O papel desafiador da música de Fela Anikulapo kuti no questionamento do poder

June 6, 2017 | Autor: R. de Lyra Lemos | Categoria: Música, Fela Kuti
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O PAPEL DESAFIADOR DA MÚSICA DE FELA ANIKULAPO KUTI NO QUESTIONAMENTO DO PODER Renato de Lyra Lemos1 Resumo: Este ensaio tem o intuito de contribuir para a fortuna crítica do músico nigeriano Fela Anikulapo Kuti, através de uma análise de suas obras com foco principal nas teorias de Walter Benjamin e Friedrich Nietzsche, corroborando assim com a visão de sociedade fornecida pela obra do compositor e em sua crítica à opressão sofrida pelas massas devido aos desmandos das classes detentoras do poder. Palavras-chave: Música, Filosofia, Fela Kuti, História. Na história, sempre houve indivíduos que protestaram contra as más situações cometidas pelos tiranos. Indivíduos esses que muitas vezes deixaram de lado o seu próprio bem estar em prol da coletividade, que não se importaram com os seus destinos, portanto que a justiça fosse alcançada, ou ao menos que a situação fosse exposta e contestada, não estando dispostos mais a sofrer calados. A prática da contestação foi se aprimorando com o passar dos séculos, apropriando-se da arte, e através dela, chegando a uma das formas mais impactantes que se foi possível encontrar para atingir os seus objetivos de questionamento de uma conduta autoritária: a música. Os homens, insatisfeitos, sempre se utilizaram das armas às quais tinham acesso, independentes de quais fossem, para que a batalha fosse travada. Discursos, panfletos, livros, pinturas, charges... à medida que a indústria cultural foi crescendo, novos meios foram surgindo, e cada vez com uma capacidade da difusão mais abrangente, causando um maior impacto. Dentre esses meios contestatórios surgidos, a música foi o que se demonstrou um dos mais abrangentes, mais tocantes, mais capazes de produzir uma reação, de se sobrepor aos poderes vigentes, de gerar grandes revoluções. “A música é a arma”, e a música específica à qual vamos abordar nesse ensaio é o Afrobeat, misto de Funk, HighLife e ritmos tradicionais africanos, criado pelo músico, compositor, ativista dos direitos humanos e dissidente político, Fela Anikulapo Kuti. A música de Fela Kuti ultrapassa as barreiras do protesto, as barreiras 1

Graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: [email protected]

geográficas da Nigéria e da África, ela reflete a realidade social dos povos oprimidos em todo o mundo. Ele dá voz às pessoas que não possuem liberdade de expressão e as incita a lutarem por seus direitos. Seus discursos musicais inflamatórios servem de combustível para a mente, fazem os indivíduos raciocinarem sobre a situação em que se encontram, e o ritmo frenético do seu Afrobeat serve de alimento para alma e de energia para o corpo, como uma trilha sonora que instiga a reação. De tão forte que é o contexto sócio-histórico da obra de Fela, de tão viva e nítida a imagem que ele apresenta em suas canções, torna-se impraticável a separação entre artista e obra. A vida de Fela é a sua própria obra, a sua representação. Nascido na Nigéria e educado em uma tradição de molde ocidental, Fela nunca se importou muito com as causas sociais, sua maior paixão era, definitivamente, a música. Numa excursão para os Estados Unidos ele conheceu Sandra Isidore, uma militante do Partido dos Panteras Negras, que o fez ler a biografia do líder negro Malcolm X e abriu os seus olhos para a situação do negro em todo o mundo, inclusive em sua terra natal. Ao voltar para a Nigéria, a Guerra de Biafra estava acabando, e sua consequência seria a morte de aproximadamente um milhão de pessoas. Fela Kuti, agora consciente da necessidade de lutar pelo seu povo, dá início a uma produção musical engajada, pautada nos problemas sociais que acometem os africanos e contra todo tipo de tirania e opressão. O discurso de Fela é direto e sem concessões. Em suas canções ele cita o nome de seus inimigos, nas capas de seus discos, ele imprime suas fotografias. A metralhadora oral de Fela Kuti não vacila; seus inimigos são muito mais fortes e poderosos que ele. Sejam líderes religiosos, políticos, militares ou mesmo donos de companhias multinacionais, a força com que ele prega seu discurso é a mesma, e isso acabou lhe causando uma série de perseguições como invasões à sua casa, atentados contra sua vida, prisões e processos (centenas de vezes). Estes infortúnios se estenderam até a sua morte em decorrência da AIDS, no ano de 1997. Ainda no início de sua luta contra a opressão da massa, Fela Kuti promoveu o início de um retorno à sua cultura ancestral, utilizando-se para isso da sabedoria do povo. Um ditado popular nigeriano, “Trouble sleep Nyanga go wake am” (Quando o problema dorme o orgulho vai acordá-lo), professado em Pidgin (misto de Inglês e Yorubá, utilizado pela classe operária nigeriana), serve de base para mais um discurso

