O papel da sociolinguística na formação dos professores de língua portuguesa como língua materna

June 1, 2017 | Autor: Raquel Freitag | Categoria: Sociolinguistics
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Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino - Volume V

CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA E DA LINGUÍSTICA HISTÓRICA PARA O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA Organizadores Marco Antonio Martins Maria Alice Tavares

Natal, 2013

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE REITORA Ângela Maria Paiva Cruz VICE-REITORA Maria de Fátima Freire Melo Ximenes DIRETORA DA EDUFRN Margarida Maria Dias de Oliveira EDITOR Helton Rubiano de Macedo SUPERVISÃO EDITORIAL Alva Medeiros da Costa CONSELHO EDITORIAL Cipriano Maia de Vasconcelos (Presidente) Ana Luiza Medeiros Humberto Hermenegildo de Araújo Herculano Ricardo Campos Mônica Maria Fernandes Oliveira Tânia Cristina Meira Garcia Técia Maria de Oliveira Maranhão Virgínia Maria Dantas de Araújo Willian Eufrásio Nunes Pereira

REVISORA Marly Rocha Medeiros de Vargas CAPA Ismênio Souza EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Quatro Z Dois PRÉ-IMPRESSÃO Jimmy Free SUPERVISÃO EDITORIAL Alva Medeiros da Costa SUPERVISÃO GRÁFICA Francisco Guilherme de Santana

Divisão de Serviços Técnicos Catalogação da publicação na Fonte. UFRN/Biblioteca Central Zila Mamede

Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino , volume V - Contribuições da Sociolinguística e da Linguística Histórica para o ensino de Língua Portuguesa / Marco Antonio Martins e Maria Alice Tavares (organizadores). – Natal, RN: EDUFRN, 2013. 239 p. ISBN 978-85-425-0032-5 1. Palavra chave. 2. Palavra chave. I. Título. RN/UF/BCZM

2013/87

CDD 000.00 CDU 000.000

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN Av. Senador Salgado Filho, 3000 | Campus Universitário Lagoa Nova | 59.078-970 | Natal/RN | Brasil e-mail: [email protected] | www.editora.ufrn.br Telefone: 84 3215-3236 | Fax: 84 3215-3206

O PAPEL DA SOCIOLINGUÍSTICA NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO LÍNGUA MATERNA Edair Maria Görski Universidade Federal de Santa Catarina Raquel Meister Ko. Freitag Universidade Federal de Sergipe

Contribuições da Sociolinguística e da Linguística Histórica para o ensino de Língua Portuguesa

INTRODUÇÃO1 A Sociolinguística é o ramo da Linguística que estuda as relações estabelecidas entre língua e sociedade e seu resultado empírico: a diversidade linguística. Sob esse rótulo, com enfoque nessas relações, há diferentes abordagens, que vão desde a Teoria da Variação e Mudança ‒ a mais difundida no Brasil ‒ à Sociologia da Linguagem, Etnografia da Fala e Antropologia Linguística, cobrindo uma grande variedade de fenômenos na interface língua, cultura e sociedade, que têm atraído a atenção de pesquisadores e que podem, em muito, contribuir com a prática do professor de língua materna. Iniciamos nossa discussão apresentando o tratamento dado à diversidade linguística em documentos oficiais do Ministério da Educação (MEC) – Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do Ensino Fundamental e Médio e Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), 2011 –, que têm por objetivos balizar as ações pedagógicas e as escolhas de material didático do professor de Língua Portuguesa como língua materna. A partir desse levantamento inicial, tecemos reflexões acerca das contribuições da Sociolinguística para a formação do professor de língua materna, especificamente quanto aos seguintes aspectos: i) a relação entre a diversidade linguística (seus tipos e suas motivações) e as forças político-ideológicas (refletidas na mídia e em piadas, por exemplo) que 1

Assumindo uma postura sociolinguística, delimitamos a Língua Portuguesa como língua materna por reconhecermos que, no cenário brasileiro, ocorrem as seguintes situações: i) apesar de ser a língua oficial do Brasil, o português não é a língua materna de todos os brasileiros (a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seus artigos 210, 216 e 231 reconhece as línguas indígenas como formas legítimas de manifestação linguística e o direito ao ensino regular na sua língua materna para os indígenas; a Lei 10.346/02 reconhece a Libras – língua brasileira de sinais – como língua da comunidade surda brasileira ); ii) para os casos de brasileiros natos ou nacionalizados, cuja língua materna não é o português, o seu ensino se dá (ou assim deveria ser) como 2ª língua; e iii) ações de difusão da língua portuguesa (na sua variedade brasileira), na modalidade como língua estrangeira (PLE). Para cada uma dessas situações, os pressupostos sociolinguísticos devem estar presentes na formação e atuação do professor, porém com especificidades peculiares à finalidade de ensino.

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a controlam, enfocando a noção de norma linguística e a questão da identidade sociocultural; e ii) a descrição de fenômenos em variação e mudança no Português Brasileiro (PB) e o ensino da língua materna. Por fim, trazemos sugestões de propostas de trabalho em sala de aula, considerando as contribuições da Sociolinguística em consonância com as diretrizes dos documentos oficiais analisados.

1. O TRATAMENTO DA DIVERSIDADE LINGUÍSTICA EM DOCUMENTOS OFICIAIS Esta seção é destinada à apresentação de excertos extraídos dos documentos oficiais sob análise (PCNs e PNLD) em busca de referências à questão da diversidade, ao papel social da escola frente à heterogeneidade linguística e à orientação conceitual e metodológica acerca do trabalho com a gramática. Iniciamos nossa apresentação com a seguinte passagem, que contextualiza de modo significativo a diferença entre diversidade e desigualdade, situando o papel da escola em relação a essa questão: Para viver democraticamente em uma sociedade plural é preciso respeitar e valorizar a diversidade étnica e cultural que a constitui. Por sua formação histórica, a sociedade brasileira é marcada pela presença de diferentes etnias, grupos culturais, descendentes de imigrantes de diversas nacionalidades, religiões e línguas. No que se refere à composição populacional, as regiões brasileiras apresentam diferenças entre si; cada região é marcada por características culturais próprias, assim como pela convivência interna de grupos diferenciados. Essa diversidade etnocultural frequentemente é alvo de preconceito e discriminação, atingindo a escola e reproduzindo-se em seu interior. A desigualdade, que não se confunde com a diversidade, também está presente em nosso país como resultado da injustiça social. [...] A escola, ao considerar a diversidade, tem como valor o respeito às diferenças e não o elogio à desigualdade. As diferenças não são obstáculos para o cumprimento da ação educativa, mas, ao contrário, fator de seu enriquecimento (BRASIL, 1998a, p. 69; p. 92; grifo acrescido). 12

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No que se refere à Língua Portuguesa, entre os valores e atitudes subjacentes às práticas de linguagem, são listados os seguintes: i) Valorização das variedades linguísticas que caracterizam a comunidade dos falantes da Língua Portuguesa nas diferentes regiões do país. ii) Reconhecimento de que o domínio dos usos sociais da linguagem oral e escrita pode possibilitar a participação política e cidadã do sujeito, bem como transformar as condições dessa participação, conferindo-lhe melhor qualidade. iii) Reconhecimento de que o domínio da linguagem oral e escrita pode oferecer ao sujeito melhores possibilidades de acesso ao trabalho (BRASIL, 1998b p. 63-65). Como podemos notar nos itens do excerto acima, é evidente o cuidado com a formação do sujeito-cidadão, o que se percebe também na formulação do objetivo geral de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental: Espera-se que o aluno amplie o domínio ativo do discurso nas diversas situações comunicativas, sobretudo nas instâncias públicas de uso da linguagem, de modo a possibilitar sua inserção efetiva no mundo da escrita, ampliando suas possibilidades de participação social no exercício da cidadania (BRASIL, 1998b, p. 32).

Ainda nos reportando aos PCNs, o papel social da escola fica claro no postulado de que devem ser oferecidas condições para que o aluno desenvolva seus conhecimentos, sabendo: a) ler e escrever conforme seus propósitos e demandas sociais; b) expressar-se adequadamente em situações de interação oral diferentes daquelas próprias de seu universo imediato; c) refletir sobre os fenômenos da linguagem, particularmente os que tocam a questão da variedade linguística, combatendo a estigmatização, discriminação e preconceitos relativos ao uso da língua (BRASIL, 1998b, p. 59; grifo acrescido). O documento recomenda: i) que o desenvolvimento desses conhecimentos se dê mediante o trabalho articulado de duas instâncias: 13

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uso da língua oral e escrita ‒ com práticas de escuta e de leitura e práticas de produção de textos orais e escritos; e reflexão sobre a língua e a linguagem ‒ com práticas de análise linguística; ii) que as práticas de linguagem se deem em situações significativas de interlocução, e que as propostas didáticas tomem o texto (oral ou escrito) como unidade básica de trabalho, considerando a diversidade de textos que circulam socialmente e possibilitando a análise crítica dos discursos.2 Em relação à análise linguística (nosso foco de interesse aqui), o documento registra, entre outros objetivos de ensino, que se espera que o aluno: Seja capaz de verificar as regularidades das diferentes variedades do Português, reconhecendo os valores sociais nelas implicados e, consequentemente, o preconceito contra as formas populares em oposição às formas dos grupos socialmente favorecidos (BRASIL, 1998b, p. 52).

