O PAPEL DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA NA FORMAÇÃO DE GESTORES E PESQUISADORES CULTURAIS

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Gestão Social. Participação, Desenvolvimento: Olhares desde a América Latina Porto Alegre – RS 19 a 21 de maio de 201

O PAPEL DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA NA FORMAÇÃO DE GESTORES E PESQUISADORES CULTURAIS Autores: Neylson João Batista Filho Crepalde, Geiza da Costa Honorino, Flávia Cardoso Corrêa, Paulo Sérgio Abreu Silva

Palavras-chave: Extensão universitária; consumo cultural; eventos artísticos; Análise de Redes Sociais.

RESUMO: Este trabalho objetiva discutir de que modo o projeto de extensão “Produção de Eventos Artísticos” se engaja dialogicamente com a sociedade em suas ações partindo das normativas nacionais e institucionais onde o projeto acontece. A perspectiva relacional (Análise de Redes Sociais) conforme conceituada por White (2008) servirá de base teórica para compreender o processo. Apresentaremos de forma detalhada, em seguida, o escopo do projeto, as ações por ele realizadas no ano de 2015 e uma breve discussão sobre o impacto das ações artísticas e pedagógicas sobre os alunos considerando sua formação de músicos e sobre a construção da relação com a sociedade. Além disso, serão apresentados alguns resultados da pesquisa conduzida como parte do projeto. A coleta de dados foi feita através de um survey. Após apresentar as estatísticas descritivas das variáveis, analisaremos o consumo cultural a partir de quatro variáveis, a saber, a frequência a concertos, teatro, museus e cinema investigando como ele se relaciona com as demais variáveis mapeadas. Para tanto, utilizamos a técnica da Análise de Componentes Principais e usamos as variáveis latentes criadas em modelos de regressão linear tendo os escores calculados como variáveis dependentes. Os coeficientes dos interceptos de todos os modelos foram significativos. Os dados sugerem que há um decréscimo significativo no consumo de cinema após uma determinada idade e que os homens consomem mais cinema do que mulheres.

INTRODUÇÃO Um dos problemas mais discutidos na área da gestão cultural hoje relaciona-se à formação de público. O argumento corrente poderia ser resumido da seguinte forma: Assumindo-se que os bens culturais são dotados de valor simbólico o qual só existe na medida em que é reconhecido, o simples fomento à produção cultural não seria suficiente para garantir a subsistência do setor. Para que o público se aproprie dos bens culturais é necessário que tenham esquemas cognitivos adequados para compreendê-los e, então, fruí-los. Esses esquemas mentais são construídos, basicamente, através de ações pedagógicas. Paralelamente, a “Academia” tem discutido cada vez mais como é possível democratizar o seu acesso e construir conhecimento crítico junto aos alunos. Isso nos coloca um desafio: é possível trabalhar no ensino superior com ações que preparem os alunos para uma atuação eficiente e consciente de seu papel e ao mesmo tempo proporcionar à sociedade na qual estamos inseridos meios para que ela se aproprie do conhecimento produzido? As práticas de pesquisa e extensão universitárias apontam para esse horizonte.

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Art. 207 – As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. (BRASIL, 1998)

