O papel da história em \"A filosofia como ciência rigorosa\"

June 23, 2017 | Autor: Marcus Sacrini | Categoria: Phenomenology, Edmund Husserl
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O papel da história em

A filosofia como ciência rigorosa Marcus Sacrini – USP

1.

Com exceção de pequenos textos em algumas recensões publicadas du-

rante a primeira década do século XX, o artigo “A filosofia como ciência rigorosa” (Philosophie als strenge Wissenschaft1 – doravante PSW), de 1911, é o primeiro artigo em que Husserl expõe e defende suas ideias após as Investigações Lógicas (1901). Alguns comentadores souberam ver aí um momento marcante na evolução do tratamento de certos problemas já presentes na obra de 1901. No artigo de 1911, Husserl teria ampliado consideravelmente o âmbito do ataque às concepções que ignoram o caráter objetivo das idealidades, concepções que em Prolegômenos à lógica pura se restringiam ao psicologismo e que agora recebem o vasto título de naturalismo e historicismo2. Além disso, em PSW Husserl não teria se limitado

a combater essas concepções exibindo suas incoerências lógicas, tal como criticara o psicologismo em Prolegômenos, mas amplia sua estratégia de maneira a incluir uma crítica dos princípios e dos métodos do naturalis-

1 HUSSERL, E. Philosophie als strenge Wissenschaft. In: Aufsätze und Vorträge. 1911-1921. Husserliana XXV. Haag: Martinus Nijjhof, 1986. p. 3-62. 2 Cf. MORAN, D. Husserl’s transcendental philosophy and the critique of naturalism. Continental philosophy review, v. 41, n. 4, 2008, p. 401-425. Ensaios de Filosofia em homenagem a Carlos Alberto R. de Moura

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mo e do historicismo, e isso em contraste com os princípios e métodos da fenomenologia3. Esses exemplos sugerem que PSW foi lido principalmente como um artigo combativo muito mais do que como uma apresentação de alguns dos componentes essenciais da fenomenologia. Entretanto, embora correta em termos gerais, essa leitura do texto não me parece exaustiva. Eu gostaria de mostrar aqui que há um aspecto pouco notado em PSW e que tem um papel constitutivo na elaboração do alcance geral do projeto fenomenológico. Trata-se do tema da história, mais especificamente da história da filosofia. Não me refiro às paginas finais do texto, em que Husserl concede que o estudo histórico pode estimular a atividade reflexiva, para logo em seguida afirmar que o verdadeiro impulso filosófico parte principalmente das próprias coisas e não da história da filosofia. (Cf. PSW, p. 61). Na verdade, eu gostaria de explicitar algo que Husserl ao menos esboça já na introdução do artigo, embora sem ainda tirar todas as consequências mesmo no decorrer do texto. Trata-se do papel constitutivo da história da filosofia na justificação de seu projeto filosófico. Eu acredito que há um apelo essencial a essa história em PSW, de maneira que aí certos temas, muito mais visíveis e elaborados nos textos da década de 1930, já estão em operação.

2. De início, em PSW, Husserl apresenta a meta de tornar-se ciência rigorosa como a pretensão que guiou a filosofia desde seus inícios. (Cf. PSW, p. 3). É como se Husserl oferecesse aqui uma constatação óbvia, como se pudéssemos reconhecer facilmente que os filósofos sempre quisessem apresentar suas filosofias como ciência, e isso com mais ou menos energia conforme as circunstâncias sócio-históricas permitissem. Note-

cap. II-III.

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Cf. SOFFER, G. Husserl and the question of relativism. Dordrecht: Kluwer, 1991.

