O papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos na tutela dos direitos dos homossexuais: notas sobre o caso Atala Riffo e filhas v. Chile (2012)

June 30, 2017 | Autor: Bruno Biazatti | Categoria: International Law
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O PAPEL DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NA TUTELA DOS DIREITOS DOS HOMOSSEXUAIS: NOTAS SOBRE O CASO ATALA RIFFO E FILHAS V. CHILE (2012)

Bruno de Oliveira Biazatti

"Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade." Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948)

1 INTRODUÇÃO

O caso Atala Riffo e filhas v. Chile, decidido em 24 de fevereiro de 2012, é o único acórdão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIADH) que lida com os direitos dos homossexuais. Esta decisão pode ser vista como o ápice de um processo que já se arrasta por décadas no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a fim de proteger gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e intersexuais que historicamente têm sido e continuam a ser vítimas de discriminação, violência, perseguição e outros abusos que infringem seus direitos humanos. Os fatos relevantes ao caso Atala Riffo remontam a 29 de março de 1993, data em que a Sra. Karen Atala Riffo se casou com o Sr. Ricardo Jaime López Allendes. Eles tiveram 3 filhas, "M", "V" e "R",1 que nasceram respectivamente em 1994, 1998 e 1999. Em março de 2002, o casal se separou, mas decidiram consensualmente que a Sra. Atala ficaria com a custódia das 3 meninas. Depois da separação, a Sra. Atala assumiu publicamente a sua condição de homossexual, sendo que, em novembro de 2002, a Sra. Emma de Ramón, companheira da Sra. Atala, se mudou para a casa desta última e começou a viver com ela e suas filhas. 1

Os nomes foram substituídos por letras para fins de preservação da identidade.

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Em 14 de janeiro de 2003, o pai das três meninas entrou com um processo contra a Sra. Atala na Corte Juvenil de Villarrica a fim de retirar dela a guarda das crianças. O Sr. López Allendes alegou que o desenvolvimento emocional e físico de "M", "V" e "R" estava seriamente em risco, porque: (1) o fato da mãe assumir a sua homossexualidade e coabitar, juntamente com as três crianças, na mesma residência, com a sua parceira demonstra que ela não tem preocupação com o desenvolvimento das filhas, pois a exposição das meninas a uma vida familiar homossexual pode ser prejudicial a elas; (2) parceiros do mesmo sexo geram uma confusão nos filhos, sobre o significado do homem e da mulher na sociedade, alterando, desta forma, os valores familiares fundamentais, base da sociedade chilena; (3) a escolha sexual da Sra. Atala viola o direito de suas filhas de ter uma coexistência saudável e normal numa família tradicional; (4) por último, ele alegou que impactos biológicos negativos poderiam surgir às meninas em decorrência do convívio com um casal lésbico, incluindo o constante risco de contrair doenças sexualmente transmissíveis (DST), como herpes e AIDS. A Corte Juvenil de Villarrica rejeitou os argumentos do Sr. Allendes, mantendo a guarda com a Sra. Atala. Em resposta, o Sr. Allendes apelou perante a Corte de Apelações de Temuco, que decidiu, em 30 de março de 2004, por unanimidade, negar provimento ao recurso do pai, mantendo a guarda de "M", "V" e "R" com a mãe. O Sr. Allendes levou o caso à Suprema Corte chilena, que em 3 de maio de 2004, proferiu a sua decisão final, por 3 votos a 2, garantindo a custódia permanente das meninas ao pai, acolhendo as alegações dele quando afirma que se as meninas coabitarem com um casal homossexual, o desenvolvimento delas estaria em risco. Indignada com a decisão da Suprema Corte, em 24 de novembro de 2004, a Sra. Atala entrou com uma ação, contra o Chile, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (ComIADH). Em 17 de setembro de 2010, a Comissão levou o caso a CtIADH, que proferiu seu acórdão final em 24 de fevereiro de 2012. A Corte acolheu os argumentos favoráveis a Sra. Atala, decidindo contra o Chile. O presente trabalho visa descrever e analisar os argumentos adotados pela CtIADH e pelo Chile.

