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May 29, 2017 | Autor: Marcelo Lotufo | Categoria: Brazilian Studies, Brazil, Teoría Crítica, Dependency Theory, Roberto Schwarz, Crítica literaria
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Hispania, Volume 97, Number 4, December 2014, pp. 589-599 (Article)

3XEOLVKHGE\7KH-RKQV+RSNLQV8QLYHUVLW\3UHVV DOI: 10.1353/hpn.2014.0117

For additional information about this article http://muse.jhu.edu/journals/hpn/summary/v097/97.4.lotufo.html

Access provided by The American Association of Teachers of Spanish and Portuguese (5 Dec 2014 19:45 GMT)

O papel da teoria da dependência em Roberto Schwarz

Marcelo F. Lotufo Brown University Resumo: Este ensaio procura mostrar como os desenvolvimentos propostos pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso—conhecidos como teoria da dependência—e os desenvolvimentos propostos pelo crítico literário e cultural Roberto Schwarz—consolidados na formulação das “ideias fora do lugar”—se relacionam de forma intensa e são frutos de preocupações análogas. Ao relacionar criticamente e como contemporâneos o global e o local, ambos os autores dão novo sentido aos termos centro e periferia, colocando luz na real complexidade desta relação. A partir da ideia de desenvolvimento dependente, termo desenvolvido por Cardoso e Faletto, a leitura de Schwarz se torna mais simples e clara. A noção de desenvolvimento literário periférico a partir de formas centrais (europeias) se simplifica e possibilita que a literatura comparada (tanto do centro como da periferia) olhe para regiões antes menosprezadas, sem os preconceitos que marcaram sua trajetória; isto é, sem ignorar as inovações impostas por estes novos contextos e a histórica condição social de subdesenvolvimento que os marcam. Palavras-chave: center and periphery/centro e periferia, dependency theory/teoria da dependência, development and underdevelopment/desenvolvimento e subdesenvolvimento, Fernando H. Cardoso, Roberto Schwarz

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os últimos anos o interesse pela obra de Roberto Schwarz parece ter aumentado. Seu modelo para ler e compreender desenvolvimentos literários na periferia do capitalismo tem se mostrado cada vez mais influente nos debates contemporâneos e reverberado mundo afora. Suas contribuições podem ser vistas em campos diversos, como os estudos póscoloniais ou a literatura mundial. No ensaio “Misplaced Ideas? Locating and Dislocating Ireland in Colonial and Post Colonial Studies”, por exemplo, Joe Cleary lê literatura irlandesa e, mais especificamente, James Joyce, através da formulação das “ideias fora do lugar” de Roberto Schwarz, mostrando como a relação colonial entre Irlanda e Inglaterra também deve ser levada em conta ao se discutir a literatura destes países. Nos debates sobre literatura mundial (Weltliteratur ou world literature), através do texto “Conjectures on World Literature” do crítico italiano Franco Moretti, Shwarz aparece como um possível paradigma para se entender literaturas periféricas mundiais, indo além do caso brasileiro, seu interesse mais direto. Até mesmo no próprio Brasil, sua terra pátria, com a popularização dos estudos culturais de tradição anglófona, o interesse por Roberto Schwarz parece estar em ascensão, sendo visto através de novas perspectivas e abordagens. No XII congresso internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), maior encontro de literatura comparada do país, ocorrido em julho de 2011, Schwarz foi lembrado diversas vezes, com ênfase para a palestra de abertura enviada pelo pensador indiano Aijaz Ahmad e para a conferência magna da professora uspiana Sandra Vasconcelos, confirmando a importância do crítico para o debate contemporâneo. Ainda que este crescente interesse por um importante crítico brasileiro, através de diferentes debates e regiões, seja extremamente positivo e meritório, ele também levanta a questão de como Schwarz está sendo lido, contextualizado e historicizado. Se mesmo dentro do próprio Brasil, onde Schwarz é um nome conhecido de AATSP Copyright © 2014