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mos também que no primeiro parágrafo de PSW, Husserl já delineia o amplo escopo do que deveria ser abarcado pela filosofia científica. Não somente os mais altos critérios ou necessidades teóricas serão satisfeitos, mas também se espera fornecer as normas do agir prático, as quais preencherão as exigências ético-religiosas do convívio humano. Esse é um ponto importante, pois exibe com toda clareza que o ideal de filosofia científica não se restringe a um conjunto de teses teóricas, mas também inclui a fixação das normas e princípios segundo os quais se deveria guiar a vida prática. Uma vez explicitada a amplitude do âmbito da filosofia científica, retornemos à constatação inicial de Husserl, ou melhor, às constatações iniciais. Ele havia afirmado que “desde os seus inícios a filosofia almeja ser ciência rigorosa”. (PSW, p. 3). Ao lado dessa primeira constatação, Husserl apresenta uma observação negativa, a saber, que em nenhuma época a filosofia satisfez essa pretensão de realizar-se como ciência rigorosa. (Cf. PSW, p. 3). Há especial atenção à época contemporânea, a qual teria recebido a herança crítica da filosofia moderna, segundo a qual antes de se entregar ingenuamente ao impulso filosófico de descrever as coisas deve-se refletir sobre os métodos que possibilitam o acesso a tais coisas. Mesmo com tal herança crítica, a filosofia não se tornou uma ciência rigorosa. Husserl reconhece que a filosofia contribuiu para o estabelecimento das ciências da natureza e do espírito como ciências, mas que em relação a si própria nem mesmo está claro qual o sentido da empreitada filosófica ou se ela se localiza em outra dimensão em relação à ciência. Em suma, Husserl defende que os princípios básicos da disciplina filosófica não estão estabelecidos. (Cf. PSW, p. 3-4). Para exprimir de maneira clara essa situação não-científica da filosofia, Husserl retoma o famoso dito de Kant segundo o qual não se pode ensinar filosofia, mas somente o filosofar. (Cf. PSW, p. 4). O fato de que não é possível ensinar a filosofia seria então uma atestação da ausência de caráter científico. Afinal, caracterizar uma disciplina como científica implica reconhecer um certo conteúdo teórico ou doutrinal que pode ser ensinado e aprendido de modo objetivo, quer dizer, que pode ser reconhecido como Ensaios de Filosofia em homenagem a Carlos Alberto R. de Moura

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válido independentemente de preferências pessoais arbitrárias. Assim, o reconhecimento da validade objetiva supõe um consenso em torno de certos princípios e procedimentos basilares. Começa a ser circunscrito um critério de cientificidade que exclui a filosofia do âmbito das disciplinas ditas científicas. Voltarei a comentar sobre esse critério na próxima seção. Por ora, só quero notar que uma vez explicitada, ainda de modo vago, a noção de cientificidade como conteúdo teórico/procedimental partilhado intersubjetivamente, a segunda constatação ou observação de Husserl (que a filosofia não se apresenta nem nunca se apresentou como ciência rigorosa) torna-se facilmente aceitável. No âmbito da filosofia, nem os problemas, nem os métodos nem os resultados teóricos estão claramente estabelecidos, o que se pode aceitar sem muitas dificuldades, já que um grande acordo científico de base nunca ocorreu no domínio da filosofia. Contudo, eu quis notar que essa segunda constatação parece razoável justamente para contrastá-la com a aparente gratuidade da primeira constatação de PSW. “Desde os seus inícios a filosofia pretendeu ser ciência rigorosa”. Não é muito óbvio nem mesmo que essa seja de fato uma constatação. Essa frase soa muito mais como uma prescrição do que como uma descrição, quer dizer, ela soa muito mais como uma espécie de norma que a filosofia deveria seguir, uma prescrição que Husserl parece impor arbitrariamente para o conjunto da filosofia. Mas se fosse assim, então o projeto de Husserl ruiria estrondosamente já de início, como pretendo mostrar a seguir.

3. Após essas constatações iniciais, Husserl argumenta pela não-cientificidade da filosofia em comparação com as ciências objetivamente estabelecidas. É então que Husserl desenvolve aquele critério geral de cientificidade que anunciei há pouco. No quarto parágrafo de PSW, Husserl fortifica ainda mais a sua segunda constatação inicial, segundo a qual