de Fela. A música Trouble sleep Nyanga go wake am, retrata as adversidades que os cidadãos sofrem quando encontram-se sob alguma dificuldade e são empurrados até o seu limite. Quando a paciência desses indivíduos chega ao fim, a pessoa que os provocou acaba tendo de lidar com a ira destes, algo que não esperava. Este ditado, agora tornado discurso engajado, fala sobre a necessidade de respeitar as pessoas, de tentar resolver as situações amigavelmente, de não deixar o orgulho se impor. Fela utiliza diversas alegorias nessa canção, construindo assim um discurso que demonstra que a paciência possui limite. Para isso, ele utiliza-se de imagens como a de um inquilino desempregado do qual o senhorio vai cobrar o aluguel em atraso e de um ex-presidiário que está na rua procurando emprego e um policial acaba prendendo-o por vadiagem. Segundo Michel Zaidan Filho "[...] a linguagem alegórica é a única que se presta a resgatar a contra-memória dos oprimidos históricos de todos os tempos..." (ZAIDAN FILHO, 1989, p.51). Nesse sentido, Fela utiliza-se da alegoria como uma forma definidora do seu discurso, sem abrir concessões ou se esconder atrás dele, mas pelo contrário, se expondo totalmente, sempre como modo de dar voz à do povo. Através dessa composição, Fela demonstra o poder que o povo pode exercer, a força que é contida por trás da massa, coibida pelos poderes vigentes, mas com uma grande capacidade de inverter a situação. Ele se põe então como essa força condutora pela qual será possível a revolução, e da qual o povo necessita para se mover, e diz que isso só é possível através dele. Sobre esse processo moralizador do povo e sua possibilidade de reação, através de uma força externa, forçando-os a reagirem, Nietzsche reflete: "[...] a moral dos escravos necessitou sempre, em primeiro lugar, para emergir de um mundo oposto e exterior, em termos fisiológicos, de estimulantes externos para simplesmente agir - sua ação é fundamentalmente reação." (NIETZSCHE, 1997, p.35). Outra importante alegoria feita por Fela Kuti, acerca do papel essencial que o povo exerce na sociedade, e do seu poder de reação, é demonstrada através da composição Water no get Enemy (A água não ganha inimigos). A ”água” à qual o compositor se refere na música é uma expressão popular nigeriana que designa as pessoas comuns do povo. A água é um item essencial na vida das pessoas, não podemos viver sem ela, do mesmo modo não pode existir poder sem o povo, é ele quem consolida o estado, que faz as coisas se moverem. Portanto, o governo tem de tomar cuidado com o povo, não pode agir contra ele. Na menção de povo, Fela alude ao

homem negro, como essencial para a existência da civilização, e que portanto precisa ser respeitado, quando ele diz: I dey talk of Black man power I dey talk of Black power, I say I say water no get enemy If you fight am, unless you want die I say water no get enemy (Eu falo do poder do homem negro Eu falo do poder negro Se você lutar com eles, a menos que você queira morrer Eu digo que a água não ganha inimigos)2

