O Papel das Recomendações da Assembléia Geral das Nações Unidas na Formação do Direito Internacional

June 7, 2017 | Autor: B. De Oliveira Bi... | Categoria: International Law
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O PAPEL DAS RECOMENDAÇÕES DA ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS NA FORMAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL Leonardo Nemer Caldeira Brant1 Bruno de Oliveira Biazatti2 RESUMO O presente artigo visa descrever o modo como os efeitos jurídicos e políticos das recomendações da Assembleia Geral das Nações Unidas podem influenciar o processo de formação do direito internacional. Essa influência assume três formas diferentes. Primeiramente, a autoridade política dessas recomendações é capaz de induzir os sujeitos internacionais a agir em conformidade com o conteúdo dessas resoluções, ainda que não possuam qualquer efeito vinculante sobre eles. Em segundo plano, destaca-se a forma quasi normativa das recomendações, que podem operar-se como catalizadores no processo de formação de tratados ou costumes internacionais. Por fim, a Assembleia Geral, via recomendação, pode estabelecer uma situação jurídica nova, que será voluntariamente implementada pelos Estados. Palavras-Chave: Assembleia Geral das Nações Unidas; resoluções não vinculantes; efeitos políticos e normativos das recomendações; fontes do direito internacional. ABSTRACT This article aims to describe how the legal and political effects of the United Nations General Assembly’s recommendations may influence the formation of international law. These recommendations’ influence appears in three different aspects. Firstly, their political authority can induce international subjects to comply with their content, even if these recommendations have no binding effect on them. Secondly, recommendations have a quasi normative caracter, meaning they can operate as a catalyst for the adoption of treaties and the formation of international customs. Finally, the General Assembly, through the adoption of a recommendation, can establish a new legal situation, which States can voluntarily implement.

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Doutor em Direito Internacional pela Université Paris X Nanterre, com tese laureada com o Prix du Ministère de la Recherche. Jurista Adjunto na Corte Internacional de Justiça-C.I.J. Membro do Comitê Consultivo para Nomeações do Tribunal Penal Internacional – T.P.I. Professor associado de Direito Internacional Público da U.F.M.G. e da P.U.C. MINAS. Professor convidado na Université Paris X, no Institut des Hautes Études Internationales da Université Panthéon-Assas Paris II, na Université Caen Basse-Normandie, e no XXXVII Curso de Direito Internacional da OEA. Visiting Fellow no Lauterpacht Center da Cambridge University. Presidente e fundador do Centro de Direito Internacional- C.E.D.I.N. Editor Chefe do Anuário Brasileiro de Direito Internacional- A.B.D.I. 2 Pesquisador do Centro de Direito Internacional – C.E.D.I.N.

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Keywords: United Nations General Assembly; non-binding resolutions; political and legal effects of recommendations; sources of international law. INTRODUÇÃO O conceito de recomendação tem uma abrangência ampla e é empregado dentro de concepções diversas visando qualificar certos atos de organizações internacionais, que são dirigidos a um ou mais destinatários e que se caracterizam como um convite a adoção de um comportamento, uma ação ou uma abstenção determinada 3 . Em termos gerais, pode-se considerar que uma recomendação é, prioritariamente, um ato de natureza não normativo, emanado de uma organização internacional e destinado a um ou mais atores internacionais 4 . Ela normalmente estabelece certos princípios e convida seus destinatários a execução de um comportamento específico. Isto significa que ela não é, em princípio, dotada de força obrigatória e a sua não implementação não implica na responsabilidade do Estado inadimplente com a referida obrigação5. Tal princípio é de tal forma estabelecido que mesmo o voto de um determinado Estado eventualmente favorável a uma recomendação não o obrigaria e este não verá comprometida sua boa-fé em caso de não cumprimento do conteúdo de uma recomendação. Esta regra geral parte do princípio de que uma recomendação deve, na grande maioria dos casos, emanar de um órgão intergovernamental. Neste contexto, os destinatários são normalmente os Estados membros da referida organização internacional. Tal é a regra, embora, nada impeça que uma recomendação venha a ser destinada aos particulares, as empresas privadas ou mesmo aos Estados não membros

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M. Virally, La valeur juridique des recommandations des organizations internationals, A.F.D.I., 1956, p. 66-96. 4 Em raríssimas circunstâncias, o termo recomendação veio a ser utilizado para designar uma obrigação de natureza vinculante. Este foi, por exemplo, o caso do Tratado de Paris estabelecendo a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Posteriormente, contudo, após o Tratado de Merger, tal nomeclatura foi deixada de lado e o termo “diretivas” passou a ser utilizado (C. Parry e J. P. Grant, Encyclopedia of International Law, New York, Oceana Publications, 1986, p. 330). O artigo 4º do Tratado de Locarno também determinava que as partes contratantes deveriam agir em conformidade com as recomendações do Conselho da antiga da Liga das Nações, aprovadas por unanimidade e excluídos os votos dos Estados partes na controvérsia em análise (J. P. Jacque, Élements pour une théorie de l’acte juridique en droit international public, Paris, L.G.D.J., 1972, p. 234). 5 Nos termos do artigo 2º do Projeto de Artigos da C.D.I. sobre a Responsabilidade dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos, a responsabilidade de um Estado está condicionada a ocorrência de violação de uma obrigação internacional desse mesmo Estado. Tal entendimento também encontra fulcro na jurisprudência internacional, como se identifica no caso da Usina de Chorzów (C.P.J.I., Série A, nº 9, p.21; C.P.J.I., Série A, nº 17, p.29), na Opinião Consultiva sobre a Reparação pelos Danos Sofridos à Serviço das Nações Unidas (C.I.J., Rec.1949, p.184) e também na decisão arbitral “Rainbow Warrior” (U.N.R.I.A.A., Vol. XX, 1990, p.251). Assim, já que as recomendações não são, a priori, instrumentos hábeis para criar obrigaçãos jurídicas aos Estados, o seu desrespeito não seria suficiente para ativar a responsabilidade internacional do Estado que age em desacordo com elas.

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da organização de origem. O artigo 2º, parágrafo 6º da Carta das Nações Unidas dá suporte a tal entendimento 6. Uma recomendação, contudo, pode ser igualmente dirigida a um outro órgão da mesma organização. Neste caso, segue-se, em princípio, a lógica da coordenação entre estes. As recomendações da Assembléia Geral dirigidas ao Conselho de Segurança em matéria orçamentária para as operações de manutenção da paz são bons exemplos7, sobretudo como confirmado pela jurisprudência da Corte Internacional de Justiça (C.I.J.), no Parecer Consultivo sobre Certas Despesas das Nações Unidas8. Contudo, tal capacidade é uma possibilidade e não uma obrigação. Em outras palavras, e invertendo o argumento inicial, observa-se que a coordenação entre os vários órgãos de uma organização internacional é o ideal. Entretanto, não há nenhum impedimento formal a que dois órgãos de uma mesma organização, desde que não sejam subordinados um ao outro, tenham eventualmente posições contrárias relativas a uma determinada matéria. Neste sentido, basta notar as posições do Conselho de Segurança e da Assembléia Geral em matéria relativa a relação entre o terrorismo e o direito a autodeterminação 9 . A natureza não vinculante de uma recomendação responde a esta paridade entre os órgãos que compõem uma organização. Diante de tal contexto, observa-se que o elemento determinante de uma recomendação é, verdadeiramente, a prática de um ato inserido no contexto de uma organização internacional destinado a terceiros e destituído de força obrigatória e vinculante. Os exemplos de atos dotados de tais qualidades são inúmeros e as consequências de tal pluralidade também são variadas. Por exemplo, aponta-se tanto os atos produzidos pelo Conselho de Segurança no contexto do Capítulo VI da Carta

 O artigo 2º, parágrafo 6º da Carta das Nações Unidas afirma: “A Organização fará com que os Estados que não são Membros das Nações Unidas ajam de acordo com esses Princípios em tudo quanto for necessário à manutenção da paz e da segurança internacionais.” O antecedente desse dispositivo foi o artigo 17 do Pacto da Sociedade das Nações, o qual afirmava: “Em caso de litígio entre dois Estados, dos quais um somente seja membro da Sociedade ou se nenhum deles fizer parte, o Estado ou os Estados estranhos à Sociedade serão convidados a se submeterem às obrigações que se impõem aos seus membros com o fim de se resolver a pendência, segundo as condições achadas justas pelo Conselho.” 7 Resolução da U.N.G.A. no. 55/235, UNDoc.A/RES/55/235, 30 de janeiro de 2001; Resolução da U.N.G.A. no. 64/269, UNDoc.A/RES/64/269, 3 de agosto de 2010; Resolução da U.N.G.A. no. 67/239, UNDoc.A/RES/67/239, 11 de fevereiro de 2013. Para fins de ilustração, o orçamento aprovado pela U.N.G.A. para operações de manutenção da paz das Nações Unidas para o ano fiscal de 1º de julho de 2015 a 30 de junho de 2016 é de aproximadamente 8,27 bilhões de dólares americanos, o que corresponde a menos da metade de 1% dos gastos militares mundiais. Em 2013, esses gastos foram de 1,747 trilhões de dólares americanos. Dados disponíveis em: . Acesso em: 08/10/2015. 8 C.I.J., Rec.1962, p.164. 9 L. N. C. Brant, “Terrorismo Internacional: A Guerra Preventiva e a Desconstrução do Direito Internacional”, Revista Brasileira de Estudos Políticos, Vol.90, 2004, pp.222-224. 6