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a filosofia não se realizou como ciência rigorosa. Agora ele diz explicitamente que não é simplesmente o caso de reconhecer que a filosofia é uma ciência incompleta. Não, a filosofia não é ciência de modo algum. (Cf. PSW, p. 5). E para justificar essa dura avaliação, basta tomar qualquer fragmento de uma ciência já estabelecida, qualquer conteúdo teórico fundado objetivamente, como critério. Obviamente não se trata de negar que as ciências estabelecidas contêm imperfeições; que há inúmeros problemas a se resolver, que seus fundamentos não estão totalmente claros. Mas apesar disso tudo, seria possível reconhecer nelas um conteúdo teórico estabelecido e partilhado intersubjetivamente, um conteúdo forjado por meio da colaboração de diversos cientistas, engajados em procedimentos partilhados, e que se ramifica ordenadamente. Esse conjunto de teses teóricas e de procedimentos partilhados pelos cientistas não deixa espaço para pontos de vista particulares na tarefa da construção justificada do conhecimento. Para Husserl, o conhecimento que merece o nome de científico não comporta opiniões arbitrárias, mas é formado por teses com validade objetiva, a qual é garantida por sua atestação intersubjetiva. Assim, por exemplo, se um teorema matemático obtido após uma dedução merece o título de válido, é porque os passos lógicos que nele resultaram podem ser reconstruídos por matemáticos que não participaram de sua formulação original, mas que partilham dos mesmos procedimentos e teorias de base, e podem, de maneira independente, reproduzir e confirmar a validade do resultado em questão. Ora, se se aplica essa ideia de cientificidade para a filosofia, o que é que se encontra? Segundo Husserl, praticamente o oposto do que ocorre nas ciências estabelecidas. Na filosofia, tudo parece estar em disputa; não há conteúdo teórico nem procedimentos de pesquisa amplamente aceitos. Cada escola, ou pior, cada autor apresenta sua própria visão de mundo, e a apresenta segundo critérios particulares de validade, os quais, sem serem aceitos pela maioria dos outros autores, não se diferem, por fim, de opiniões pouco justificadas, ainda que altamente complexas. Aquilo que um autor pensa estabelecer de modo claro e preciso é recusaEnsaios de Filosofia em homenagem a Carlos Alberto R. de Moura

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do por outros em polêmicas intermináveis. Assim, segundo essa ideia de cientificidade como conhecimento atestável intersubjetivamente, parece fácil concordar com Husserl: a filosofia, em sentido amplo, não se realizou como ciência rigorosa. Não vou aqui problematizar a fundo essa segunda constatação de Husserl. Ela parece exprimir uma impressão relativamente comum daqueles que se dedicam à filosofia: a de que ao menos os grandes sistemas filosóficos parecem condenados a um conflito insolúvel, visto que partem de pressupostos diferentes e desenvolvem suas teses com critérios gerais de validade não obviamente compatíveis. Se essa impressão resistiria a um exame mais minucioso dos sistemas filosóficos, é uma questão que não tratarei aqui. Importa somente notar que Husserl apela, como justificativa da tese da não cientificidade da filosofia, para esse reconhecimento geral de que há, e sempre houve, um conflito entre as grandes filosofias. O que eu gostaria realmente de problematizar é aquela primeira constatação de Husserl. Agora podemos retornar a ela e esclarecer por que ela não pode ser uma prescrição, mas deve mesmo ser uma constatação, uma observação não inventada por Husserl. “Desde os seus inícios a filosofia pretendeu ser ciência rigorosa”. Se esse enunciado for uma prescrição, se for mera opinião pessoal de Husserl, então ele não é uma boa apresentação da ciência rigorosa, pois vimos que nenhuma ciência se exprime por opiniões pessoais, por preferências privadas, etc. Esse enunciado deve ser uma constatação, quer dizer, uma afirmação que pode ser comprovada objetivamente; do contrário, ele negaria aquilo mesmo que ele pretende veicular. Cabe aqui esclarecer com mais detalhe esse problema. O enunciado inicial de PSW apresenta o ideal de ciência rigorosa como guia da filosofia, e vimos que segundo aquilo que caracteriza a cientificidade os enunciados devem ter sua validade confirmada intersubjetivamente. Assim, esse mesmo enunciado, se Husserl pretende mesmo estar falando em nome da ciência rigorosa (se pretende mostrar o caminho para finalmente realizá-la na filosofia), deve então ser formulado segundo o critério de

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cientificidade aqui em questão. E esse critério exige validade objetiva (intersubjetivamente fundada) para além da mera opinião pessoal. A constatação “desde seus inícios a filosofia pretendeu ser ciência rigorosa”, se ela deve fazer parte do conteúdo teórico da filosofia enquanto ciência rigorosa (a qual Husserl pretende finalmente realizar), deve então ser formulada de modo objetivamente válido e não como uma mera preferência pessoal. Afinal, uma preferência poderia ser contraposta a outras (tais como “desde seus inícios a filosofia pretendeu revelar a magia do ser” ou “as energias cósmico-telúricas”, seja lá o que isso for), alimentando assim o conflito que tanto marca a não-cientificidade da filosofia. A constatação de que a filosofia almeja ser ciência rigorosa não deve ser uma opinião arbitrária, mas já deve exprimir esse caráter científico que ela mesma anuncia. Esse me parece o problema mais espinhoso enfrentado por Husserl na introdução de PSW: de que maneira apresentar o ideal de filosofia científica como um ideal objetivamente válido e não como mais uma opinião filosófica pessoal, o que, no caso, invalidaria o próprio critério da cientificidade como objetividade partilhada? Pretendo explicitar qual a estratégia de Husserl para deslindar esse nó.