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2 DIREITO A IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO: O CASO DOS HOMOSSEXUAIS

A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) 2 garante o direito a igualdade e não discriminação 3 nos seguintes termos: "Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei."4 Nesse prisma, mister citar ainda o parágrafo 1o, do artigo 1o, onde se lê in verbis: Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.5 (grifei)

A CtIADH já atestou que tal direito "[...] pertence ao jus cogens, pois todo o arcabouço jurídico da ordem pública nacional e internacional repousa sobre ele e é um princípio fundamental que permeia todas as leis" (CtIADH, 2003, §101, tradução nossa).

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Assim,

não

resta

dúvida

que

tratamentos

discriminatórios

são

internacionalmente ilícitos. Todavia, é necessário determinar se tratamentos diferenciais baseados especificamente na opção sexual de uma pessoa constitui uma violação do dispositivo transcrito. 2

Ratificada pelo Brasil em 6 de novembro de 1992, por meio do Decreto No. 678. Segundo o artigo 1˚, §1˚, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, "[...] o termo 'discriminação racial' significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, de forma equânime, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais da esfera política, econômica, social, cultural ou em qualquer outra esfera da vida pública." Cf. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Resolução da Assembleia Geral da ONU No. 2106 (XX), Nova York, 21 de dezembro de 1965, art.1˚, §1˚. 4 Convenção Americana de Direitos Humanos, "Pacto de São José da Costa Rica", OAS Treaty Series No. 36, São José da Costa Rica, 22 de novembro de 1969, art.24. 5 Ibid. art.1(1). 6 O texto completo, no original, em inglês é: "[...] belongs to jus cogens, because the whole legal structure of national and international public order rests on it and it is a fundamental principle that permeates all laws." 3

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2.1 Argumento sobre a interpretação da CADH no momento de sua adoção e não segundo as condições atuais

Os advogados do Chile alegaram, perante a CtIADH, que este Estado ratificou a CADH, concordando em se vincular aos seus termos, tendo em vista as interpretações possíveis a época da ratificação 7 e não àquelas que poderiam advir no futuro. A evolução da CADH, em áreas onde não há um mínimo de consenso entre os Estados signatários, deve ocorrer através da incorporação de protocolos, assinados e ratificados pelos Estados, e não por meio da inclusão arbitrária, pela CtIADH, de interpretações inconcebíveis a época da promulgação da CADH (apud, CtIADH, 2012, §74). Seguindo uma tese já defendida pela Corte Europeia de Direitos Humanos (CtEDH) (CtEDH, 1978, §31; CtEDH, 1979, §41; CtEDH, 1995, §71; CtEDH, 2010, §§93-94) e na sua própria jurisprudência (CtIADH, 1989, §37; CtIADH, 2001, §146; CtIADH, 2005, §106), a CtIADH concluiu que este argumento não pode prosperar, porque os tratados de direitos humanos são instrumentos vivos, cuja interpretação deve condizer com a evolução dos tempos e as condições de vida atuais (CtIADH, 2012, §83). Consequentemente, a adequação de um tratado à novas circunstâncias sociais, políticas e jurídicas não ocorre exclusivamente via protocolos adicionais, mas também através da própria hermenêutica dos dispositivos do tratado. Nessa linha, a CtIADH esclarece que a conjuntura sócio-jurídica atual a leva a concluir que o artigo 1˚, §1˚ da CADH proíbe a discriminação contra homossexuais ao adotar a expressão "qualquer outra condição social", vez que este trecho pode ser interpretado a fim de abranger a condição sexual dos indivíduos como categoria de discriminação (CtIADH, 2012, §84). Os critérios específicos listados no artigo 1˚, §1˚ não constituem uma enumeração exaustiva ou limitativa de categorias, mas meramente ilustrativa. A Corte crê ainda que a redação do referido artigo deixa em aberto os critérios de discriminação precisamente devido a inclusão do termo "qualquer outra condição social", permitindo a adição de outras categorias que não tenham sido explicitamente indicadas (CtIADH, 2012, §85).

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O Chile assinou a CADH em 22 de novembro de 1969, mas a ratificou somente em 10 de agosto de 1990.

