O papel das Conferências Nacionais de Direitos Humanos e das Políticas Públicas no combate à homofobia no Brasil

June 4, 2017 | Autor: Érika Pretes | Categoria: Políticas Públicas, Homofobia, Conferências Públicas, Conselhos de Direitos Humanos
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O PAPEL DAS CONFERÊNCIAS DE DIREITOS HUMANOS E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO COMBATE À HOMOFOBIA NO ESTADO BRASILEIRO Erika Aparecida Pretes1

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 As conferências de Direitos Humanos e as Políticas Públicas no combate à homofobia no Brasil; 3 Considerações Finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO Debates recentes dividem a sociedade brasileira acerca da introdução em   seu   ordenamento   jurídico   de   ações   de   caráter   afirmativo   que   têm   como   escopo a proteção e a promoção dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). Tomando como base esta discussão o presente trabalho tem como objetivo analisar o papel das Conferências Nacionais de Direitos Humanos e das Políticas Públicas no combate à homofobia no Brasil. Partimos do pressuposto de que a homofobia é a conseqüência psicológica da representação social que ao longo dos séculos vem outorgando a heterossexualidade o monopólio de referência de normalidade sexual, e fomentando o desprezo em relação à homossexualidade  e  àqueles  que  não  se  enquadram  nos  limites  definidos  pelo   heterossexismo como ideais de feminilidade e masculinidade. Tendo em vista este contexto histórico-social de violações, buscamos apresentar aqui as Conferências Nacionais de Direitos Humanos e as Políticas Públicas como mecanismos capazes de propiciar a participação igualitária desta parcela da sociedade que é tida como minoritária nas deliberações e na formulação de Políticas Públicas orientadoras dos rumos do Estado brasileiro. 1 Especialista em Direito Público pelo Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas. Orientador: Walid Machado Botelho Arabi

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2 AS CONFERÊNCIAS DE DIREITOS HUMANOS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS NO COMBATE À HOMOFOBIA NO BRASIL O relatório da “Pesquisa Política, Direitos, Violência e Homossexualidade”, realizada durante a 9ª Parada do Orgulho de Lésbicas Gays Bissexuais e Travestis de São Paulo (CARRARA, 2011), no ano de 2005, revelou que 72,1% dos LGBT entrevistados já sofreram algum tipo de discriminação entre as modalidades previstas no questionário (emprego; comércio; sistema de saúde; escola ou faculdade; ambiente familiar; amigos e vizinhos; ambiente religioso; doação de sangue; delegacias). A pesquisa informou, ainda, que 67,5% dos entrevistados já teriam sido vítimas de algum tipo de agressão, tais como agressões verbais; agressões físicas; chantagens ou extorsões; violência sexual; violência sexual mediante fraude. Por outro lado, de acordo com relatório publicado em 2010 pelo Grupo Gay da Bahia entre os anos de 1980 e 2009 ocorreram 3.196 homicídios de lésbicas, gays, transexuais, bissexuais, travestis e transexuais, crimes estes motivados por ódio e intolerância homofóbica (GRUPO GAY DA BAHIA, 2010). No ano de 2009, ainda de acordo com o mesmo relatório, foram registrados 198 homicídios em que a orientação sexual e identidade de gênero diversa da heterossexual foram determinantes para a prática do crime, resultando numa média de um homicídio a cada dois dias. Tais dados apontam, segundo o documento, o Brasil como o país mais homofóbico do mundo, seguido pelo México com 25 e os Estados Unidos da America com 35 homicídios por ano. Quando da publicação do mencionado relatório, no mês de março de 2010, já haviam sido registrados 34 homicídios, referentes aos primeiros meses do respectivo ano. De acordo com o antropólogo Luis Mott (2009) os números anuais publicados pelo Grupo Gay da Bahia podem ser ainda maiores e mais assustadores, visto que este tipo de pesquisa ainda não é realizada pelo Estado brasileiro, o relatório se refere aos crimes claramente homofóbicos noticiados pela imprensa. A Fundação Perseu Abramo em parceria com o Instituto alemão Rosa Luxemburgo divulgou, no primeiro semestre de 2009, parte da pesquisa “Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, intolerância e respeito às diferenças sexuais” realizada em 150 municípios, distribuídos nas cinco macrorregiões do Brasil. De acordo com esta pesquisa, cerca de 92% da população brasileira acredita existir preconceito contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. No entanto, apenas 27% dos entrevistados declararam possuir algum tipo de preconceito contra este grupo de pessoas. (VENTURI, 2009) De acordo com o sociólogo Gustavo Venturi (2009), sintomática é a comparação entre a pesquisa “Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil”, realizada em 2009, e a pesquisa “Discriminação racial e preconceito de cor no Brasil”, realizada em 2003, segundo a qual 90% dos entrevistados reconheceram a existência de racismo no Brasil. Nas perguntas feitas levando em consideração a interação social para estabelecer uma escala de preconceito velado, 74% dos entrevistados manifestaram algum grau de preconceito racial e apenas 4% assumiram ter preconceito contra negros.