4. Vimos que Husserl inicia PSW com a pretensa constatação de que a filosofia sempre pretendeu ser ciência rigorosa. Além disso, ele afirma que um dos critérios das disciplinas rigorosamente científicas seria a validade objetiva (a qual supõe partilha intersubjetiva) de um conjunto teórico mínimo e de procedimentos para adquirir mais conhecimentos a partir desse conjunto. Uma vez que esse critério exclui as opiniões e preferências pessoais (características que justamente marcam a não-cientificidade da filosofia existente), Husserl, caso almeje escrever em nome dessa filosofia científica e não de mais uma visão de mundo, deve então atribuir uma validade objetiva para suas próprias teses, inclusive para aquela que anuncia que desde os seus inícios a filosofia pretendeu ser ciência rigoroEnsaios de Filosofia em homenagem a Carlos Alberto R. de Moura

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sa. É preciso, assim, que a própria apresentação da filosofia como ciência rigorosa seja já científica. Esse é o problema que apresentei na seção anterior. Cabe agora perguntar como é que Husserl tenciona garantir esse caráter científico. Aqui eu me sirvo de uma pista dada por Wolfhart Henckmann4. Como nota esse autor, ao propor a filosofia como ciência rigorosa, Husserl não pretende apresentar uma ideia revolucionária, um novo paradigma que superaria todas as filosofias anteriores e tentaria se afirmar como o único verdadeiro. Husserl não pretende fundar um programa filosófico absolutamente novo, mas sim retornar às origens da filosofia e ali desvendar um processo do qual quer tomar parte, um processo que julga encontrar e não inventar. A posição de Husserl é então de retorno e explicitação de uma certa ideia que estaria na fundação da filosofia, que seria reconhecível em seus melhores momentos (embora não em todos os momentos do que comumente chamamos de filosofia) e que se deveria retomar. Já é possível vislumbrar a estratégia que Husserl vai assumir para resolver aquele espinhoso problema ligado à constatação inicial de PSW: trata-se de uma reflexão histórica acerca do sentido da filosofia. Ao buscar pela natureza de seu próprio trabalho filosófico, ao indagar-se pelo sentido da própria filosofia, Husserl pretende explicitar uma ideia fundante, uma ideia de conhecimento científico rigoroso que ainda exige realização, já que, conforme ele defende, em nenhuma época a filosofia se afirmou como ciência. É então com vistas à reconquista dessa ideia de filosofia científica rigorosa que Husserl retorna à fundação histórica da filosofia, e será a serviço dessa ideia que Husserl formulará o seu projeto filosófico. Assim, longe de pretender afirmar mais uma opinião na polifonia infernal dos sistemas filosóficos, Husserl almeja filiar-se ao desenrolar histórico da ideia original de filosofia, tornando os seus esforços filosóficos um capítulo na realização paulatina dessa ideia. O apelo à história tem assim o papel de justificar a própria ideia de filo-

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HENCKMANN, W. La filosofia como scienza rigorosa. Idee, n. 50-1, p. 17-32, 2002.

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sofia científica anunciada no início de PSW. Se a afirmação inicial desse artigo não é uma mera preferência pessoal de Husserl, é porque se deve dar o devido peso à locução adverbial “desde os seus inícios”. É aqui que se marca o caráter eminentemente descritivo e objetivamente válido do enunciado. A vontade de tornar-se “ciência rigorosa” é algo que se constata na história da filosofia; não é uma invenção revolucionária, não é marca de uma nova doutrina, mas sim o reencontro da filosofia atual com algo que os grandes filósofos sempre almejaram. É assim por meio do apelo a uma ideia originária de filosofia, a qual já continha a pretensão de rigor científico, que Husserl pretende garantir a objetividade da sua constatação inicial em PSW. Dessa maneira, Husserl claramente atribui um papel constitutivo à reflexão histórica na formulação de sua concepção geral de filosofia como ciência rigorosa. A própria formulação desse ideal, para evitar que contradiga aquilo mesmo que ele veicula, deve se apoiar em uma certa interpretação do desenvolvimento da filosofia, o que revela que já em 1911 o tema da história torna-se um componente indispensável para que Husserl justifique o seu projeto filosófico. Cabe notar que Husserl, em PSW, somente esboça qual seria essa história da filosofia em que seu projeto se insere. Como se sabe, trata-se de um tema que receberá muito mais tratamento nas décadas de 1920 e 1930. Em todo caso, a fim de esclarecer minimamente quais os componentes da ideia fundante de filosofia científica e como ela se desenvolveu nos grandes sistemas filosóficos clássicos, Husserl expõe, ainda na introdução de PSW, um rápido quadro histórico das filosofias que militaram em favor da realização da ciência rigorosa e daquelas que, por outro lado, se opuseram (voluntariamente ou não) a esse ideal. Vale a pena reconstruir os principais tópicos dessa história rapidamente contada por Husserl.