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estudantes de letras, sociologia, e de interessados pela cultura em geral, o contexto no qual surge sua obra é relegado quase ao esquecimento, o risco da análise anacrônica e da leitura equivocada é ainda maior em contextos tão diversos como a Irlanda, a Índia e os Estados Unidos.1 Dentro da tradição crítica brasileira, Schwarz ocupa um lugar bastante peculiar, sendo parte, ao mesmo tempo, de uma tradição interdisciplinar local, da qual—na literatura—o crítico mais conhecido é Antonio Candido, e de uma geração cujo trabalho nasce ligado aos desenvolvimentos das ciências sociais na América Latina durante, principalmente, as décadas de sessenta e setenta, além de ter fortes relações com a filosofia alemã. Destes três aspectos principais, a relação do crítico com a sociologia da década de sessenta e setenta não tem recebido grande atenção da crítica. A obra de Roberto Schwarz nasce marcada por sua participação nos círculos intelectuais que fundaram o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), formado por intelectuais deslocados de suas funções acadêmicas pelo governo militar que dirigiu o país de 1964 a 1985, e pela leitura independente que estes intelectuais fizeram da realidade brasileira, sempre se contrapondo ao governo que os perseguia. A intenção deste ensaio é tentar fortalecer alguns dos vínculos existentes entre a produção de Schwarz e seu contexto de origem, entre seus escritos e o de seus pares, sem desmerecer as leituras que se têm feito dele, mas esperando contribuir para uma melhor compreensão e recepção de sua obra, respeitando—mesmo em tempos de globalização intensa—as especificidades históricas e geográficas deste crítico. Esperamos também que, a partir de uma melhor leitura e recepção de Schwarz, possamos colaborar para que literaturas periféricas possam ser, tanto no centro como na própria periferia, melhor compreendidas. “Always historicize!” escreveu Fredric Jameson em seu livro The Political Unconscious e isto não deveria ser limitado a trabalhos ficcionais, mas estendido também aos próprios críticos literários e culturais que os comentam. Mas qual é, exatamente, o contexto ao qual queremos relacionar Schwarz? Logicamente, outros recortes e relações podem ser estabelecidos (a relação de Schwarz com a escola de Frankfurt; ou com a obra de Antonio Candido, como já mencionamos). Nossa intenção, entretanto, é bastante modesta, pois o próprio Schwarz já situa seu trabalho na tradição de pensadores vinculados ao CEBRAP no final dos anos sessenta e início dos anos setenta e das movimentações que precederam o Centro. Foi durante as conturbadas décadas de sessenta e setenta, no Brasil, que um grupo interdisciplinar de intelectuais, seguindo iniciativa do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, revolucionou a maneira como desenvolvimento econômico era entendido, tanto no Brasil como no exterior, influenciando o discurso e as práticas da esquerda mundial. Cardoso, junto com alguns outros intelectuais latino-americanos, introduziu—em oposição às noções hegemônicas de desenvolvimento—a noção de dependência (ou desenvolvimento dependente). Enquanto as noções hegemônicas estabelecidas nos Estados Unidos após a segunda guerra mundial defendiam uma leitura a-histórica de desenvolvimento por etapas, no qual “o caminho para o desenvolvimento nacional era belo em sua simplicidade linear” e derivado “da história da Europa, dos Estados Unidos, da Rússia, da China e do Japão” (Saldaña-Portillo 28), Cardoso, junto com outros pensadores latino-americanos, questionava a existência deste caminho predeterminado e acreditava na complexidade dos processos socioeconômicos das regiões periféricas. Para ele, o então chamado terceiro mundo não estava em alguma etapa teleológica de desenvolvimento em direção aos países de primeiro mundo. O ‘atraso’ do terceiro mundo e, particularmente, da América Latina, não era uma etapa natural, mas uma condição estrutural contemporânea pertencente ao próprio capitalismo, uma condição com suas próprias especificidades históricas. Grosso modo, tal especificidade pode ser entendida como a existência de países em desenvolvimento dentro de uma economia capitalista globalizada,2 na qual países em desenvolvimento, subdesenvolvidos e desenvolvidos competem entre si por mercados e investimentos, uma nova situação que estabeleceria as condições de possibilidade e impossibilidade para o avanço destes países. Em outras palavras, olhando da periferia do sistema capitalista, desenvolvimento não aparentava ter uma simplicidade linear e nem ser um estágio temporário, mas sim uma posição estável e necessária para a manutenção do próprio capitalismo ­internacional. ­Subdesenvolvimento, para

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os teóricos da dependência, era uma necessidade estrutural do próprio capitalismo, no qual economias ditas desenvolvidas precisavam de mercados e economias primárias para manter suas próprias posições dentro do sistema. Subdesenvolvimento, assim, deixava de ser uma etapa para se atingir maior desenvolvimento, e se tornava uma condição necessária e integral do próprio sistema capitalista global; uma condição sine qua non para a existência das próprias economias desenvolvidas. A compreensão de subdesenvolvimento como uma contingência histórica específica de cada país e, ao mesmo tempo, como parte do capitalismo global levou estes autores a pensarem nas especificidades da periferia do capitalismo, em como suas condições econômicas e sociais poderiam ser compreendidas e, posteriormente, combatidas. Se nos limitarmos ao conhecido livro de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto sobre o tema, Dependência e desenvolvimento na América Latina, é possível perceber como o impulso em tratar subdesenvolvimento a partir de suas especificidades leva a uma maior preocupação com as peculiaridades da condição de cada país ou região específica do continente. Se para os teóricos tradicionais como Walter Rostow ou os participantes da conferencia de Breton Woods (1944) o foco estava nas próprias nações ricas, isto é, nos modelos desenvolvimentistas a serem seguidos, para Cardoso e Faletto o centro era a própria América Latina, entendida em sua diversidade e não como um bloco homogêneo a ser desenvolvido. O próprio índice do livro supracitado já aponta para a preocupação dos autores com ambos os aspectos globais do subdesenvolvimento e da dependência e para os aspectos específicos, particulares de cada país e região. Enquanto o livro começa com um capítulo intitulado “Análise integrada do desenvolvimento” (ênfase minha), ele termina por sugerir análises específicas para Argentina, Brasil, Uruguai, Colômbia, Chile, México, Bolívia, Venezuela, Peru e América Central, confirmando a convicção dos autores de que a América Latina e o fenômeno da dependência pediam para ser compreendidos também em suas peculiaridades, e não somente como grandes blocos. A questão do desenvolvimento, assim, passa a ser vista dialeticamente, isto é, levando em conta tanto os aspectos locais como os globais deste fenômeno, que passava a se mostrar em sua real complexidade. De acordo com Saldaña-Portillo, a importância dos teóricos da dependência reside exatamente no fato deles desestabilizarem “todos os critérios do discurso do desenvolvimento” (55). Para estes teóricos, ela continua: desenvolvimento e subdesenvolvimento eram simultaneamente modernos; subdesenvolvimento não era nem originário (precursor) e nem tradicional (arcaico); desenvolvimento não era nem autônomo nem racionalmente dependente . . . A teoria da dependência, ao perturbar o progresso natural em etapas da narrativa do desenvolvimento, desnaturaliza o desenvolvimento capitalista e desnacionaliza a teoria do desenvolvimento, insistindo numa análise verdadeiramente global. (55)