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Para o jurista mineiro Fabiano Silveira (2006) a acusação de racismo pesa como nódoa desonrosa, constatação que pode ser inferida e estendida à homofobia pela análise dos dados obtidos pela Fundação Perseu Abramo, em que quase a totalidade dos brasileiros reconhece a existência do racismo e da homofobia, entretanto, não se percebem como intolerantes, mesmo quando endossam discursos que legitimam uma hipotética inferioridade de todo aquele que não se enquadre na norma, seja a do racismo seja a do heterossexismo. Silveira (2006) aponta que a coexistência entre sentimentos intolerantes e a negação dos mesmos desvela um estado de contradição absoluta, quando da repetição de discursos e práticas de sujeição do outro. Idéia veiculada pelo senso comum de que não é possível ser racista ou homofóbico pelo simples fato de ter amigos, parentes ou conviver com colegas de trabalho negros e/ou LGBT. A realidade é descoberta aos poucos, pela acumulação de contradições que não afetam o equilíbrio nem as orientações de comportamento das  pessoas.  Perguntas  c omo  –  levaria  um  preto  à  sua  c asa;;  aceitaria   um  preto  como  chefe;;  deixaria  uma  filha  (ou  irmã)  casar-­se  com  um   preto,  etc.  –  conduzem  à  explicitação  das  inconsistências,  em  regra   percebidas rapidamente pelos entrevistados e recebidas com bom humor. É. Desse lado está certo. Nós temos preconceito mesmo. Mas, o que se vai fazer? Arranjos dessa ordem traduzem certa organização da personalidade, do comportamento e da concepção do mundo. Não se trata de leviandade nem de irresponsabilidade, mas de um padrão sócio-cultural, que confere aos indivíduos certo relativismo e segurança  para  superar  conflitos  insolúveis  entre  os  padrões  ideais   da cultura e os procedimentos sancionados convenientemente pela prática. (SILVEIRA, 2006, p.34)

A dimensão dessa acumulação de contradições a qual o jurista mineiro se refere pode ser inferida da análise comparativa entre os dados das pesquisas feitas pela Fundação Perseu Abramo sobre discriminação em que 70% dos entrevistados responderam que a homofobia é um problema exclusivamente pessoal e que não cabe ao Estado se ocupar do combate a esta forma de discriminação (VENTURI, 2011). No que diz respeito ao racismo a pesquisa de 2003 revela que apenas 36% dos entrevistados consideraram que cabia ao Estado o combate ao racismo e 49% reputaram que o racismo é um problema pessoal e que deveria ser resolvido entre os envolvidos (VENTURI, 2011). De acordo com o trabalho desenvolvido por Fabiano Silveira (2006) acerca da criminalização do racismo, essa atitude de reputar o discurso de preconceito e discriminação como questões pessoais e que a erradicação dessas práticas não é de responsabilidade do Estado representam mecanismos sofisticados   de   negação   e   suavização   da   discriminação   e   do   preconceito   e   constituem uma complexa rede de discursos em que tais questões são retiradas do debate social, político e jurídico. Esses mecanismos de negação e suavização expressam de maneira velada o próprio preconceito e acabam se imiscuindo de tal forma nas próprias relações interpessoais que mitos como o da tolerância sexual, em comparação com o racismo e o mito da democracia racial, são legitimados e reiterados a todo o instante pelo senso comum. Fábula e mito são palavras etimologicamente vizinhas: expressam uma narração irrealística, recorrente e poderosa no imaginário coletivo. Assim é a percepção suavizante das relações inter-raciais que se fertilizou na saga da casa-grande ao sobrado, da senzala ao mucambo. Tem-se, pois, uma espécie de senha universal da cultura brasileira (sincretismo) e de suas arrumações sociopolíticas (democracia racial). Uma percepção que permite enxergar a complexidade da realidade social brasileira uma totalidade integrada