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A fim de fundamentar a sua decisão, a CtIADH cita diversos julgamentos da CtEDH onde esta inclui a orientação sexual como categoria proibida de discriminação (CtIADH, 2012, §87). Para fins de ilustração, pode-se apontar os casos Mouta v. Portugal (1999),8 Alekseyev v. Rússia (2010), 9 J.M. v. Reino Unido (2010),10 Kozak v. Polônia (2010),11 entre outros.12 Além disso, a inclusão dos homossexuais é possível, porque tratados de direitos humanos devem ser interpretados de forma a sempre efetivar a opção mais favorável ao ser humano (CtIADH, 2012, §85), como afirmado no artigo 29 da CADH.13 Em outras palavras, entre as opções hermenêuticas disponíveis à luz de uma norma jurídica específica, aquela que irá prevalecer será a que mais protege o ser humano. Assim, "[e]m caso de dúvida, a ambiguidade deve ser interpretada da forma favorável aos direitos das vítimas" (ComIADH, 1999, §149, tradução nossa),14 jamais se esquecendo que os tratados de direitos humanos encerram um propósito humanitário (ORAKHELASHVILI, 2003, p.535).

2.2 Discriminação por uma decisão judicial

A CtIADH (2012, §94) atesta que a fim de provar que uma decisão judicial foi discriminatória não é necessário que a totalidade da sentença seja fundamental ou 8

CtEDH. Salgueiro da Silva Mouta v. Portugal, Julgamento, Petição No. 33290/96, Estrasburgo, 21 de dezembro de 1999, §28. 9 CtEDH. Alekseyev v. Rússia, Julgamento, Petições Nos. 4916/07, 25924/08 e 14599/09, Estrasburgo, 21 de outubro de 2010, §108. 10 CtEDH. J.M. v. Reino Unido, Julgamento, Petição No. 37060/06, Estrasburgo, 28 de setembro de 2010, §55. 11 CtEDH. Kozak v. Polônia, Julgamento, Petição No. 13102/02, Estrasburgo, 2 de março de 2010, §92. 12 CtEDH. L. e V. v. Áustria, Julgamento, Petições Nos. 39392/98 e 39829/98, Estrasburgo, 9 de abril de 2003, §45; CtEDH. S.L. v. Áustria, Julgamento, Petição No. 45330/99, Estrasburgo, 9 de janeiro de 2003, §37. 13 O artigo 29 afirma in verbis: "Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: (a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; (b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados; (c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; (d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza." 14 O texto completo, no original, em inglês é: "[i]n case of doubt, the ambiguity should be interpreted in favor of the victims' rights."

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exclusivamente baseada na condição sexual do indivíduo. É suficiente apenas demonstrar que a orientação sexual da pessoa foi levada em conta pelo juiz, seja de forma explícita ou implícita, ao adotar a sua decisão. A própria CtIADH (2012, §94, nota de rodapé 115) menciona o caso EB v. França, decidido pela CtEDH, em 2008, onde os tribunais domésticos franceses, ao adotar o "estilo de vida" (lifestyle) de "EB" como fundamento da decisão, tentaram ocultar a verdadeira motivação de negar provimento: a homossexualidade do autor. A CtEDH afirmou in verbis: [...] não obstante as precauções tomadas pelo Tribunal Administrativo de Recursos de Nancy e, posteriormente, pelo Conselho de Estado, para justificar sua decisão com base no "estilo de vida" do autor, a conclusão inevitável é que a orientação sexual dele consistentemente esteve no centro das deliberações em relação a sua pessoa e onipresente em todas as fases dos processos administrativos e judiciais. [...] A Corte considera que a referência à homossexualidade do requerente era, se não explícita, pelo menos implícita. A influência que a homossexualidade declarada do autor teve na avaliação de seu pedido foi estabelecida e, tendo em conta o acima exposto, foi um fator decisivo que levou à decisão de recusar a sua autorização para adotar. (CtEDH, 2008, §§88 e 89, tradução nossa)15