Quanto ao ensino de gramática, é interessante observar a discussão feita, pelo documento, acerca da necessidade, ou não, de ensinar gramática, discussão essa considerada como uma falsa questão. Conforme o próprio documento, “a questão verdadeira é o que, para que e como ensiná-la”.3 E “a referência não pode ser a gramática tradicional” (BRASIL, 1998b, p. 28). O ensino de gramática não deve ser descontextualizado, mas deve corresponder a uma práxis que parte da reflexão produzida com/pelos alunos. Nesse sentido, a questão da variação linguística tem fortes implicações para a prática pedagógica. Vejamos mais um excerto emblemático dos PCNs: A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa. Assim, quando se fala em ‘Língua Portuguesa’, está se falando de uma unidade que se 2

Entre os aspectos linguísticos mencionados para a análise do funcionamento da linguagem em situações de interlocução, e que podem ampliar a competência discursiva do sujeito, o documento destaca: “variação linguística: modalidades, variedades, registros” (BRASIL, 1998b, p. 36).

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A discussão sobre a necessidade ou não do ensino de gramática na escola é foco do livro de Possenti (1996) Por que (não) ensinar gramática na escola?. Do ponto de vista sociolinguístico, Ramos e Duarte (2003) discutem aspectos sobre o que ensinar de gramática.

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constitui de muitas variedades. Embora no Brasil haja relativa unidade linguística e apenas uma língua nacional, notam-se diferenças de pronúncia, de emprego de palavras, de morfologia e de construções sintáticas, as quais não somente identificam os falantes de comunidades lingüísticas em diferentes regiões, como ainda se multiplicam em uma mesma comunidade de fala. Não existem, portanto, variedades fixas: em um mesmo espaço social convivem mescladas diferentes variedades linguísticas, geralmente associadas a diferentes valores sociais. Mais ainda, em uma sociedade como a brasileira, marcada por intensa movimentação de pessoas e intercâmbio cultural constante, o que se identifica é um intenso fenômeno de mescla linguística, isto é, em um mesmo espaço social convivem mescladas diferentes variedades linguísticas, geralmente associadas a diferentes valores sociais (BRASIL, 1998b, p. 30).

Os PCNs fazem, também, menção aos mitos dos quais a escola deve se livrar: [...] o de que existe uma forma ‘correta’ de falar, o de que a fala de uma região é melhor do que a de outras, o de que a fala ‘correta’ é a que se aproxima da língua escrita, o de que o brasileiro fala mal o português, o de que o português é uma língua difícil, o de que é preciso ‘consertar’ a fala do aluno para evitar que ele escreva errado (BRASIL, 1998b, p. 31).

Atentando para a língua em uso, o documento reconhece que: [a] imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre ‘o que se deve e o que não se deve falar e escrever’, não se sustenta na análise empírica dos usos da língua (BRASIL, 1998b, p. 30).

Dentre as orientações didáticas específicas para o tratamento da variação linguística, os PCNs alertam para a necessidade de combate ao preconceito linguístico: Frente aos fenômenos da variação, não basta somente uma mudança de atitudes; a escola precisa cuidar para que não se reproduza em seu espaço a discriminação linguística [...]. A discriminação de algumas variedades linguísticas, tratadas de modo preconceituoso e anticientífico, expressa os próprios 15

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conflitos existentes no interior da sociedade. Por isso mesmo, o preconceito linguístico, como qualquer outro preconceito, resulta de avaliações subjetivas dos grupos sociais e deve ser combatido com vigor e energia. É importante que o aluno, ao aprender novas formas lingüísticas, particularmente a escrita e o padrão de oralidade mais formal orientado pela tradição gramatical, entenda que todas as variedades linguísticas são legítimas e próprias da história e da cultura humana (BRASIL, 1998b, p. 82).

Os PCNs alertam, ainda, que não está em jogo uma questão de “erro”, mas de “adequação” às diversas circunstâncias de uso: A escola não pode tratar as variedades linguísticas que mais se afastam dos padrões estabelecidos pela gramática tradicional e das formas diferentes daquelas que se fixaram na escrita como se fossem desvios ou incorreções. E não apenas por uma questão metodológica: é enorme a gama de variação e, em função dos usos e das mesclas constantes, não é tarefa simples dizer qual é a forma padrão (efetivamente, os padrões também são variados e dependem das situações de uso) (BRASIL, 1998b, p. 82).

Os PCNs destinados ao Ensino Médio destacam que o ensino da língua materna deve considerar a aquisição e o desenvolvimento de três competências: interativa, textual e gramatical. No terreno da competência interativa, o documento salienta que: • qualquer língua comporta um grande número de variedades linguísticas, que devem ser respeitadas; • as variedades são mais ou menos adequadas a determinadas situações comunicativas; • os rótulos ‘certo’ e ‘errado’ devem ser questionados; • a norma culta, variedade de maior prestígio social, deve ter lugar garantido na escola, mas não deve ser a única privilegiada no processo de conhecimento linguístico proporcionado ao aluno (BRASIL, 1998c, p. 75-76). Entre os procedimentos relativos ao desenvolvimento da competência gramatical, o documento ressalta aqueles que dizem respeito à variação linguística: 16

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• avaliar a adequação ou inadequação de determinados registros em diferentes situações de uso da língua (modalidades oral e escrita, níveis de registro, dialetos); • a partir da observação da variação linguística, compreender os valores sociais nela implicados e, consequentemente, o preconceito contra os falares populares em oposição às formas dos grupos socialmente favorecidos; • aplicar os conhecimentos relativos à variação linguística e às diferenças entre oralidade e escrita na produção de textos; • avaliar as diferenças de sentido e de valor em função da presença ou ausência de marcas típicas do processo de mudança histórica da língua num texto dado (arcaísmo, neologismo, polissemia, empréstimo) (BRASIL, 1998c, p. 82). Cabe ainda destacar, no âmbito dos documentos oficiais, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), por meio do qual o MEC promove a avaliação de obras oferecidas por editoras comerciais, apresentando aquelas aprovadas às secretarias de educação da rede pública de ensino, para que os professores realizem suas escolhas. A título de ilustração, no edital de convocação para inscrição no processo de avaliação e seleção de coleções didáticas (do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental) para o PNLD – 2011, entre os princípios e critérios de avaliação para o componente curricular Língua Portuguesa, constam: • o desenvolvimento de atitudes, competências e habilidades envolvidas na compreensão da variação linguística e no convívio democrático com a diversidade dialetal, de forma a evitar o preconceito e valorizar as diferentes possibilidades de expressão linguística; • o domínio das normas urbanas de prestígio, especialmente em sua modalidade escrita, mas também nas situações orais públicas em que seu uso é socialmente requerido (BRASIL, 2011, p. 52; grifo do original). É interessante observar o termo “normas urbanas de prestígio”, utilizado em vez de “norma culta”, acompanhado da seguinte nota: “é um termo técnico recente, introduzido para designar os falares urbanos 17

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que, numa comunidade linguística como a dos falantes do português do Brasil, desfrutam de maior prestígio político, social e cultural e, por isso mesmo, estão mais associados à escrita, à tradição literária e a instituições como o Estado, a Escola, as Igrejas e a Imprensa” (BRASIL, 2011, p. 52). No que se refere ao trabalho com a oralidade, o edital do PNLD/2011 pontua que caberá ao Livro Didático de Português “valorizar e efetivamente trabalhar a variação e a heterogeneidade linguísticas, situando nesse contexto sociolinguístico o ensino das normas urbanas de prestígio” (BRASIL, 2011, p. 54). E, entre os critérios relativos ao trabalho com os conhecimentos linguísticos, encontra-se: “considerar e respeitar as variedades regionais e sociais da língua, promovendo o estudo das normas urbanas de prestígio nesse contexto sociolinguístico” (BRASIL, 2011, p. 54). Podemos sistematizar, resumidamente, dizendo que os documentos oficiais que norteiam a prática pedagógica e a escolha de material didático para o ensino de língua materna apontam para: i) o reconhecimento de que a variação é constitutiva das línguas humanas, que são historicamente situadas; ii) o papel da escola diante da diversidade e da desigualdade, valorizando e legitimando todas as variedades linguísticas, e combatendo a estigmatização, discriminação e preconceitos relativos ao uso da língua; iii) as situações reais de interação como condição para que se dê o ensino da língua, contemplando, de maneira articulada, usos linguísticos (ouvir-falar, ler-escrever) e reflexão sobre a linguagem; iv) a importância da verificação das regularidades das diferentes variedades do Português e o reconhecimento dos valores sociais nelas implicados; v) o reconhecimento de que o domínio dos diferentes usos da linguagem amplia as possibilidades de participação social no exercício da cidadania; vi) o fato de que “o estudo da variação cumpre papel fundamental na formação da consciência linguística e no desenvolvimento 18

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da competência discursiva do aluno, devendo estar sistematicamente presente nas atividades de Língua Portuguesa” (BRASIL, 1998b, p. 82). Como podemos perceber, a proposta de ensino de Língua Portuguesa como língua materna é sustentada por pressupostos da Sociolinguística, o que corrobora a pertinência de nos debruçarmos sobre o papel desse campo do saber na formação dos professores. Na seção a seguir, apresentamos o que consideramos como conhecimentos sociolinguísticos essenciais ao professor de Língua Portuguesa como língua materna.

