O papel da justiça na defesa dos direitos dos Refugiados

May 23, 2017 | Autor: Ana Rita Gil, PhD | Categoria: International Refugee Law, Direitos dos refugiados
Share Embed


Descrição do Produto

O papel da justiça na defesa dos direitos dos Refugiados

Ana Rita Gil
Doutora em Direito.
Investigadora do CEDIS, Centro de I&D em Direito e Sociedade,
da Faculdade de Direito da UNL





A atual lei de asilo portuguesa reconhece diversos direitos, quer ao requerente de asilo quer ao Refugiado, no respeito pela Convenção de Genebra sobre o Estatuto do Refugiado e pelas Diretivas da União Europeia emanadas no contexto da política europeia comum de asilo. O direito ao trabalho, à segurança social, ao reconhecimento das qualificações, à saúde, ao ensino, entre outros, enformam hoje de maneira inultrapassável o estatuto do refugiado. No entanto, a prática tem demonstrado que não basta a previsão ou atribuição de direitos ao indivíduo para se garantir um efetivo gozo dos mesmos. É necessária a previsão de mecanismos que permitam a efetivação desses direitos, e uma defesa dos seus titulares contra eventuais inércias ou eventuais arbitrariedades das entidades responsáveis, sejam elas a administração ou o legislador.
É neste ponto que assume especial relevo o papel dos tribunais enquanto guardiães dos direitos previstos na Constituição ou nos textos internacionais. Tal papel é particularmente relevante em conjunturas de crise e em que, em nome da salvaguarda de interesses como o equilíbrio das contas públicas ou a sustentabilidade do sistema da segurança social, os poderes públicos se podem sentir tentados a diminuir os direitos das pessoas. Por outro lado, é ainda particularmente relevante quando as pessoas em causa, como é o caso dos refugiados ou requerentes de asilo, não estão representados no processo democrático, não intervindo, assim, na feitura das leis. Por outro lado, por definição, tais pessoas não podem regressar aos seus países de origem, pelo que aos mesmos resta ficar dependentes da boa vontade do legislador democrático do país de acolhimento. Mas nesse país não podem ficar dependentes das opções políticas dos membros da comunidade ou das boas prá
´\ticas das instituições. De facto, o respeito pelos direitos humanos impõe-se a essa comunidade e instituições. Para a defesa dos mesmos restará, para além da atividade dos grupos dedicados à representação dos estrangeiros (como as associações de imigrantes ou refugiados), o recurso aos Tribunais, últimos garantes – inclusivamente para lá da lei – da defesa dos direitos humanos de todos.
O recurso aos tribunais é desencadeado através de ações de diferentes tipos, dependendo da pretensão em causa. Nos casos em que se pretende reagir contra uma atuação ilegal ou arbitrária levada a cabo pela administração, o meio de reação adequado é o recurso aos tribunais administrativos, para anulação de decisão ilegal e violadora dos direitos do refugiado, ou a uma ação destinada a obter a condenação da administração a emitir a decisão que os protejam devidamente. No que respeita a este último grupo de ações, importa referir a consagração, no Código de Processo dos Tribunais Administrativos, da possibilidade de se pedir uma intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, que consiste numa ação urgente. Esta ação pode revestir-se de particular importância nos casos em que um requerente de asilo se encontre arbitrariamente detido num aeroporto, por exemplo. Neste contexto, as associações destinadas à defesa dos direitos dos imigrantes e refugiados devem desempenhar um papel importante, já que têm legitimidade para intervir nos processos administrativos para defesa dos interesses que lhes incumbe prosseguir.