Assim, em linhas gerais, a questão principal é verificar se a orientação sexual do indivíduo é ou não um fator determinante na decisão final, seja posta de forma explícita ou implícita pelo órgão jurisdicional (CtIADH, 2012, §95). No presente caso, os tribunais chilenos claramente levaram em conta a orientação sexual da Sra. Atala e também as consequências negativas às três meninas, alegadamente provocadas pela convivência conjugal da mãe com outra mulher, para proferir suas decisões revogando a custódia (CtIADH, 2012, §96). Assim, a homossexualidade foi a justificativa central dada pelo Chile, perpetuando um tratamento diferencial à mãe tendo fulcro na sua condição sexual (CtIADH, 2012, §§96-98). A

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O texto completo, no original, em inglês é: "[...] notwithstanding the precautions taken by the Nancy Administrative Court of Appeal, and subsequently by the Conseil d'Etat, to justify taking account of the applicant's “lifestyle”, the inescapable conclusion is that her sexual orientation was consistently at the center of deliberations in her regard and omnipresent at every stage of the administrative and judicial proceedings. [...] The Court considers that the reference to the applicant's homosexuality was, if not explicit, at least implicit. The influence of the applicant's avowed homosexuality on the assessment of her application has been established and, having regard to the foregoing, was a decisive factor leading to the decision to refuse her authorization to adopt."

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CtIADH destaca que enquanto ela assumia publicamente uma posição heterossexual, não havia problema algum em ela ter a guarda das meninas. Todavia, segundo o Chile, ela se tornou incapaz de ter a guarda simplesmente porque assumiu a sua homossexualidade. Não há dúvida que o mero fato dela ser lésbica a privou do direito de ter a custódia. Entretanto, nem todo tratamento diferencial constitui ato discriminatório (CtIADH, 1999, §§117 e 119; CtIADH, 2002, §§97 e 115; CtIADH, 2003, §119), desde que tal tratamento desigual seja "[...] razoável, objetivo, proporcional e não viole direitos humanos" (CtIADH, 2003, §119, tradução nossa).16 Assim, no presente caso, basta saber se os motivos apresentados pelo Chile, a fim de tratar a Sra. Atala de forma diferencial, efetivamente justificam este tratamento. A esses argumentos chilenos passase a dedicar atenção.

3 A PROTEÇÃO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA

O Chile alega que é o melhor interesse das crianças que elas não vivam com a mãe homossexual. A CtIADH (2012, §108) acredita que de fato o melhor interesse da criança é um bem jurídico cuja proteção é legítima e imperativa. Desta forma, "[...] a Corte reitera que o princípio da regulação dos direitos das crianças é baseada na dignidade da pessoa humana, nas características das próprias crianças e na necessidade de promover o seu desenvolvimento, fazendo pleno uso do potencial delas"17 (CtIADH, 2012, §108, tradução nossa). Da mesma forma, a CtIADH considera que a determinação do melhor interesse da criança, em casos que envolvem a custódia de menores, deve ser baseada numa avaliação de comportamentos parentais específicos e possíveis de trazer impactos negativos ao bem-estar e ao desenvolvimento da criança, ou de qualquer outros danos

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O texto completo, no original, em inglês é: "[...] reasonable, objective, proportionate and does not harm human rights." 17 O texto completo, no original, em inglês é: "[...] the Court reiterates that the regulating principle regarding children’s rights is based on the very dignity of the human being, on the characteristics of children themselves, and on the need to foster their development, making full use of their potential."

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ou riscos para o bem-estar dela, desde que sejam reais e comprovados e não apenas especulativos ou fantasiosos. Por isso, especulações, suposições, estereótipos ou considerações generalizadas em relação às características pessoais dos pais ou preferências culturais sobre conceitos tradicionais de família não são admissíveis (CtIADH, 2012, §109). Por fim, a Corte ainda ressalta que o melhor interesse da criança, apesar de relevante, não pode ser usado para justificar a discriminação contra os pais com base na mera orientação sexual (CtIADH, 2012, §110). Seria inconcebível alegar que é o melhor interesse das crianças viver com um indivíduo heterossexual, sendo que a criança teria um tratamento da mesma forma seguro e saudável com um indivíduo homossexual. Portanto, um juiz não pode apresentar essa condição pessoal como um fundamento numa decisão judicial de custódia (CtIADH, 2012, §110). A Suprema Corte do Chile fundamentou a sua decisão em diversos argumentos que orbitam em torno da proteção do melhor interesse das três garotas, expondo elementos que corroboram uma tese segundo a qual a homossexualidade da mãe pode ser considerada lesiva às meninas. A CtIADH dedicou atenção a cada um deles.