2. ALGUNS CONHECIMENTOS SOCIOLINGUÍSTICOS INDISPENSÁVEIS AO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO LÍNGUA MATERNA Como vimos na seção anterior, os documentos oficiais recomendam que, em termos amplos, é fundamental que o professor de Língua Portuguesa, como língua materna: i) assuma uma concepção de língua como sistema heterogêneo, historicamente situado; ii) reconheça que as variantes linguísticas portam significado social e que a avaliação dos falantes acerca das formas interfere nos rumos de uma mudança; iii) reconheça o papel da língua na identidade sociocultural de um grupo/comunidade; e iv) tenha noção de norma(s) linguística(s) e da motivação política da escolha de uma “norma padrão”. Em termos mais específicos, é recomendável que o professor: i) reconheça fenômenos em variação e mudança no PB nos diferentes níveis linguísticos, na fala e na escrita, nas diferentes regiões, em diferentes épocas; e ii) busque entender as motivações linguísticas e/ou sociais da variação/ mudança que envolvem esses fenômenos. Por que o professor precisa ter esses conhecimentos? Para que possa proporcionar aos alunos condições de observar fenômenos linguísticos variáveis, entender o seu funcionamento e perceber que o domínio de diferentes usos da linguagem, na fala e na escrita, amplia as possibilidades de participação social no exercício da cidadania. Organizamos esses conhecimentos em dois eixos: no primeiro, exploramos a relação entre a língua e o contexto sociocultural, com 19

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a noção de normas linguísticas e de que modo a diversidade linguística serve às forças político-ideológicas que permeiam a sociedade; no segundo eixo, nos detemos na questão da heterogeneidade linguística, explorando tipos e níveis de variação, especificamente no PB.

2.1. Relação entre a língua e o contexto sociocultural A língua é um fato social e veicula, além de informações referenciais, também significados sociais, estilísticos e culturais, expressos em modos de ação dos interlocutores refletidos em diferentes funções da linguagem. Quando falamos, exteriorizamos nossos pensamentos, sentimentos, atitudes e também revelamos a nossa identidade social e regional. O que entra em jogo aqui é a noção de contexto sociocultural, envolvendo tanto fatores de caráter interpessoal refletidos nas relações sociais entre os participantes de uma situação comunicativa – terreno da variação estilística; como as características associadas à estratificação social do falante (sua idade, sexo, grau de escolaridade, nível socioeconômico, etnia etc.) – terreno da variação social. Em seus primeiros trabalhos na área da Sociolinguística, Labov assumia a seguinte distinção entre variação social e variação estilística: i) variação social – “traços da língua que caracterizam vários subgrupos numa sociedade heterogênea”; ii) variação estilística – “alternâncias pelas quais um falante adapta sua linguagem ao contexto imediato do ato de fala” (2008 [1972], p. 313). O primeiro tipo de variação é relacionado à função expressiva, e o segundo tipo à função diretiva da linguagem. No que diz respeito à variação estilística, Labov (2003) reconhece que cada falante varia adequando-se ao contexto imediato do ato de fala, sendo as trocas de estilo determinadas: i) pelas relações do falante com o ouvinte ou a audiência, e particularmente pelas relações de poder e solidariedade entre eles; ii) pelo contexto social mais amplo, os domínios da escola, emprego, casa, vizinhança, igreja; iii) pelo tópico ou assunto. Mais recentemente, Labov (2010) reúne as funções expressiva e diretiva sob a denominação mais abrangente de função social, contrastando-a com a função representacional.4 O autor registra que estudos sociolinguísticos mostram que: i) a função 4

A função social recobre a variação social e/ou estilística, a qual presume a possibilidade de dizer ‘a mesma coisa’ de vários modos, o que vale dizer que as variantes (formas

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expressiva fornece informações sobre a identificação do falante (seu estado emocional, idade, sexo/gênero, etnia, status socioeconômico, identidade local); e ii) a função diretiva envolve acomodação à audiência, adequação ao grau de distância social, polidez e deferência, troca de estilo (cf. GÖRSKI, 2011). Como podemos ver, a identidade dos indivíduos é fortemente associada à linguagem; e a adequação desta ao contexto sociocultural requer que os falantes sejam capazes de efetuar escolhas linguísticas e de avaliá-las. Isso nos remete a duas grandes questões: a primeira concerne ao papel da língua na identidade sociocultural de um grupo/ comunidade e, atrelado a isso, ao significado social da variação e à avaliação dos falantes acerca das formas variantes; a segunda, diz respeito à noção de norma.

2.1.1. Identidade e valor social da variação É da natureza humana viver em grupos, que são formados pelos mais diversos critérios: idade (ex.: grupo de jovens, grupo da melhor idade etc.), hábitos e atitudes (ex.: emos, roqueiros, surfistas etc.), profissão (ex.: médicos, professores, artistas), e assim por diante. Podemos marcar nossa identidade pelo pertencimento a certos grupos sociais, como os exemplificados, ou a grupos regionais (ser potiguar, ser manauara, ser gaúcho, ser carioca, ser baiano etc.). Os membros desses grupos compartilham características e afinidades, traços de identidade, e, dentre eles, marcas linguísticas. Ao fazer parte de determinado grupo, compartilhamos com os pares a mesma linguagem, as mesmas atitudes em relação à língua, os mesmos hábitos socioculturais, e, assim, constituímos a nossa identidade, apoiada em valores de solidariedade e lealdade. Mas não é só nossa identidade que construímos por meio da língua. Exercemos a nossa cidadania por meio da língua. A língua faz parte de um conjunto de práticas sociais e culturais (GÖRSKI; FREITAG, 2007, p. 94).

alternantes) são idênticas quanto ao valor referencial (ou representacional), distinguindo-se, no entanto, quanto à significação social e/ou estilística.

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Os agrupamentos relacionados anteriormente estão associados a valores positivos vinculados à identidade sociocultural. Mas isso não é sempre assim. Por vezes, os indivíduos são discriminados justamente por pertencerem a determinados grupos sociais e/ou regionais e portarem as características identificadoras do grupo, entre elas a linguagem. Por exemplo: como costumam ser vistos os indivíduos que falam muié (em vez de ‘mulher’), brusa (em vez de ‘blusa’), chegano (em vez de ‘chegando’), nós pesca (em vez de ‘nós pescamos’), a gente compramos (em vez de ‘a gente compra’)? Normalmente são criticados por falarem “errado”, taxados de ignorantes, confundindo-se julgamento ao falante com julgamento à língua. O que está em jogo aí? Trata-se do que se chama de valor social das formas variantes, levando aos estereótipos linguísticos. Produto de avaliação social, os estereótipos constituem-se como marcas que representam a fala de indivíduos, de grupos ou classe de indivíduos. Nesse sentido, os estereótipos resultam da seleção de algumas formas – as mais frequentes, as mais salientes, as mais privativas – que, simbólica ou efetivamente, funcionam como índices de pertencimento social, regional, sexual, etário, etc (LABOV, 2008 [1972], p. 314).

Interfere fortemente no julgamento das formas e constituição dos estereótipos, o status social dos indivíduos que as utilizam e não as características linguísticas em si. Esse tipo de julgamento revela preconceito linguístico (que na verdade é preconceito social), normalmente por parte daqueles que dominam a variedade padrão da língua e que, coincidentemente, se situam nos pontos mais altos na pirâmide social. Rotular uma pessoa ou um grupo como ignorante, porque fala de uma forma e não de outra, é um mecanismo de afirmação e de perpetuação desse preconceito. Uma boa ilustração da questão do preconceito linguístico são as piadas. Do ponto de vista sociolinguístico, as piadas lidam com a ambiguidade, explorando casos de variação no sistema, refletindo igualmente concepções sociais, além de operarem com estereótipos linguísticos. As piadas são [...] quase sempre veículo de um discurso proibido, subterrâneo, não oficial, que não se manifestaria, talvez, através 22

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de outras formas de coleta de dados, como entrevistas. Outra face da mesma característica é que as piadas veiculam discursos não explicitados correntemente (ou, pelo menos, pouco oficiais) (POSSENTI, 1998, p. 26).

Vejamos a piada a seguir, extraída do site Piadas Online (variações da piada, com a troca do nome das personagens e/ou dos bens de consumo podem ser encontradas em outros sites): Durante uma aula de português, a professora pergunta: - Qual é o significado da palavra ‘óbvio’? Rapidamente, Carine, São Paulina, rica, uma das mais aplicadas alunas da classe, que estava sempre muito bem vestida, perfumada e bonita, respondeu: - Prezada professora, hoje acordei bem cedo, ao raiar do dia, depois de uma ótima noite de sono no conforto de meu quarto. Desci a escadaria de nossa residência e me dirigi para a copa onde era servido o café. Depois de deliciar-me com as mais apetitosas iguarias, fui até a janela que dá para o jardim de entrada e admirei aquela bela paisagem por alguns minutos, enquanto pensava como é agradável e belo o viver. Virando-me um pouco, percebi que se encontrava guardado na garagem o BMW pertencente a meu pai. Pensei com meus botões: “É ÓBVIO que meu pai foi ao trabalho de Mercedes”. Sem querer ficar para trás, Marquinhos, Palmeirense, de uma família de classe média, acrescentou: - Professora, hoje eu não dormi muito bem, porque meu colchão é meio duro. Mas eu consegui acordar assim mesmo, porque pus o despertador do lado da cama para tocar cedo. Levantei meio zonzo, comi um pão meio muxibento e tomei café. Quando saí para a escola, vi que o fusca do papai estava na garagem. Imaginei: “É ÓBVIO que o papai foi trabalhar de busão”.