O papel da extensão nas universidades brasileiras é pensado, desde a constituição federal de 1988, como uma construção dialógica entre instituições de ensino superior e a sociedade. Por um lado, essa diretriz aponta para a democratização do conhecimento científico de modo que este não fique “enclausurado” dentro das universidades. Por outro, temos que, do mesmo modo como a sociedade, ao se apropriar do conhecimento, é por ele transformada, na sua interação com a sociedade as universidades são também transformadas pela troca de saberes que ocorre aí. Na conceituação de Felippe et. al. (2013) A Extensão Universitária constitui-se em um conjunto de ações de caráter interdisciplinar e multidisciplinar, articulando os saberes produzidos na vida acadêmica e na vida cotidiana das populações, para compreensão da realidade e busca de resposta aos seus desafios. Assim, promove a disseminação do conhecimento acadêmico, por meio do diálogo permanente com a sociedade. (FELIPPE et. al., 2013, p. 19) Além de suas características de interdisciplinaridade e estreita relação com a sociedade, as ações de extensão contribuem com o papel social das IES, entre eles, a construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e menos desigual (CEUNIH, 2013). A extensão, indissociável da pesquisa e do ensino, é retroalimentada em sua interação com a sociedade de onde emerge conhecimento construído na dualidade da própria relação (MOHR; WHITE, 2008). Dito de outra forma, a extensão universitária encontra em sua concepção uma “ênfase na relação teoria-prática, na perspectiva de uma relação dialógica entre universidade e sociedade, como oportunidade de troca de saberes” (JEZINE, 2004). Nesse sentido, o projeto de extensão “Produção de Eventos Artísticos” orientado pelo primeiro autor deste trabalho no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (doravante CEUNIH) se propõe a suprir uma demanda generalizada no país por profissionais capacitados na área além de treiná-los para a pesquisa cultural e construção de indicadores culturais, campo ainda deficitário no Brasil. O objetivo deste trabalho, portanto, é discutir a extensão universitária no contexto da formação profissional de gestores e pesquisadores culturais focando em como o conhecimento emerge na interação entre os indivíduos no grupo e na interação entre universidade e sociedade. Essas relações, bem como suas emergências, serão analisadas a partir de uma perspectiva relacional vigente na área de estudos em redes sociais conforme elaboração de White (2008). No intuito de exemplificar o efeito dessa prática, apresentaremos, após a referida discussão, a metodologia e os resultados da pesquisa conduzida dentro do projeto bem como algumas análises preliminares do consumo de cultura.

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Seguiremos apresentando nossa perspectiva teórica, a perspectiva relacional, embasada no paradigma de pesquisa conhecido como Análise de Redes Sociais.

A CONSTRUÇÃO QUE EMERGE DAS INTERAÇÕES Grande parte do desenvolvimento dos estudos que buscam entender as relações sociais, seus processos e seus efeitos se deve ao uso de modelos relacionais no intuito de compreender a complexa lógica da dinâmica social. A vida social é composta por padrões identificáveis por meio das conhecidas estruturas sociais mas, também, por processos estocásticos com os quais os pesquisadores sempre tiveram dificuldades. Os modelos relacionais visam dar conta tanto dos processos cristalizados nos grupos sociais como também do âmbito aleatório da vida social. Esses modelos foram desenvolvidos, a princípio, nos estudos em Análise de Redes Sociais (Social Network Analysis) cujo maior expoente talvez seja o prof. Harrison White. Sua publicação de 1992 intitulada Identity and Control vigora como o marco teórico fundamental que sustenta os estudos em Redes. Apresentaremos sucintamente os principais conceitos que embasam este trabalho.

Identidade e Controle White (2008) não usa mais o conceito de agência da velha dicotomia agência/estrutura para entender a vida social mas trabalha com o conceito básico de identidade. Identidades são a fonte de qualquer ação, não indivíduos. “Uma firma, uma comunidade, uma multidão, uma pessoa na quadra de tênis, encontros de estranhos na calçada, todos podem ser identidade” (MOHR; WHITE, 2008, p. 489). Segundo White (2008), uma identidade emerge para cada um de nós somente através de esforços de controle em meio a contingências e contenções na interação. Esses esforços de controle não precisam ter nada a ver com dominação sobre outras identidades. Antes de mais nada, controle é encontrar solo sólido [footing] entre outras identidades. Tal solo sólido é uma posição que ocasiona uma postura, o que traz orientação em relação a outras identidades. (WHITE, 2008, p. 1) Para White (2008, p. 1), “a normalidade percebida é um lustro na realidade de esforços turbulentos de controle por identidades à medida que elas buscam solo sólido”. Higgins e Velásquez (2015, p. 333) explicam que vivemos em um contínuo “fluxo estocástico caótico” dentro do qual é imperativo que a ação consista “na busca por um solo sólido (footing) desde o qual nos projetamos aos demais”. Segundo White (2008, p. 1), “Identidades alcançam social footing tanto como fonte quanto como destinação de comunicações às quais as identidades atribuem significado.” As identidades são desencadeadas por eventos, ou seja, situações relacionais que emergem das