É importante ressaltar, entretanto, que teorias da dependência e subdesenvolvimento não formavam uma teoria homogênea e, nem mesmo, coesa. Dentro do horizonte traçado por Saldaña-Portillo existem posições diferentes e, às vezes, incompatíveis. É, entretanto, exatamente por existirem propostas conflitantes dentro do que se convencionou chamar de teorias da dependência e do subdesenvolvimento que, quando considerando os futuros modelos culturais propostos por Schwarz, como veremos a seguir, Cardoso se torna de grande interesse. Existem ao menos dois pontos que diferenciam Cardoso dos demais teóricos da dependência e que o aproximam do que Schwarz proporá posteriormente no âmbito cultural. Na América do Norte, teoria da dependência, por exemplo, é geralmente associada aos desenvolvimentos teóricos do economista alemão André Gunder Frank. Na América Latina e, mais especificamente, no Brasil, entretanto, os desenvolvimentos conhecidos por teoria da dependência nascem em parte como uma crítica à noção de desenvolvimento do subdesenvolvimento proposta por Frank. De acordo com Cardoso, a noção de Frank era mecânica e apontava para o subdesenvolvimento latino-americano como uma condição persistente, quase um ciclo vicioso, que só poderia ser

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rompido através de uma revolução. Ainda segundo Cardoso, “[n]essa noção mais mecânica, toda dependência assume a mesma forma, a da estagnação das forças produtivas, como uma condenação para a qual só haveria uma saída, a Revolução. Sem revolução, não se romperia a dependência e não haveria desenvolvimento” (Moura e Montero 31). De acordo com a noção de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, proposta por Frank, a América Latina, vista como periferia do sistema e como um grande bloco homogêneo, não teria como atingir desenvolvimento, mas somente como se subdesenvolver. Não haveria autonomia (ou semi-autonomia) na periferia e, portanto, desenvolvimento seria algo impossível. Para Cardoso, entretanto, tal noção contradizia a dinâmica real da economia e da sociedade na região, pois negava os avanços econômicos que aconteciam no período, mesmo que estes tivessem sido atingidos (em grande parte) sob regimes autoritários e antidemocráticos (Moura e Montero 31). Contra formulações engessadas como as de Frank, Cardoso e outros teóricos sulamericanos cunharam o termo desenvolvimento dependente. Para eles, mesmo que por suas particularidades históricas o desenvolvimento ocorrido na periferia do sistema capitalista tivesse uma natureza diversa daquele ocorrido no centro, ainda poderíamos (e devíamos) chamá-lo e entendê-lo como desenvolvimento. Parte do capital internacional que movimenta as economias periféricas terminaria por ficar nas mãos das elites locais, sempre presentes como mediadoras entre os capitais estrangeiros e os produtos e mercados nacionais. E, quando bem administrado, o capital acumulado localmente na periferia poderia ser revertido em real avanço econômico, mesmo que contrariando os interesses do capitalismo global, centrado sempre nas potências econômicas. O  cenário, quando considerada a existência de uma elite política e econômica local, que tenta se integrar ao capitalismo global de forma mais expressiva, se torna, na própria periferia, bastante dinâmico e complexo. Nas palavras de Saldaña-Portillo, quando comparado com a noção de desenvolvimento do subdesenvolvimento de Gunder Frank, “desenvolvimento dependente apresentava uma interpretação bem mais dinâmica do desenvolvimento capitalista na periferia, com uma complexa leitura dos interesses contraditórios existentes entre as burguesias estrangeiras e nacionais, estados militares e civis, e classes proletárias e camponesas” (54). A teoria da dependência formulada por Cardoso, quando comparada às world theories (aos trabalhos, por exemplo, de Immanuel Wallerstein ou Walter W. Rostow, para ficar com os nomes mais conhecidos) ou às teorias de desenvolvimento do período (ao próprio Andre G. Frank, ou a Samir Amin, que discutiremos mais adiante), se mostrava mais complexa, pois olhava para sua própria realidade de maneira dinâmica e semiautônoma e não somente como um apêndice das economias centrais. Para ele, existia uma possibilidade real de desenvolvimento para estas economias, mesmo que historicamente definido e, portanto, dependente. Desenvolvimento dependente, nos termos propostos por Fernando Henrique Cardoso, permitia que os avanços socioeconômicos da América Latina fossem, ao mesmo tempo, reconhecidos e criticados, sem que a região fosse trancada em um ciclo vicioso de subdesenvolvimento, que ignorava tanto a dinamicidade das relações sociais latino-americanas como os avanços econômicos atingidos no período. Consideradas também as relações sociais locais, a noção de subdesenvolvimento pedia uma leitura dialética, mais dinâmica, que considerasse tanto os aspectos globais como os locais deste fenômeno, tanto sua posição no capitalismo global como suas peculiaridades de país periférico. Outra contribuição de Cardoso e da teoria da dependência, que também os aproxima dos desenvolvimentos culturais propostos por Schwarz, é a maneira como política, para estes teóricos, possui um papel central no fenômeno econômico da dependência. “A noção de dependência”, escrevem Cardoso e Faletto, “alude diretamente às condições de existência de funcionamento do sistema econômico e do sistema político, mostrando a vinculação entre ambos, tanto no que se refere ao plano interno dos países como ao externo” (27). O próprio termo “dependência” alude, simultaneamente, a situação de dependência econômica da periferia e ao tipo de relação política que os países mais e menos poderosos estabelecem no cenário do capitalismo global. Relações de poder são um elemento crucial da dependência, pois definem não somente as