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Embalado na conversa, Joãozinho, Curintiano, de classe baixa, também quis responder: - Fessora, hoje eu quase num durmí, purquê teve tiroteio até tarde na favela. Só acordei di manhã purquê tava morreno difome, mas num tinha nada pra cumê mesmo… quando oiei pela janela du barracão, vi a minha vó cum jornal dibaxo du braço e pensei: “É ÓBVIO qui ela vai cagá. Num sabe lê!” h t t p: // w w w. p i a d a s o n l i n e .c o m .b r / M o s t r a P i a d a s . asp?Diferencas-sociais Por que rimos da piada? Rimos da piada porque ela, como bem diz Possenti (1998), está pautada em valores não explícitos abertamente, calcados em estereótipos sociais. A classe alta está associada a um padrão de vida refinado e a um veículo de transporte que o revela, como o automóvel da marca Mercedes. A classe média, trabalhadora, está associada a um tipo de vida mais modesto e a um modo de condução coletivo, o ônibus. Já a classe baixa é marcada pelo fato de não saber ler. Observe-se o uso perverso dos estereótipos sociolinguísticos para produzir o efeito risível: a classe alta é representada linguisticamente pelo domínio da norma culta e pelo uso de um vocabulário rebuscado, literário, com alguns arcaísmos da variedade brasileira da língua portuguesa, como a colocação enclítica (deliciar-me). A classe média também é representada linguisticamente pelo domínio da norma culta, mas o uso de gírias (muxibento, busão) – associado a variedades – se faz presente. Já a representação linguística da classe baixa está associada à oralidade, o que é representado ortograficamente ( fessora, purquê, tava morreno difome etc.). Ora, será que as personagens das classes alta e média não falam “di” ao invés de “de”; “du” ao invés de “do”; “qui” ao invés de “que”; “dormi” ao invés de “dormir”? Possivelmente sim, já que estes são traços descontínuos do português brasileiro (BORTONIRICARDO, 2004). Por que então ressaltá-los apenas na classe baixa? Para ressaltar o estereótipo social de não escolarizado; é efeito do preconceito linguístico e do preconceito social. Vejamos esta outra piada, extraída do site Zé Bisteca, sob o título “assassinando o português”: 24

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O gerente de vendas recebeu o seguinte fax de um novo vendedor mineiro que começou a representar a empresa: “Seo Gomis, o criente de belzonte pidiu mais cuatrucenta péssa. Faiz favô di tomá as providenssa - Abrasso – Nirso” Aproximadamente uma hora depois recebeu outro: “Seo Gomis, os relatorio di venda vai xega atrazado proque to fexando umas venda. Temo que mandá treiz miu péssa. Amanha to xegando. Abrasso – Nirso” No dia seguinte: “Seo Gomis, num xeguei purcausa di qui vendi maiz deis miu péssa em Beraba.To indo pra Brazilha - Abrasso – Nirso” No outro: “Seo Gomis, Brazilha fexei 20 mir péssa. Vo pra Frolinoplis e de lá pra Sum Paulo no vinhão das cete hora. Abrasso – Nirso.” E assim foi o mês inteiro. O gerente, muito preocupado com a imagem da empresa, levou ao presidente as mensagens que recebeu do vendedor. O presidente, um homem muito preocupado com o desenvolvimento da empresa e com a cultura dos funcionários escutou atentamente o gerente e disse: – Deixe comigo que eu tomarei as providências necessárias. E tomou. Redigiu de próprio punho um aviso e afixou no mural da empresa, juntamente com os faxes que recebeu do vendedor: “A parti de oje nois tudo vamo fazê feito o Nirso. Si priocupá menos em iscrevê serto, mod vendê maiz. Acinado – O Prizidenti” http://www.zebisteca.com.br/4711/piadas/portugues/ assassinando-o-portugues Por que rimos desta piada? Se retomarmos os mitos do preconceito linguístico “As pessoas sem instrução falam tudo errado” e “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social” (BAGNO, 1999), construímos o estereótipo: escreve errado porque fala errado à fala errado porque não estudou à não estudou então é incapaz!

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Pesquisas (socio)linguísticas já evidenciaram que não há nada nas formas variáveis de uma língua que permita afirmar que umas são melhores ou mais corretas do que as outras. Todas as formas linguísticas que são frequentemente usadas são estruturalmente organizadas e atendem às necessidades de interação cotidiana, ou seja, apresentam eficiência comunicativa. O fato de que algumas são mais adequadas a certas funções comunicativas e outras se prestam mais a outras funções não é de natureza linguística ou gramatical, mas sociocultural, como veremos adiante. Outra ilustração exemplar dessa questão do preconceito é o episódio midiático, ocorrido recentemente, que ficou conhecido como a polêmica do livro didático.5 Nesse caso, estavam em jogo fenômenos de variação no âmbito da concordância, apresentados no capítulo intitulado “Escrever é diferente de falar” numa seção sobre “concordância entre palavras”. Em relação à concordância nominal, o pivô da polêmica foi a frase: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.” A explicação do livro didático é a seguinte: O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Reescrevendo a frase no padrão da norma culta, teremos: Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados. Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro?’.’ Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião (RAMOS et al., 2001, p. 15).

O livro Por uma vida melhor, motivo da polêmica, de autoria de Heloísa Ramos, Cláudio Bazzoni e Mirella Cleto, foi publicado em 2011 pela Ação Educativa, faz parte do PNLD e é destinado à EJA – Educação de Jovens e Adultos.

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Em relação à concordância verbal, foram alvo de polêmica as frases: “Nós pega o peixe” e “Os menino pega o peixe”, identificadas como sendo da variedade popular. De acordo com o livro, [N]os dois exemplos, apesar de o verbo estar no singular, quem ouve a frase sabe que há mais de uma pessoa envolvida na ação de pegar o peixe. Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala (RAMOS et al., 2001, p. 16).

Não vamos entrar na discussão ‒ que já mobilizou diversos meios de comunicação, associações e academias, políticos e jornalistas, gramáticos e linguistas ‒ apenas tecer um breve comentário a respeito de um trecho de uma entrevista do gramático Evanildo Bechara ao portal IG.6 iG: O livro didático de língua portuguesa Por uma vida melhor, da coleção Viver, Aprender, adotado pelo Ministério da Educação (MEC), dedica um capítulo ao uso popular da língua. Qual é a opinião do senhor? Evanildo Bechara: Em primeiro lugar, o aluno não vai para a escola para aprender “nós pega o peixe”. Isso ele já diz de casa, já é aquilo que nós chamamos de língua familiar, a língua do contexto doméstico. O grande problema é uma confusão que se faz, e que o livro também faz, entre a tarefa de um cientista, de um linguista e a tarefa de um professor de português. Um linguista estuda com o mesmo interesse e cuidado todas as manifestações linguísticas de todas as variantes de uma língua. A tarefa do linguista é examinar a língua sem se preocupar com o tipo de variedade, se é variedade regional, se variedade familiar, se é variedade culta. Ele estuda a língua como a língua se apresenta. Já o professor de português, não. O professor de português tem outra tarefa. 6

A crítica ao livro didático chegou a tal extremo de absurdo que vimos circulando na mídia textos como o seguinte: “O asceçor afirmou ainda que o Minestério não é dono da Verdade e o ministro seria um tirano se disseçe o que está certo e o que está errado. Que arjumento absurdo! Ele não tem que dizer nada. Tem é que ficar caladinho por causa que quem dis o que está certo é a Gramática. Até segunda ordem a Gramática é que é a dona da verdade e o Minestério que é da Educassão deve ser o primeiro a respeitar” (NOVAES. JB. Maio de 2011).

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Se o aluno vem para a escola, é porque ele pretende uma ascensão social. Se ele pretende essa ascensão social, ele precisa levar nessa ascensão um novo tipo de variante. Não é uma variante que seja melhor, nem pior. Mas é a variante que lhe vai ser exigida neste momento de ascensão social (iG, maio de 2011). Na resposta de Bechara fica evidente que, na opinião dele, os papeis de cientista (vale dizer, de pesquisador) e de professor não se devem misturar. Cabe ao professor, simplesmente, ensinar “a variante” que vai ser exigida do aluno no “momento de ascensão social”. A polêmica que envolveu o referido livro didático traz à tona o problema da avaliação social da língua. A atitude social pode ser um fator poderoso na determinação do curso de evolução de uma língua.7 O prestígio, ou o estigma, que uma comunidade associa a uma determinada variante tem o poder de acelerar, ou de barrar uma mudança linguística, de modo que as condições são favoráveis à mudança quando a forma é prestigiada no grupo e desfavoráveis quando a forma é estigmatizada, por exemplo. Assim, “os falantes podem acelerar ou reter processos de mudança linguística de uma comunidade, à medida que se identificam com eles ou os rejeitam” (COELHO et al., 2010, p. 104). Como podemos notar, o significado social das formas variantes está intimamente relacionado com a questão da identidade. É nesse sentido que dizemos que “[a]s diferentes formas que usamos ao falar e ao escrever revelam, de certa maneira, quem somos: dão pistas a quem nos ouve ou lê (i) sobre o local de onde viemos, (ii) o quanto estamos inseridos na cultura letrada dominante de nossa sociedade, (iii) quando nascemos, (iv) com que grupo nos identificamos, entre várias outras informações” (COELHO et al., 2010, p. 25). As formas variantes recebem valores distintos pela comunidade, e costumam ser identificadas como: variantes padrão e não padrão ou populares. Em geral, as variantes padrão tendem a ser conservadoras – integrando o repertório linguístico da comunidade há mais tempo – e são vistas como de prestígio (avaliadas positivamente); enquanto as variantes não padrão 7

No âmbito da Sociolinguística, o termo ‘evolução’ equivale a ‘mudança’. Não existe nenhum tipo de valoração associado; não está em jogo nenhuma avaliação positiva ou negativa: as línguas simplesmente mudam (nem para melhor, nem para pior).