3.1 Suposta discriminação social pela sociedade

A CtIADH atesta que testemunhas arroladas pelo Chile afirmaram que as três crianças sofriam com discriminação, repressão e exclusão por outros pais, devido ao fato delas serem educadas por um casal homossexual (CtIADH, 2012, §115). Estudos apresentados também revelam que a sociedade chilena é muito preconceituosa e, por isso, as meninas também poderiam sofrer pelo fato de sua guarda estar sob a autoridade de uma homossexual (CtIADH, 2012, §116). Assim, segundo o Chile, é o melhor interesse das crianças que elas sejam educadas pelo pai heterossexual e não pela mãe lésbica. Todavia, testemunhos também foram apresentados onde se comprovou que as meninas possuíam um círculo de amigos e os pais destes jamais realizaram qualquer espécie de segregação pela condição homossexual da Sra. Atala (CtIADH, 2012, §117). 8

Assim, a Corte concluiu que as meninas têm, apesar da existência de preconceitos, um grupo social de amizades próprio. Contudo, a Suprema Corte Chilena entendeu que a mera possibilidade delas sofrerem discriminação e ostracismo pelos habitantes da cidade onde vivem faz com que a melhor opção para elas seja viver com o pai (apud, CtIADH, 2012, §118). A CtIADH rejeita este argumento, tendo em vista que adotar como justificativa a alegada possibilidade de discriminação social, comprovada ou não, que os menores podem enfrentar devido à situação sexual dos pais não pode ser usada como base legal para uma decisão judicial restringindo um direito. Embora seja verdade que certas sociedades podem ser intolerantes para com uma pessoa por causa de sua raça, sexo, nacionalidade ou orientação sexual, os Estados não podem usar isso como justificativa para perpetuar tratamentos discriminatórios. Estados estão obrigados a tomar medidas positivas necessárias para tornar eficazes os direitos estabelecidos na CADH, conforme estipulado em seu artigo 2˚. Portanto, devem engajar-se para enfrentar estas formas de intolerância e discriminação, a fim de evitar a exclusão ou a negação de um direito específico, sem jamais aceitar seus efeitos nocivos e nada fazer (CtIADH, 2012, §119). A Corte ainda relembra que medidas estão sendo tomadas na sociedade chilena a fim de conscientizar a população sobre o respeito às diferenças sexuais (CtIADH, 2012, §120). É identificável um progresso social nesse sentido e é dever do Estado e do Direito contribuir e incentivar tais mudanças, "[...] caso contrário, há um grave risco de legitimar e consolidar diferentes formas de discriminação que violam os direitos humanos" (CtIADH, 2012, §120, tradução nossa).18 A CtIADH (2012, §121) ainda esclarece que o mero risco potencial de rejeição por parte da sociedade, devido à orientação sexual da mãe, não pode ser considerado como um perigo ou dano à criança relevante e válido para efeitos de determinação do melhor interesse da criança. Se os juízes que analisam casos de custódia confirmam a existência de discriminação social, é completamente inadmissível, por esses magistrados, legitimar a discriminação com o argumento da proteção do melhor interesse da criança.

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O texto completo, no original, em inglês é: "[...]otherwise there is a grave risk of legitimizing and consolidating different forms of discrimination that violate human rights."

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Ademais, a Corte salienta que não há nenhuma razão legal para expor a Sra. Atala às consequências de discriminação pela sociedade contra as suas filhas (CtIADH, 2012, §121). Em outras palavras, um ato ilícito não pode ser usado como fundamento legal para privar um indivíduo de seu direito juridicamente garantido.