Em uma das centenas de vezes em que ainda será preso, Fela vai parar numa delegacia de polícia de Alagbon, da qual ele nomeia uma nova música, Alagbon Close (Preso em Alagbon). Esse é o primeiro de muitos ataques que ele faria diretamente à polícia e sua brutalidade, mas além de um marco histórico na vida pessoal e musical de Fela, traria uma importante marca do processo contestatório de sua produção fonográfica: uma ilustração marcante do artista plástico Lemi Ghariokwu na capa do disco. A parceria de Lemi com Fela foi bastante duradoura, e as capas que o primeiro fez chamaram bastante atenção para os discos, além de imprimir primorosamente o conceito das músicas. Uma citação presente no encarte do disco, do filósofo grego Gerorge Mangakis, ressalta bem a concepção opressiva que Fela tenta passar. Tirada do trecho de uma carta que Mangakis escreveu na prisão, onde foi parar devido à sua oposição ao regime fascista grego, ele escreve: "O homem morre em todos os que mantêm silêncio em face da tirania. O homem vive naquele que no cruciante da angústia, nas garras do confinamento, fala." (MANGAKIS apud GBINIJE, 2003). Essa citação do filósofo grego, contrapõe-se a uma concepção de mímesis inicialmente definida por Adorno e Horkheimer, onde o homem a utilizaria como forma de assimilação, visando a sua defesa. Seria então uma concepção regressiva, onde o homem, com medo de lutar contra um inimigo ao qual acha que não têm chances, se assemelha a ele a ponto de passar despercebido. Segundo Jeanne Marie Gagnebin, sobre esse sentido de mímesis: "[...] na tentativa de se libertar do medo, o sujeito renuncia a se diferenciar do outro que teme para, ao imitá-lo, aniquilar a distância que os separa, a distância que permite ao monstro reconhecê-lo como vítima e devorá-lo." (GAGNEBIN, 2005, p.85) Esse conceito exprime um sentido de adequação do indivíduo ao sistema, ao 2

As traduções das músicas do Pidgin para o Português foram realizadas pelo autor.

Estado, que são forças pelas quais ele acredita não poder lutar contra. Fela porém, acredita no poder dos indivíduos de rebelar-se. Na letra da canção ele diz que é um ser humano como qualquer um, e que faz a sua parte. Ele fala que sem ele as pessoas sofreriam os desmandos da polícia, que sem ele as pessoas não seriam felizes: I de for court I de judge your case Without me policeman go lock you for life I de sing I de dance I de paint Without me you no go happy at all (eu vou para a côrte eu julgo seu caso sem mim o polical vai lhe prender para sempre eu canto eu danço eu pinto sem mim você não seria feliz de maneira nenhuma)

Como demonstrado anteriormente, Fela acredita que o povo só terá condições de rebelar-se através de alguém que o leve a isso, e ele então se elenca a esse papel de líder, de salvador do povo. Juan Carlos Portantiero, analisando esse tipo de pensamento em um ensaio sobre Gramsci, aponta que: "Esta associação entre uma massa que para se organizar e se distinguir necessita de intermediações dos intelectuais qualifica a hegemonia como um processo de constituição dos sujeitos sociais." (PORTANTIERO, 1993, p.48-49) Cada vez mais voraz em seus ataques ao governo militar nigeriano, Fela Kuti lança em 1977 o disco Zombie. Nesse disco, Fela critica o exército e a polícia, pela sua característica de obediência cega, sem questionamento, chamando aos soldados e policiais de "zumbis". Na letra da música que dá título ao disco, Fela fala sobre a incapacidade de ação dos zumbis, que agem apenas quando comandados, dizendo que "os zumbis não vão falar a menos que você mande-os falar, os zumbis não vão pensar, a menos que você mande-os pensar". Em seguida, ele cita os inúmeros movimentos de ordem unida dos pelotões, através da apresentação e da marcha, como se dirigir à direita, à esquerda, marcha lenta e atenção, como forma de demonstrar que eles não pensam por si próprios, que são apenas comandados, crítica que ele também faz na canção seguinte do disco, Mr. Follow Follow (Sr. segue segue), sobre as pessoas que se deixam guiar cegamente pelos outros, de forma a-crítica: Some dey follow follow, dem close dem eye Some dey follow follow, dem close dem mouth Some dey follow follow, dem close dem ear Some dey follow follow, dem close dem sense (Alguns seguem seguem e fecham seus olhos Alguns seguem seguem e fecham suas bocas Alguns seguem seguem e fecham seus ouvidos Alguns seguem seguem e fecham seus sentidos)