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das Nações Unidas 10 , conforme disposto pela C.I.J. no caso Lockerbie 11 , quanto aqueles elaborados pela Assembleia Geral 12. Especificamente no tocante a preservação da paz internacional, a Assembléia Geral, assim como o Conselho de Segurança, podem ser acionados por qualquer membro da Organização ou pelo próprio Conselho a respeito de uma controvérsia ou situação passíveis de ameaçar a manutenção da paz ou a segurança internacionais13. Apesar da Assembléia Geral e do Conselho poderem ser provocados pelo mesmo objeto, cabe à primeira o papel de representação de uma espécie de consciência moral global. Ela goza de natureza associativa e plenária14 e, conforme o artigo 9º da Carta, “será constituída por todos os Membros das Nações Unidas”15, sendo que cada Estado tem direito a um único voto16. Tal natureza permitiu que lhe fosse delegada, segundo o artigo 10 da Carta, um poder geral de discussão e de recomendação17. A discussão seria uma fase prévia de caráter procedimental e preparatória. Ela antecede a decisão e possui natureza abrangente, já que a Carta delega competência à Assembléia Geral para discutir “quaisquer questões ou assuntos que

 Nota-se que o artigo 33, parágrafo 2º da Carta das Nações Unidas afirma: “O Conselho de Segurança convidará, quando julgar necessário, as referidas partes a resolver, [por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, solução judicial, recurso a entidades ou acordos regionais, ou a qualquer outro meio pacífico à sua escolha], suas controvérsias” (grifo nosso). Vez que cabe ao Conselho de Segurança meramente convidar as partes da controvérsia a resolve-la por meios pacíficos, esses convites não podem ser considerados vinculantes, mas apenas recomendatórios. 11 C.I.J. Rec. 1998, p.26. 12 Segundo o artigo 13, parágrafo 1º da Carta das Nações Unidas, “[a] Assembléia Geral iniciará estudos e fará recomendações, destinados a: (i) promover cooperação internacional no terreno político e incentivar o desenvolvimento progressivo do direito internacional e a sua codificação; e (ii) promover cooperação internacional nos terrenos econômico, social, cultural, educacional e sanitário e favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.” (grifo nosso) 13 O artigo 12, parágrafo 1º reconhece a distinção entre controvérsia e situação. Ainda que ambas as noções englobem uma ameaça grave à manutenção da paz e da segurança internacionais, elas não são sinônimas. Assim, apesar da Carta ter evitado definir essas noções, a doutrina entende por “controvérsia” uma contestação restrita às partes envolvidas. Ao contrário, uma “situação” representa uma noção objetiva destacada do comportamento dos Estados envolvidos e suscetível de ser encarada independentemente destes (O. Kimminich e M. Zockler, Article 14, pp.323-324. In B. Simma (org.), The Charter of the United Nations: A Commentary, Oxford, Oxford University Press, 1995). 14 O professor britânico Malcolm N. Shaw, chega a afirmar que a Assembleia é o “órgão parlamentar das Nações Unidas” (M. N. Shaw, International Law, 5ª ed., Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p.1087). 15 Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, de 22 de outubro de 1945, art.9º, parágrafo 1º. 16 Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, 22 de outubro de 1945, art.18, parágrafo 1º. 17 O artigo 10 determina: “A Assembléia Geral poderá discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das finalidades da presente Carta ou que se relacionarem com as atribuições e funções de qualquer dos órgãos nela previstos e, com exceção do estipulado no Artigo 12, poderá fazer recomendações aos Membros das Nações Unidas ou ao Conselho de Segurança ou a este e àqueles, conjuntamente, com referência a qualquer daquelas questões ou assuntos.” 10

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estiverem dentro das finalidades da presente Carta”18. Tal generalidade permite que a Assembleia Geral venha a discutir qualquer tema que não esteja confinado no domínio reservado dos Estados 19, conforme previsto no artigo 2º, parágrafo 7º da Carta das Nações Unidas 20 . Essas deliberações são feitas por meio de diversas comissões, cada uma delas contando com a representação de todos os membros da organização21. A única restrição, neste caso, repousa sobre a necessidade de que a matéria em pauta seja colocada na ordem do dia e, para isso, demanda-se unicamente uma maioria simples22. Após a discussão, nos termos do artigo 14 da Carta23 e, conforme lembrado pela C.I.J. no caso relativo à Certas Despesas das Nações Unidas, a Assembléia Geral pode “recomendar medidas próprias para assegurar a solução pacífica de qualquer situação” 24 . Mas qual é a real autoridade de tal recomendação para a formação do direito internacional? A resposta tem uma tripla conotação. Afinal, ainda que de natureza preponderantemente não vinculante, uma recomendação da Assembleia Geral terá inicialmente uma forte autoridade política. Nestes casos, tal recomendação goza de um alto potencial de convencimento na condução do comportamento dos sujeitos de direito internacional (A) 25 . Por outro lado, uma recomendação poderá ser igualmente dotada de um forte valor jurídico e, deste modo, ter uma forma quasi normativa. Nestes casos uma recomendação da Assembleia Geral terá a função reconhecida de contribuir de forma significativa para a formação do direito internacional (B) 26 . Finalmente, as recomendações da

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Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, de 22 de outubro de 1945, art.10. De acordo com Jean Salmon, o domínio reservado dos Estados é o "[...] domínio de atividades em que o Estado não é obrigado pelo direito internacional, gozando de uma competência totalmente discricionária e, consequentemente, não deve sofrer qualquer interferência de outros Estados ou organizações internacionais." (J. Salmon. Dictionnaire de Droit International Public, Bruxelas, AUF, 2001, p.356). 20 O artigo 2º, parágrafo 7º da Carta das Nações Unidas positiva que “[n]enhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII.” 21 Dentre as comissões criadas, destacam-se: a Comissão de Desarmamento e Segurança Internacional, a Comissão de Descolonização, a Comissão Econômica e Financeira, a Comissão Social Humanitária e Cultural, a Comissão Administrativa e Orçamentária e a Comissão Jurídica (M. A. Ribeiro, A Organização das Nações Unidas, Coimbra, Livraria Almeida, 1998, p.65). 22 Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, de 22 de outubro de 1945, art.18, parágrafo 3º. 23 No artigo 14 lê-se: “A Assembléia Geral, sujeita aos dispositivos do Artigo 12, poderá recomendar medidas para a solução pacífica de qualquer situação, qualquer que seja sua origem, que lhe pareça prejudicial ao bem-estar geral ou às relações amistosas entre as nações, inclusive em situações que resultem da violação dos dispositivos da presente Carta que estabelecem os Propósitos e Princípios das Nações Unidas”. 24 Certas Despesas das Nações Unidas, C.I.J., Rec. 1962, p. 163. 25 K. Hailbronner e E. Klein, Article 10, pp.273-274. In B. Simma (org.), The Charter of the United Nations: A Commentary, Oxford, Oxford University Press, 1995. 26 Caso sobre as Atividades Militares e Paramilitares dentro e contra a Nicarágua, Nicarágua v. Estados Unidos, C.I.J. Rec.1986, pp.99-100; A. T. Guzman e T. L. Meyer, “International Soft Law”, Journal of 19



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Assembleia são, ainda, capazes de criar uma situação jurídica nova que pode ser implementada de forma voluntária pelos Estados. Essa hipótese não diz respeito a incorporação da recomendação em uma das fontes primárias vinculantes do direito internacional,27 mas, na verdade, de atestar a sua execução espontânea (C).

I. A AUTORIDADE POLÍTICA DE UMA ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS

RECOMENDAÇÃO

DA

A autoridade das recomendações da Assembleia Geral pode levantar diferentes questões que vão muito além do reconhecimento da inexistência de sua força normativa obrigatória e vinculante. De fato, seus efeitos políticos no direito internacional são diversos e, em forte medida, constringentes. As razões para isso são múltiplas, mas decorrem, sobretudo, do fato de que os seus destinatários devem examiná-las de boa-fé28. A. A autoridade política de uma recomendação reside no fato de que ela obrigaria os seus destinatários a se manterem em uma posição defensiva. Em primeiro lugar, uma recomendação, em geral, obrigaria os seus destinatários a se manterem em uma posição defensiva. Os Estados sabem perfeitamente que, apesar de não estarem vinculados normativamente, tal recomendação pode interpretar o direito internacional ou mesmo antecipar novas regras que serão futuramente formadas. Neste sentido, por prudência e conveniência, elas devem ser levadas em consideração. Uma recomendação tem, portanto, a finalidade de inibir um determinado comportamento contrário a seus fundamentos, já que ela impõe uma exigência moral de explicação das razões que conduziriam o destinatário a produção de tal ato. Esse fenômeno se evidencia no não reconhecimento internacional de regiões separatistas cuja pretensão de independência foi rejeitada pela Assembleia Geral. A República do Nagorno-Karabakh é um exemplo. Ela consiste numa região de maioria armênia, localizada na parte oeste do território do Azerbaijão e que se autoentitula

 Legal Analysis, Vol.2, No.2, 2010, p.216; K. Hailbronner e E. Klein, Article 10, pp.268-273. In B. Simma (org.), The Charter of the United Nations: A Commentary, Oxford, Oxford University Press, 1995. 27 Essas fontes primárias se encontram listadas no artigo 38, parágrafo 1º do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. São elas: os tratados, o costume internacional e os princípios gerais de direito (Estatuto da Corte Internacional de Justiça, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, 22 de outubro de 1945, art.28, parágrafo 1º). 28 Procedimento de Votação das Questões Relacionadas aos Relatórios e Petições do Território do Sudoeste Africano, C.I.J. Rec.1955, Opinião Separada do Juiz Klaestad, p.88; Procedimento de Votação das Questões Relacionadas aos Relatórios e Petições do Território do Sudoeste Africano, C.I.J. Rec.1955, Opinião Separada do Juiz Sir Lauterpacht, p.119.