3.2 Suposta confusão das meninas sobre a função dos gêneros masculino e feminino na sociedade

O Chile alegou que o fato das meninas viveram com sua mãe e a companheira desta produziria danos ao desenvolvimento psicológico e emocional delas, vez que não seriam capazes de perceber qual a função que um pai (homem) teria numa família. In fine, a substituição da figura masculina do pai por outra mulher gera confusão nas garotas sobre a noção da sexualidade de cada gênero humano, produzindo danos ao desenvolvimento delas (apud, CtIADH, 2012, §123). A Corte reforça que qualquer restrição no direito de um indivíduo, por motivos de sua condição sexual, deve ser fundada em rigorosas razões (CtIADH, 2012, §124). Deve ser estabelecido uma conexão real entre o comportamento homossexual da mãe e um possível dano real às filhas (CtIADH, 2012, §125). Do contrário, há o risco de basear a decisão judicial em estereótipos exclusivamente associados ao preconceito de que crianças criadas por casais homossexuais teriam, necessariamente, dificuldades em definir e discernir os papéis de cada gênero humano (CtIADH, 2012, §125). A CtEDH já considerou que decisões judiciais relativas à custódia de menores devem se limitar a consideração de comportamentos parentais que produzem um impacto direto e negativo sobre o bem-estar e o desenvolvimento da criança (CtEDH, 2003, §§42-43; CtEDH, 2011, §147). Isso visa garantir um exame minucioso pelo magistrado a fim de não lesionar o direito à igualdade de grupos populacionais que são tradicionalmente discriminados (como os homossexuais) por realizar condutas diferentes daquelas feitas pela maioria, mas que não são, de forma nenhuma, nocivas às crianças (CtIADH, 2012, §127). Como acima exposto, tais condutas são simplesmente diferentes. Em resposta as alegações chilenas, a CtIADH apresenta diversos estudos científicos onde se conclui que a educação de filhos por casais homossexuais não produz qualquer efeito negativo na compreensão, pelas crianças, de sua própria 10

sexualidade, da função dos gêneros masculino e feminino na sociedade ou do comportamento ou orientação sexual de cada filho. Ainda, estudos revelam que a opção sexual dos pais não afeta a criação de vínculos amorosos e de afeto entre estes e seus filhos (CtIADH, 2012, §§128-129). Em resumo, a Corte conclui que a homossexualidade dos pais não prejudica ou influencia o desenvolvimento da criança, de forma que pais homossexuais podem educar filhos heterossexuais, sem alterar a heterossexualidade ou a percepção de cada gênero humano das crianças.

3.3 A alegação de que a Sra. Atala colocou seus interesses acima dos interesses de suas filhas ao declarar publicamente a sua homossexualidade

A Suprema Corte Chilena decidiu que o fato da Sra. Atala tornar público a sua homossexualidade deve ser visto como uma forma dela colocar o seu próprio bem-estar e interesses pessoais acima dos seus deveres como mãe (apud, CtIADH, 2012, §132). Na visão chilena, ela tinha o direito de fazê-lo, mas a sua escolha de revelar a sua homossexualidade evidencia a prevalência de seus interesses egoísticos sobre seus deveres familiares maternos. Nesse prisma, a CtIADH atestou que "[...] o alcance do direito à não discriminação devido a orientação sexual não se limita ao fato de ser homossexual em si, mas inclui a expressão da homossexualidade e as consequências que daí advêm ao projeto de vida de uma pessoa" (CtIADH, 2012, §133).19 Ademais, como já solidificado no continente europeu (CtEDH, 1997, §36; CtEDH, 1981, §52; CtEDH, 2000, §23), a CtIADH concluiu que a orientação sexual e o efetivo exercício desta são aspectos restritos a vida privada de cada indivíduo (CtIADH, 2012, §133). A CtIADH atestou que o direito a vida privada deve ser amplamente interpretado, de forma a não proteger somente a privacidade, mas também a identidade física e social de cada indivíduo, o desenvolvimento da vida e autonomia pessoais e também o desenvolvimento de relações com outras pessoas no contexto social

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O texto completo, no original, em inglês é: "[...] the scope of the right to non-discrimination due to sexual orientation is not limited to the fact of being a homosexual per se, but includes its expression and the ensuing consequences in a person’s life project."