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relações internacionais que empurram estes países para a periferia, mas também, no nível local, como já vimos, a formação e propagação de uma elite que, a longo prazo, terá a possibilidade de reinvestir seus lucros e gerar, localmente, desenvolvimento, podendo inclusive superar sua condição subdesenvolvida. Mesmo no capitalismo global, investimentos internacionais teriam de passar pelas elites locais, obrigando países centrais a lidarem, para perseverarem como centros, com as relações de poder periféricas. Segundo Cardoso e Faletto: seria errôneo pensar que os novos fatores que condicionam o desenvolvimento, a política e a dependência externa circunscrevem-se ao âmbito do processo econômico, pois seria precipitado crer que a determinação econômica do processo político, a partir da formação de um avançado setor capitalista nas economias dependentes, permite ‘explicação’ imediata da vida política pelos condicionamentos econômicos. (114)

O avanço que Cardoso e Faletto representam para a teoria da dependência, a complexidade de suas ideias, além de sua importância para Schwarz, fica bastante claro quando o comparamos com Samir Amin, outro teórico da dependência, mas cujas preocupações centrais são a África e, mais especificamente, o Egito. Em seu livro Unequal Development, Amin levanta nove teses para o desenvolvimento de nações periféricas. Todas as nove, entretanto, são teses econômicas, preocupadas exclusivamente com o âmbito da produção e distribuição, sejam elas sobre o comércio internacional e os fluxos de capitais, a divisão internacional do trabalho ou a coexistência de diferentes modos de produção nas economias periféricas (Unequal Development 200–03). Política, cultura e ideologia não possuem papéis relevantes em seu modelo. Relações de poder e a existência de uma elite local, temas centrais para a noção de dependência proposta por Cardoso, não são levados em consideração na leitura de Amin. Em termos materialistas, aos quais ambos os autores, no período, se filiavam, Amin se ancora em uma noção de determinismo econômico, que relega política e cultura como secundários, menos importantes. Enquanto Cardoso, por sua vez, estabelece uma relação dialética entre a base econômica e os demais níveis superestruturais, como o político e o burocrático, fazendo da dependência um fenômeno mais dinâmico e complexo. Assim, com a noção de desenvolvimento dependente, Cardoso e Faletto abrem a possibilidade para que se relacione o fenômeno (a princípio) econômico da dependência com os demais âmbitos da sociedade, como o político e, mais importante ainda se pensarmos na relação de Cardoso com as ideias de Schwarz, cultural. Sem seus desenvolvimentos latino-americanos, dependência seria um fenômeno quase que exclusivamente econômico, distanciando-se da problemática cultural e política e, consequentemente, do próprio Schwarz. Durante os anos sessenta e setenta a teoria da dependência teve grande importância nos debates acerca do papel da periferia e de sua relação com o centro, tentando levar em conta a possibilidade de desenvolvimento e autonomia de cada região, mesmo dentro de um sistema global. E é neste período e meio intelectual que Schwarz se forma como crítico literário e cultural. A influência da teoria da dependência em sua obra, entretanto, não tem recebido grande atenção. A maneira mais fácil de estabelecer esta relação entre Schwarz e a teoria da dependência passa pela relação pessoal e contingente do crítico literário com a formação destas ideias e, mais especificamente, com o próprio Cardoso. Estudante de Sociologia na Universidade de São Paulo no final da década de cinquenta e início da década de sessenta, Schwarz foi aluno de Cardoso. Ademais, como é bem conhecido, Schwarz participara, a convite do próprio Cardoso e junto de outros jovens intelectuais uspianos como Paul Singer, Fernando Novaes, Arthur Gianotti, entre outros (Moura e Montero 24), do primeiro seminário sobre Marx realizado no contexto acadêmico do Brasil, espaço que fora um celeiro para as ideias que levariam à própria teoria da dependência.3 Para Schwarz, fora exatamente a partir do estudo d’O capital feito neste seminário que o interesse em relacionar as especificidades locais do Brasil com o capitalismo global (interesse de fundo da teoria da dependência) tomou forma. Para ele, este impulso por uma abordagem dialética da condição nacional periférica não fora uma iniciativa individual,

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mas “uma intuição coletiva” que, posteriormente, “foi dar na teoria da dependência e que teve repercussão mundial” (Moura e Montero 232). Para Schwarz, todos os integrantes do grupo de estudos d’O capital participaram e desenvolveram, em seus trabalhos individuais, aspectos diferentes do achado coletivo do grupo, que era “estudar as peculiaridades sociais, políticas e econômicas do Brasil—em especial as formas de exploração e dominação—e colocá-las, como mediadoras, no contexto do capitalismo mundial” (232). A relação entre este “achado coletivo” e as “ideias fora do lugar”, de Roberto Schwarz, é bastante clara e será tratada a seguir. O próprio Schwarz reconhece a importância dos desenvolvimentos da teoria da dependência e das discussões feitas em torno do seminário d’O capital para a sua formação intelectual: Meu trabalho se apoia nesses achados do seminário. Fui aluno atento dos meus professores, e aproveitei o que pude do Fernando Henrique, da Maria Sylvia, do Fernando Novais, do Giannotti, sem falar do Antonio Candido, que fazia algo muito diferente, mas parecido no fundo, especialmente em “Dialética da Malandragem”. (Moura e Montero 231–32)