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um Estado independente e soberano. A sua pretensão separatista já resultou num conflito armado sério no Cáucaso, opondo, de um lado, o governo de Baku e, do outro, Nagorno-Karabakh e a Armênia. O conflito durou de 1992 a 1994 e terminou com a assinatura de um cessar-fogo29. Apoiando os interesses do Azerbaijão, a Assembleia Geral aprovou, em 2008, a Resolução no. 62/243, na qual se reafirmou a integridade territorial azeri30. Antes disso, duas outras resoluções mencionaram a situação crítica de NagornoKarabakh e fizeram referência a essa região como pertencente ao Azerbaijão 31 . Refletindo essa conjuntura, nenhum Estado reconheceu a independência de NagornoKarabakh até o momento, incluindo o seu maior aliado, a Armênia.32 Outro exemplo é a incorporação da Crimeia e da Cidade de Sebostopol ao território russo, em 19 de março de 2014, depois que um referendo foi realizado nessas duas regiões e cujo resultado foi favóravel a mudança territorial. A Assembleia Geral, por meio da Resolução no. 68/262,33 condenou tanto a realização desse referendo, quanto a subsequente incorporação34. Nessa resolução, atestou-se a invalidade do plesbicito separatista e afirmou-se o dever dos Estados e outras entidades de não reconhecer qualquer mudança nas fronteiras ucranianas 35. Diante disso, a anexação da Criméia e da Cidade de Sebostopol pela Rússia recebeu pouco

 29 S. E. Cornell, “The Nagorno-Karabakh Conflict”, Relatório nº. 46 do Departamento de Estudos da Europa Oriental, Universidade de Uppsala, 1999, pp.31-44. 30 Resolução da A.G.N.U. no. 62/243 UNDoc.A/RES/62/243, 25 de abril de 2008. Essa resolução foi aprovada com 39 votos favoráveis (Afeganistão, Azerbaijão, Bahrein, Bangladesh, Brunei, Camboja, Colômbia, Comores, Djibuti, Gâmbia, Geórgia, Indonésia, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbia, Malásia, Ilhas Maldivas, Marrocos, Moldávia, Myanmar, Níger, Nigéria, Omã, Paquistão, Qatar, Arábia Saudita, Senegal, Sérvia, Serra Leoa, Somália, Sudão, Turquia, Tuvalu, Uganda, Ucrânia, Emirados Árabes Unidos, Uzbequistão e Iêmen), 100 abstenções, 7 votos contrários (Angola, Armênia, França, Índia, Rússia, Estados Unidos, Vanuatu) e 46 Estados ausentes na votação. Dados disponíveis em: . Acesso em: 09/10/2015. 31 Resolução da U.N.G.A. no. 57/298, UNDoc.A/RES/57/298, 6 de fevereiro de 2003; Resolução da U.N.G.A. no. 49/13, UNDoc.A/RES/49/13, 15 de novembro de 1994. O Conselho de Segurança também já aprovou resoluções reafirmando a integridade territorial do Azerbaijão: Resolução do C.S.N.U. no. 853 (1993), UNDoc.S/RES/853, 29 de julho de 1993; Resolução do C.S.N.U. no. 874 (1993), UNDoc.S/RES/874, 14 de outubro de 1993; Resolução do C.S.N.U. no. 884 (1993), UNDoc. S/RES/884, 12 de novembro de 1993. 32 P. Carley, “Nagorno-Karabakh: Searching for a Solution”, Relatório do Instituto da Paz dos Estados Unidos, 1998, p.2; F. Ismailzade, “The Nagorno-Karabakh Conflict: Current Trends and Future Scenarios”, Artigo de Trabalho no. 11, Istituto Affari Internazionali, 2011, p.2. 33 Resolução da U.N.G.A. no. 68/262, UNDoc.A/RES/68/262, 27 de março de 2014. Essa resolução foi aprovada com 100 votos favoráveis, 58 abstenções, 11 votos contrários (Armênia, Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Nicarágua, Coréia do Norte, Rússia, Sudão, Síria, Venezuela e Zimbábue) e 24 Estados ausentes na votação. Dados disponíveis em: . Acesso em: 09/10/2015. 34 Resolução da U.N.G.A. no. 68/262, UNDoc.A/RES/68/262, 27 de março de 2014. 35 Resolução da U.N.G.A. no. 68/262, UNDoc.A/RES/68/262, 27 de março de 2014.

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apoio internacional, sendo que apenas Síria, Venezuela, Afeganistão, Cuba, Nicarágua e Coréia do Norte a reconheceram36. B. Uma recomendação pode consolidar certa legitimidade de contestação pública Uma recomendação pode, igualmente, servir para consolidar um determinado argumento jurídico. Neste sentido, ela gerará certa legitimidade de contestação pública que poderá ser exercida por meio de pressão psicológica proveniente de outros Estados, da própria organização ou mesmo de particulares. Ela gera, assim, uma presunção de legitimidade e autoriza o exercício dos controles globais de governança a agirem. Estes são evidentemente políticos, mas podem causar um desgaste relevante de imagem, que qualquer Estado pretende necessariamente evitar37. C. Uma recomendação pode apreciar o progresso ou as insuficiências da aplicação de certo conjunto normativo. É verdade que as controvérsias que surgem entre dois ou vários Estados perturbam suas relações mútuas. É também verdade que os Estados têm a obrigação de acertar suas controvérsias sem recorrer à força 38. É verdade, ainda, que os Estados podem escolher o meio de solução de controvérsias mais adaptado a seus interesses39. Enfim, é igualmente verdade que, apesar da diversidade das controvérsias internacionais, os modos de solução desses conflitos de interesse podem ser normalmente divididos em dois: o modo jurisdicional e o modo diplomático 40. A questão, então, é saber se a limitação do caráter operatório do sistema de solução de controvérsias, dividido unicamente entre estes dois modelos, não pode, por vezes, ser contraditório. Evidentemente, não se pode negar que quanto mais os Estados são próximos, mais seus interesses convergem, mais a solução de suas controvérsias é fácil e mais o modo de solução é flexível. Como sublinha Michel Virally, “se as relações entre dois Estados são verdadeiramente amigáveis, o recurso à negociação

 M. Seddon, “Crimea Has Voted to Join Russia in a Vote Recognized By Few Besides Russia”, BuzzFeed News, 16 de março de 2014; M. Rosenberg, “Breaking With the West, Afghan Leader Supports Russia’s Annexation of Crimea”, The New York Times, 23 de março de 2014; “Nicaragua recognizes Crimea as part of Russia”, Kyiv Post, 27 de março de 2014; A. Byrka, “Visiting Russia, Fidel Castro's Son Scoffs at U.S. Sanctions Over Crimea”, The Moscow Times, 1 de abril de 2014. 37 K. Hailbronner e E. Klein, Article 10, pp.273-274. In B. Simma (org.), The Charter of the United Nations: A Commentary, Oxford, Oxford University Press, 1995. 38 Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, 22 de outubro de 1945, artigos 2º, parágrafo 3º, e 33. 39 Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, 22 de outubro de 1945, art.33; Declaração de Manila sobre a Solução Pacífica de Controvérsias Internacionais, Resolução da U.N.G.A. no. 37/10, UNDoc.A/RES/37/10, 15 de novembro de 1982, art.I, parágrafo 3º. 40 P. Dailler e A. Pellet, Droit International Public, 6ª ed., Paris, L.G.D.J., 1999, pp.787-791. 36

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será espontâneo e suficiente. Neste caso, as obrigações de recorrer aos meios mais sofisticados de solução pacífica serão inúteis” 41 . No entanto, ainda que essa afirmação seja verdadeira, o contrário não se impõe de maneira tão clara. Na realidade, não seria razoável admitir que quanto mais os interesses se divergem, mais difícil será a negociação e que, por essa mesma razão, mais provável será o apelo à solução jurisdicional, que deverá impor uma obrigação normativa às partes em controvérsia42. Uma recomendação da Assembleia Geral ocupa, portanto, este terreno intermediário entre o caráter claramente obrigatório e definitivo da sentença internacional e a regulamentação diplomática, cuja solução é apenas proposta às partes. O nível progressivo de autoridade de uma recomendação a meio caminho entre a norma vinculante e uma mera proposta política autoriza a reconhecer que ela pode vir a atuar como mecanismo de controle e de apreciação do progresso ou das insuficiências da aplicação de certo conjunto normativo. Em razão de sua flexibilidade, ela pode ser mais adaptável e funcional. D. Uma recomendação pode ter um valor permissivo. Uma recomendação pode ter, igualmente, um proeminente valor permissivo. Certamente, uma recomendação da Assembleia Geral não garante um título executivo e normativo. Entretanto, ela representa um indicativo do posicionamento do direito internacional acerca de uma determinada matéria. Uma recomendação pode ser considerada, portanto, uma clarificação do direito internacional. Neste sentido, ela determina o terreno da legalidade. Assim, é certo que, na medida em que os Estados observam uma recomendação, seu comportamento não poderá ser julgado como ilícito e, consequentemente, sua responsabilidade não poderá ser invocada. Nesta esfera, uma recomendação da Assembleia Geral se transforma em uma proteção à ação dos Estados vis-à-vis do direito internacional. II. UMA RECOMENDAÇÃO AGIRÁ DE FORMA QUASI NORMATIVA E TERÁ A FUNÇÃO DE CONTRIBUIR DE FORMA SIGNIFICATIVA PARA A FORMAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL Ainda que se deva reconhecer a inexistência de força obrigatória das recomendações da Assembleia Geral e o relevante alcance de sua autoridade política, não se pode negar que tais recomendações gozam de um certo “valor jurídico” não negligenciável e já reconhecido pela jurisprudência da C.I.J. No Caso relativo à Licitude da Ameaça ou Uso de Armas Nucleares afirmou-se que “as resoluções da

 41 M. Virally, “Panorama du droit international contemporain: Cours général de droit international public”, R.C.A.D.I., vol. 183, 1983, p.238. 42 M. Virally, “Le champ opératoire du réglement judiciaire international”, R.G.D.I.P., 1983, pp.281-314.