Esse modo de seguir as ordens sem questionamento, é criticado por Fela devido ao fator de violência gerado por essas forças, da truculência da polícia e do exército. Walter Benjamin, em seu estudo Crítica da Violência: crítica do poder,analisa o papel da violência na sociedade, como forma natural de exercimento do poder visando fins justos, através de meios justos. Mas o cerne do problema se encontra exatamente em definir a justiça nesses pontos. O governo autoritário da Nigéria tem uma concepção de justiça referente à sua necessidade, aos objetivos políticos que pretende atingir, formando um senso muito particular de justiça, justiça para poucos. Sobre esse tipo específico de utilização, Benjamin fala: "a violência é um produto da natureza, por assim dizer, uma matéria-prima utilizada sem problemas, a não ser que haja abuso da violência pra fins injustos" (BENJAMIN, 1986, p.1). Benjamim também aborda a "mentalidade da violência" como uma forma de afastamento de um ideal de nãoviolência através da decadência de pilares institucionais, como no caso do descrédito do governo nigeriano pela população. As críticas feitas por Fela sobre essas instituições e seus desmandos, ganharam eco no apoio popular através do grande sucesso obtido pelo disco. O resultado disso foi uma insatisfação por parte do exército, que se vingou com a invasão da moradia de Fela, a Kalakuta Republic, por 1000 soldados armados, espancando os moradores, estuprando as mulheres, saqueando e ateando fogo às casas, e jogando Fela e sua mãe Funmilayo pela janela. Os ferimentos sofridos por Funmilayo acabaram levando-a à morte (que será tema de um próximo disco: Coffin for the Head of State (Caixão para o chefe de Estado)). Visando proteger suas dançarinas e cantoras das constantes ofensivas acometidas contra elas quanto dos ataques à sua casa, Fela Kuti realizou uma cerimônia de casamento Yorubá, onde casou-se com 27 mulheres ao mesmo tempo. O inquérito aberto para apurar o caso da invasão militar à Kalakuta, acabou chegando à conclusão de que a invasão havia sido feita por soldados desconhecidos. Após a invasão da Kalakuta (o nome vem de um trocadilho com Calcutta, nome de uma cela na qual Fela foi preso), Fela gravou uma música chamada Sorrow, Tears & Blood (Tristeza, Lágrimas e Sangue), como uma resposta ao levante de Soweto contra o sistema segregacionista sul-africano. Ele culpava as forças opressoras da polícia e do exército pela matança desnecessária e pelo abuso de poder contra seu povo. Na letra da canção ele fala sobre a confusão causada pela chegada do exército e da polícia, instaurando a correria e o pânico, e que após a sua partida, ele deixam para trás apenas tristeza, lágrimas e sangue, a sua marca registrada. Em seguida, ele segue