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tendem a ser inovadoras na comunidade e são muitas vezes estigmatizadas (avaliadas negativamente). Ilustremos essas noções com exemplos. No português brasileiro (PB), temos uma variável linguística na expressão da primeira pessoa do plural, representada por duas variantes: nós e a gente. O pronome nós é a forma conservadora e o pronome a gente a forma inovadora (SN a gente, 3ª pessoa do singular > pronome a gente, 1ª pessoa do plural). Durante um bom tempo a gente carregava um certo estigma quando usado como pronome, sendo corrigido na fala/escrita dos alunos. Hoje, é uma forma aceita tanto na fala como na escrita, pelo menos na escrita mais informal. Existe uma correlação entre o aumento ou a disseminação do uso de uma dada variante e a diminuição do estigma a ela atribuído. Há certas formas que têm sua frequência de uso expandida para novos contextos, passando a ser bem aceitas pelo grupo (é o caso de a gente, por exemplo); há outras formas, pelo contrário, que sofrem uma certa retração, principalmente em função da ação da escola (alguns casos de não concordância, por exemplo, nós canta, a gente cantamos – a depender da região). Observem-se as seguintes construções: (a) Tu vai no cinema? (b) A gente vamos no cinema. (c) Nós vai no cinema. (d) Tu vai ir no cinema? Poderíamos fazer um teste de avaliação dessas frases para medir o grau de aceitação de cada uma delas. Nas três primeiras, ocorre um mesmo fenômeno gramatical: a não concordância entre o verbo e o pronome sujeito (nem estamos considerando a regência ir em em vez de ir a). Entretanto, o nível de aceitação das três construções é diferente. As pessoas, a depender da região, tendem a aceitar mais naturalmente o uso de “tu vai” na fala, e a rejeitar o uso de “nós vai”. Se se trata do mesmo fenômeno linguístico, por que essa diferença de avaliação, nesse caso? Simplesmente porque o primeiro uso (tu vai) é mais generalizado entre os falantes do PB, independentemente do nível socioeconômico e mesmo do grau de escolaridade dos indivíduos. Já o mesmo não ocorre 29

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com o último exemplo (nós vai), que é de uso mais restrito, seja regional (região centro-oeste versus sudeste; zona rural versus urbana, por exemplo), seja social (menos versus mais esco­laridade, por exemplo). E o que dizer do exemplo (d)? É de uso generalizado no Rio Grande do Sul, mas evitado, rejeitado e até estigmatizado em outras regiões do Brasil. Novamente, entra em cena a noção de valor social das formas variantes. Nesse caso, interferem no julgamento das formas não só o status social dos indivíduos que as utilizam, mas também a frequência com que são usadas. Fechando esta subseção, pode-se dizer que o julgamento dos falantes, individualmente ou de grupos inteiros, com base em sua linguagem avaliada socialmente como “errada” ou “feia”, não só autoriza mas principalmente alimenta a exclusão social gerada pelo chamado preconceito linguístico, que, como vimos, é de fato preconceito social. O que se entende como língua, nesse casos, identifica-se com aquele ideal de língua prescrito em gramáticas de cunho tradicional e defendido em certos espaços na mídia. Essa questão tem relação com a noção de norma, abordada a seguir.

2.1.2. A noção de norma linguística O termo “norma” frequentemente provoca discussões acaloradas não só entre os estudiosos da linguagem mas também em outras esferas. O que nem sempre fica claro nessas discussões é que há, pelo menos, dois sentidos associados a esse termo: norma pode remeter tanto a preceito, ou seja, àquilo que é normativo; quanto à descrição de usos recorrentes, ou seja, àquilo que é considerado/tido como normal. Faraco (2008) faz uma distinção interessante entre norma culta8, norma padrão, norma gramatical e norma curta, que tentamos reproduzir brevemente a seguir. Norma culta – “conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de fala e escrita” (FARACO, 2008, p. 73). Trata-se de usos linguísticos socialmente prestigiados, vistos pelos falantes como pertencentes a uma variedade superior em relação às chamadas variedades 8

Faraco (2008) não distingue norma culta de norma comum e standard, tratando-as como “norma culta/comum/standard”.

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não padrão ou populares. Note-se que esse prestígio não decorre de propriedades gramaticais, ou linguísticas, mas de características extralinguísticas relacionadas a processos sócio-históricos: enquanto algumas variedades são socialmente avaliadas positivamente, outras recebem valoração negativa, podendo até ser estigmatizadas. Podemos aproximar essa noção de norma culta da noção de normas urbanas de prestígio, conforme o PNLD. Norma padrão – não é uma variedade da língua (como é a norma culta), mas “uma codificação relativamente abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir de referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos políticos de uniformização linguística” (FARACO, 2008, p. 75). Regulando explicitamente os comportamentos dos falantes, a norma padrão funciona como coerção social em busca de um efeito unificador e como uma “referência supra-regional e transtemporal” (p. 80). Faraco (2008) pontua que, no Brasil, a codificação da norma padrão – feita na segunda metade do século XIX por uma elite letrada conservadora motivada pelo desejo de viver num país branco e europeu –, não tomou como referência a norma culta brasileira de então, mas sim um certo modelo lusitano de escrita. Ainda segundo o autor, não se tratava de um esforço padronizador no sentido de unificação linguística, mas principalmente um projeto político de combate não só às variedades populares, notadamente rurais, mas também às variedades cultas faladas no Brasil. Nesse sentido, estabeleceu-se um padrão extremamente artificial, com excessos de lusitanismo, que não teve o efeito esperado sobre a língua usada no Brasil. Havia um fosso entre a norma padrão e a norma culta brasileira, ideologicamente marcado pela crença de que o brasileiro falava e escrevia mal o português – crença que ainda permanece entre os puristas “de plantão”. A reação a esse padrão imposto começa a ganhar força no século XX, com o movimento modernista, e alguns gramáticos passam a flexibilizar algumas dessas regras normativas, resultando no que Faraco denomina norma gramatical contemporânea. Norma gramatical – conjunto de fenômenos apresentados como cultos por gramáticos e dicionaristas contemporâneos, que reinterpretam preceitos da tradição gramatical. Entre esses autores, 31

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Faraco nomeia aqueles que foram ou são filólogos consagrados: Rocha Lima, Cunha e Cintra, Bechara (gramáticos) e os dicionários Aurélio, Houaiss e Luft. Os juízos acerca de certos usos da norma culta são ponderados: os autores mais recomendam do que prescrevem, e preferência é diferente de obrigatoriedade. Um dos pontos que julgamos mais interessante na discussão de Faraco (2008) é o fato de que, apesar de os instrumentos normativos (a norma gramatical) registrarem usos da norma culta brasileira, geralmente com base em escritores consagrados, e apesar de incontáveis estudos descritivos sistemáticos dessa norma,9 ainda perdura a condenação, por alguns puristas, de usos que são amplamente difundidos na norma culta brasileira e abonados pela norma gramatical. A essa norma, que desconsidera, arbitrariamente, tanto a norma culta (uso efetivo da língua pela parcela letrada da população) como a norma gramatical (instrumentos normativos), Faraco chama de norma curta. Norma ‘curta’10 – “conjunto de preceitos dogmáticos que não encontram respaldo nem nos fatos, nem nos bons instrumentos normativos, mas que sustentam uma nociva cultura do erro e têm impedido um estudo adequado da nossa norma culta [...]; são repetidos como se fossem verdades absolutas e são tomados como justificativas para humilhar, constranger e prejudicar as pessoas” (FARACO, 2008, p. 94). Exemplificando: Digamos que alguém queira saber a regência do verbo namorar. Consultando o dicionário do prof. Luft, vai encontrar a informação de que este verbo pode ser transitivo direto (Maria namora um estudante de medicina) ou transitivo indireto (Maria namora com um estudante de medicina). E o prof. Luft acrescenta:

Notadamente, aqueles estudos realizados com base no Projeto NURC – Norma Linguística Urbana Culta; por exemplo, os diversos volumes da Gramática do Português Falado, resultado de projeto coordenado por Ataliba Castilho.

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Entre os defensores da norma curta, Faraco (2008) cita o gramático Napoleão Mendes de Almeida. Já à Academia Brasileira de Letras cabe “a responsabilidade legal de fixar a norma gráfica das palavras. Nada além disso”. (FARACO, 2008, p. 103).