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Assembleia Geral, mesmo que elas sejam desprovidas de força obrigatória, podem, por vezes, gozar de um valor normativo”43. Mas o que a Corte quer dizer ao fazer referência à expressão “valor normativo”? Na verdade, a principal jurisdição das Nações Unidas 44 está reconhecendo a capacidade das recomendações de agirem como instrumento processual e auxiliar de formação do direito internacional. Mas de que maneira tal fato se dará? Basicamente, as recomendações auxiliam a formação do direito por intermédio de outras fontes. Através desse processo, a obrigatoriedade do comando identificável na resolução e a abrangência de sua extensão decorrerão de uma norma posterior proveniente de uma das fontes principais competente para tal formação. A recomendação teria, assim, o papel de espelhar certo consenso e, deste modo, viabilizar a construção do direito internacional por outras vias 45 . Com isso, elas exercem uma influência notável no processo de adaptação do direito internacional às necessidades da sociedade internacional46. A. O papel das declarações Uma declaração da Assembleia Geral visa afirmar certos princípios de natureza fundamental. Seus efeitos, contudo, são por vezes extraordinários. Neste sentido, pode-se observar, por exemplo, a Resolução no. 2749 (XXV), de 17 de dezembro de 1970, que declara solenemente os novos princípios que devem reger os fundos dos mares e oceanos além dos limites das jurisdições nacionais 47 . Esta resolução vai inspirar as negociações que conduzirão a adoção da Convenção de Montego Bay, pela Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar 48 , convocada por outra resolução, de número 3067 (XXVIII), de 1976, igualmente adotada pela Assembleia Geral49.

 43

C.I.J. Rec. 1996, p. 254. Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, 22 de outubro de 1945, art.92. E. Jiménez de Aréchaga, International Law in the Past Third of a Century, Collected Courses of Hague Academy of Internacional Law, Vol.159, 1978, pp.12 e 31. 46 K. Hailbronner e E. Klein, Article 10, pp.267-268. In B. Simma (org.), The Charter of the United Nations: A Commentary, Oxford, Oxford University Press, 1995. 47 Resolução da AGNU no. 2749 (XXV), UNDoc.2749(XXV), 17 de dezembro de 1970. 48 O preâmbulo da Convenção de Montego Bay atesta: “Desejando desenvolver pela presente Convenção os princípios consagrados na Resolução n.º 2749 (XXV), de 17 de Dezembro de 1970, na qual a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou solenemente, inter alia, que os fundos marinhos e oceânicos e o seu subsolo para além dos limites da jurisdição nacional, bem como os respectivos recursos, são património comum da humanidade e que a exploração e o aproveitamento dos mesmos fundos serão feitos em benefício da humanidade em geral, independentemente da situação geográfica dos Estados”. Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, Convenção de Montego Bay, Montego Bay, Jamaica, 10 de dezembro de 1982, 6ª cláusula preambular. 49 Resolução da AGNU no. 3067 (XXVIII), UNDoc.3067(XXVIII), 16 de novembro de 1973. 44 45

202 X ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL

A Resolução no. 2749 (XXV) também teve papel fundamental para a adoção da Convenção para a Prevenção da Poluição Marinha por Operações de Imersão de Detritos e Outros Produtos50, cujo prêambulo a menciona expressamente51. Outro exemplo, e talvez o mais expressivo, é certamente aquele decorrente da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948,52 que inspirou inúmeras produções normativas acerca do tema e continua, ainda hoje, a fazê-lo53. Inicialmente, observa-se que, embora, em sua gênese, esta declaração tivesse uma forma não vinculante 54 , esta veio a se transformar em norma internacional obrigatória. Tal transmutação se deu inicialmente a partir de uma prática constante e do reconhecimento presente da opinio juris, o que permite afirmar que a Declaração Universal constitui hoje mera codificação de costumes internacionais55. Além disso,

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Convenção para a Prevenção da Poluição Marinha por Operações de Imersão de Detritos e Outros Produtos, Londres, 13 de novembro de 1972. 51 O prêambulo afirma: “Recordando a Resolução n.º 2749 (XXV) da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre os princípios que regem o leito do mar, o fundo dos oceanos e o seu subsolo, além dos limites da jurisdição nacional”. Convenção para a Prevenção da Poluição Marinha por Operações de Imersão de Detritos e Outros Produtos, Londres, 13 de novembro de 1972, prêambulo. 52 Declaração Universal dos Direitos do Homem, Resolução da AGNU no. 217A(III), UNDoc.A/810, 10 de dezembro de 1948. Ela foi aprovada com nenhum voto contrário, oito abstenções (União Soviética, Ucrânia, Bielorússia, Iugoslávia, Polônia, África do Sul, Tchecoslováquia e Arábia Saudita) e 48 votos favoráveis. 53 M. Shaw, International Law, 5ª ed., Cambridge, Cambridge University Press, 2003, pp.259-260. 54 A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi adotada na forma de um anexo à Resolução da AGNU no. 217A(III) e, portanto, não possui, em si mesma, efeitos vinculantes. A própria Eleanor Roosevelt, Presidente da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas durante a elaboração da Declaração, assim afirmou quando essa resolução foi adotada: “Ao dar a nossa aprovação à Declaração hoje, é de primordial importância que tenhamos claramente em mente o caráter básico desse documento. Ele não é um tratado; ele não é um acordo internacional. Não é e não pretende ser uma declaração de Direito ou de obrigações legais. É uma declaração de princípios de direitos humanos e liberdades básicas, a ser timbrada com a aprovação da Assembleia Geral por uma votação formal dos seus membros, e servir como um padrão comum a ser atingido por todos os povos de todas as nações.” (H. Hannum, “The status of the Universal Declaration of Human Rights in national and international law”, Georgia Journal of International and Comparative Law, Vol.25, 1995/1996, p.318) 55 Caso do Corpo Diplomático e Consular dos Estados Unidos em Teerã, Estados Unidos da América v. Irã, C.I.J. Rec. 1980, p.42; Opinião Consultiva sobre as Consequências Legais aos Estados da Presença Contínua da África do Sul na Namíbia (Sudoeste Africano) não obstante a Resolução do Conselho de Segurança no. 276 (1970), C.I.J. Rec. 1971, Opinião Separada do Vice-presidente Ammoun, p.76; Pedido de Revisão da Sentença No. 333 do Tribunal Administrativo das Nações Unidas, C.I.J. Rec. 1987, Opinião Dissidente do Juiz Evensen, p.173; Aplicabilidade do Artigo VI, seção 22, da Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, C.I.J. Rec. 1989, Opinião Dissidente do Juiz Evensen, p.211; H. Hannum, “The status of the Universal Declaration of Human Rights in national and international law”, Georgia Journal of International and Comparative Law, Vol.25, 1995/1996, p.319; J. von Bernstorff, “The Changing Fortunes of the Universal Declaration of Human Rights: Genesis and Symbolic Dimensions of the Turn to Rights in International Law”, E.J.I.L., Vol. 19, No. 5, 2008, p.913.

203 O Papel das Recomendações da Assembleia Geral das Nações Unidas na Formação do Direito Internacional

há aqueles que defendem a força obrigatória da Declaração por se tratar de instrumento que interpreta e complementa a Carta das Nações das Unidas 56. Mas a Declaração Universal irá, ainda, inspirar a formação de outras declarações, que, consequentemente, irão contribuir para a formação do direito internacional por via convencional 57. Este é o caso, por exemplo, da Declaração das Nações Unidas, de 1963, sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que encontra fundamento na Declaração Universal dos Direitos do Homem 58 e que será posteriormente seguida pela Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada em 21 de dezembro de 196559. A Declaração Universal terá, assim, uma abrangência de ação muito superior aos limites declaratórios de direito contidos em seu universo normativo originário. Ela guiará a constituição dos dois pactos sobre direitos humanos das Nações Unidas: um sobre os direitos civis e políticos 60 e outro referente aos direitos econômicos, sociais e culturais 61 , ambos adotados em 16 de dezembro de 1966. Ela será, igualmente, o denominador comum de base para quatro convenções regionais sobre os direitos do homem - a Americana, 62 a Européia 63 , a Africana 64 e a Árabe 65 .

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Caso sobre o Sudoeste Africano, Etiópia v. África do Sul, C.I.J. Rec. 1966, Opinião Dissidente do Juiz Tanaka, p.293. 57 M. Shaw, International Law, 5ª ed., Cambridge, Cambridge University Press, 2003, pp.259-260. 58 O seu preâmbulo menciona expressamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Considerando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que todos devem gozar da totalidade dos direitos e liberdades nela estabelecidos, sem distinção de qualquer espécie, especialmente no tocante a raça, cor ou origem nacional”. Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, Resolução da A.G.N.U. no. 18/1904, UNDoc.A/RES/18/1904, 20 de novembro de 1963, preâmbulo. 59 Assim, como a Declaraçao de 1963, essa Convenção também faz referência à Declaração Universal de 1948 em seu preâmbulo: “Considerando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que todos devem gozar da totalidade dos direitos e liberdades nela estabelecidos, sem distinção de qualquer espécie, especialmente no tocante a raça, cor ou origem nacional”. Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Resolução da A.G.N.U. no. 2106 (XX), Nova York, 21 de dezembro de 1965, 2ª cláusula preambular. 60 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Nova York, 16 de dezembro de 1966, Decreto no. 592, 6 de julho de 1992. O preâmbulo desse tratado afirma: “Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, no gozo das liberdades civis e políticas e liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado e menos que se criem às condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis e políticos, assim como de seus direitos econômicos, sociais e culturais” (3ª cláusula preambular). 61 Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Nova York, 16 de dezembro de 1966, Decreto no. 591, 6 de julho de 1992. O preâmbulo desse tratado afirma: “Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos” (3ª cláusula preambular). 62 O preâmbulo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos faz menção expressa à Declaração Americana e à Declaração Universal: “Os Estados americanos signatários da presente Convenção: [...]