falando sobre o medo constante que as pessoas sentem de lutar pelos seus direitos, pela sua liberdade, e que elas só querem ser felizes. Sobre os poderes de opressão e os seus desmandos, Fela especifica: “[...] então o policial vai esbofetear o seu rosto e você não vai falar, o soldado vai chicotear o seu traseiro e fazer você parecer com um jumento [...]”. O abuso de poder em Estados considerados do terceiro mundo, é em via de regra muito maior do que nos Estados considerados "civilizados", que possuem um controle maior sobre suas forças oficiais, civis e militares. Fela sempre deixou claras as suas insatisfações com esse tipo de ocorrido, e Benjamin também corrobora com esse pensamento quando diz que: [...] apesar de a polícia amiúde ter o mesmo aspecto em toda a parte, não se pode negar que seu espírito é menos arrasador na monarquia absoluta - onde ela representa o poder do soberano, que reúne plenos poderes legislativos e executivos - do que nos regimes democráticos, onde sua existência, não sublimada por nenhuma relação desse tipo, testemunha a maior degenerescência imaginável do poder (BENJAMIM, 1986, p.4).

Na virada dos anos 70 para 80 as críticas feitas por Fela passaram a ser cada vez mais elaboradas, como reflexos dos sérios baques sofridos por ele com a destruição de sua república e a morte de sua mãe. Nesse período, como um dissidente político inconformado, mas disposto a enfrentar a situação, ele cria o seu próprio partido político, o Movement Of the People (Movimento do Povo), e tenta se candidatar às eleições de presidente na Nigéria, porém a sua candidatura é recusada. Fela entra em um período de depressão e chega inclusive a pensar em suicídio. Seu ritmo de composição diminui, e o seu público começa a questioná-lo dessa situação. Como resposta, ele compõe Look and Laugh (Olhar e Rir), uma canção lenta na qual ele exprime a sua sensação de impotência pelo que está acontecendo, onde apesar de sua luta constante por mudanças, a situação ainda permanece a mesma, e só o que ele pode fazer é olhar e rir: Since long time I never wright nem thing Long time I never sing new song Many of you go dey wonder why Your man never sing new song Many of you go dey wonder why Your man never write new tune My brother, no be da be say, da by I won't keep quiet My brother, no be so da be say I no want write new song for you To make you think and happy Wetin I dey do be say I dey look and laugh (Desde muito tempo eu não escrevo nada de novo A muito tempo eu não canto uma música nova

Muitos de vocês devem estar se perguntando por quê Seu cara não canta músicas novas Muitos de vocês devem estar se perguntando por quê Seu cara não escreve novas composições Meu irmão, ele diz que eu não devo ficar calado Meu irmão, ele diz que eu não quero escrever músicas novas Para fazer ele pensar e ser feliz O que eu digo para eles É que eu só consigo olhar e rir)

Dando continuidade às suas críticas, Fela lança em 1981 a composição Power Show (Demonstração de Poder), fazendo novamente o uso de alegorias para falar sobre a tirania sofrida pelas classes menos privilegiadas, através do abuso de poder pelos que o possuem, e que fazem questão de demonstrá-lo a todo instante: Everywhere you dey Everywhere you go Everybody want do power show Na wrong show O (Em todo lugar que você está Em todo lugar que você vai Todo mundo quer demonstrar o seu poder É uma demonstração sem sentido)

A situação de se encontrar no poder e de querer subjugar, segundo Nietzsche, faz parte do mundo, da sua natureza, é a vontade de poder. De acordo com Nietzsche, "Exigir da força que não se exteriorize sob forma de força, que não seja um querer conquistar, um querer subjugar, um querer tornar-se dono, uma sede de inimigos, de resistência e de triunfos, é tão insensato como exigir da fraqueza que se exteriorize como força." (NIETZSCHE, 1997, p.42). Fela prega a inversão desse poder, a tomada de poder pelo povo, uma verdadeira revolução marxista. Walter Benjamin, analisando a questão do direito e do poder, chega a uma conclusão sobre a possibilidade do "poder revolucionário", como "a mais alta manifestação do poder puro, por parte do homem." (BENJAMIN, 1996, p.7). A máquina controladora do Governo continuou agindo na Nigéria mesmo após a suposta "saída" dos militares do poder. Fela denuncia em Army Arrangement (Armação do Exército), que o Presidente Obasanjo planejou as eleições levando novamente ao poder os mesmo políticos corruptos que já haviam estragado a Nigéria antes. Fela inicia a canção falando desse controle que Governo exerce sobre a população, num trecho onde diz: Whether you like or you no like After you hear this true talk If you like e good If you no like you hang If you hang you go die