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“A regência primitiva é de transitivo direto. Por isso, puristas condenam a regência ‘namorar com’... que, no entanto, é normal, de uso perfeitamente legítimo moldado em casar com e noivar com.” E abona esta afirmação com exemplos dos escritores José Lins do Rego e Bernardo Élis. As duas regências são, portanto, legítimas e próprias da norma culta/comum/standard. Essa mesma interpretação vamos encontrar nos dicionários Houaiss e Aurélio. Apesar disso tudo, autores que pensam as questões da norma culta/comum/standard sem se livrar do viés da norma curta ainda se sentem no direito de condenar o uso do verbo namorar como transitivo indireto (FARACO, 2008, p. 98). Faraco defende que, em casos de dúvida, a avaliação mais segura é aquela baseada na observação sistemática do uso: i) o uso da norma culta deve prevalecer em relação àquilo que é estipulado pelos instrumentos normativos (bons dicionários e gramáticas); ii) se houver divergência entre bons instrumentos normativos, os dois registros são válidos (uso variável); e iii) se houver conflito entre os bons instrumentos normativos e a norma ‘curta’, deve prevalecer o que está estipulado naqueles (FARACO, 2008, p. 107). A questão da norma ‘curta’ (padrão enrijecido) versus a norma culta (variedade efetivamente em uso) é bem ilustrada na seguinte passagem dos PCNs: [...] por exemplo, professores e gramáticos puristas continuam a exigir que se escreva (e até que se fale no Brasil!): O livro de que eu gosto não estava na biblioteca, Vocês vão assistir a um filme maravilhoso, O garoto cujo pai conheci ontem é meu aluno, Eles se vão lavar / vão lavar-se naquela pia, quando já se fixou na fala e já se estendeu à escrita, independentemente de classe social ou grau de formalidade da situação discursiva, o emprego de:

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O livro que eu gosto não estava na biblioteca, Vocês vão assistir um filme maravilhoso, O garoto que eu conheci ontem o pai é meu aluno, Eles vão se lavar na pia (BRASIL, 1998b, p. 31). Os fenômenos variáveis que provocam reações mais exacerbadas são aqueles que envolvem estigma em algum grau, casos em que se opõem claramente uma variante não padrão a outra padrão (ex.: os meninos saíram / os menino saiu). Nem todos os fenômenos em variação são, contudo, assim polarizados. Observe-se, por exemplo, as diferentes formas de representação do tempo futuro: (a) Sairei amanhã cedo. (b) Vou sair amanhã cedo. (c) Saio amanhã cedo. São três alternativas diferentes para expressar o tempo futuro em português. Nenhuma delas é estigmatizada. É possível que alguém considere a primeira como mais formal, mas dificilmente alguém dirá que (b) ou (c) sejam variantes não-padrão. Trata-se de um caso de variação no âmbito da norma culta (ou variedade padrão) do português. É devido ao caráter heterogêneo da norma culta, sobre a qual autores, como Marcos Bagno, preferem falar em “variedades cultas” (no plural), porque: Não existe um comportamento linguístico homogêneo por parte dos ‘falantes cultos’, sobretudo (mas não somente) no tocante à língua falada, que apresenta variação de toda ordem segundo a faixa etária, a origem geográfica, a ocupação profissional etc. dos informantes (BAGNO, 2002, p. 179).

O viés político-ideológico que permeia a sociedade brasileira, no entanto, valoriza a norma “curta”, confundindo-a com a própria língua. Exemplo do preconceito da mídia quanto à diversidade linguística e às orientações dos PCNs (que decorre da confusão entre os conceitos de norma e da concepção equivocada de que a gramática normativa é a língua) é uma reportagem da revista Veja – semanário de ampla circulação no Brasil e, por conseguinte, de amplo poder de formação de opinião – que trata das “leis absurdas que infernizam o dia a dia dos 34

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brasileiros”, como diz sua chamada de capa da edição 2236, de 28 de setembro de 2011.

Em sua reportagem, dentre as leis listadas, ao lado da lei que mudou o padrão de tomadas, por exemplo, está uma “lei” rotulada de “incentivo ao português errado”, conforme transcrição no quadro abaixo. INCENTIVO AO PORTUGUÊS ERRADO PARÂMETRO CURRICULAR NACIONAL DE 1997, DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Situação: em vigor. O que determina: os professores não devem corrigir a maneira de falar dos estudantes. O absurdo: o documento está ancorado em uma ideologia segundo a qual distinguir o certo do errado no ensino do idioma é “preconceito linguístico”. Diz o texto: “A escola precisa livrar-se do mito de que existe uma única forma de falar. É descabido treinar o uso formal da língua na sala de aula”. Descabido é formar crianças que serão preteridas no mercado de trabalho por não saber usar corretamente o idioma.

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Primeiramente, há um equívoco por parte da reportagem, ao rotular de Lei os PCNs, que são documentos de orientação curricular, e não de obrigação. Nenhum dos excertos apresentados na seção 1 permite que se faça a inferência da determinação da reportagem, de que os professores não devem corrigir a maneira de falar dos estudantes. O discurso de autoridade (a citação da “lei”) reportado – sem indicação de página – não é encontrado em nenhum dos textos que compõem os PCNs. Na citação atribuída ao documento, a primeira frase foi extraída da página 31 dos Parâmetros Curriculares Nacionais, terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa, versão de 1998 (“A escola precisa livrar-se do mito de que existe uma única forma de falar.”). A segunda frase (“É descabido treinar o uso formal da língua na sala de aula.”) é por conta do repórter... A conclusão, ou o “absurdo” da “lei” é que os PCNs formam “crianças que serão preteridas no mercado de trabalho por não saber usar corretamente o idioma”. Usar corretamente o idioma remete não só à concepção de norma “curta” nos termos de Faraco (2008), mas também à noção de língua como equivalente à gramática normativa, sem distinção de níveis de registro ou formalidade. À esteira do impacto do episódio do livro didático, mencionado na seção anterior, esta reportagem também teve a adesão da comunidade, que se manifestou favoravelmente aos seus preceitos. Tal comportamento indica que a educação sociolinguística ainda é falha no cenário brasileiro; daí a necessidade de consolidarmos os conhecimentos básicos da área para o professor de Língua Portuguesa como língua materna.

2.2. A heterogeneidade sistemática da língua A variação é um fenômeno inerente às línguas naturais, podendo ser sistematizada por meio da descrição de regras variáveis – regras que permitem usos alternativos de formas linguísticas expressando o mesmo valor referencial ou representacional, a “mesma coisa”. Dizemos, então, que a heterogeneidade linguística é estruturada: a língua comporta, ao lado de regras categóricas (aquelas que sempre são aplicadas), também regras variáveis. Cabe à Sociolinguística, mais

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especificamente à Teoria da Variação e Mudança Linguística, buscar desvendar o comportamento das regras variáveis da língua. As situações de variação podem perdurar por algum tempo na língua, configurando o que se chama variação estável (por exemplo, o fenômeno de concordância nominal no PB), ou podem ser solucionadas com o decréscimo de uso de uma das formas variantes e generalização de uso da outra forma (por exemplo, a substituição do pronome vós por vocês). Nesse caso, quando a variação de um dado fenômeno desaparece, temos um caso de mudança linguística implementada. O processo de mudança é lento e gradual nas línguas. Algumas vezes, é possível captar uma mudança em curso. Se observarmos que, sistematicamente, as pessoas mais velhas utilizam certas formas linguísticas e as mais jovens fazem uso de formas diferentes para expressar o mesmo significado, podemos estar diante de um caso de mudança em andamento: os falantes mais jovens utilizando mais as formas inovadoras e os mais velhos, as formas conservadoras. Mas só se tratará de mudança, de fato, se os mais jovens continuarem a empregar as formas inovadoras ao longo de sua vida; caso eles passem a usar, à medida que o tempo for transcorrendo, as mesmas formas utilizadas pelos mais velhos, então estaremos diante de um fenômeno de gradação etária, ou seja, cada geração apresenta características linguísticas que lhe são próprias e que se repetem a cada geração, sem se caracterizar uma mudança na comunidade. As gírias são um exemplo típico desses usos. Os estudos que controlam as diferentes faixas etárias buscando indícios de mudança são chamados de estudos em tempo aparente. Os fenômenos variáveis podem ser acompanhados ao longo do tempo. Nesse caso, trata-se de estudos em tempo real. Podemos ter acesso à escrita de séculos passados examinando documentos antigos, peças teatrais, romances etc., e compará-la à escrita atual. É assim que sabemos, por exemplo, como e quando as palavras você e a gente passaram de forma nominal de terceira pessoa a forma pronominal, entrando em competição, respectivamente, com tu (para referir a segunda pessoa singular do discurso) e com nós (para referir a primeira pessoa plural do discurso).11 O funcionamento dessas formas como pronomes 11

Para saber sobre a mudança sócio-histórica que envolveu os pronomes você e a gente, remetemos o leitor aos trabalhos de Faraco (1996) e Lopes (2007).