204 X ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL

Finalmente, pela sua grandeza e importância, a Declaração Universal irá inspirar a constituição de tratados especializados em áreas temáticas da proteção dos direitos humanos. Neste sentido, observa-se a Convenção das Nações Unidas de 1979 sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres66, a Convenção de 1989 sobre os Direitos da Criança, 67 a Convenção de 1973 sobre o Crime de Apartheid68, dentre outras.69

 Considerando que esses princípios foram consagrados na Carta da Organização dos Estados Americanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que foram reafirmados e desenvolvidos em outros instrumentos internacionais, tanto de âmbito mundial como regional” (Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), San José, 22 November 1969, preâmbulo). Destaca-se que a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, mencionada no excerto acima, não faz referência à Declaração Universal das Nações Unidas, pois a Declaração Americana foi adotada sete meses antes da Declaração Universal. 63 Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, Conselho Europeu, Roma, 4 de novembro de 1950. O preâmbulo desse tratado afirma: “Considerando a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948” (1ª cláusula preambular). 64 Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (Carta de Banjul), O.A.U. Doc. CAB/LEG/67/3 rev. 5, 27 de junho de 1981. O seu preâmbulo afirma: “Reafirmando o compromisso que [os Estados africanos membros da Organização da União Africana], solenemente fizerem por meio do artigo 2º da [Carta da Organização da União Africana] para erradicar todas as formas de colonialismo em África, para coordenar e intensificar a sua cooperação e esforços para alcançar uma vida melhor para os povos da África e para promover a cooperação internacional, levando em consideração a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos” (4ª cláusula preambular). 65 Carta Árabe dos Direitos Humanos, Liga dos Estados Árabes, 22 de maio de 2004. O seu preâmbulo afirma: “Rejeitando todas as formas de racismo e Sionismo, que constituem uma violação dos direitos humanos e uma ameaça à paz e à segurança internacionais, reconhecendo a estreita ligação que existe entre os direitos humanos e a paz e a segurança internacionais, reafirmando os princípios da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e as disposições do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e, levando em consideração, a Declaração do Cairo sobre os Direitos Humanos no Islã” (5ª cláusula preambular). 66 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, adotada pela Resolução da A.G.N.U. no. 34/180, Nova York, 18 de dezembro de 1979, 2ª cláusula preambular. 67 Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução da A.G.N.U. no. 44/25, Nova York, 20 de novembro de 1989, Decreto no. 99.710, 21 de novembro de 1990, 3ª, 4ª e 8ª cláusulas preambulares. 68 Convenção Internacional sobre a Supressão e Punição do Crime de Apartheid, adotada pela Resolução da A.G.N.U. no. 3068 (XXVIII), Nova York, 30 de novembro de 1973, 2ª cláusula preambular. 69 Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, adotada pela Resolução da A.G.N.U. no. 45/158, Nova York, 18 de dezembro de 1990, 1ª cláusula preambular; Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, Nova York, 20 de dezembro de 2006, 2ª cláusula preambular; Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Nova York, 30 de março de 2007, Decreto no. 6.949, 25 de agosto de 2009, 2ª cláusula preambular; Convenção contra a Discriminação na Educação, U.N.E.S.C.O., 14 de dezembro de 1960, 2ª cláusula preambular; Convenção sobre o Consentimento para Casamento, Idade Mínima para Casamento e Registo dos Casamentos, adotada pela Resolução da A.G.N.U. no. 1763A (XVII), Nova York, 7 de novembro de 1962, 2ª e 3ª cláusulas preambulares.

205 O Papel das Recomendações da Assembleia Geral das Nações Unidas na Formação do Direito Internacional

B. As recomendações podem confirmar o direito costumeiro, traduzir uma opinio juris e, assim, contribuir para a formação do direito internacional por via consuetudinária Dependendo de seu conteúdo e das condições de sua adoção, as recomendações da Assembleia Geral também podem fornecer elementos de prova importantes para que se venha a estabelecer ou confirmar a existência de um direito costumeiro internacional70. Neste sentido, elas podem identificar uma opinio juris e também ilustrar a sua evolução progressiva ou mesmo traduzir um determinado consenso. Neste contexto, as recomendações da Assembleia Geral irão contribuir, de fato, para a formação da norma consuetudinária71. A decisão de mérito no caso das Atividades Militares e Paramilitares dentro e contra a Nicarágua, datada de 1986, constitui uma ilustração notável 72 . Nesse julgamento, a Corte afirmou que “[o] efeito do consentimento ao texto [das resoluções da Assembleia Geral] não pode ser meramente entendido como uma ‘reiteração ou elucidação’ do compromisso convencional assumido na Carta [das Nações Unidas]. Pelo contrário, pode ser entendido como uma aceitação da validade da regra ou conjunto de regras declaradas pela resolução”.73 A opinião consultiva da C.I.J. relativa a Licitude da Ameaça ou Emprego de Armas Nucleares também é um precedente importante nesse aspecto 74 . Nessa decisão, atestou-se que as resoluções da Assembléia Geral, apesar de não serem vinculantes, podem ter um valor normativo. Em determinadas circunstâncias, elas fornecem evidências importantes a fim de estabelecer a existência de uma regra ou o surgimento de uma opinio juris. Para determinar se esse é o caso de uma certa resolução da Assembleia Geral é necessário analisar o seu conteúdo e as condições da sua adopção. A C.I.J. ainda menciona que uma série de resoluções pode revelar a evolução gradual da opinio juris necessária para o estabelecimento de uma nova regra.75

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F. A. Kallás, Artigo 10, p.237. In L. N. C. Brant, Comentário à Carta das Nações Unidas, Belo Horizonte, CEDIN, 2008; K. Hailbronner e E. Klein, Article 10, p.271. In B. Simma (org.), The Charter of the United Nations: A Commentary, Oxford, Oxford University Press, 1995. 71 K. Hailbronner e E. Klein, Article 10, p.268-269. In B. Simma (org.), The Charter of the United Nations: A Commentary, Oxford, Oxford University Press, 1995; Resolução da A.G.N.U. no. 3232 (XXIX), UNDoc.3232(XXIX), 12 de novembro de 1974. 72 C.I.J. Rec. 1986, p.99-100. A seguinte passagem dessa decisão é notável para compreender o valor de opinio juris das resoluções da Assembleia Geral: “O efeito do consentimento ao texto [das resoluções da Assembleia Geral] não pode ser entendido como meramente uma ‘reiteração ou elucidação’ do compromisso convencional assumido na Carta [das Nações Unidas]. Pelo contrário, pode ser entendido como uma aceitação da validade da regra ou conjunto de regras declaradas pela resolução”. 73 C.I.J. Rec. 1986, pp.99-100. 74 C.I.J. Rec. 1996, p. 254. 75 C.I.J. Rec. 1996, pp.254-255.

206 X ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL

C. As recomendações podem servir como modelo de interpretação da carta constitutiva da organização internacional Pode-se igualmente verificar que todo Estado membro das Nações Unidas deve examinar uma recomendação da Assembléia Geral de boa fé, visto que esta representa a opinião da maioria dos seus membros. Neste sentido, as recomendações da Assembléia Geral podem ser vistas como um elemento hermenêutico não vinculante destinado a interpretar a carta constitutiva das Nações Unidas, conforme aquilo que foi aceito no momento da adesão ou da ratificação da mesma76. Diante de tal circunstância, dificilmente os Estados poderão se opor a tal leitura e uma recomendação poderá, assim, inspirar o desenvolvimento do direito internacional por outros modos vinculantes77. A C.I.J. é a detentora prioritária de tal função interpretativa. Afinal, é incontestável, como observa o Juiz José Francisco Rezek, que “a Corte é o intérprete definitivo da Carta das Nações Unidas. É à Corte que cabe proceder à determinação do sentido de cada uma de suas prescrições e do conjunto do texto” 78 . Essa competência é decorrente da sua função enquanto órgão judiciário principal da Organização das Nações Unidas79. Contudo, tal papel também é reservado às declarações. As declarações enunciam os princípios da Carta que são apresentados como uma evidência jurídica. Mas, mais do que isto, elas os complementam. Elas os densificam e, deste modo, apresentam uma interpretação própria da Carta. Esse é o caso da Declaração de 1970 sobre os Princípios de Direito Internacional relativos às Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados, anexada à Resolução no. 2625 (XXV). Essa declaração especifica o escopo dos setes princípios mais basilares do Sistema das Nações Unidas, sendo eles a proibição do uso ou ameça da força, a solução pacífica de controvérsias, não intervenção em assuntos internos, cooperação entre os Estados, igualdade e autodeterminação dos povos, soberania e a boa fé. Desta relevante força política das recomendações sucederá uma vocação à constituição da norma. Neste sentido, pode-se ter, como exemplo, a Resolução da Assembleia Geral no. 1514 (XV), que tem como anexo a Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais80. Por este instrumento não obrigatório, a Assembléia Geral impôs uma leitura anti colonial à Carta das Nações Unidas, que não estava prevista mesmo nos seus trabalhos preparatórios. Ela estabelece uma realidade de fato sobre a qual não poderia mais haver retorno. Tal