Os desenvolvimentos da teoria da dependência tiveram presença marcante no debate intelectual brasileiro dos anos sessenta e setenta, se tornando quase um zeitgeist do período, quando os intelectuais da região tentavam levar em conta, simultaneamente, os atrasos sociais e políticos da região e o avanço econômico que acontecia sob os auspícios de ditaduras latino-americanas e do próprio capitalismo global. Independentemente da relação pessoal de Schwarz com Cardoso, se considerarmos que as contradições entre local e global apontadas pela teoria da dependência se baseavam na realidade da própria América Latina, estas mesmas contradições também deveriam estar presentes nos debates culturais do período.4 A realidade em questão era uma só; ou seja, diferentes intelectuais preocupados com a América Latina, cada um em sua área e campo específico, deveriam encontrar, mutatis mutandis, contradições semelhantes às encontradas por seus pares em outras áreas; daí a importância de um centro interdisciplinar de estudos brasileiros como o CEBRAP. De acordo com Schwarz, o salto que faltava para os estudos da cultura na América Latina e, mais especificamente, para os estudos da literatura durante o período era, exatamente, o salto entre local e global que, nas ciências sociais, fora proposto pela teoria da dependência. As diferentes literaturas nacionais eram, com raras exceções, tradicionalmente estudadas de forma isolada. “A historiografia da cultura”, diz Schwarz, “ficou devendo o passo globalizante dado pela economia e sociologia de esquerda, que estudam o nosso ‘atraso’ como parte da história contemporânea do capital e de seus avanços” (“Nacional por subtração” 47–48). Isolar o atraso local, ignorando sua relação com os avanços alhures, era o erro que Cardoso e outros tentavam corrigir com a teoria da dependência, e que, nos estudos da cultura, continuava inabalado. No âmbito da cultura, entretanto, e é esta a contribuição maior de Schwarz para o debate da dependência, a relação dialética e o impasse entre local e global se dão de uma forma bastante peculiar: a “da contradição entre realidade nacional e o prestígio ideológico dos países que nos servem de modelo”, ou seja, “o caráter imitativo de nossa vida cultural” (“Nacional por subtração” 30). Tradicionalmente, as elites brasileiras apontavam para a contradição entre a realidade local e seus próprios impulsos europeizantes como prova de atraso e da necessidade em se desenvolver para que atingíssemos o mesmo patamar de refinamento cultural das nações centrais; o mesmo nível da Europa que nos colonizara. Esta noção, entretanto, é uma noção alinhada exatamente com a ideia de desenvolvimento (social e econômico) contra a qual a teoria da dependência se propunha combater. Um país culturalmente atrasado precisaria se desenvolver, mirando atingir o nível de desenvolvimento e sofisticação das potências europeias centrais. O caminho já estava traçado e a nós restava segui-lo. O país atrasado, nesta perspectiva, estaria em uma etapa diferente de desenvolvimento da mesma linha teleológica que os países avançados. As elites e seus apoiadores ideológicos acreditavam que o atraso cultural do Brasil era gerado por inadequações locais—o que significa, sempre, limitações do povo local e

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nunca das próprias elites que o e­ xplorava—e que deveriam ser resolvidos através de 1) educar e civilizar as massas ao nível europeu ou 2) a criação de uma cultura local ‘original’ tão boa e elitista como a própria cultura europeia. Precisaríamos nos desenvolver, sendo o objetivo sempre igualar a avançada cultura europeia e nunca a valorização crítica das formas culturais locais. Para Schwarz, entretanto, não era o caso de simplesmente valorizarmos o local, como a estética romântica propusera no século dezenove, mas sim de, como a teoria da dependência propunha, ser capaz de ao mesmo tempo criticar nosso atraso e reconhecer nossos avanços; ser capaz de reconhecer nosso desenvolvimento sem ignorar nossa realidade ou nossa relação com as formas culturais já estabelecidas; isto é, reconhecer nosso desenvolvimento sem ignorar o seu caráter dependente. Não era o caso de simplesmente valorizar o índio e a floresta, mas sim de saber que, apesar do analfabetismo alarmante e do bacharelismo das elites locais, Machado de Assis veio a existir e a escrever no Brasil. Ou ainda, que é exatamente o nosso atraso, o favor e o cordialismo, junto à genialidade de Machado, que criaram as condições de possibilidade para que Memórias póstumas viesse a ser escrito no Brasil; ou que, não fora a simples cópia da vanguarda europeia que dera valor à poesia de Oswald de Andrade, mas a junção desta proposta estética com a nossa realidade atrasada de país cafeicultor e bacharel. As posições hegemônicas, entretanto, continuavam sendo as de, frente à contradição entre global e local, olhar para alhures em busca de solução. O caminho, para estes críticos, precisava sempre levar às formas já consagradas. Machado, assim, no descaminho mais célebre de nossa crítica (55–58; 78–85), se tornava imitação inglesa no Brasil e Oswald um gênio europeu que, apesar de brasileiro, se cultivara em Paris. O establishment cultural local mantinha seu foco na Europa, buscando encontrar o caminho mágico do desenvolvimento linear que nos levaria até o velho continente, esquecendo, assim, de atentar para as nossas próprias peculiaridades. Schwarz, por outro lado, propõe que as relações culturais entre centro e periferia sejam vistas como complementares e dinâmicas. As contradições propostas anteriormente eram falsas e ocultavam a verdadeira complexidade da cultura atrasada das periferias. Nesta, de acordo com Schwarz: as ideias da burguesia—cuja grandeza sóbria remonta ao espírito público e racionalista da Ilustração—tomam função de . . . ornato e marca de fidalguia: atestam e festejam a participação numa esfera augusta, no caso da Europa que se . . . industrializa. O quiproquó das ideias não podia ser maior. (Ao vencedor as batatas 18)