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provocou, além de uma alteração no paradigma pronominal do PB (pronomes sujeito, objeto e possessivos), também outras mudanças correlacionadas: o enfraquecimento do sistema de flexões verbais, decorrente da entrada de pronomes que se combinam com formas verbais de 3ª pessoa do singular (você canta, ele canta, a gente canta), instalando na língua, gradativamente, uma tendência ao preenchimento do sujeito pronominal, de modo a evitar possíveis ambiguidades referenciais. Outro tipo de estudo em tempo real é aquele em que se compara a fala de um mesmo indivíduo em diferentes épocas de sua vida, ou de diferentes indivíduos de uma comunidade mas com as mesmas características sociais – gravados em dois períodos com intervalo de cerca de 20 anos. Duarte (2003) examinou a representação do sujeito pronominal em amostras de fala carioca de dois períodos (década de 1980 e de 2000 – Projeto PEUL/UFRJ), encontrando um percentual de 80% de sujeito expresso em ambas as épocas. A autora conclui, com base nesse e em outros estudos, que “embora relativamente estável no espaço de tempo considerado, a mudança em direção ao preenchimento do sujeito prossegue lentamente” (DUARTE, 2003, p. 128). Omena (2003), examinando as mesmas amostras, analisa a referência à primeira pessoa do plural (nós e a gente). Controlando, além do ano da coleta de dados (tempo real), também a faixa etária dos informantes (tempo aparente), a autora constata que i) o percentual de uso de a gente versus nós é próximo a 80% no total dos dados de cada amostra; ii) a distribuição por idade aponta que, “com a passagem do tempo, os falantes vão adquirindo a forma mais antiga e mais prestigiada na escrita padrão ou usando-a mais frequentemente” (OMENA, 2003, p. 66). Segundo a autora, ao mudar de faixa etária, os falantes ajustam seu desempenho linguístico ao do grupo etário que passam a integrar, havendo uma situação de variação estável ao longo desses vinte anos. Em suma, a mudança que se iniciou no século XVIII com a inserção gradual da forma a gente no paradigma pronominal encontra-se ainda em processo e a forma inovadora (a gente) vai aos poucos ganhando o espaço de sua concorrente (nós). Ambos os estudos referidos acima atestam que a mudança é um fenômeno lento e gradual, podendo estender-se ao longo de séculos.

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Já que trouxemos piadas para ilustrar conhecimentos sociolinguísticos sobre os quais discorremos anteriormente, mantemos o padrão, desta vez enfocando a questão da ambiguidade decorrente de processos de variação. Vejamos a piada a seguir, intitulada “A diferença entre tu e você”: Sabem a diferença entre “tu” e “você”?  Aqui segue um pequeno exemplo, que ilustra bem essa diferença. O Diretor Geral de um Banco estava preocupado com um jovem brilhante Diretor, que depois de ter trabalhado durante algum tempo junto dele, sem parar nem para almoçar, começou a ausentar-se ao meio-dia. Então o Diretor Geral do Banco chamou um detetive privado do banco e disse-lhe: – Siga o Diretor Lopes durante uma semana, espero que ele não ande fazendo algo sujo. O detetive, após cumprir o que lhe havia sido pedido, voltou e informou: – O Diretor Lopes sai normalmente ao meio-dia, pega seu carro, vai a sua casa almoçar, faz amor com sua mulher, fuma um dos seus excelentes cubanos e regressa ao trabalho... Responde o Diretor Geral: – Ah, bom, antes assim. Não há nada de mal nisso. Logo em seguida, o detetive, querendo fazer se entender melhor, pergunta: – Desculpe. Posso tratá-lo por tu? – Sim, claro – respondeu o Diretor surpreendido. – Bom, então vou repetir – disse o detetive – O Diretor Lopes sai normalmente ao meio-dia, pega teu carro, vai a tua casa almoçar, faz amor com tua mulher, fuma dos teus excelentes cubanos e regressa ao trabalho... Fonte: http://www.recantodasletras.com.br/humor/2336532 Esta piada é baseada na ambiguidade da forma possessiva seu decorrente do processo de variação e mudança no paradigma pronominal do português (cf. ARDUIN, 2005). Para o diretor, a forma você é pronome pessoal de 2ª pessoa e a forma seu é pronome possessivo de 3ª pessoa; já para o detetive, a forma você é pronome pessoal de 2ª pessoa 39

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e a forma seu é pronome possessivo de 2ª pessoa: essa diferença entre os usos leva à ambiguidade. Em algumas variedades do português, a alternância tu/você marca relações de poder, com a forma tu reservada para relações de proximidade e de superior a inferior, e a forma você assinalando distância e relações de inferior a superior; daí o pedido de permissão de tratamento feito pelo detetive ao diretor. Se o detetive usasse a forma genitiva dele, acabaria a ambiguidade, e, consequentemente, a piada... Outra piada baseada na ambiguidade de regras gramaticais é a seguinte: O marido, ao chegar em casa, no final da noite, diz à mulher, que já estava deitada: – Querida, eu quero amá-la. A mulher, que estava dormindo, com a voz embolada, responde: – A mala... ah não sei onde está, não! Use a mochila que está no maleiro do quarto de visitas. – Não é isso querida, hoje vou amar-te. – Por mim, você pode ir até Júpiter, Saturno e até à merda, desde que me deixe dormir em paz... Fonte: http://www.osvigaristas.com.br Estudos sociolinguísticos têm demonstrado que o português brasileiro, quanto à colocação dos clíticos pronominais, vem se encaminhando para a próclise (clítico – pronome oblíquo – antes do verbo). Essa colocação difere, no entanto, da prescrição normativa e do padrão de colocação europeu, que é enclítico (clítico depois do verbo). Por que rimos da piada acima? A colocação pronominal do marido é enclítica; a da esposa certamente não o é, pois ela interpreta o pronome posposto como parte da palavra, transformando “amá-la” em “a mala” e “amar-te” em “a marte”. A incompatibilidade de gramáticas leva a uma crise conjugal, e ao riso os ouvintes da piada! A heterogeneidade sistemática ocorre em todos os níveis linguísticos: fonológico, morfológico, sintático, lexical e discursivo, e também em interfaces de níveis: morfofonológico, morfossintático, sintático-discursivo. A variação nesses diferentes níveis é exemplificada a seguir. 40

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No nível fonológico, podemos realizar certos ditongos tanto de maneira plena quanto reduzida, como em ouro/oro, peixe/pexe e baixo/baxo – nesse caso, trata-se de uma variação fonológica não estigmatizada, pois a redução do ditongo decrescente, particularmente o ditongo [ow], é amplamente realizada pelos falantes brasileiros, sem estar sujeita à “correção” na oralidade. Enquanto o ditongo [ow] não sofre restrição contextual, os ditongos [ey] e [ay] são mais reduzidos quando seguidos de consoante fricativa palato-alveolar (como em beijo e caixa); e o ditongo [ey] é ainda reduzido diante de /r/ fraco (como em dinheiro) (CABREIRA, 2000). No nível morfológico, os pronomes tu/você concorrem para designar a 2ª pessoa do singular; da mesma forma, nós/a gente, para referir a 1ª pessoa do plural. Ainda no terreno da morfologia, a realização do objeto direto pronominal se alterna entre o clítico o(a) e o pronome reto ele(a), como em: encontrei-o/ encontrei ele. No entanto, a identificação do nível gramatical em que ocorre a variação nem sempre é tão clara. A alternância na marcação de infinitivo dos verbos (andar/andá, beber/bebê, sair/saí etc.) é um fenômeno morfológico, já que está em jogo a realização ou não de um morfema verbal, no caso –r. Observem-se, no entanto, as realizações revólver/revolve – neste caso, o –r é parte do radical da palavra e representa apenas um fonema. Trata-se, pois, de um caso de interface morfofonológica. Também temos interface de níveis gramaticais nos casos de concordância verbal e nominal. Quando nos deparamos com uma forma verbal como canta, é somente com a identificação do sujeito que saberemos a que pessoa a forma está se referindo: você canta /tu canta /ele canta /a gente canta... Estamos, aqui, diante de uma variação na interface da morfologia e da sintaxe, pois é o pronome que carrega o significado número-pessoal do verbo. Em construções como as gata, que envolvem concordância nominal, a ideia de que se trata de mais de uma gata é dada pelo artigo que vem com a marca de plural – mais um caso de variação no nível morfossintático. No nível sintático, por exemplo, pesquisas sobre preenchimento do sujeito e do objeto anafórico têm apontado para uma mudança em curso no PB: de sujeito nulo (não expresso) para sujeito preenchido (expresso); e de objeto preenchido para objeto nulo. Tarallo (1990) 41

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detectou mudança em curso, ao longo do tempo, em direções opostas nos dois fenômenos estudados: Tabela 1- Porcentagem de preenchimento de sujeito e objeto direto em cinco momentos históricos (TARALLO, 1990, p. 140; adaptada).

Tempo 1725 Função sintática

1775

1825

1880

1982

Sujeito preenchido

23,3%

26,6% 16,4%

32,7%

79,4%

Objeto direto preenchido

89,2%

96,2% 83,7%

60,2%

18,2%

Os números da tabela mostram que, enquanto o percentual de sujeito preenchido vai subindo ao longo do tempo, a partir do início do século XVIII (23,3%) até o final do século XX (79,4%), movimento inverso ocorre com o objeto direto, que no início do século XVIII se apresentava bastante preenchido (89,2%) e no final do século XX se mostra pouco realizado (18,2%). Ambos os fenômenos, que são correlacionados, evidenciam mudança em progresso ao longo do tempo. No nível discursivo encontramos variação entre marcadores discursivos que desempenham diferentes funções. Por exemplo, na função de “requisito de apoio discursivo” se alternam sabe? e entende? (a) Olha, a impressão que eu tenho, ... sendo eu bancário, ... o Plano [Collor] pra mim num:: ... não resolveu nada, sabe? ... Apesar que estava tudo, né? numa hora da morte, ... e que agora a gente tem aquela esperança que os supermercados vão... congelar aquilo e vai ficar por muito tempo (FLP12MAG:122). (b) Mas ele deu sorte, que ele só queimou por cima, só queimou a pele. (est) Não teve [que]- aquelas queimaduras profundas, entende? Só queimou isso, é, só queimou assim ó, (est) como:: essas coisinhas aqui assim (FLP03MAP:942).