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(Roberto   da   Matta)   ou   no   quadro   de   injustiça   social   que   aflige   a   comunidade afro-descendente uma transitoriedade (Florestan Fernandes),   perdendo-­se   de   vista,   contudo,   a   conflitualidade   imanente   ao   estigma   racial   –   que   preside   o   mercado   de   trabalho,   o mercado matrimonial e os contatos com a polícia, áreas duras, na   expressão   de   Lívio   Sansone   –   e   a   percepção   do   negro,   como   coletividade, na base da pirâmide social, excetuando-se casos de ascensão individual e intermitente. (SILVEIRA, 2006, p.27)

Esses mitos, discursos de esvaziamento político tendem a minimizar as   lutas   e   conquistas   de   movimentos   sociais   e,   para   a   pesquisadora   Karin   Smigay (2002), representam um dos grandes empecilhos para a solução de tais conflitos,  pois  inviabilizam  a  discussão  e  o  enfrentamento  destes  problemas  pela   sociedade. No que tange à homofobia, Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2003) entende que  as  ações  afirmativas  são  um  mecanismo  necessário  temporariamente  para   corrigir distorções e desigualdades nos rumos da sociedade. São, portanto, medidas adequadas para proporcionar a inclusão social de homossexuais e outros grupos tidos por minorias. Em função da concepção de sociedade pluralista, enfatiza ainda o autor, que apenas através da efetivação da garantia de igualdade é que de fato homossexuais estariam inseridos de maneira digna no Estado Democrático de Direito. É também este o sentido da interpretação de Flávia Piovesan (2004), partindo da premissa de que o valor da dignidade humana alçado a princípio fundamental pela Constituição da República de 1988 constitui núcleo básico e norteador de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Segundo a eminente jurista, a efetivação dos direitos humanos pelo Estado não pode partir de uma postura abstrata, generalista e neutra da   realidade,   tendo   em   vista   a   sua   insuficiência   diante   que   casos   em   que   determinados  sujeitos  de  direito  sofrem  violações  específicas  e  por  isso  merecem   uma  resposta  específica  e  diferenciada  (PIOVESAN,  2004). Nesse  contexto,  Álvaro  Ricardo  de  Souza  Cruz  (2003)  afirma: Por conseguinte, a preocupação atual volta-se para o respeito aos direitos humanos em função das particularidades individuais e coletivas dos diferentes grupamentos humanos que se distinguem por fatores tais como a origem, o sexo, a opção sexual, a raça, a idade, a sanidade, a realização, etc. Sob esta perspectiva, o pluralismo eleva-se à condição de princípio indissociável da idéia de dignidade humana, exigindo do Estado e da sociedade a proteção de todos os outros, diferentes de nós pelos aspectos supra mencionados. (CRUZ, 2003, p.17)

Em seus estudos sobre o direito à diferença, Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2003) ressalta ainda a função primordial dos teóricos do direito na tentativa de minorar as desigualdades sofridas pelos homossexuais no Brasil, diante da relativa inércia do Executivo e da falta de atuação do Legislativo. É nesse sentido que caminham os estudos sobre as práticas e os discursos sobre homossexualidade e a homofobia desenvolvidos pelo jurista argentino Daniel Borillo (2001). Para ele, a maneira como uma sociedade e um Estado tratam os homossexuais, o respeito e a proteção que fornece a eles assim como aos outros grupos estigmatizados socialmente bem como as mulheres, os afrodescendentes, os indígenas deve ser utilizado como um indicador  extraordinário  do  grau  de  justeza  e  refinamento  jurídico  de  determinado   Estado. Nesse contexto, Roger Raupp Rios (2008) entende que a adoção de   medidas,   ações   afirmativas,   não   podem   ser   consideradas   privilégios   ou  

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direitos especiais, de outro modo, são compreendidas como exigências de instrumentalização do princípio da igualdade. Aqui o princípio da igualdade é percebido a partir de seu conteúdo material e substantivo, de modo que situações de subjugação sejam superadas através da compreensão de todo um contexto complexo no qual o sujeito está envolvido, onde a discriminação é perpetuada e que tal superação depende fundamentalmente de uma postura ativa e não-neutra na realidade.