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interações entre indivíduos e de seus “pulos” (switchings) de um domínio em rede (netdom) para outro. Higgins e Velásquez (2015, p. 333) argumentam que Em particular, o footing é um significado compartilhado entre identidades (pessoais, por exemplo) que lhes permite a articulação de uma linguagem comum. Nesse sentido, cumpre o papel de referência para estabilizar expectativas com respeito a possíveis cursos da ação social. (HIGGINS; VELÁSQUEZ, 2015, p. 333, tradução livre) Para Mohr e White (2008) a participação ativa (controle) de cada um nas situações de interação depende de um entendimento generalizado sobre “o que está acontecendo” na rede, o qual é produzido através das trocas (switchings) entre essas situações. Esse entendimento compartilhado toma corpo num conjunto de histórias (stories) dos netdoms. Os significados situados, as histórias compartilhadas, as tramas que dão estrutura heurística às narrativas compartilhadas, e os sistemas de valores que providenciam um substrato categórico central para esse processo, todos esses são fenômenos culturais (simbólicos) e eles também são ordenados em sistemas relacionais. Portanto, em adição às redes sociais, a vida institucional é organizada em volta de redes culturais, estruturas relacionais que ligam significados, valores, histórias e retórica em várias configurações estruturais. (MORH; WHITE, 2008, p. 489) Na social network analysis, assume-se que o que mais importa são as relações entre os indivíduos. Desse modo, as identidades são obtidas pelos indivíduos, pessoas, agentes, valores, histórias, etc. em suas relações; não são definidas por características inerentes a eles mas pelas especificidades de suas relações em cada situação.

Dualidade e Relacionalidade O princípio da relacionalidade, conforme exposto supra, pressupõe que as identidades e todos os elementos que a compõem não são inerentes às pessoas, mas sim, construídos dentro das interações em um determinado domínio em rede. O mesmo acontece com valores, crenças, opiniões, normas sociais e instituições sociais de um modo geral. A grande diferença desta abordagem para uma abordagem mais clássica nos estudos sociais reside na possibilidade de construção de diferentes “sistemas simbólicos'” em diferentes domínios em rede. Além da relacionalidade, o segundo princípio teórico/metodológico envolvido na perspectiva relacional é a dualidade. Para Mohr e White (2008) a dualidade pode ser definida como “uma relação que é inerente dentro de e entre duas classes de fenômenos sociais de modo que o ordenamento estrutural de uma constitui e é constituído pelo ordenamento estrutural da outra”. Um exemplo seria a constatação de Simmel que, ao mesmo tempo em que os indivíduos moldam os grupos sociais dos quais fazem parte, ao mesmo tempo são

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moldados por eles. Do mesmo modo “estruturas sociais podem ser dualmente articuladas com estruturas culturais (e vice-versa)” (MOHR; WHITE, 2008). Dentro da perspectiva relacional, interessa-nos, particularmente, investigar de que modo acontece a construção de conhecimento e a troca de informações entre os alunos que participam do projeto e entre os extensionistas e o público em geral. Prossigamos com a apresentação do projeto.

A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA PESQUISADORES CULTURAIS

E

A

FORMAÇÃO

DE

GESTORES

E

O projeto “Produção de Eventos Artísticos'” teve início em março de 2015 sob a orientação do primeiro autor deste trabalho. Seu objetivo é contribuir para a formação de gestores e pesquisadores culturais através de ações que priorizam a prática da produção de eventos e coleta de dados. Após a seleção dos alunos extensionistas, foram realizadas reuniões quinzenais. Hoje, o projeto conta com oito alunos extensionistas voluntários. O grupo trabalhou, no primeiro semestre, na primeira coleta de dados e, no segundo semestre, na segunda coleta bem como na produção do evento “Seminário de Música Izabela Hendrix'”. Maiores informações sobre as coletas de dados serão apresentadas oportunamente. Por ora, descreveremos a participação dos alunos no evento produzido e discutiremos o impacto dessa ação em sua formação. O Seminário de Música Izabela Hendrix O Seminário de Música é um evento promovido pelo curso de música do CEUNIH que acontece uma vez a cada semestre. Seus objetivos são: 

A criação de massa crítica a respeito de música e educação musical através de um espaço de diálogo aberto e inteligente entre a academia, os profissionais da área e a sociedade em geral, e



Mostrar ao público de Belo Horizonte e região o que está sendo produzido tanto em pesquisa quanto em produção artística na instituição de ensino.