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5. Para seguir o quadro histórico apresentado na introdução de PSW, cabe primeiramente perguntar pela dinâmica que teria guiado a filosofia em sua pretensão de tornar-se ciência rigorosa. Segundo Husserl, trata-se de um movimento eminentemente crítico, no qual as propostas de uma escola são esmiuçadas posteriormente, e os pressupostos ingênuos ainda em vigor nessas reflexões iniciais são expostos e abandonados em reflexões ulteriores, nas quais a vontade de estabelecer uma investigação científica seria exercida de modo mais consciente. (Cf. PSW, p. 6). O movimento histórico de instauração da filosofia científica seria então marcado por certos momentos cruciais em que esse ideal é refinado por meio do abandono de alguns pressupostos que impediam sua realização prévia. Husserl distingue dois grandes momentos em que esse impulso crítico eleva o ideal de ciência rigorosa a um novo patamar: a virada socrático-platônica e a virada cartesiana, cujo impulso ainda se poderia reconhecer em Kant e Fichte. (Cf. PSW, p. 6). Lembremos que o elogio desses momentos privilegiados não significa o reconhecimento de que o ideal de ciência rigorosa aí se realiza. Devemos aqui nos lembrar da segunda constatação de Husserl, segundo a qual em nenhuma época a pretensão filosófica de tornar-se ciência se cumpriu. Trata-se, assim, muito mais de distinguir os momentos históricos em que a consciência crítica reorientou e refinou o ideal de filosofia científica, ainda que este não tenha sido realizado plenamente. Husserl não esclarece em PSW por que enfatiza aqueles dois momentos filosóficos em particular, mas dado o caráter crítico como marca do processo de paulatina realização da filosofia científica, é possível aqui formular uma hipótese que ofereça um pouco mais de estofo para a magra apresentação das viradas filosóficas nesse texto5. O

5 Tentarei atribuir um sentido crítico a esse desenvolvimento hipotético na última seção deste artigo.

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momento socrático-platônico recuperaria a pretensão de alguns pensadores ditos pré-socráticos de desvelar a totalidade do mundo como multiplicidade fenomênica fundada em princípios, quer dizer, passível de ser compreendida por um pensamento que busque o fundamento ou razão6. Essa pretensão não é senão a própria criação da ideia originária de filosofia como busca de entendimento da totalidade de eventos que compõem o mundo. Ocorre que essa ideia de um conhecimento universal teria passado por um refinamento por meio da dialética socrática, a qual almejava desvelar os princípios conceituais por meio dos quais se poderia compreender certa multiplicidade fenomênica em questão, princípios puramente inteligíveis, que não mais se confundiam com os elementos sensíveis elevados ambiguamente ao papel de fundamento (tal como ocorre com a água de Tales). Essa circunscrição de um domínio puramente inteligível como fonte de compreensão da multiplicidade mundana é aprimorado ainda mais com Platão, que proporia um conjunto de formas ou essências puras como fonte de nossa compreensão dos eventos particulares (e também como fonte da própria existência desses eventos). Haveria assim, nessa virada socrático-platônica, um ganho crítico em relação à tarefa da compreensão abrangente da totalidade do mundo por princípios, já que agora os princípios não seriam mais confundidos com o material sensível que se trata de compreender, mas deveriam ser apreendidos após o processo dialético de ascender dos exemplos sensíveis até as essências puramente inteligíveis. Husserl salta do momento socrático-platônico para o momento cartesiano, apresentado como segunda virada marcante na realização do ideal de ciência rigorosa. Com esse salto, Husserl parece sugerir que só se vai chegar a um novo nível de compreensão desse ideal na Modernidade. Aqui, Husserl parece se referir ao abandono da ideia de um reino transcendente de puras essências e à ênfase cartesiana em uma investigação