A ideia é bastante simples, mas com consequências das mais importantes. Ideias e convenções, assim como o próprio capital financeiro, viajam através de fronteiras geográficas, seguindo, principalmente, um fluxo que vai do centro para a periferia. Quando na periferia, entretanto, estas ideias encontram uma realidade social muito diferente da do centro onde foram produzidas, abandonando qualquer pretensão de correspondência entre o plano ideológico e a realidade social; pretensão que elas mantinham, ou tentavam manter, em seus lugares de origem. Daí o desconforto, real, sentido pelas elites europeizadas da América Latina. Ao mesmo tempo, entretanto, as ideias importadas do centro, para se estabelecerem na realidade periférica, adquirem novas formas e tomam direções não previstas anteriormente, o que, na prática, tende a relativizar seus significados originais. Por isso no Brasil, segundo Schwarz, “atribui-se independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio” (18). Enquanto largos setores das elites cultural, econômica e política brasileiras do século dezenove, por exemplo, acreditavam nos ideais da revolução francesa—isto é, liberté, egalité et fraternité—na prática, continuavam lucrando e dependendo do trabalho escravo e da desigualdade, colocando o plano das ideias em conflito direto e aberrante com a realidade social. E, se os franceses também mantinham escravos nas Antilhas ou no Haiti, ou exploravam a mão de obra proletária em Paris, no caso do Brasil, os escravos não só estavam na própria capital do país como também embalavam seus amos dentro da casa grande, dando um novo caráter à

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óbvia contradição entre o ideal libertário da Revolução Francesa e a opressão e exploração que marcam as relações sociais no sistema capitalista. Assim, como o desenvolvimento econômico, seu duplo cultural também precisava lidar com as realidades locais e globais. As ideias universais ou centrais, o que em si já é contraditório, para serem assimiladas na periferia precisavam antes passar pelas mediações das relações sociais locais. Da mesma forma que para Cardoso não era possível entendermos o desenvolvimento da periferia sem levar em consideração ambos o capitalismo global e a mediação local, para Schwarz os desenvolvimentos culturais na periferia dependiam tanto da tradição europeia já estabelecida como das condições particulares que estas ideias encontravam nestas novas regiões. Para Schwarz, portanto, a realidade cultural brasileira não era nem atrasada nem pré-­ européia, mas o resultado da posição específica que o país ocupava no sistema cultural e econômico globais: “não estávamos para a Europa como o feudalismo para o capitalismo, pelo contrário, éramos seus tributários em toda a linha, além de não termos sido propriamente feudais—a colonização é um efeito do capital comercial” (Ao vencedor as batatas 16–17). Assim como para a teoria da dependência, para Schwarz a chave para a compreensão da cultura na periferia residiria exatamente em compreendê-la, em seu próprio atraso, como contemporânea aos desenvolvimentos europeus. Não como atrasada, mas como parte de um sistema integrado, onde ideias e formas globais (ou europeias) são influenciadas e transformadas localmente. Ou seja, uma cultura desenvolvida em um contexto social particular, que oferece tanto limites como novas possibilidades; daí a construção das “ideias fora do lugar”, proposta por Schwarz, e bastante popular nos estudos da cultura brasileira, onde o crítico tenta entender o significado que as ideias liberais que surgiram a partir da revolução francesa tomaram no Brasil escravista do século dezenove (Ao vencedor as batatas 19). Formas europeias viajam para o Brasil, mas não encontram as mesmas relações sociais que em seus países matrizes, tendo de se adaptar, o que gera novos significados, muitas vezes contrários aos originais. A impressão superficial pode ser de atraso, mas, quando olhada tanto no contexto global como no local percebe-se que a cultura local convive com a global e que ambas são necessárias para a manutenção do status quo; que ambas as culturas atrasadas e avançadas estão muito mais próximas do que pode parecer. Desenvolvimento e subdesenvolvimento adquirem, também na cultura, um novo significado.5 A importância da teoria da dependência para Schwarz se torna ainda mais clara quando olhamos como ele relaciona sua análise cultural (“as ideias fora do lugar”) e a literatura brasileira. Em literatura, a desarmonia entre a realidade social local e as ideias estrangeiras se materializa como um desencontro entre os modelos formais europeus e o conteúdo social local, imposto a cada obra. Fiel à realidade observada (brasileira) e ao bom modelo do romance (europeu), o escritor reedita, sem sabê-lo e sem resolvê-lo, uma incongruência central de nossa vida pensada. Note-se que não há consequência simples a tirar desta dualidade; em cada país de cultura dependente, como o Brasil, a sua presença é inevitável, e o seu resultado pode ser bom ou ruim. (Ao vencedor as batatas 33, ênfase minha)

Em literatura, conscientemente ou não, a mesma contradição entre local e global percebida pelas ciências sociais também persiste, com a diferença que, em literatura, o atraso em si pode ser transformado em vantagem e gerar, em seus casos mais marcantes, grande literatura. Se recuperarmos a terminologia econômica de Cardoso, entretanto, podemos pensar que desenvolvimentos literários periféricos (mesmo quando notáveis) são, na realidade, desenvolvimentos dependentes, pois dependem do capital cultural global, importado por nós, para promover um desenvolvimento local, original. Ainda que isto possa soar derrogatório, no caso da literatura, como nos mostra Schwarz, desenvolvimento dependente não é necessariamente ruim, pois não são os critérios de desenvolvimentos socioeconômicos que definem a qualidade de uma obra literária. A dinamicidade do plano cultural é, sem dúvida, maior que a da economia.