Com efeito,

A homofobia constitui uma ameaça aos valores democráticos e de respeito aos demais, no sentido em que promove a desigualdade dos indivíduos em função de seus simples desejos, estimula a rigidez dos gêneros e favorece a hostilidade ao outro. Como problema social, a homofobia deve ser considerada delito suscetível de sanção jurídica. (BORILLO, 2001, p.114)

A Presidência da República por meio da Secretaria Especial de Direitos Humanos lançou no ano de 2004 um programa destinado ao combate à violência e à discriminação e à promoção da cidadania LGBT, denominado “Brasil sem Homofobia” que tem como escopo primordial a realização de ações de capacitação em direitos humanos e o apoio a projetos dos governos estaduais, municipais e de organizações não-governamentais; além da implantação de Centros de Referência para combate a homofobia, e Núcleos de Pesquisa e Promoção da Cidadania LGBT nas universidades públicas de todo o país.(BRASIL, 2010) Em conformidade com tal política e numa iniciativa pioneira no Brasil e no mundo a Presidência da República por meio do Decreto de 28 de novembro de 20072 convocou a primeira “Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Brasil”. Vale dizer, nunca antes um Chefe de Estado havia convocado uma Conferência Nacional para discutir programas de proteção e promoção dos direitos humanos LGBT, nem no Brasil e em nenhum outro país do mundo. As conferências nacionais consistem em instâncias de deliberação e participação destinadas a prover diretrizes para a formulação de políticas públicas em âmbito federal. São convocadas pelo Poder Executivo através de seus ministérios e secretarias, organizadas tematicamente, e contam, em regra com a participação partiria de representantes do governo e da sociedade civil. As conferencias nacionais são em regra precedidas por etapas municipais, estaduais ou regionais, e os resultados agregados das deliberações ocorridas nestes momentos são objeto de deliberação na conferência nacional, da qual participam delegados das etapas anteriores e da qual resulta, em  regra,  um  documento  final  contendo  diretrizes  para  a  formulação   de políticas públicas na área objeto da conferencia. (SANTOS, 2010 p.07)

No Brasil, este instituto participativo e deliberativo é conhecido desde a Era Vargas, quando da realização das primeiras conferências relativas à área da saúde. Desde 1941 até o ano de 2010 foram realizadas 111 conferências nacionais, e centenas de milhares nas esferas intermediárias, as etapas estaduais e municipais (PETINELLI, 2010, p.232). Do total de encontros nacionais, 9 aconteceram entre 1941 e 1988 –  11  delas  referentes  ao  tema  saúde  e  1  de  Ciência  e  Tecnologia;;  e   as demais 99 conferências foram organizadas pós 1988. (PETINELLI, 2010, p.232).

2 Trata-se de Decreto Presidencial não numerado publicado no DOU no dia 29.11.2007, que convoca a I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Travestis, e dá outras providências.

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A Conferência Nacional LGBT surgiu como uma iniciativa do Governo Federal  para  a  definição  de  políticas  públicas  voltadas  para  a  população  LGBT   e consolidação do programa “Brasil sem Homofobia”, três anos após o seu lançamento. As Conferências Nacionais tem como fulcro a participação da sociedade civil na elaboração de Políticas Públicas através dos Planos Nacionais. Estes documentos são elaborados em conjunto por setores da sociedade civil e do Poder Público em igualdade de condições e de participação. Neste sentido, tal instituto tem como característica fundamental o empoderamento e a emergência de sujeitos que historicamente estão alijados do centro de discussão política, e que passam a se perceberem como co-autores da norma e do Estado Democrático de Direito. O Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais é fruto do compromisso do Governo Federal com a implementação de políticas públicas que contemplem ações de combate à homofobia e de promoção da cidadania e dos direitos humanos. Incorpora os resultados da Conferência Nacional GLBT e estabelece as diretrizes e medidas necessárias à transformação do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais em Plano de Ação da Gestão Pública. (BRASIL, 2010, p.14)