6 Que se considere, por exemplo, Tales, que postulava a água como princípio da totalidade indefinida de eventos mundanos. Ensaios de Filosofia em homenagem a Carlos Alberto R. de Moura

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das capacidades subjetivas como caminho para fundar um conhecimento científico seguro. Esse seria o impulso crítico moderno para a ideia de um conhecimento filosófico rigoroso: trata-se de criticar a ingenuidade platônica de buscar os princípios do conhecimento em realidades externas (as formas ou ideias) para então investigar a subjetividade como fonte de validade daquilo que é afirmado e conhecido como ser. Parece, assim, que ao mencionar as viradas platônica e cartesiana Husserl quer acentuar o movimento histórico de realização do ideal de filosofia rigorosa como um movimento de recuo crítico ou de explicitação de condições de possibilidade. Uma vez explicitado o mundo como totalidade de entes e eventos múltiplos em relação aos quais se pode dar uma explicação racional, recua-se de uma unidade explicativa ainda misturada com os elementos sensíveis (pré-socráticos) à pura forma ou ideia racional como princípio real (Platão), e daí para o sistema de capacidades subjetivas responsável pela validade do conhecimento daquilo que é (Descartes). A história da filosofia, tal como esboçada em PSW, seria marcada pela passagem temática da multiplicidade de eventos aos princípios explicativos, e desses princípios entendidos como realidades para as capacidades subjetivas que delimitam a amplitude do conhecimento válido. Após apresentar esse movimento, Husserl descreve, ainda na introdução de PSW, a degenerescência do impulso crítico com a herança hegeliana e o romantismo alemão em geral. Husserl reconhece no próprio Hegel uma pretensão de validade absoluta, embora sem a crítica da razão que tanto marcou as viradas fundamentais da história da filosofia. (Cf. PSW, p. 7). Porém, no hegelianismo ocorreria um enfraquecimento e uma falsificação do impulso para a constituição de uma filosofia científica. No que concerne à falsificação, Husserl a trata como uma consequência indireta do hegelianismo. Ele tem em vista aqui a reação dos cientistas naturais à especulação metafísica, reação que atribui cada vez mais força à interpretação naturalista das investigações filosóficas. Segundo essa interpretação, o âmbito daquilo em relação ao qual cabe uma explicação científica é o âmbito dos fatos naturais. Desse modo, exclui-se

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da esfera científica o domínio das idealidades, o que por si só desfigura o impulso por um conhecimento científico universal (e não meramente factual) presente na ideia originária de filosofia. (Cf. PSW, p. 7). Por sua vez, o enfraquecimento do impulso de constituição de uma ciência filosófica abrangente está diretamente ligado ao legado hegeliano. Hegel atribuiu bastante peso ao caráter histórico das filosofias, que sempre exprimiriam as circunstâncias e os problemas de seu tempo, aí estando circunscritas. No entanto essa ênfase era contrabalançada por sua tese do desenvolvimento ordenado dos sistemas filosóficos, como que em graus crescentes de maturidade, que apontaria para um sistema filosófico final que recolheria todas as manifestações filosóficas do passado em um grau máximo de autoconsciência. Essa última tese teria sido abandonada pelas gerações subsequentes de hegelianos, embora elas ainda mantivessem a primeira. Dessa maneira, eles consideravam as filosofias como eminentemente ligadas a uma configuração histórica e como tendo seu potencial explicativo limitado por essa configuração; mas não aceitavam mais uma progressão das filosofias rumo a um sistema universal que conteria tudo o que era verdadeiro nas doutrinas anteriores. Forma-se assim o historicismo, que enfraquece o ideal de ciência rigorosa ao acentuar a relatividade histórica de todos os ideais. (Cf. PSW, p. 7). É assim então que Husserl apresenta, de maneira extremamente concisa, a sua reflexão histórica em PSW. Trata-se principalmente de apontar para uma ideia originária presente nos melhores momentos da filosofia e que perdeu sua força até que as vertentes naturalista e historicista ou a retomassem de maneira muito limitada e por isso mesmo falsificada (no primeiro caso) ou a desacreditassem e, por isso mesmo, a enfraquecessem. Diante desse quadro histórico, Husserl pretende retomar aquele impulso filosófico originário (tornar-se ciência rigorosa) e dar início a uma terceira virada crítica na história da filosofia rumo à realização da ideia fundante de filosofia. Longe de pretender criar um novo sistema filosófico, Husserl recupera algo que formaria uma base mínima consensual ao menos em alguns grandes momentos da história da filosoEnsaios de Filosofia em homenagem a Carlos Alberto R. de Moura