You go die for nothing (Quer você goste ou não Depois que você ouvir essas palavras verdadeiras Se você gostar será bom Se você não gostar você vai para a forca Se você for para a forca você morrerá Você morrerá a troco de nada)

Sobre o poder impactante da verdade perante uma sociedade controladora e impositora de medo, onde dizer a verdade, ou mesmo não acreditar em uma versão da "verdade" elaborada pelos órgãos de repressão, pode lhe custar a sua vida, Nietzsche conclui: [...] o homem também quer apenas a verdade. Ele quer as consequências agradáveis da verdade, que conservam a vida; frente ao puro conhecimento sem consequências ele é indeferente, frente às verdades possivelmente prejudiciais e destruidoras ele se indispõe com hostilidade, inclusive. (NIETZSCHE, 1996, p.30)

Fela Kuti foi um líder nato, capaz de causar grandes polêmicas sobre a opinião pública e mexer com a cabeça dos governantes, a ponto destes buscarem retaliação. Sua obra musical têm um importante valor estético, devido à quantidade de referências musicais trazidas por ele, criando um som inovador ao lado do seu baterista Tony Allen (o vice-presidente do Afrobeat), que até hoje não perdeu o seu frescor. Ao lado dessa batida contagiante, o discurso social de Fela, impregnado de um ódio contra o jugo dos poderosos, capaz de infligir golpes fatais em seus inimigos. Quando falo nos inimigos de Fela, falo nos inimigos do povo: chefes políticos autoritários, donos de empresas inescrupulosos, líderes religiosos hipócritas, que acometem todo tipo de crueldade contra a massa, e que negam os seus direitos como cidadãos. Mesmo com o grande alcance que a música de Fela Kuti atingiu, causando grande impacto em todos os que tiveram contato com ela, uma de suas grandes desilusões se devia ao fato das pessoas não prestarem muito atenção em suas letras, na mensagem social que elas carregavam. Quanto mais ele se envolvia na militância, mais a sua música passava a servir como um instrumento de revolta, o que acabou frustrandoo muitas vezes. Porém, a mensagem de Fela, devido à imponência que representa, ecoa ainda hoje ao redor do mundo. A tradição deixada por ele é seguida pelos seus filhos, Femi e Seun Kuti, e por diversos fãs e adoradores de sua obra por todos os cantos do planeta. O pesquisador Markus Coester define bem as situações que Fela teve de passar para garantir o seu legado:

Fela Kuti foi exposto a forças totalitárias o tempo todo. Ele realizou suas letras com o risco permanente de sua liberdade, o que, presumivelmente, as tornou ainda mais valiosas e, uma força psicológica. Fela Kuti proveu o caminho na busca de uma identidade autônoma cultural. Ele perdeu todos os seus direitos. Sua "projeção de raiva sem medo" no entanto se tornou um meio de resistência cultural, algo que deixou seus vestígios em todo o mundo. (COESTER, 1998)

A utilização de um suporte teórico demonstra-se essencial a fim de dar uma maior significação à obra de Fela Kuti. Ao compactuar o seu pensamento com o de filósofos como Walter Benjamim e Friedrich Nietzsche, através de uma visão de mundo crítica e singular, fica clara a intenção de choque que o autor tenta causar, impactando a sociedade como forma de gerar uma reação. Esse tipo de análise comparativa demonstra ainda mais a essencialidade do seu estudo.

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