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Nossa própria condição subdesenvolvida, ou dependente—como substrato social—alimenta nossa literatura. A mudança de paradigma apresentada por Schwarz é drástica. A literatura brasileira depende de formas europeias (romance, conto, soneto, etc.) transformadas, entretanto, pelas condições locais, isto é, pelas relações sociais periféricas (apadrinhamento, escravidão, favor, etc.), que são, por sua vez, o conteúdo mais imediato da literatura local. Cabe ao autor transformar as limitações sociais em vantagem, fazendo do atraso um elemento transformador e original de sua literatura e não um mero desconforto, o que, logicamente, não altera o fato de apadrinhamento e escravidão, do ponto de vista social e humano, serem condenáveis e negativos. Não existe literatura europeia nos trópicos, o que não significa que na periferia não existam autonomia e desenvolvimento (dependente, se quisermos recuperar o termo) das formas europeias. Quando transformadas pelas relações sociais locais, as formas literárias tomam caminhos inesperados, não possíveis (ou não prováveis) em seus lugares de origem, isto é, nos centros onde foram inicialmente produzidas. Diferentemente da condição econômica dependente denunciada pelas ciências sociais, sempre limitante e negativa, ainda que dinâmica, no caso literário, como aponta Schwarz no trecho supracitado, dependência (“desenvolvimento dependente”) pode ter resultado positivo, rompendo, de imediato, seu caráter secundário. A noção de desenvolvimento dependente, importada por Schwarz das ciências sociais permite que a crítica reconheça resultados expressivos e originais nas literaturas periféricas, sem ignorar suas limitações socioculturais. Nos melhores autores latino-americanos, segundo Schwarz, “o tributo pago à inautenticidade inescapável de nossa literatura é reconhecido, fixado e em seguida capitalizado como vantagem” (Ao vencedor as batatas 48). As inconsistências da literatura nacional, quando comparada à literatura do além-mar, não precisam mais ser tomadas como falha da produção local, supostamente inferior. Para Schwarz, o aparente descompasso entre a produção local e os moldes estrangeiros também pode ser visto como desenvolvimento inovador e, mesmo que dependente das formas originais, positivo. “De dentro de seu atraso histórico, o país impunha ao romance burguês um quadro mais complexo” (Ao vencedor as batatas 23). Isto é, o próprio atraso é elemento formante e diferencial da literatura produzida na periferia, sem deixar, entretanto, de ser atraso. Assim como para a teoria da dependência a estagnação da periferia deveria ser combatida enfatizando o dinamismo da região, o modelo proposto por Schwarz possibilita, na literatura, que se enfatizem as possibilidades particulares da literatura periférica, sem que se ignore ou vanglorie sua condição social atrasada; sem que se ignore a relação desta literatura com formas de exploração e desigualdade. Schwarz mostra como a literatura, mesmo quando dependente, é capaz de superar sua própria condição de atraso e inautenticidade, gerando resultados originais e de grande qualidade. O impacto da teoria da dependência e de seus posteriores desenvolvimentos culturais propostos por Schwarz para a crítica literária e, mais especificamente, para a literatura comparada, são claros. Se, no Brasil dos sec. XIX e início do XX, Sílvio Romero (1851–1914), o autor da mais importante história literária do período, de acordo com Schwarz, lia Machado de Assis “para provar que a arte desse não passava de anglomania inepta, servil, inadequada” (“Nacional por subtração” 39), Schwarz abre a possibilidade para que o mesmo autor seja entendido como local, contemporâneo às inovações centrais e inovador, ainda que dialeticamente relacionado com a literatura global (europeia). Ou, se a crítica tradicional sublinhava o caráter vanguardístico europeu de Oswald de Andrade—o seu uso das “inovações hoje clássicas das vanguardas internacionais” (“A carroça, o bonde” 14)—Schwarz relaciona este mesmo vanguardismo com a realidade sociológica brasileira, isto é, com a convivência “lado a lado” de “traços burguês e pré-burguês” (14), mostrando que o interesse pelo poeta não está no fato dele ter copiado com maestria seus contemporâneos europeus, mas em ter equacionado sem medo e com humor o global e o local; a vanguarda estética e a matéria brasileira atrasada; o progresso industrial e o latifúndio cafeeiro; e assim por diante. Para Schwarz, autores como Machado, Oswald ou Bandeira não precisam ser considerados inferiores (ou superiores) a outros desenvolvimentos igualmente importantes ocorridos nos centros da cultura ocidental, mas podem (e devem) ser

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vistos como inovadores que deram conta tanto de suas realidades locais como das inovações formais da literatura mundial. A contribuição de Schwarz, assim, está em permitir que reconheçamos nossa literatura como dependente de formas europeias, quando vista de uma perspectiva global, mas, ainda assim, inovadora e literariamente tão poderosa, em seus melhores momentos, como qualquer outra literatura. Está em entender que, também na literatura, local e global caminham juntos e são, portanto, contemporâneos. Está em permitir que reconheçamos avanços literários sem ignorarmos nossas peculiaridades sociais e suas formas de exploração e exclusão. Uma contribuição que seria difícil conceber sem a existência dos desenvolvimentos que levaram à teoria da dependência e que tem passado despercebida em diversas leituras que se faz de Schwarz, tanto no Brasil como no exterior. Desatenção que só pode ser explicada pela falta de conhecimento da própria história do crítico em questão e do contexto em que suas ideias surgiram e que pode levar a interpretações simplificadas e equivocadas de seu pensamento.