O pesquisador Fabiano Santos, em trabalho coordenado por Thamy Pogrebinschi (2010), do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), em trabalho sobre a representação e participação popular nas conferências nacionais e o experimentalismo democrático brasileiro aponta que deste processo de empoderamento surge um novo fenômeno da democracia: No   que   tange   especificamente   aos   impactos   das   conferências   nacionais de políticas públicas sobre a atividade legislativa no Brasil, pode-se constatar que estamos diante de fenômeno novo e de enorme potencial no que concerne ao aprofundamento do exercício da democracia no Brasil. Não apenas as conferências têm influenciado  a  iniciativa  de  proposições  no  Congresso  Nacional,  mas   também  o  tem  feito  de  maneira  relativamente  eficiente,  uma  vez  que   diversas proposições aprovadas, além de emendas constitucionais promulgadas, são tematicamente pertinentes a diretrizes extraídas das diversas conferências. (POGREBINSCHI, 2010, p.85)

Com efeito, da Conferência Nacional LGBT resultaram 27 diretrizes legislativas   classificadas   nos   tópicos:   Direitos   Humanos,   Saúde,   Justiça   e   Segurança Pública, Previdência Social, Educação, Trabalho e Emprego e Cidades. Diretrizes estas que foram encaminhadas ao Legislativo e ao Executivo para pautar as discussões a respeito das políticas públicas voltadas para a população LGBT (POGREBINSCHI, 2010, p.66). Salienta-se que o referido plano visa orientar as políticas públicas de promoção e proteção do livre exercício da orientação sexual e da identidade de gênero. Dentre suas diretrizes está a “Proposição de alterações legislativas e normativas que garantam os direitos fundamentais e sociais da(o)s cidadã(o) s LGBT” (BRASIL, 2010). Busca-se, pois, a proposição de medidas que coíbam discursos e práticas de discriminação e preconceito que inviabilizam o pleno exercício da personalidade e da dignidade da pessoa LGBT. A atuação do Estado, especialmente por meio da formulação e implementação de políticas, interfere na vida das pessoas, ao determinar, reproduzir ou alterar as relações de gênero, raça e etnia e o exercício da sexualidade. O Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT tem como compromisso e   desafio   interferir   nas   ações   do   Estado,   de   forma   a   promover   a   cidadania, com respeito às diversidades. (BRASIL, 2010, p.11)

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A proposta do Governo brasileiro com o plano em comento é o combate a uma sociedade que divide seus cidadãos em humanos e menos humanos. Na expressão de Judith Butler, citada por Tiago Duque, menos humano é aquele que tem seus direitos humanos e fundamentais negados pelo simples pertencimento a uma raça, uma religião, ou por não expressar orientação heterossexual, ou identidade de gênero não correspondente ao seu sexo biológico (BUTLER, 2010). Nota-se logo seu intuito comum de ampliar a participação dos cidadãos para além do exercício do direito do sufrágio. O principal pressuposto a nortear tais experiências, portanto, é o de permitir que os cidadãos envolvam-se de forma mais direta na gestão da coisa pública, em particular na formulação, execução e controle de políticas públicas. O efeito esperado com tais práticas, por sua vez, é o de permitir que os cidadãos manifestem suas preferências de uma forma  não  mediada  por  partidos  e  políticos  profissionais  e  por  meios   outros que não o voto. (SANTOS, 2010, p. 7)