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Certas Despesas das Nações Unidas (Artigo 17, parágrafo 2º da Carta), C.I.J. Rec. 1962, p.168. K. Hailbronner e E. Klein, Article 10, p.271. In B. Simma (org.), The Charter of the United Nations: A Commentary, Oxford, Oxford University Press, 1995. 78 Caso sobre as Questões de Interpretação e Aplicação da Convenção de 1971 de Montreal resultantes do Incidente Aéreo de Lockerbie, Objeções Preliminares, Líbia v. Reino Unido, C.I.J. Rec.1998, Opinião Separada do Juiz Rezek, p.61. 79 Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, 22 de outubro de 1945, art.92. 80 Resolução da A.G.N.U. no. 1514 (XV), UNDocA/RES/1514(IV), 14 de dezembro de 1960. 77

207 O Papel das Recomendações da Assembleia Geral das Nações Unidas na Formação do Direito Internacional

recomendação aparece, assim, como a base normativa na qual irá se assentar todo o processo de descolonização81. Inúmeros são os exemplos de declarações interpretativas no direito internacional82, mas, novamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, terá um papel de destaque na representação da autoridade das recomendações na formação do direito internacional. Com efeito, na medida em que os dispositivos da Carta concernentes aos direitos do homem não foram definidos ou catalogados 83 , é natural que a sua interpretação viesse a ser feita a partir dos dispositivos previstos na Declaração. De fato, a necessária harmonia que deve existir entre a Carta e a Declaração Universal dos Direitos do Homem veio a ser prevista no caso do Corpo Diplomático e Consular dos Estados Unidos em Teerã84. Esta complementariedade terá, portanto,

 81 Depois da adoção da Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais, em dezembro de 1960, diversos territórios coloniais afroasiáticos se tornaram Estados independentes e soberanos. Destaca-se Burundi (1 de julho de 1962), Ruanda (1 de julho de 1962), Argélia (3 de julho de 1962), Uganda (3 de outubro de 1962), Singapura (31 de agosto de 1963), Quênia (12 de dezembro de 1963), Malawi (6 de julho de 1964), Zâmbia (24 de outubro de 1964), Gâmbia (18 de fevereiro de 1965), Ilhas Maldivas (26 de julho de 1965), Botsuana (30 de setembro de 1966), Lesoto (4 de outubro de 1966), Ilhas Maurício (12 de março de 1968), Suazilândia (6 September 1968), Guiné Equatorial (12 de outubro de 1968), Bahrein (15 de agosto de 1971), Qatar (3 de setembro de 1971), Emirados Árabes Unidos (2 de dezembro de 1971), Moçambique (25 de junho de 1975), Cabo Verde (5 de julho de 1975), Comores (6 de julho de 1975), São Tomé and Príncipe (12 de julho de 1975), Angola (11 de novembro de 1975), Ilhas Seichelles (29 de junho de 1976), Djibouti (27 de junho de 1977), Zimbábue (18 de abril de 1980), Brunei (1 de janeiro de 1984) e Namíbia (21 de março de 1990). 82 Pode-se citar: Declaração sobre a Soberania Permanente sobre os Recursos Naturais, Resolução da A.G.N.U. no. 1803 (XVII), UNDocA/RES/1803(XVII), 14 de dezembro de 1962; Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, Resolução da A.G.N.U. no. 18/1904, UNDocA/RES/18/1904, 20 de novembro 1963; Declaração sobre os Princípios de Direito Internacional relativos às Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, Resolução da A.G.N.U. no. 2625 (XXV), UNDocA/RES/2625 (XXV), 24 de outubro de 1970; Declaração sobre o Estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional, Resolução da A.G.N.U. no. 3201(S-VI), UNDocA/RES/S-6/3201, 1º de maio de 1974; Declaração sobre a Inadmissibilidade de Intervenção e Interferência nos Assuntos Internos dos Estados, Resolução da A.G.N.U. no. 36/103, UNDocA/RES/36/103, 9 de dezembro de 1981; Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, Resolução da A.G.N.U. no. 41/128, UNDocA/RES/41/128, 4 de dezembro de 1986; Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Resolução da A.G.N.U. no. 61/295, UNDocA/RES/61/295, 13 de dezembro de 2007. Nota-se que essa lista não exaustiva permite perceber a diversidade de áreas em que os Estados membros das Nações Unidas demonstram preocupação. 83 O artigo 1º, parágrafo 3º da Carta das Nações Unidas lista como propósito desta organização “[...] promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Contudo, nenhuma especificação sobre os deveres decorrentes desse propósito pode ser encontrada na Carta. 84 Nesse caso afirmou-se: “Privar injustamente seres humanos de sua liberdade e submete-los a restrição física em condições de sofrimento é, em si, manifestamente incompatível com os princípios da Carta das Nações Unidas, bem como com os princípios fundamentais enunciados na Declaração Universal dos Direitos Humanos” (C.I.J. Rec. 1980, p.42).

208 X ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL

uma consequência extraordinária, pois autorizará que a Declaração Universal seja vista como um instrumento capaz de elaborar uma interpretação autêntica da Carta85. Os efeitos de tal conclusão não são irrisórios. Como observou-se anteriormente, uma declaração não vinculante pode tornar-se vinculante por meio de sua transformação em norma proveniente de uma fonte principal. Esta norma pode mesmo ter seus efeitos normativos estendidos de maneira erga omnes, na medida em que sua elaboração se der por via consuetudinária. Entretanto, o que se nota aqui é uma outra realidade. Na medida em que interpreta de forma autêntica a Carta das Nações Unidas, uma declaração passa a ser a extensão da própria Carta. Nestas circunstâncias, ela poderá ser dotada de uma hierarquia decorrente da aplicação do artigo 103 da Carta 86 . Isto significa que as obrigações decorrentes da Declaração Universal, por exemplo, devem ser respeitadas mesmo pelos Estados que não ratificaram os pactos e convenções de direitos humanos. A declaração será imposta a eles como expressão do direito das Nações Unidas. Os deveres impostos pela Declaração Universal são, inclusive, superiores a qualquer tratado cujo conteúdo lhes seja contrário. D. O tratado constitutivo de certas organizações especializadas pode prever a natureza vinculante de determinada recomendação Uma recomendação de um determinado órgão integrante de uma organização internacinal pode tornar-se obrigatória pelo fato de que o tratado constitutivo da referida organização determina a sua natureza vinculante 87. Obviamente, tal natureza vinculante decorre do estatuto em questão e não da recomendação propriamente dita. Contudo, independente de tal fato, a norma é criada por intermédio de uma recomendação. Tal obrigação pode ter uma vocação externa e ser destinada aos Estados membros da referida organização. Esta realidade pode ser observada, por exemplo, no fato de que as recomendações decorrentes da conferência da Organização Internacional do Trabalho (O.I.T.) devem, no prazo de um ano, ser encaminhadas a cada Estado membro, para que possam ser transformadas em lei ou para que estes

 85 F. Gomez e K. de Feyter, International Human Rights Law in a Global Context, Bilbao, Universidade de Deusto, 2009, pp.223-225. 86 O artigo 103 afirma: “No caso de conflito entre as obrigações dos Membros das Nações Unidas, em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta.” 87 Esse entendimento não se aplica às resoluções do Conselho de Segurança aprovadas à luz do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, vez que, segundo os seus artigos 38 e 42, tais resoluções não assumem a forma de recomendações, mas de decisões vinculantes. O mesmo pode ser dito das Regulações, Diretivas e Decisões do Conselho da Europa e da Comissão das Comunidades Europeias, que também não podem ser consideradas recomendações, nos termos do artigo 189 do Tratado Instituindo a Comunidade Econômica Europeia (Roma, 25 de março de 1957).

209 O Papel das Recomendações da Assembleia Geral das Nações Unidas na Formação do Direito Internacional

venham a tomar as medidas correspondentes88. Neste sentido, os Estados devem, em seguida, informar o Diretor Geral do Escritório Internacional do Trabalho sobre as providências tomadas89. Este não é, todavia, o único exemplo. O tratado constitutivo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (U.N.E.S.C.O.) retomou tal modelo 90 e disposições similares podem ser igualmente encontradas nos tratados constitutivos da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (F.A.O.) 91 e da Organização Mundial da Saúde (O.M.S.).92 Contudo, a previsão estatutária da natureza vinculante de uma recomendação pode igualmente ter uma dimensão interna e ser dirigida a outros órgãos da mesma organização 93 . Nestes casos, o tratado constitutivo de uma determinada organização internacional especializada decidiu prever a subordinação hierárquica de um órgão sobre outro94. Novamente, a obrigatoriedade aqui não reside na natureza da recomendação propriamente dita, mas no condicionamento previsto no estatuto constitutivo da organização internacional95. Este é o caso, por exemplo, de certas recomendações de ordem interna da Assembleia Geral no que se refere à questões técnicas e de natureza organizacional como a admissão, a suspensão e a expulsão de membros96, as emendas no texto da Carta97, a eleição de membros para órgãos e comissões98 ou questões de natureza orçamentária99.