O Seminário normalmente acontece em dois dias sendo o primeiro reservado a uma mesa redonda com professores convidados a discutir temática de interesse geral do curso, e o segundo reservado às apresentações de trabalhos artísticos dos alunos do curso. O tema da mesa redonda nessa ocasião foi “A música em interface com outras áreas do conhecimento”. Participaram do evento os professores Silvio Salej Higgins (sociólogo), José Osvaldo Lasmar (economista) e Éric Lana (maestro, educador e gestor cultural). Após uma

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breve exposição de cada um dos convidados, iniciou-se o debate com perguntas feitas pelo público presente. As perguntas do público para os convidados foram escritas em pequenos pedaços de papel e encaminhados à mesa. Foi notório o impacto desse evento junto aos estudantes. O contato com profissionais e pesquisadores de áreas tão distintas à música suscitou um debate bastante rico em que os alunos foram confrontados em seus pressupostos relacionados às práticas musicais e à subsistência dos artistas. O prof. Silvio trouxe em sua exposição as relações sociais imbuídas nos estilos e estéticas musicais. O prof. José Lasmar trouxe em sua fala a visão da cultura como um produto que movimenta todo um setor da economia gerando empregos, renda e desenvolvimento e a preocupação com a formação de público consumidor. O prof. Éric Lana trouxe a perspectiva do educador na gestão de um coral amador. Os professores convidados também tiveram seus pressupostos postos à prova no momento do debate à medida que se esforçavam para responder às perguntas e críticas feitas pelo público. Se atentarmos para essa interação tendo a referência teórica de White (2008), no momento em que foram apresentadas visões de mundo e entendimentos conflitantes acerca da música e de seu papel na sociedade, iniciou-se um processo de desconstrução da realidade pelo conflito o qual gerou a busca por controle e, consequentemente, solo sólido, ou seja, definições compartilhadas sobre as quais todos podem orientar sua ação. Ao longo do debate, a busca pelo footing deu origem à produção de novos conhecimentos, crenças e opiniões fazendo emergir naquela situação específica um sistema simbólico novo. No segundo dia, as apresentações representavam um desafio de produção bem maior. Como cada uma das turmas orientadas pelos professores iria apresentar um número artístico ou um trabalho de criação, as apresentações tinham os caráteres mais diversos possíveis e, consequentemente, exigiam uma diversidade de montagens de palco e sonorização. A primeira apresentação consistia de um grupo coral com acompanhamento de piano. A segunda consistia de uma trilha sonora apresentada “ao vivo” com projeção da animação em tempo real. A terceira consistia de um trabalho performático, como um happening das artes visuais, em que um aluno representava uma noite de sono mal dormida. Vários ruídos e efeitos sonoros foram executados “ao vivo” e por meio de gravações. A quarta apresentação consistia de um grupo de flautas acompanhado por um violão e um instrumento de percussão. A quinta e última apresentação consistia de um grupo de violões. Cada uma das apresentações citadas exige um tipo de montagem de palco e sonorização específicas e as trocas deveriam acontecer nos intervalos entre os números. Essas trocas ficaram sob a responsabilidade dos alunos extensionistas. Eles receberam treinamento em sala de aula com os mapas de palco fornecidos pelos professores orientadores. Era nítida a dificuldade dos alunos nos momentos iniciais de treinamento, o que foi sendo gradativamente superado. O resultado da ação de montagem foi bastante positivo. Se considerarmos o impacto da ação na formação de gestores e produtores culturais, a experiência parece ter tido grande eficiência na medida em que expôs os alunos a situações de tomada de decisão rápida e eficiente, casos aos quais os profissionais da cultura estão constantemente expostos. Se considerarmos a grande diretriz corrente na área da educação musical a qual consiste em

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delegar um papel central na formação dos músicos a experiências práticas de performance e manipulação do material (SWANWICK, 2003) e, se considerarmos a produção cultural como uma competência necessária à formação de um músico, estamos em consonância com a referida diretriz metodológico-pedagógica. Diversos estudos tem mostrado a eficácia de se trabalhar música partindo da prática (BUENO; BUENO, 2009; AUGUSTO; CASTRO, 2014; FRANÇA; SWANWICK, 2002; FRANÇA, 2000; COSTA, 2010). Se o mesmo efeito pode ser observado na formação de produtores é uma questão que merece investigações. Entretanto, temos boas razões para acreditar que a hipótese é verdadeira. Na concepção do projeto de extensão “Produção de Eventos Artísticos”, a ideia é que ao longo de quatro a seis semestres, período estimado ideal para que os alunos permaneçam no projeto, eles desenvolvam segurança para planejar e executar todas as ações necessárias que envolvem a pré-produção, produção e pós-produção de um evento dessa natureza.