NOTAS  Recentemente, no Brasil, a obra de Schwarz e seu contexto tem ganho maior atenção, ainda que sua relação com a teoria da dependência—objetivo principal deste ensaio—tenha passado quase despercebida, dificultando a compreensão de algumas de suas ideias mais importantes (com ênfase para “as ideias fora do lugar”). Um exemplo emblemático é o livro Um crítico na periferia do capitalismo: Reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz. Coletânea de ensaios sobre Schwarz, com textos de colegas, professores e ex-alunos do teórico, o livro trata de diversas facetas do estudioso, com ênfase para sua relação com Antonio Candido e a Escola de Frankfurt. Sua participação no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e no famoso seminário que o precedeu também é lembrada, mas de forma memorialística, sem explorar a fundo as semelhanças entre o trabalho de Schwarz e dos outros membros, ou o contexto intelectual no qual o centro surge e se desenvolve. Exceção, talvez, para o breve texto de Francisco de Oliveira que aponta algumas semelhanças entre sua própria obra e o pensamento schwarziano. O próprio Cardoso contribui para o livro com um ensaio, mas ao invés da possível ligação entre seu trabalho e o de Schwarz, escolhe levantar questões acerca do futuro da crítica marxista em tempos de globalização. A teoria da dependência, salvo engano, não é citada diretamente nenhuma vez no livro. No cenário internacional, a ausência de contextualização da obra de Schwarz é ainda mais expressiva, mas também mais compreensiva. Ambos os textos já citados, de John Cleary e Franco Moretti, mesmo fazendo usos interessantes da obra de Schwarz, talvez devido ao uso pontual que fazem do autor, não o contextualizam, o que, entretanto, contribui para uma representação mais simples e estática de seu pensamento. 2  Ver Dependência e desenvolvimento na América Latina (Cardoso e Faletto). Um exemplo para o caráter global da economia pode ser facilmente encontrado na crise do petróleo de 1974 (mundial) e no papel que esta teve para o final do milagre econômico brasileiro (teoricamente local). 3  Ver, do próprio Schwarz, “Um seminário de Marx” em Seqüências brasileiras. Neste texto, Schwarz conta sua experiência, ainda como aluno, no seminário, traçando um panorama das conquistas deste. O elo mais direto entre sua própria obra e as ideias de Cardoso e do restante do seminário, objetivo deste ensaio, ficam somente nas entrelinhas, não sendo tratadas diretamente pelo autor. 4  Ver, por exemplo, “Literatura e subdesenvolvimento” de Candido e “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” de Salles Gomes, ambos publicados pela primeira vez na revista Argumento em 1973 e que partilham das preocupações dos teóricos da dependência, ainda que não participem diretamente nem deste debate sociológico, nem do CEBRAP. 5  De certa forma, o problema do descompasso entre local e global trabalhado por Schwarz já fora abordado literariamente pelos modernistas de 1922, com ênfase para o “Manifesto antropófago” de Andrade. Algumas das máximas do manifesto oswaldiano—como “Tupy, or not Tupy that is the question” (353); “Contra todos os importadores de consciência enlatada”; ou “Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem” (354)—já apontam poeticamente para a contradição entre local e global, ainda que, como paradigma crítico, a mudança se concretize mesmo somente depois, com Candido e Schwarz, o que, de certa forma, explica a recepção equivocada que grande parte da crítica fez do próprio Oswald, citada anteriormente. 1

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OBRAS CITADAS Amin, Samir. Unequal Development. Trans. Brian Pearce. Londres: Monthly, 1976. Impresso. Andrade, Oswald de. “Manifesto antropófago”. Vanguarda europeia e modernismo Brasileiro. Org. e notas Gilberto Mendonça Telles. Rio de Janeiro: Vozes, 1976. 326–31. Impresso. Candido, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimento”. A educação pela noite and outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. 140–62. Impresso. Cardoso, Fernando Henrique, e Enzo Faletto. Dependência e desenvolvimento na America Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. Impresso. Cevasco, Maria Elisa, e Milton Ohata, orgs. Um crítico na periferia do capitalismo: Reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz. São Paulo: Letras, 2007. Impresso. Cleary, Joe. “Misplaced Ideas? Locating and Dislocating Ireland in Colonial and Post Colonial Studies”. Marxism, Modernity and Postcolonial Studies. Cambridge: Cambridge UP, 2002. 101–24. Impresso. Frank, Andre Gunder. Latin America: Underdevelopment or Revolution. Nova York: Monthly, 1969. Impresso. Gomes, Paulo Emílio Salles. Cinema trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. Impresso. Jameson, Fredric. The Political Unconscious. Ithaca: Cornell UP, 1981. Impresso. Machado de Assis, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1991. Impresso. Moretti, Franco. “Conjectures on World Literature”. Debating World Literature. Org. Christopher Prendergast. Nova York: Verso, 2004. 148–62. Impresso. Moura, Flavio, e Paula Montero, orgs. Retrato de grupo: 40 anos de CEBRAP. São Paulo: Cosac, 2009. Impresso. Romero, Sílvio. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Olympio, 1938. Impresso. Rostow, Walter W. The Stages of Economic Growth, a Non-Communist Manifesto. Cambridge: Cambridge UP, 1960. Impresso. Saldaña-Portillo, María. The Revolutionary Imagination in the Americas and the Age of Development. Durham: Duke UP, 2003. Impresso. Schwarz, Roberto. “A carroça, o bonde e o poeta modernista”. Que horas são? São Paulo: Letras, 1987. 11–28. Impresso. ———. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1981. Impresso. ———. “Nacional por subtração”. Que horas são? São Paulo: Letras, 1987. 29–48. Impresso. ———. “Um seminário de Marx”. Seqüências brasileiras. São Paulo: Letras, 1999. 86–105. Impresso.

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