 88 Constituição da Organização Internacional do Trabalho, Conferência de Paz de Paris, 1º de abril de 1919, art. 19, parágrafo 6º, alínea “b”. 89 Constituição da Organização Internacional do Trabalho, Conferência de Paz de Paris, 1º de abril de 1919, art. 19, parágrafo 6º, alínea “c”. 90 O artigo VIII da Constituição da U.N.E.S.C.O. afirma que “[n]os momentos e da forma a ser determinada pela Conferência Geral, cada Estado Membro apresentará à [U.N.E.S.C.O.] relatórios sobre a legislação, regulamentos e estatísticas referentes às suas instituições e atividades de caráter educacional, científico e cultural, bem como sobre ações que tenham sido determinadas de acordo com recomendações e convenções [aprovadas pela Conferência Geral]”. 91 O artigo IV, parágrafo 3º da Constituição da F.A.O determina que “[p]ela maioria de dois terços dos votos dados, a Conferência [da F.A.O.] poderá fazer recomendações a Países Membros e Membros Associados sobre questões relacionadas com alimentação e agricultura a fim de que sejam consideradas com vistas à implementação pela ação nacional.” 92 O artigo 62 da Constituição da O.M.S. determina que “[c]ada Estado membro apresentará anualmente um relatório sobre as medidas tomadas em relação às recomendações que lhe tenham sido feitas pela [O.M.S.] e em relação às convenções, acordos e regulamentos.” 93 K. Hailbronner e E. Klein, Article 10, p.268. In B. Simma (org.), The Charter of the United Nations: A Commentary, Oxford, Oxford University Press, 1995. 94 F. A. Kallás, Artigo 10, pp.236-237. In L. N. C. Brant, Comentário à Carta das Nações Unidas, Belo Horizonte, CEDIN, 2008. 95 K. Hailbronner e E. Klein, Article 10, p.268. In B. Simma (org.), The Charter of the United Nations: A Commentary, Oxford, Oxford University Press, 1995; 96 Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, de 22 de outubro de 1945, arts.4º, 5º e 6º. 97 Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, de 22 de outubro de 1945, art.108. 98 Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, de 22 de outubro de 1945, art.18, parágrafo 2º. 99 Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Decreto no. 19.841, de 22 de outubro de 1945, art.17.

210 X ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL

A força vinculante de uma recomendação, através de um instrumento internacional, também fica evidente nas opiniões consultivas da C.I.J. Obviamente, um parecer consultivo dessa corte tem uma finalidade simplesmente não vinculante 100 . Entretanto, às vezes, este pode ser recebido como obrigatório, em virtude de cláusulas especialmente concebidas para esse efeito, as quais figuram em outros instrumentos distintos da Carta das Nações Unidas e do Estatuto da Corte Internacional de Justiça101. Na realidade, diferentes disposições convencionais podem atribuir ao parecer demandado à C.I.J., por exemplo, o valor de uma “decisão” de natureza vinculante. Este foi o caso da opinião consultiva de sua antecessora, a Corte Permanente de Justiça Internacional (C.P.J.I.), sobre os Decretos de Nacionalidade Emitidos na Túnisia e no Marrocos (1923)102. Porém, a obrigatoriedade de uma opinião consultiva pode igualmente estar prevista em um determinado estatuto de uma organização internacional com competência para demandá-la.103 Sobre o pano de fundo dessa constatação, colocase, pois, a questão de saber em que medida estas cláusulas contidas em convenções gerais ou nos estatutos de determinadas instituições são compatíveis com uma competência consultiva que, em si mesma, pode gerar apenas uma resposta

 100

Consequências Legais da Construção de um Muro no Território Palestino Ocupado, C.I.J. Rec. 2004, pp.127-128; Opinião Consultiva sobre a Interpretação dos Tratados de Paz com a Bulgária, Hungria e Romênia, C.I.J. Rec. 1950, p.71; Sahara Ocidental, C.I.J. Rec. 1975, p.24. 101 R. Ago, “Les avis consultatifs ‘obligatoires’ de la Cour Internationale de Justice: Problemes d’hier et d’aujourd’hui’, p.11.; In M. Virally, Le droit international au service de la paix, de la justice, et du développement, Mélanges, Paris, Pédone, 1991. 102 Os fatos relevantes ao caso remontam a emissão, pela França, de certos decretos estabelecendo critérios para a outorga de nacionalidade, a vigorar na Túnisia e no Marrocos. O Reino Unido contestou a aplicabilidade desses decretos aos nacionais britânicos residentes nesses dois Estados, demandando que a questão fosse submetida a arbitragem. A França se recusou a fazê-lo, alegando, inter alia, que a emissão de leis sobre nacionalidade estavam confinadas à jurisdição doméstica dos Estados. A disputa foi levada até o Conselho da Liga das Nações, que convenceu as partes a submeter suas diferenças à Corte Permanente de Justiça Internacional. Foi delegado a essa a competência para emitir um parecer consultivo apenas sobre o aspecto preliminar que estava impossibilitando a resolução do caso via arbitragem: o desacordo se regras de nacionalidade estão ou não dentro da jurisdição doméstica dos Estados. Ficou pactuado entre França e Reino Unido, que se a Corte Permanente concluísse que nacionalidade não fosse um aspecto da jurisdição interna, os dois Estados aceitariam levar a sua disputa para arbitragem. A Corte, no fim, rejeitou a tese da França, entendendo que seus decretos sobre nacionalidade não se encontravam em sua jurisdição interna. Com isso, essa opinião consultiva ativou uma obrigação internacional oponível à França e ao Reino Unido, no tocante ao dever dessas duas nações submeter suas diferenças para um tribunal arbitral (Decretos de Nacionalidade Emitidos na Túnisia e no Marrocos, C.P.J.I. Rec.1923, pp.7-8 e 31-32). 103 Destaca-se, por exemplo, o artigo 37, parágrafo 2º da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (O.I.T.), onde se lê: “O Conselho de Administração [da O.I.T.] poderá, não obstante o disposto no parágrafo 1º do presente artigo, formular e submeter à aprovação da Conferência, regras destinadas a instituir um tribunal para resolver com presteza qualquer questão ou dificuldade relativa à interpretação de uma convenção que a ele seja levada pelo Conselho de Administração, ou, segundo o prescrito na referida convenção. Qualquer julgamento ou opinião consultiva da Corte Internacional de Justiça aplicável será vinculante a qualquer tribunal estabelecido em virtude do presente parágrafo. Qualquer sentença pronunciada pelo referido tribunal será comunicada aos Estados-Membros [da O.I.T.], cujas observações, a ela relativas, serão transmitidas à Conferência” (grifo nosso).

211 O Papel das Recomendações da Assembleia Geral das Nações Unidas na Formação do Direito Internacional

desprovida de efeito obrigatório 104 . Trata-se, no caso concreto, por exemplo, de observar quais as consequências do artigo XII do Estatuto do Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho (T.A.O.I.T.), que além de tornar possível uma demanda de um parecer consultivo à C.I.J., estabelece que tal parecer terá força obrigatória.105 Não se trata neste caso de um recurso em apelação106. O parecer consultivo é um pronunciamento sobre uma questão jurídica encaminhada à Corte por um dos órgãos previstos no artigo 96 da Carta107. Ele tem o efeito de colocar em evidência um critério jurídico, sem que haja obrigação vinculante para o órgão que o solicitou ou para o Estado cuja conduta é objeto do parecer108. Neste caso, quando a Corte pronuncia um parecer consultivo, ela não age como uma segunda instância dotada da competência do efeito devolutivo próprio ao processo de apelação109, ou do efeito evocativo das novas demandas, ou dos novos meios110.

 G. Bacot, “Réflexions sur les clauses qui rendent obligatoires les avis consultatifs de la C.P.J.I. et de la C.I.J”, R.G.D.I.P., 1980, pp.1087-1089. O Artigo XII afirma o seguinte: “(1). Nos casos em que o Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho ou o Conselho de Administração do Fundo de Pensões contestar uma decisão do Tribunal confirmando a sua jurisdição, ou considerar que uma decisão do Tribunal se encontra em desacordo com uma regra procedimental fundamental, a questão da validade da decisão do Tribunal será submetida pelo Conselho de Administração à Corte Internacional de Justiça, para que esta emita uma opinião consultiva sobre a questão. (2). A opinião emitida pela Corte será vinculante.” Esse dispositivo já foi analisado pela C.I.J. em sua Opinião Consultiva sobre os Julgamentos do Tribunal Administrativo da O.I.T. sobre queixas apresentadas contra a U.N.E.S.C.O. (C.I.J, Rec.1956, p.84). Ademais, o artigo 11, parágrafo 3º do Estatuto do Tribunal Administrativo das Nações Unidas também estabelecia que os pareceres da C.I.J. sobre seus julgamentos seriam vinculantes. Contudo, em 1996, a Assembleia Geral das Nações Unidas, por meio da Resolução no. 50/54, excluiu o artigo 11 do Estatuto desse tribunal, alegando que a possibilidade de solicitar um parecer consultivo à C.I.J. não se revelou um elemento construtivo ou útil na adjudicação de disputas internas das Nações Unidas (Resolução da U.N.G.A. no. 50/54, UNDoc.A/RES/50/54, 29 de janeiro de1996). Além disso, o Tribunal Administrativo das Nações Unidas foi extinto em 2009, por uma reforma feita pela Assembleia Geral no sistema judicial interno das Nações Unidas. Ele foi substituído por dois órgãos: o Tribunal de Disputas das Nações Unidas (United Nations Dispute Tribunal) e o Tribunal de Apelações das Nações Unidas (United Nations Appeals Tribunal). 106 Opinião Consultiva sobre os Julgamentos do Tribunal Administrativo da O.I.T. sobre queixas apresentadas contra a U.N.E.S.C.O., C.I.J, Rec.1956, p.98-99; Opinião Consultiva sobre o Pedido de Revisão da Sentença nº 158 do Tribunal Administrativo das Nações Unidas, C.I.J., Rec. 1973, p.188; T. O. Elias, “The I.C.J., in the relation to the U.N. administrative tribunal”, pp. 253-312. In A. Pellet (org.), Les voies de recours ouverts aux fonctionnaires internationaux, R.G.D.I.P., 1981. 107 O Artigo 96 da Carta das Nações Unidas afirma: “A Assembléia Geral ou o Conselho de Segurança poderá solicitar parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça, sobre qualquer questão de ordem jurídica. Outros órgãos das Nações Unidas e entidades especializadas, que forem em qualquer época devidamente autorizados pela Assembléia Geral, poderão também solicitar pareceres consultivos da Corte sobre questões jurídicas surgidas dentro da esfera de suas atividades.” 108 J. Moussé, Le contentieux des organisations internationales et de l’Union européenne, Bruxelas, Bruylant, 1997, p. 670. 109 No direito processual brasileiro, o efeito devolutivo do recurso faz com que toda a matéria analisada pela instância inferior seja reexaminada na instância superior, para que a sentença recorrida seja anulada, reformada ou mantida. 110 Opinião Consultiva sobre os Julgamentos do Tribunal Administrativo da O.I.T. sobre queixas apresentadas contra a U.N.E.S.C.O., C.I.J, Rec.1956, Opinião Separada do Juiz Winiarski, pp.106-107; 104