O uso dos marcadores sabe? e entende? pode servir aos seguintes propósitos: checar conhecimento ou compreensão do interlocutor, focalizar determinado(s) elemento(s) textual(is) com objetivos 42

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pragmáticos de ativar algo na memória do interlocutor ou de dar relevo a certas informações em relação a outras, ou ainda auxiliar na organização textual encadeando segmentos (VALLE, 2001). O funcionamento dos marcadores discursivos não é aleatório, podendo ser sistematizado. Não se trata, pois, de “vícios de linguagem”. Eles articulam segmentos textuais cumprindo diversas funções comunicativas. No nível do léxico, vem logo à mente exemplos como aipim/ mandioca/macaxeira, pipa/papagaio/pandorga com distintos traços regionais.

3. SUGESTÕES METODOLÓGICAS Antes de se pensar em algum tipo de proposta metodológica para o ensino de língua portuguesa, mais especificamente de gramática, convém retomar a opinião externada por Evanildo Bechara a respeito do polêmico livro didático (cf. 2.1.1). Vimos que esse gramático separa a tarefa do linguista/cientista da tarefa do professor, reservando apenas ao primeiro o estudo de todas as manifestações linguísticas e atribuindo ao segundo o dever de ensinar a variedade que vai dar condições ao aluno de ascensão social. É interessante contrapor essa opinião à de um gramático descritivo, Mário Perini: [...] é preciso trabalhar com a gramática como se trabalha com as ciências em geral. Apenas como início, sugiro a adoção de objetivos como os seguintes: [...] b) Assumir uma atitude científica frente ao fenômeno da linguagem. Isso significa admitir o questionamento, aceitar a necessidade de justificar as afirmações feitas e dar lugar à dúvida sistemática, e não à vontade de crer (que é a maior inimiga do espírito científico). Trabalhamos com fatos e teorias, e não com crenças e dogmas. c) Procurar atividades que envolvam a observação e eventual manipulação de fatos da língua, com o objetivo de construir hipóteses a respeito deles. [...]

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e) Apresentar a ideia, revolucionária para alguns, de que fazer gramática é estudar os fatos da língua, e não construir um código de proibições para dirigir o comportamento linguístico das pessoas. Esta tarefa é, de longe, a mais difícil de programar – muitas pessoas parecem resistir a isso com obstinação fanática [...]. Mas é a mais importante, e se não for vencida, as outras vão cair no vazio (PERINI, 2010, p. 39-40).

Enquanto à visão normativa, aqui exemplificada por Bechara, interessa principalmente reproduzir as regras da norma padrão, à visão descritiva, representada por Perini, importa observar e respeitar os fatos da língua e entender o seu funcionamento. Trata-se de habilidades que o professor de língua portuguesa deve, sim, colocar em prática na sala de aula. Então, em primeiro lugar, é preciso assumir uma atitude de investigador linguístico – não se concebe um professor que seja mero repetidor de informações ou repassador de conteúdos e que não seja também pesquisador – para que possa desempenhar de modo competente e criativo o seu papel no processo de ensino-aprendizagem da língua. Não está em discussão se o professor deve ou não ensinar gramática. É óbvio que sim! O problema é: que gramática ensinar e como ensinar. A gramática a ser sistematicamente ensinada é a das normas urbanas de prestígio (norma “culta”). Para isso, o professor precisa portar em sua bagagem conhecimentos acerca dessas normas que, como vimos, são heterogêneas em todas as instâncias de uso: no grau de formalidade do registro e na adequação aos domínios sociais e gêneros discursivos (associados à variação estilística), na modalidade falada ou escrita. Não é suficiente que o professor conheça apenas a dimensão tradicional da gramática normativa. Além disso, é importante que o professor conheça conceitos sociolinguísticos básicos para poder aplicá-los na compreensão das diferentes situações de variação e/ou mudança linguística que caracterizam o cotidiano linguístico dos falantes. O ponto que gostaríamos de realçar, contudo, é o que diz respeito ao como ensinar. Como ponto de partida, seria recomendável que o professor, numa postura despida de preconceito, contemplasse as características identitárias do grupo ao qual o aluno pertence: 44

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reconhecendo a realidade sociolinguística da sala de aula e da comunidade onde está atuando; observando se há mescla de dialetos evidente entre os alunos, seja dialetos regionais (urbano/rural, centro/periferia, nordestino/sulista, por exemplo), seja sociais (maior ou menor domínio da norma culta em decorrência de fatores sociais como o nível socioeconômico da família, por exemplo), seja decorrentes de contato linguístico (comunidades bilíngues) etc. É importante trabalhar explicitamente com essa realidade da sala de aula, enfatizando a questão da heterogeneidade linguística, comparando as variedades, contextualizando-as sócio-historicamente (distinguindo diversidade de desigualdade), e combatendo preconceitos entre os próprios alunos, sempre na direção da inclusão e não da exclusão social. Transformar a sala de aula em um “laboratório de linguagem” certamente contribuiria para que os envolvidos assumissem uma atitude científica diante dos fenômenos da linguagem, propiciando condições para “observação e eventual manipulação de fatos da língua, com o objetivo de construir hipóteses a respeito deles”, conforme citação de Perini, acima mencionada (GÖRSKI; COELHO, 2009). Por outro lado, a par de mostrar que não há razões legítimas para discriminação de falantes que usam variedades não padrão ou populares, os professores de português, por necessidades exigidas por nossa sociedade discriminatória, têm de explicitar a seus estudantes que certos usos variáveis são censurados em certas situações socioculturais.[...] (o professor) se tiver uma boa formação linguística, especificamente sociolinguística, deverá demonstrar, por exercícios, o valor social das variantes de um elemento variável no português do Brasil (MATTOS e SILVA, 2006, p. 282).

As sugestões a seguir são adaptadas dos PCNs (BRASIL, 1998b, p. 78-83) para a prática de análise linguística, contemplando particularmente questões de variação linguística.

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• construção de um corpus para que o aluno possa perceber o que é regular na língua, agrupando os dados a partir de critérios preestabelecidos e testando hipóteses;12 • transcrição de textos orais gravados, identificando recursos linguísticos próprios da fala, e edição de textos orais para que o aluno possa perceber algumas das diferenças entre a fala e a escrita; • análise da força expressiva da linguagem popular na comunicação cotidiana, na mídia e nas artes, analisando depoimentos, filmes, peças de teatro, novelas televisivas, música popular, romances e poemas; • levantamento das marcas de variação linguística ligadas a gênero, gerações, grupos profissionais, classe social e área de conhecimento, por meio da comparação de textos que tratem de um mesmo assunto para públicos com características diferentes; • elaboração de textos procurando incorporar na redação traços da linguagem de grupos específicos; • comparação entre textos sobre o mesmo tema, produzidos em épocas diferentes; • comparação de textos de um mesmo autor, produzido em condições diferentes (um artigo para uma revista acadêmica e outro para uma revista de divulgação científica); • análise de fatos de variação presentes nos textos dos alunos; • análise e discussão de textos de publicidade ou de imprensa que veiculem qualquer tipo de preconceito linguístico; • análise comparativa entre registro da fala ou de escrita e os preceitos normativos estabelecidos pela gramática tradicional. Além12dessas sugestões, outra estratégia didática interessante é o trabalho com projetos. Nesse sentido, a depender do nível da turma, é importante desenvolver projetos de pesquisa que levem o professor e os alunos a:

12

Ou consulta a bancos de dados linguísticos disponíveis, como o do Projeto VARSUL (Variação Linguística na Região Sul do Brasil), que pode ser acessado no sítio: http:// www.varsul.org.br; o do PEUL (Programa de Estudos do Uso da Língua), cuja amostra digital pode ser consultada em http://www.letras.ufrj.br/peul/index.html.

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i) identificar fenômenos de variação linguística, em diferentes níveis (lexical, fonológico, morfossintático, discursivo), presentes na sua comunidade; ii) entender o funcionamento desses fenômenos variáveis, mediante: a) a realização de pesquisa bibliográfica, investigando os trabalhos já realizados sobre o assunto, interpretando os resultados e compreendendo as etapas do trabalho até sua conclusão; b) a realização de entrevistas na comunidade; c) a construção e aplicação de testes de atitude etc.; iii) lidar conscientemente com as noções de “certo” e “errado” que perpassam tais fenômenos; iv) posicionar-se criticamente frente a situações de preconceito linguístico; v) trabalhar a questão da identidade cultural mediada pela língua (ao fazer parte de determinado grupo, compartilhamos com os pares não só a mesma linguagem, mas também as mesmas atitudes em relação à língua). (COELHO et al., 2010; COAN; FREITAG, 2011). Por fim, destacamos que o foco dos PCNs reside: nas práticas sociais, ou seja, nas situações reais de interação, como condição para que se dê o ensino de língua; em uma concepção de língua heterogênea; em um trabalho pedagógico que contemple usos linguísticos e reflexão sobre a língua; no uso da língua adequado aos propósitos comunicativos e demandas sociais; e no combate ao preconceito linguístico. Ao se pensar a questão da educação em língua materna, podemos vê-la como uma atividade, um trabalho entre sujeitos (educador – educando) por meio do qual se instrumentaliza o aluno para o exercício da cidadania, como preconizam os PCNs. A Sociolinguística desempenha significativo papel nessa empreitada, na medida em que traz os conceitos de diversidade e variedade, os quais permitem que o aluno amplie sua competência sociocomunicativa e cresça como cidadão.

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