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específico onde o indivíduo se insere, incluindo relações familiares com pessoas do mesmo sexo (CtIADH, 2012, §135). Em vista do exposto, a orientação sexual de uma pessoa está ligada ao exercício de sua liberdade, autodeterminação e direito de escolher livremente as opções e as circunstâncias que dão sentido a sua existência, conforme as suas próprias escolhas e convicções. O perfil sexual de um ser humano é um dos mais profundos elementos de sua intimidade (CtIADH, 2012, §136). Tendo em vista que a expressão da homossexualidade de um indivíduo é um componente essencial da identidade e privacidade deste, não seria razoável usar do Direito para exigir da Sra. Atala que ela coloque a sua vida pessoal em segundo plano a fim de dar preferência ao seu projeto familiar. Nesse prisma, a CtIADH corretamente afirma [...] que exigir da mãe a limitação de suas opções de estilo de vida implica a utilização de um conceito "tradicional" do papel social das mulheres como mães, segundo o qual é socialmente esperado que as mulheres tenham a principal responsabilidade pela educação dos filhos e que, em busca disso, elas deveriam dar prioridade à educação dos filhos, renunciando a um aspecto essencial da sua identidade. Por isso, a Corte considera que a utilização do argumento da suposta preferência da Sra. Atala de seus interesses pessoais, não cumpre o objetivo de proteger o melhor interesse das três meninas (CtIADH, 2012, §140, tradução nossa).20

Diante disso, resta rejeitado tal argumento, pois sob nenhuma circunstância pode ser considerado juridicamente condenável ou reprovável que um indivíduo tome a decisão de reiniciar a sua vida privada (CtIADH, 2012, §139). O exercício legítimo da intimidade (ou de qualquer outro direito) não pode gerar consequências jurídicas negativas à pessoa que age sob o império deste direito.

3.4 Suposto direito das crianças a uma família "tradicional e normal"

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O texto completo, no original, em inglês é: "[...] that to require the mother to limit her lifestyle options implies using a “traditional” concept of women’s social role as mothers, according to which it is socially expected that women bear the main responsibility for their children’s upbringing and that in pursuit of this she should have given precedence to raising her children, renouncing an essential aspect of her identity. Therefore, the Court considers that using the argument of Ms. Atala’s alleged preference of her personal interests, does not fulfill the purpose of protecting the best interest of the three girls."

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A Suprema Corte do Chile também concluiu que as crianças possuem o direito juridicamente garantido de crescerem no seio de uma família "normalmente" estruturada, conforme os modelos tradicionalmente impostos. Assim, é o melhor interesse das crianças que elas vivam com uma família heterossexual tradicional e não com um casal homossexual. A CtIADH rebate alegando que a CADH não possui uma definição específica de família e nem objetiva proteger somente as famílias ditas "tradicionais" (CtIADH, 2012, §142). A Corte demonstra que o conceito de família não se limita a figura do casamento e deve incluir outros núcleos familiares de facto, onde o casal vive em conjunto, mas sem vínculo matrimonial (CtIADH, 2012, §142; CtIADH, 2002, §§69-70). O mesmo já foi defendido no Sistema Europeu de Direitos Humanos (CtEDH, 1994a, §44; CtEDH, 1994b, §30). Assim, a CtIADH concluiu que a afirmação da Corte Chilena sobre a necessidade das meninas de crescerem numa família normal e tradicional "[...] reflete uma percepção limitada e estereotipada do conceito de família, que não tem base nenhuma na [CADH], uma vez que não existe um modelo específico de família (a 'família tradicional')" (CtIADH, 2012, §145, tradução nossa).21

4 CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, a CtIADH rejeitou os argumentos chilenos segundo os quais a homossexualidade da Sra. Atala poderia produzir danos às três meninas. A Corte acertadamente reforça que tais argumentos são meros estereótipos ou visões errôneos do melhor interesse da criança e que, portanto, não merecem relevância legal. A condição sexual de um indivíduo deve ser vista como um aspecto de sua vida privada, ligada ao âmago de seu foro íntimo. O exercício da sexualidade é um direito fundamental salvaguardado pela força do Direito e, assim, sua expressão, desde que não feito em abuso, deve ser protegida pelo Estado sem gerar consequências negativas ao agente que exerce tal direito.

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O texto completo, no original, em inglês é: "[...] reflects a limited, stereotyped perception of the concept of family, which has no basis in the Convention, since there is no specific model of family (the 'traditional family')."

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5 BIBLIOGRAFIA

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