Já se em causa estiver uma lei, que, em si, não respeita os direitos fundamentais dos estrangeiros, restará recorrer ao recurso de fiscalização da constitucionalidade. Tomemos como exemplo a atual lei de asilo que, desde as alterações de 2014 não permite o reagrupamento familiar dos ascendentes de refugiados. Encontrando-se tal direito previsto na lei de estrangeiros, verifica-se que o legislador consagrou duas soluções diferenciadas – uma, para os refugiados, outra, para os imigrantes – às quais não preside qualquer fim social de relevo que o justifique. Assim, neste caso, o refugiado que pretenda o reagrupamento familiar dos seus pais deve invocar, perante o tribunal administrativo, a inconstitucionalidade da lei que não permite tal reagrupamento, assim abrindo as portas para um recurso para o Tribunal Constitucional.
Para funcionar como garante dos direitos fundamentais dos estrangeiros, o acesso à justiça tem, ele próprio, de ser também efetivo. Assim o exige a Constituição Portuguesa, quando consagra o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva (artigos 20 e 268/4), bem como diversos instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos (assim, inter alia, o artigo 6 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos). E é aqui que se manifestam inúmeros condicionalismos que se podem traduzir em verdadeiros entraves ao exercício dos direitos. É que, infelizmente, o acesso aos tribunais está ainda longe de ser fácil, rápido e prático. Tal acesso pode ser oneroso, já que é necessária a representação por advogado e o pagamento de custas judiciais. Depois, pode levar muito tempo. E, finalmente, na maior parte dos casos, os estrangeiros desconhecem totalmente os mecanismos judiciais existentes, bem como a forma de funcionamento dos mesmos. E é este talvez o principal obstáculo a um acesso à justiça efetivo.
Neste ponto, quer a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, quer a Diretiva da União Europeia em matéria de procedimento de asilo têm vindo a sublinhar a importância da prestação de informação completa e em língua que o destinatário perceba, quer das decisões que sejam tomadas quer do direito de recorrer das mesmas para os tribunais. No que respeita a este último aspeto, reveste o maior relevo o direito ao apoio judiciário, quer através do patrocínio por advogado, quer através da dispensa do pagamento de custas judiciais. O Tribunal Constitucional Português já teve, inclusivamente, oportunidade de afirmar por diversas vezes o caráter irredutível da garantia do apoio judiciário a requerentes de asilo. Seguidamente, tem-se afirmado ainda a obrigatoriedade de tradutor/intérprete idóneo, para que o refugiado possa acompanhar e participar devidamente no processo, sob pena de o mesmo se caracterizar por uma obscuridade kafkiana.
Por fim, alguns recursos terão de produzir efeitos suspensivos – implicando, assim, que a decisão em crise não produza efeitos até o tribunal decidir. Pense-se no caso de uma expulsão do território. De que servira o recurso aos tribunais se, enquanto o processo decorresse, a decisão de expulsão se pudesse efetivar – com risco, inclusivamente, para a vida ou integridade pessoal do expulsando? Neste ponto, é importante sublinhar que, mesmo nos casos em que tal efeito não derive da lei, a parte pode socorrer-se de uma providência cautelar para o efeito, assim evitando um dano decorrente de uma execução imediata da decisão contestada.
Muitos dos mecanismos mencionados como garantias são indispensáveis para a concretização do direito de acesso à justiça – um verdadeiro "direito a ter direitos", garante da efetividade de todos os direitos da titularidade dos refugiados. No entanto, estamos alinda longe de uma realização plena de tal "direito a ter direitos". A falta de celeridade dos processos judiciais, a falta de eficaz informação dos direitos e mecanismos, a falta de intérprete ou a ainda persistente falta de apoio judiciário aos estrangeiros em situação ilegal, fazem perigar o acesso aos tribunais, último reduto de que estes beneficiam para defesa daquilo que lhes é garantido pela Constituição e pelos instrumentos internacionais.
Só através de um efetivo acesso à justiça, poderão os estrangeiros em geral, e os refugiados em particular, deixarem de ser reféns da boa vontade ou da arbitrariedade administrativa ou mesmo legislativa e passarem a gozar, de pleno direito, os seus direitos.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.