa abordagem de educação musical realizada por meio do estudo de um instrumento musical fez com que muitos dos alunos de Suzuki chegassem a níveis técnicos e musicais altíssimos no instrumento, o que trouxe como resultados de sua proposta um reconhecimento internacional e hoje, mesmo após a sua morte, seu método e sua metodologia de trabalho continuam sendo utilizados em vários países tanto do oriente quanto do ocidente.

R. Murray Schafer Em seu livro A afinação do mundo, o autor expõe de maneira sistemática sua tentativa de estudar o ambiente sonoro. Para tanto alguns termos que, são recorrentes em seus textos e que acabam por se tornar familiar ao leitor, são criados pelo próprio Schafer no intuito de formar conceitos, já que seu campo de pesquisa ainda não era conhecido na década de 70 do século XX. Um desses conceitos é soundscape, que tem sido traduzido para o português como paisagem sonora. A sistematização de sua pesquisa tem início quando o autor mostra como a paisagem sonora evoluiu no decorrer da história. Seu trabalho chamou a atenção de pesquisadores e de educadores em todo o mundo. Atualmente há conferências nacionais e internacionais a esse respeito e há inclusive um fórum mundial denominado The World Fórum for Acoustic Ecology (Fórum Mundial de Ecologia Acústica). O autor entende ecologia como um estudo que precisa relacionar todos aqueles que vivem em determinado meio-ambiente e que produzem e transformam esse meio. Nesse sentido sua proposta pode mesmo ser entendida como plano político para o mundo atual.

Schafer aponta a educação pública como caminho para despoluir a paisagem sonora contemporânea e ao mesmo tempo, desenvolver a perspectiva estética das pessoas.

Sempre achei que a educação pública é o mais importante aspecto do nosso trabalho. Em primeiro lugar precisamos ensinar as pessoas como ouvir mais cuidadosa e criticamente a paisagem sonora; depois, precisamos solicitar sua ajuda para replanejá-la. Em uma sociedade verdadeiramente democrática, a paisagem sonora será planejada por aqueles que nela vivem, e não por forças imperialistas vindas de fora. (Schafer, 2001 p.12)

É claro que a preocupação com o meio ambiente e o bem estar físico e mental de todos os seres que habitam esse planeta não é e nem pode ser apenas de Schafer, dessa forma vários são os pesquisadores em áreas de atuação diferentes que estão demonstrando uma crescente preocupação com a quantidade de poluição existente atualmente no planeta. A proposta do autor é tirar a audição de seu sentido mais restrito, que é sempre configurada como audição musical, e ampliá-la para outros ambientes ou especificamente para todo o meio-ambiente. Schafer apresenta como primeiros passos para uma escuta consciente1 perceber os sons à sua volta a ponto de reconhecer sua fonte, sua intensidade, sua origem e classificá-los de acordo com suas diferentes propriedades. Fica explícita a preocupação do autor com a educação que vai muito além de uma educação musical em direção daquilo que pode ser chamado de educação auditiva. Nos dias atuais as pessoas vão ficando cada vez mais alienadas a ponto de nem perceberem mais os sons ao seu redor. A preocupação atual do autor é conscientizar as pessoas que vivem em um mundo onde a poluição sonora alcança níveis estrondosos e a partir daí sugerir comportamentos para tentar reduzi-la. No entanto a proposta de audição das paisagens sonoras não acontece apenas pela preocupação com o meio ambiente em que vivemos, que possui níveis de ruído altíssimos, resultando em uma situação alarmante. Para Schafer, o estudo da paisagem sonora, em diferentes civilizações de períodos distintos, também traz informações ricas sobre sua cultura, suas crenças, suas relações sociais e com o meio ambiente, seus valores morais e éticos e estéticos.Assim, por meio desses estudos é possível perceber ou, talvez até caiba 1

O termo consciente está sendo utilizado aqui por citação do próprio autor. Schaefer não faz muito esforço para explicar o que entende por consciência, ao menos em suas duas obras principais. No entanto, de acordo com o cap. 12, de A afinação do mundo, o autor coloca-se em favor de uma perspectiva Junguiana de análise e de descrição dos processos perceptivos e cognitivos. Daí pode-se observar forte característica metafísica na explicação dos fenômenos cognitivos e perceptivos. Mais adiante discutiremos adequadamente tais aspectos.