A PESQUISA Parte do projeto de extensão “Produção de Eventos Artísticos” se propõe a produzir dados culturais focando no consumo de cultura e investigar de que modo ele acontece visando compreendê-lo e explicá-lo. É preciso deixar claro ao leitor que esses objetivos (bastante ambiciosos, aliás,) são horizontes gerais para o qual olhamos e pretendemos dar alguma contribuição no curso de longos anos de pesquisa. Nossos dados apresentam resultados ainda bastante preliminares dentro de um projeto de investigação a longo prazo. De nenhum modo pretendemos explicar o consumo cultural no presente trabalho. Entretanto, acreditamos que através do processo contínuo de coleta de dados e revisão bibliográfica estaremos construindo conhecimento valioso na área e contribuindo de maneira significativa ao campo de investigações. Para Jacks (2008, p. 44), “a perspectiva do consumo cultural é construir uma teoria sócio-cultural do consumo para abordar os processos de comunicação e recepção de bens simbólicos”. Canclini (1993 apud JACKS, 2008, p. 44) conceitua o consumo cultural de maneira geral como “el conjunto de procesos socioculturales en que se realizan la apropiación y los usos de los productos”. Esta definição vai de encontro a uma visão do consumo individualista, irracional e orientada à satisfação dos desejos. O consumo de bens culturais se diferencia do consumo dos produtos em geral na medida em que pressupõe estruturas cognitivas adequadas para sua compreensão e fruição (BOURDIEU; DARBEL, 2003) assumindo um valor simbólico que muitas vezes é bastante difícil de ser traduzido em um equivalente monetário. Para Bourdieu e Darbel (2003)

O que é raro não são os objetos [culturais] mas a propensão em consumi-los, ou seja, a “necessidade cultural” que, diferentemente das “necessidades básicas”, é produto da educação: daí, segue-se que as desigualdades diante das obras de cultura não passam de um aspecto

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das desigualdades diante da Escola que cria a “necessidade cultural” e, ao mesmo tempo, oferece os meios para satisfazê-la. (BOURDIEU; DARBEL, 2003, p. 69)

Apresentaremos agora os resultados obtidos até então.

Metodologia O instrumento de coleta de dados foi baseado em dois instrumentos similares desenvolvidos por Bourdieu e Darbel (2003). O objetivo era mapear as variáveis sociais de interesse (sexo, cor, escolaridade, etc.) bem como sua participação em eventos e consumo cultural. Até o presente momento desconhecemos alguma mensuração do universo pesquisado. Por esse motivo, optamos por uma amostragem não probabilística por conveniência onde a unidade de análise é a visita ao local e não o indivíduo. Existe a possibilidade de um mesmo indivíduo que estivesse presente nas duas ocasiões ter respondido o questionário duas vezes. Entretanto, isso não apresenta nenhum problema para nossas análises. Os extensionistas receberam treinamento e aplicaram 20 questionários como préteste no dia anterior à primeira coleta de dados junto aos alunos do CEUNIH que entravam na instituição por volta de 18:40. Na avaliação do pré-teste todas as perguntas pareciam claras e foram respondidas sem nenhum problema. A primeira coleta de dados ocorreu no dia 30 de abril de 2015 nos momentos que antecederam o espetáculo da noite no Teatro Izabela Hendrix. Tratava-se de um concerto comemorativo de páscoa empreendido pelo Coral Getsêmani. Os portões do teatro foram abertos quarenta e cinco minutos antes do início do espetáculo. Nesse tempo, os alunos aplicaram oitenta e quatro questionários. A segunda coleta de dados ocorreu no dia 03 de outubro de 2015. O evento intitulado “Nós Somos o Show” empreendido pelo Colégio Izabela Hendrix consiste de uma apresentação dos alunos do ensino fundamental e do ensino médio do referido colégio orientados pelos professores de música, teatro e dança e estagiários. Acreditamos que o público predominante nesta ocasião era composto pelos pais e familiares desses alunos. Os portões foram abertos cerca de quarenta minutos antes do início do espetáculo e nesse tempo os alunos extensionistas abordaram o público preenchendo os questionários. Nessa ocasião foram preenchidos oitenta e um questionários. A experiência dos alunos nas ocasiões de coleta de dados per se nos dá informações interessantes sobre o processo de formação de um pesquisador cultural. Em todo o tempo os alunos se deparavam com respostas que “não concordavam” ou que julgavam errôneas, sobretudo no que toca à autodeclaração da cor ou raça. Um dos alunos comenta