De fato, o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT,  enquanto  política  afirmativa,  orienta-­se:   pelos princípios da igualdade e respeito à diversidade, da eqüidade, da laicidade do Estado, da universalidade das políticas, da justiça social, da transparência dos atos públicos e da participação e controle social, assim destacados: 4.1.Dignidade  da  pessoa  humana  (inciso  III  do  art.  1º  da  C onstituição   Federal); 4.2.Igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e garantia da inviolabilidade do direito à vida, à   liberdade,   à   igualdade,   à   segurança   e   à   propriedade.   (art.   5º   da   Constituição Federal); 4.3.Respeito à diversidade de orientação sexual e promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer  outras  formas  de  discriminação”.  (inciso  IV  do  art.  3º  da   Constituição Federal); 4.4.Direito   à   Cidadania   (inciso   II   do   art.   1º   da   Constituição   Federal); 4.5.Direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância,   à   assistência   aos   desamparados   (art.   6º   da   Constituição   Federal); 4.6.Liberdade de manifestação do pensamento (inciso IV do art. 5o da Constituição Federal); 4.7.Laicidade do Estado: a pluralidade religiosa ou a opção por não ter uma religião é um direito que remete à autonomia e a liberdade de expressão, garantidos constitucionalmente; 4.8.Inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem   das   pessoas   (inciso   X   do   art.   5º   da   Constituição   Federal).   (BRASIL, 2010, p.12)

No Brasil, no âmbito dos Direitos Humanos existem outras diretrizes nacionais que orientam a atuação do Poder Público, são os conhecidos Planos Nacionais de Direitos Humanos (PNDH). O primeiro destes planos, o PNDH-1, foi desenvolvido sob o governo do então Presidente Fernando Henrique Cardoso. No ano de 2002, o programa (PNDH-2) sofreu revisão e foi ampliado incorporando direitos econômicos, sociais e culturais que ainda não constavam de sua primeira versão. Em 2010, a Secretaria Especial de Direitos Humanos lançou o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-3, fruto de deliberações realizadas na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos:

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O PNDH-3 está estruturado em seis eixos orientadores, subdivididos em 25 diretrizes, 82 objetivos estratégicos e 521 ações programáticas,  que  incorporam  ou  refletem  os  7  eixos,  36  diretrizes   e 700 resoluções aprovadas na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em Brasília entre 15 e 18 de dezembro de 2008, como coroamento do processo desenvolvido no âmbito local, regional e estadual. O Programa também inclui, como alicerce de sua construção, propostas aprovadas em cerca de 50 conferências nacionais temáticas realizadas desde 2003 sobre igualdade racial, direitos da mulher, segurança alimentar, cidades, meio ambiente, saúde, educação, juventude, cultura etc. No âmbito da SEDH/PR, cumpre destacar a realização de duas Conferências Nacionais das Pessoas  c om  Deficiência;;  duas  C onferências  Nacionais  dos  Direitos  da   Pessoa Idosa; quatro Conferências Nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente; do 3o Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes; da 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais. (BRASIL, 2010, p.12)

Conforme já foi dito os Planos Nacionais são instrumentos norteadores de políticas públicas, que tem como função auxiliar no desenvolvimento de ações estatais com fulcro na garantia dos Direitos Humanos. Entretanto, o PNDH-3 sofreu intensa crítica, sendo exposto pela mídia como instrumento capaz de macular o Estado Democrático de Direito no Brasil. As críticas baseadas em argumentos contrários à introdução de políticas públicas de combate à homofobia e promoção da dignidade e cidadania LGBT, afirmavam  que  grande  parcela  da  sociedade  rejeita  a  homossexualidade,  e  que   tais políticas públicas criariam uma espécie de direitos especiais concedidos a uma parcela de indivíduos tidos como especiais, além de promover uma orientação sexual não aceita pela maioria da população brasileira. Roger Raupp Rios (2006) ressalta a falibilidade de tal argumento em um Estado Democrático de Direito, que se fundamenta na dignidade da pessoa humana, e não na vontade arbitrária da uma pretensa maioria. O princípio da não-discriminação não admite que o Estado Democrático de Direito seja limitado em favor de um grupo dominante que pretenda perpetuar a situação de subordinação de um grupo considerado minoritário. Além disso, não se deve esquecer que por se tratar de ações de caráter antisubordinatórias, não seria adequado se pensar numa possível preleção de determinada parcela da sociedade. Fundamentalmente os Planos Nacionais apresentam-se como instrumentos capazes de corrigir distorções e discriminações perpetradas por práticas e discursos homofóbicos e tem sua legitimidade esboçada na participação aberta a todos os setores da sociedade e na deliberação conjunta com o poder público. A participação de setores da sociedade civil e poder público nas Conferências de Direitos Humanos que culminam em Planos Nacionais de Direitos Humanos leva em consideração justamente o contexto histórico, político, econômico e social que mantém lésbicas, gays, bissexuais e transexuais à margem da sociedade e do direito, dando novo desenho a tais relações, possibilitando, assim, a emancipação desta parcela da sociedade que assume o papel de co-autor da norma e do Estado Democrático de Direito.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebemos que setores socialmente discriminados como as mulheres, afro-descendentes e lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, dentre