dizer, comparar o que a evolução tecnológica, a partir da revolução industrial, trouxe para o ambiente sonoro. As informações sobre a paisagem sonora de outrora são possíveis de serem imaginadas via descrição dos sons em textos sobre a mitologia, em romances, em épicos; ou ainda na observação de desenhos rupestres, em pinturas, na arquitetura, na fauna e na flora, na localização geográfica, na formação rochosa; enfim, em todo o material histórico, artístico e oral que foi preservado e que chegou até nós. Tal material traz consigo uma quantidade de informações, que de certa forma torna possível inferir aspectos do ambiente sonoro de cada época e local. Schafer (1977) leva o leitor a deduzir não só os ambientes sonoros, mas também a perceber a importância que alguns elementos da natureza tinham para as civilizações e como esses afetavam a vida das pessoas naquela época. Tais aspectos podem ser notados em afirmações como:

A matéria-prima da Odisséia (de Homero) é o oceano. O agrário Hesíodo, vivendo na Boécia longe do mar e das suas inquietas águas, não pode evitar a atração do oceano (Schafer, 2001, p. 35).

É possível perceber grande abrangência em sua metodologia, pois ele parte sempre do estudo da matéria-prima da música, o som. Tais sons, como já foi dito anteriormente, são colhidos na maior fonte sonora existe no mundo: o próprio meio-ambiente. Os sons são então percebidos e catalogados para, posteriormente, serem manipulados. Portanto o foco da audição está primeiramente na paisagem sonora do meioambiente em que os alunos estão envolvidos. Sua proposta é realmente incentivar a audição como ponto central para o aprendiz expandir seu universo sonoro para depois conseguir estabelecer critérios úteis de julgamento e de classificação.

Considerações finais A partir da leitura das duas propostas de educação musical é possível notar a importância de um trabalho de percepção auditiva, no entanto não queremos dizer que outros métodos não se preocupem com ela. Propostas como a de Violeta Gainza e H. J.

Koellreuter2 vêem a improvisação como importante abordagem metodológica para o desenvolvimento musical do aluno, e isso requer um trabalho de percepção auditiva mais apurado do que simplesmente ouvir para imitar, por exemplo. O que se pode dizer sobre pontos de divergência entre a proposta de Susuki e a proposta de Schafer é que 1) o material a ser ouvido é completamente diferente. Enquanto Suzuki sugere a audição de peças que serão futuramente executadas pelo aluno no instrumento, Schafer propõe uma espécie de ampliação da audição que, a princípio, nem é exclusivamente musical; 2) o papel desempenhado pela audição nas duas propostas são diametralmente diferentes. Suzuki utiliza audição como meio para conseguir uma execução musical adequada tendo como objetivo final a execução musical, não a audição. Por sua vez, na proposta de Schafer podemos observar um papel muito mais central da audição. Em um primeiro momento ela é mesmo o objetivo e não um meio para alcançar outro propósito. O aluno escuta para desenvolver a audição, não para conseguir tocar isso ou aquilo. É evidente que, com a audição bem desenvolvida, tocar isso ou aquilo torna-se mais possível e mais provável, mas Schafer propõe mesmo um conjunto de atividades que têm na audição seu meio e fim. Por outro lado podemos localizar como ponto de convergência dessas duas propostas a necessidade do educador musical, quando ao abordá-las, desenvolver o hábito de escuta cujo o foco está unicamente na audição, ou melhor, ouvir para fruir e depois falar sobre aquilo que está sendo ouvido, e não ouvir apenas para imitar ou ainda para uma execução coletiva.

Bibliografia FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. Música e Meio Ambiente: a ecologia sonora. São Paulo: Irmãos Vitale, 2004. SCHAFER, Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Editora Unesp,2001. _________. O ouvido pensante. São Paulo: Editora Unesp, 1991. SUZUKI, Shinichi. Educação é amor: um novo método de educação. 2a ed. Trad. Anne C. Gottberg. Santa Maria: Pallotti, 1994. ________. Violin School. Miami: Warner Bros. Publications, 1983. Vol. 1.

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Ver monografia de especialização em preparação.

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