105



212 X ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL

Segundo a própria C.I.J., “[...] a sua competência não é rejulgar o caso, mas apenas dar a sua opinião referente as questões submetidas à ela sobre os argumentos contrários ao Julgamento. Assim, a Corte não tem o direito de substituir o acórdão do Tribunal sobre os méritos do caso pelo seu próprio parecer. O seu papel é determinar se as circunstâncias do caso, no tocante aos aspectos do mérito da disputa ou às regras de procedimento, demostram que qualquer objeção feita ao julgamento [...] é procedente”111. Em outras palavras, os tribunais admitiram, simplesmente, que uma opinião de um órgão jurisdicional é obrigatória para eles. A obrigatoriedade do parecer consultivo, portanto, resulta não dele próprio, mas de uma disposição contida num instrumento autônomo que tem força de lei para os funcionários da referida organização internacional112. Nada, nem na Carta das Nações Unidas, nem em seu Estatuto, interdita o T.A.O.I.T. a considerar os pareceres da C.I.J. como obrigatórios113. III. UMA RECOMENDAÇÃO PODE CRIAR UMA SITUAÇÃO JURÍDICA NOVA IMPLEMENTADA DE FORMA VOLUNTÁRIA PELOS ESTADOS Uma outra questão diz respeito a execução espontânea de uma recomendação. Não se trata aqui de vê-la transformada em norma vinculante por força da atuação das fontes principais, mas sim de constatar sua implementação pelo desejo voluntário e facultativo de seus destinatários. De fato, diante da inexistência de regras jurídicas concernentes a determinado tema, nada impede que uma recomendação possa vir a criar uma situação jurídica nova. Assim, desde que um Estado não venha a violar o direito adquirido de outro, ele poderá voluntariamente decidir aplicar e implementar uma recomendação considerando-a como manifestação do direito válido. De fato, deve-se partir do princípio de que as recomendações são adotadas naturalmente com o

 Opinião Consultiva sobre os Julgamentos do Tribunal Administrativo da O.I.T. sobre queixas apresentadas contra a U.N.E.S.C.O., C.I.J, Rec.1956, Opinião Separada do Juiz Córdova, p.157. 111 Opinião Consultiva sobre o Pedido de Revisão da Sentença nº 158 do Tribunal Administrativo das Nações Unidas, C.I.J., Rec. 1973, pp.187-188. Apesar desse caso lidar com uma decisão do Tribunal Administrativo das Nações Unidas, o entendimento adotado na opinião pode ser perfeitamente aplicado ao T.A.O.I.T. 112 Opinião Consultiva sobre os Julgamentos do Tribunal Administrativo da O.I.T. sobre queixas apresentadas contra a U.N.E.S.C.O., C.I.J, Rec.1956, pp.84-85; Opinião Consultiva sobre o Pedido de Revisão da Sentença nº 158 do Tribunal Administrativo das Nações Unidas, C.I.J., Rec. 1973, p.182. 113 Opinião Consultiva sobre o Pedido de Revisão da Sentença nº 158 do Tribunal Administrativo das Nações Unidas, C.I.J., Rec. 1973, p.182. Nesse mesmo caso, a C.I.J. também concluiu que não há nenhum impedimento legal ao fato do Tribunal Administrativo das Nações Unidas considerar os seus pareceres consultivos vinculantes. Contudo, como exposto na nota de rodapé no. 105, a possibilidade de requerer esses pareceres consultivos foi extinta em 1996 e o próprio Tribunal foi extinto em 2009. Contudo, em 1996, a Assembleia Geral das Nações Unidas, por meio da Resolução no. 50/54, excluiu o artigo 11 do Estatuto desse tribunal, alegando que a possibilidade de solicitar um parecer consultivo à C.I.J. não se revelou um elemento construtivo ou útil na adjudicação de disputas internas das Nações Unidas (Resolução da U.N.G.A. no. 50/54, UNDoc.A/RES/50/54, 29 de janeiro de1996).

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objetivo de serem executadas. Como demonstrado por Hersch Lauterpacht, na sua opinião individual no caso do Procedimento de Votação das Questões Relacionadas aos Relatórios e Petições do Território do Sudoeste Africano, “as recomendações, em razão de sua própria natureza, não criam obrigações jurídicas que impõem a execução. Contudo, em certas circunstâncias apropriadas, elas constituem uma autorização legal que será dada aos membros da comunidade internacional de decidirem a se conformarem com ela, seja de forma individual, seja de maneira coletiva”114. Neste contexto, os Estados, de forma antecipada ou mesmo a posteriori, podem passar a considerar como vinculante uma determinada recomendação. Um exemplo marcante de tal fenômeno pode ser observado na Resolução Acheson115 no. 377(V) da Assembleia Geral, comumente conhecida como “Uniting for Peace”116. Esta resolução, adotada durante a Guerra da Coreia, em pleno auge da Guerra Fria 117, previa a possibilidade do recurso à força em condições não previstas pela Carta. Com efeito, ela favoreceu um alargamento dos poderes da Assembleia Geral, com vistas a compensar os fracassos do Conselho de Segurança. Tal resolução autorizava a Assembleia Geral a se auto convocar e decidir acerca da manutenção da paz, incluindo autorizando o uso de força militar, quando a unanimidade não puder ser alcançada entre os membros permanentes do Conselho de Segurança e, por esta razão, este faltar com sua responsabilidade 118 . Neste caso, a recomendação certamente não goza de força obrigatória, mas o Estado irá aplicá-la de forma voluntária tratando-a como direito. CONCLUSÃO Apesar de sua forma e estrutura parlamentares, a Assembleia Geral das Nações Unidas não é dotada de poderes legislativos. Suas resoluções não são juridicamente vinculativas aos Estados e, portanto, assumem a forma de recomendações. Apesar disso, muitas dessas redomendações têm efeitos extraordinários no processo de formação do direito internacional. Esses efeitos podem ser qualificados de forma tripartite.

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Opinião Consultiva sobre o Procedimento de Votação das Questões Relacionadas aos Relatórios e Petições do Território do Sudoeste Africano, C.I.J. Rec. 1955, Opinião Separada do Juiz Lauterpacht, p.115. 115 Essa resolução recebeu o acrônimo “Acheson” em homenagem à Dean Gooderham Acheson, Secretário do Departamento de Estado norte americano durante a Administração Harry Truman. Ele foi o idealizador dessa resolução e o responsável por convencer a Assembleia Geral a aprová-la. Diante disso, ela também recebeu o nome de “Plano Acheson” (C. Tomuschat, “Uniting for Peace”, Biblioteca Audiovisual das Nações Unidas sobre Direito Internacional, 2008, p.1). 116 Resolução da A.G.N.U. no. 377(V), UNDoc.A/RES/377(V), 3 de novembro de 1950. 117 B. Conforti, The Law and Practice of the United Nations, Leiden, Martinus Nijhoff Publishers, 2005, p.225. 118 Resolução da A.G.N.U. no. 377(V), UNDoc.A/RES/377(V), 3 de novembro de 1950, Parte A.

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Primeiramente, a ausência de uma estrutura normativa nas resoluçãoes da Assembleia não as privam de implicações políticas relevantes. O curso das relações internacionais não é determinado apenas pelas leis internacionais, mas também pelas forças políticas que constringem os Estados e é nesse âmbito que as recomendações possuem papel crucial. O fato de ser uma decisão colegiado tomada com a participação de todos Estados dá a elas um profundo poder de influência, colocando os Estados numa posição defensiva ou até mesmo legitimando formas descentralizadas de coerção política. Além disso, uma recomendação também possui um certo valor normativo ao assumir o papel de instrumento auxiliar na formação do direito internacional. Isso se dá por meio da incorporação do conteúdo dessas recomendações em tratados ou costumes internacionais. Elas podem, ainda, ser aplicadas como um relevante guia hermêutico para auxiliar a interpretação do tratado constitutivo da organização internacional que as emitiu. Por fim, como se identifica nas constituições da U.N.E.S.C.O., da F.A.O. e da O.M.S., as recomendações podem assumir uma força vinculante quando o tratado constitutivo de uma certa organização lhe outorga essa característica. Finalmente, as resoluções da Assembleia também podem estabelecer uma situação jurídica nova que, apesar de não ser vinculante aos Estados membros, é voluntariamente implementada por eles. Essas resoluções são aprovadas na Assembleia Geral pelo voto dado de boa fé pelos seus membros, de forma que a sua adoção naturalmente presume que elas serão executadas. A natureza não obrigatória dessas resoluções não pode ser vista como um obstáculo ao Estado que deseja executá-las com o intuito de evitar uma pressão política em decorrência da inobservância da recomendação.

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