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Um fato interessante foi que elas não sabiam responder algumas perguntas muito simples que estavam no questionário como: “Qual sua cor?” ou “Com qual frequência você vai ao teatro?”. Claro que não podíamos influenciar em qualquer resposta de nenhuma pessoa, mas algumas pessoas que me responderam, eu achei estarem equivocados de sua própria cor. Um bom exemplo foi de um rapaz, na minha opinião pardo, que me respondeu que era amarelo quando na verdade essa classificação é reservada a descendentes de orientais. O tempo que a maioria dos entrevistados leva para responder à primeira pergunta é compreensível visto que no Brasil a cor da pele está atrelada a um histórico político, econômico e até atitudinal, como diz o vice-presidente do Instituto Cidadania Democrática (ICD/SP), Silvio Luiz de Almeida: (...) ser “branco”, no Brasil, não se refere apenas à cor da pele, mas a todo um conjunto de atitudes e de privilégios políticos e econômicos que nossa sociedade atribui aos que possuem uma aparência branca. E essa aparência, como sabemos, pode ser construída de diversas maneiras, seja através do sucesso econômico, político, cultural. A falta de privilégios, por sua vez, confere simbólicos pigmentos, uma melanina brasileiríssima. (MORAIS, 2010) A experiência parece ter sido exitosa enquanto prática pedagógica também na medida em que pôde contribuir para a construção de senso crítico e pensamento científico junto aos alunos. Nas palavras de outra aluna extensionista. Quando meus colegas e eu encerramos nossa primeira experiência no processo de coleta de dados, percebemos que questões como “a cor da pele” e “eventos artísticos” podem não ser tão simples como pensávamos, pois ao responder tais questões as pessoas inevitavelmente tendem a se preocupar com a imagem que vão transmitir ao entrevistador, assim delongando o tempo da entrevista e tentando tirar sugestões e/ou até respostas de nós pesquisadores. Em reuniões posteriores, sob a orientação do coordenador do projeto, os próprios alunos construíram o banco de dados em tabela compartilhada online e foram feitas as análises que apresentaremos agora. Resultados Nos eventos estudados a maioria das pessoas que compunham o público eram do sexo feminino (cf. Tabela 1) e casadas (cf. Tabela 2). A variável idade tem valor médio de 36,8, valor mínimo de 13 e máximo de 85. Sua distribuição encontra-se na Figura 1. Quanto à escolaridade, a grande maioria possuía curso superior incompleto (cf. Figura 3).

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Quanto à variável cor, é preciso informar o leitor de que, na primeira coleta de dados, o campo do questionário era marcado pelo pesquisador. Na segunda coleta, o campo era informado pelo entrevistado, portanto, autodeclarado. Por causa da diferença em que os dados foram produzidos, apresentamos as distribuições para as duas coletas (cf. Figura 2).

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O Consumo Cultural Para analisar os dados referentes ao consumo cultural (frequência a concertos, teatro, museus e cinema) foi utilizada a técnica da Análise de Componentes Principais (Principal Component Analysis). Esse método explica “a estrutura de variância e covariância de um vetor aleatório, composto de p-variáveis aleatórias, através da construção de combinações lineares das variáveis originais” (MINGOTI, 2005, p. 59) que são chamadas de componentes principais. Os escores são uma síntese das variáveis originais construída a partir das correlações entre eles e são medidas que levam em conta a variância de cada variável original como peso em seu cálculo. Esses componentes serão usados para calcular escores, valores numéricos determinados, para cada sujeito da amostra criando variáveis latentes. A partir da matriz de covariâncias das quatro variáveis de interesse, a saber, concertos, museus, teatro e cinema são calculados os autovalores e respectivos autovetores. A matriz de covariâncias dessas variáveis que aqui representam o consumo cultural é dada por

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Os componentes principais gerados pelos três primeiros autovalores tem um poder de explicação da variância dos dados de 94,19% dos dados (cf. Tabela 3). Trabalharemos, portanto, com três componentes.