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fia: a própria ideia de ciência rigorosa, a qual, justamente por seu caráter objetivo validado pelos diferentes movimentos históricos que a desenvolveram para além de seus particularismos, escapa do risco de meramente veicular mais uma preferência pessoal na polifonia dos filósofos. Essa parece a solução de Husserl ao problema da validação objetiva do seu projeto de fazer da filosofia uma ciência rigorosa. Cabe agora avaliar quais os limites dessa solução.

6. Na introdução de PSW, Husserl apresenta sumariamente quais seriam os momentos privilegiados da história da filosofia em que a ideia de ciência rigorosa teria sido ao menos parcialmente realizada. Eu tentei hipoteticamente suplementar um pouco mais a magra apresentação ali contida, e o caráter obviamente discutível do meu esforço na seção anterior é o que justamente vai me servir de ocasião para discutir alguns dos problemas presentes na solução husserliana. Eu defendi que Husserl atribui validade objetiva à sua constatação de que a filosofia sempre pretendeu ser ciência rigorosa por meio de um apelo a certos momentos cruciais da história da filosofia, em que esse ideal de rigor científico teria sido forjado e refinado criticamente. O caráter histórico desse ideal garantiria que não se trata aqui de uma mera opinião pessoal de Husserl, a qual poderia ser equiparada a outras opiniões pessoais acerca da filosofia, mas sim de um elemento essencial da própria filosofia, que se deve recuperar e aprimorar. No entanto, Husserl está aqui claramente supondo um acesso não problemático àquilo que se caracterizaria como objetividade histórica. Na verdade, o que ele oferece para tentar atribuir validade à constatação inicial de PSW é uma interpretação da história da filosofia, a qual poderia ser contraposta a outras interpretações possíveis dos mesmos períodos e autores mencionados por ele. Husserl apela à história para evitar que sua proposta de filosofia científica seja tomada como mais uma opinião no

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conflito interminável das filosofias; mas ele parece não notar que o risco de conflito reaparece no nível em que se pretende solucioná-lo, ou seja, no nível da história da filosofia. Afinal, a história da filosofia não é um âmbito totalmente pacífico em que há consenso sobre o sentido dos principais movimentos filosóficos e das pretensões dos seus autores (justamente aquilo a que Husserl apela: a pretensão de ser ciência, que teria animado a filosofia desde seus inícios). Não há um modo unânime e objetivamente válido de reconstruir a história da filosofia, o qual poderia facilmente servir de justificativa para um projeto filosófico presente. Na seção passada, tentei oferecer uma rápida interpretação das principais viradas históricas mencionadas por Husserl, e isso justamente para corroborar sua tese. Mas é bastante provável que haja ali afirmações sumárias, considerações unilaterais e ignorância de aspectos importantes, em suma, limitações de minha narrativa que seriam facilmente apontadas por especialistas nos períodos em questão. Obviamente não é nem mesmo claro se Husserl concordaria com essa reconstrução hipotética das viradas filosóficas que ofereci. Mas ao menos essa reconstrução pretende mostrar que qualquer tentativa de interpretar o sentido e as pretensões dos principais autores da história da filosofia não será uma empreitada pacífica e reporá no nível da história a relatividade de opiniões que esse mesmo nível visava sanar. Há ainda, a meu ver, um segundo problema na estratégia de Husserl de garantir objetividade ao seu projeto de filosofia científica por um apelo à história. Trata-se de um expediente que Steven Crowell aponta nos textos tardios de Husserl sobre a história, mas que eu acredito já estar em ação em PSW7. Conforme o que eu reconstruí nas seções 3 e 4, Husserl julga retomar a história da filosofia a fim de ali encontrar o ideal da ciência rigorosa como um dado objetivo. Husserl pretende então distinguir certos momentos privilegiados (em que esse ideal foi criticamente desenvolvido) de outros momentos em que esse ideal foi enfraquecido ou mesmo

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Cf. CROWELL, S. Inventions of history. Human Studies, v. 29, n. 4, p. 463-475, 2006. Ensaios de Filosofia em homenagem a Carlos Alberto R. de Moura