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outros, tem nas Conferências Nacionais a possibilidade de suprir de determinado modo certas distorções na deliberação e elaboração de programas orientadores de Políticas Públicas de Direitos Humanos. Em tais espaços estes sujeitos políticos   podem   discutir   e   levantar   demandas   específicas   que   muitas   vezes   passam desapercebidas ao olhar do Legislador ordinário. Apesar da realização de diversas outras Conferências Nacionais temáticas e suas etapas estaduais, municipais ou regionais e a concomitante elaboração de Planos Nacionais, quando se trata de discutir a implementação de Políticas Públicas orientadas à população LGBT ainda temos muito o que avançar. As ações de promoção de direitos humanos são essenciais para a mudança deste quadro de intolerância em razão da orientação sexual e identidade  de  gênero.  Entretanto,  não  são  suficientes,  ainda  mais  quando  sua   implementação  se  apresenta  ineficaz.   As diretrizes legislativas encaminhadas ao Legislativo permanecem estagnadas no Congresso Nacional devido ao preconceito de parte dos parlamentares que não dão continuidade às propostas encaminhadas pelas Conferências. Na verdade, enquanto o Executivo brasileiro se mostra pró-ativo no que diz respeito às políticas públicas e programas de proteção e promoção dos direitos   humanos   LGBT,   o   Legislativo   queda   inerte,   isso   quando   não   dificulta   o andamento dos projetos que visam garantir algum direito a esta parcela da população. Compreendemos que um Estado que se quer efetivamente Democrático de Direito deve necessariamente promover e proteger o exercício pleno dos direitos humanos e fundamentais. Enquanto alguns grupos tidos como minoritários continuarem sendo tratados como menos humanos e tiverem o exercício pleno de sua personalidade e dignidade humana violadas, tanto pelo Estado quanto pela sociedade não há que se falar em efetivação do Estado Democrático de Direito. Práticas e discursos de ódio como a homofobia, o racismo, o antisemitismo,  dentre  outras,  só  findarão  quando  o  Estado  tomar  para  si  a  função   de promotor e defensor de direitos humanos e fundamentais. Acreditamos que políticas tais como a criminalização per  se não são capazes de dar cabo a tais violações. Nesse   sentido,   as   ações   afirmativas,   são   essenciais   para   o   livre   desenvolvimento da personalidade humana e da diversidade de discursos e práticas sociais. Enquanto existirem hierarquizações, em função do pertencimento a determinada raça, etnia, sexo, sexualidade, idade, entre outros caracteres, persistirá a necessidade de políticas públicas voltadas ao seu combate.

REFERÊNCIAS BORILLO, Daniel. Homofobia. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2001. BRASIL, Secretaria Especial de Direitos Humanos. Brasil Sem homofobia. Disponível em < http://www.aids.gov.br/data/documents/storedDocuments/%7BB8EF5DAF-23AE-4891AD36-1903553A3174%7D/%7B9DBDED32-FD1B-4D3C-96D0-EA64F6664EEF%7D/brasil_ sem_homofobia.pdf > Acesso em 10 jun. 2011.

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................................................................................................ COMO CITAR ESTE ARTIGO, CONFORME DETERMINAÇÕES DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS — ABNT:

PRETES, Erika Aparecida. O papel das Conferências de Direitos Humanos e das Políticas Públicas no combate À homofobia no Estado brasileiro. In: CASTRO, Dayse Starling Lima; GOMES, Renata Andrade (Coords.). Direito Público. Belo Horizonte: PUC Minas, Instituto de Educação Continuada, 2013.

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