As equações que geram os escores dos componentes para cada um dos indivíduos são dadas por:

As correlações entre os componentes gerados e as variáveis originais estão apresentadas na Tabela 4. O primeiro componente é um índice geral de frequência a concertos, teatro e museus. Quanto maior o escore desse componente, maior o consumo desses bens culturais. O segundo componente é um índice geral de frequência a cinema. Quanto maior o escore, maior o consumo de cinema. O terceiro componente funciona como um comparativo da frequência entre museus e teatro. Quanto maior o escore, maior o consumo de museus e menor o consumo de teatro. Quanto menor o escore, maior o consumo de teatro e menor o consumo de museus. Escores com valores próximos a zero indicam equilíbrio de consumo dos dois bens culturais. Apresentamos uma representação visual na Figura 4.

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A densidade e representação visual dos escores calculados para cada indivíduo se encontram na Figura 5. As estatísticas descritivas dos escores se encontram na Tabela 5.

Buscando uma análise mais profunda dos dados, foram estimados três modelos de regressão linear tendo os componentes gerados como variáveis dependentes, ou seja, respectivamente, o consumo de concertos, teatro e museus (Comp.1), cinema (Comp.2) e um índice comparativo entre o consumo de museus e teatro (Comp.3). Os resultados estão apresentados na Tabela 6.

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Todos os três modelos apenas apresentaram resultados estatisticamente significativos para o intercepto. Neste caso, os interceptos podem ser interpretados da seguinte maneira: quando os valores de todas as covariáveis forem iguais a zero, ou seja, indivíduos do sexo feminino, negros, com idade média (aprox. 37 anos) e casados, estes indivíduos possuem os escores 5.001, 3.796 e 0.702 para os três componentes gerados respectivamente. O coeficiente do intercepto para o Comp. 1 está abaixo da média sugerindo que os indivíduos com as características descritas tendem a frequentar menos concertos, teatro e museus do que a média. O escore do intercepto para o Comp. 2 está bastante próximo à média indicando um consumo médio para o grupo descrito enquanto o Comp. 3 tem um intercepto superior à média indicando que o grupo em questão tem uma ligeira preferência por museus em comparação com teatro. O coeficiente positivo e estatisticamente significante para Sexo no segundo modelo sugere que, no tocante ao consumo de cinema, há uma diferença real entre homens e mulheres sendo que os homens tendem a consumir mais. O coeficiente para a variável Idade ao quadrado96 também foi estatisticamente significativo indicando que de fato há diminuição no consumo cultural a partir de determinada idade.

96

A variável idade² foi inserida no modelo para captar o decréscimo no consumo cultural a partir de certa idade. Espera-se, numa escala linear, que o coeficiente para idade seja positivo e para idade² seja negativo. Essa transformação nos dados teve origem nos estudos de renda (CAVALIERI; FERNANDES, 1998; PEREIRA; OLIVEIRA, 2013; VILELA; COLLARES; NORONHA, 2015).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Até aqui acreditamos ter mostrado o potencial das ações de extensão na formação de gestores e pesquisadores culturais bem como no estabelecimento de laços significativos e construtivos entre universidade e sociedade. Contudo, é preciso avançar buscando estratégias eficientes para a condução de ações de extensão que priorizem o aumento da participação ativa da sociedade junto à universidade. Desse modo, enriqueceremos tanto a formação dos próprios alunos pelo diálogo com o público e também a própria universidade como produtora e divulgadora de conhecimento. O horizonte do projeto de investigação em consumo cultural é animador. Há a necessidade de que as pesquisas tentem aprofundar na escolha das variáveis a serem mapeadas e na análise das relações entre essas variáveis seja através de pesquisas qualitativas que assumam teorias atuais da ação social, seja através da aplicação de métodos cada vez mais sofisticados de análise estatística.

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