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falsificado. Mas como saber se essa descrição da história da filosofia está correta? Bem, certamente Husserl pretende que ela corresponda ao modo como a história de fato se desenvolveu. Entretanto, os fatos são justamente aquilo que ele não menciona nem investiga de perto. Ele está interessado nas intenções gerais que guiaram os sistemas filosóficos e não nos arquivos históricos. Husserl não se refere a fatos comprovados, o que ao menos lhe garantiria alguma possibilidade de confirmar, de modo independente, a correção de sua interpretação. E uma vez que ele não apresenta nenhuma reconstrução detalhada dos fatos, a qual poderia validar sua interpretação, parece então que é necessário inverter a resposta à questão acima. Perguntei como saber se a descrição da história da filosofia proposta por Husserl está correta. A resposta sugerida por Husserl é que o ideal de filosofia científica se deixa explicitar no decorrer da história da filosofia. Mas dado que Husserl não oferece nenhum fato detalhado ou mesmo citação bibliográfica como prova de sua descrição, talvez se deva reconhecer que na verdade Husserl supõe de partida esse ideal e o projeta na história da filosofia para então ali distinguir uma ordem na multiplicidade de eventos, textos e discussões que tanto marca a história da filosofia8. Assim, longe de ser recolhido diretamente nos textos antigos, o ideal de ciência rigorosa seria ali projetado por Husserl, quer dizer, seria um critério já assumido por ele antes de investigar tais textos. Husserl não examina a história da filosofia como quem quer descobrir ali qual seria a ideia principal que guiou a maioria dos autores, e como quem a formula após muito trabalho historiográfico sobre os textos clássicos e os eventos ligados à sua produção. Ao menos em PSW, ele inicia anunciando que a pretensão primeva da filosofia é tornar-se ciência rigorosa, e então seleciona dois momentos históricos em que esse ideal teria sido elaborado. Mais do que extrair esse ideal desses momentos,

8 Tal como sugere Crowell, “a tentativa de Husserl de desvelar o telos genuíno da filosofia retornando à sua Urstiftung na Grécia já deve ser governada normativamente por intuição reflexiva; apenas assim ele será capaz de reconhecer, em todos os fatos do mundo antigo, o que conta como a Urstiftung”. (CROWELL, S. Op. cit., p. 472-3).

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Débora Cristina Morato Pinto, Luiz Damon Santos Moutinho, Marcus Sacrini, Monica Loyola Stival (Orgs.)

Husserl o lança sobre eles e os destaca com base em um critério prévio de cientificidade rigorosa. Ora, se é assim, se Husserl pressupõe de início o ideal de ciência rigorosa como guia para selecionar momentos privilegiados na história em que facetas desse ideal teriam sido esboçadas, então seu apelo à história é insuficiente. Vimos que a história recebia em PSW um papel proeminente, a saber, garantir a objetividade do projeto de construir uma filosofia científica em contraste com outros projetos filosóficos, que sem uma base intersubjetiva sedimentada historicamente somente representariam opiniões injustificadas desses autores. Mas Husserl não se preocupa em apresentar nenhuma evidência factual que corrobore sua interpretação histórica. Lembremos que, segundo a primeira dificuldade que eu apontei há pouco, ainda que ele apresentasse, essa evidência não estaria imediatamente isenta de receber diferentes interpretações. Mas o que é mais notável é que Husserl não apresenta nenhuma evidência factual, mas somente uma reconstrução esquemática de alguns momentos da história da filosofia. Ora, sendo assim, essa reconstrução parece supor exatamente aquilo que dela deveria ser derivado, a saber, o ideal de ciência rigorosa. O ideal é então um pressuposto que guia a reconstrução histórica e não um fruto dela extraído. Dessa maneira, a corroboração que tal ideal recebe da rápida incursão histórica apresentada na introdução de PSW não é suficiente para atribuir-lhe objetividade (o que exigiria um intenso trabalho historiográfico) e, em consequência, a estratégia geral de Husserl para atribuir caráter científico ao próprio projeto de apresentar a filosofia como ciência rigorosa não cumpre satisfatoriamente tal meta. É claro que em PSW a reflexão histórica de Husserl ainda é incipiente. Ele desenvolverá significativamente essa abordagem em vários cursos e manuscritos hoje acessíveis ao público na coleção Husserliana. Em todo caso, parece-me que alguns dos componentes principais do seu tratamento tardio da história, bem como algumas das suas fraquezas, já se encontram anunciados nesse artigo de 1911.

Ensaios de Filosofia em homenagem a Carlos Alberto R. de Moura

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