O Papel do escritor na sociedade democrática

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O Papel do escritor na sociedade democrática Francisco Soares

Foi pela amizade e pela solidariedade que me merecem pessoas que muito prezo que acedi a falar sobre o tema. Na verdade, o convite honrou-me, vindo de quem veio, mas deixa-me também numa situação delicada, uma vez que não estou mandatado por ninguém para representar os escritores, nem poderia estar, porque cada escritor se representa a si próprio exclusivamente. O que vou apresentar em seguida é por isso uma breve reflexão pessoal acerca de um assunto já discutido, mas que nem sempre foi questionado como vou fazer agora. Em primeiro lugar, uma reflexão sobre as palavras que usamos. Quando falamos em «escritor» pensamos num leque muito vasto de significados, que pode ou não incluir historiadores, intelectuais, oradores e pregadores mais talentosos no uso da palavra, ensaístas. Da mesma forma acontece quando falamos em «democracia», palavra com significado impreciso e variado. O escritor é aquele que dá uma especial atenção ao uso da palavra escrita. Por isso, em todas as variantes do discurso escrito podemos encontrar um ou mais escritores. Porém, quando me foi proposto o título da palestra, creio que a ideia era falar sobre os poetas líricos e os narradores, enquanto criadores de palavras e instiladores de estórias. Mais especificamente, sobre o seu papel específico no processo de construção de uma sociedade democrática. Liberdade Precisamente aqui deparamos com o outro núcleo terminológico que é preciso clarificar. A democracia assumiu já tantas formas e foi reclamada por tão diversos atores e sistemas políticos que é difícil encontrar-lhe um conceito consensual. Desde uma estrutura representativa centrada nos proprietários e nos homens, até às actuais partidocracias, há uma série de variações da palavra, que ainda suportou as democracias populares, revolucionárias, etc. No entanto, penso não interpretar mal o convite que me fizeram dizendo que, quando falavam em democracia, pensavam na liberdade. Liberdade também tem muitas definições, desde que surgiu para designar aquele que se libertou da escravatura por se ter depositado a respectiva libra na balança romana. Mas acho que nós pensamos em termos de nos sentirmos livres para debatermos ideias opostas ou diferentes. É nesse sentido que se pode encontrar um papel digno para o ‘escritor’ na ‘democracia’.

É um papel estruturando-se a vários níveis. O primeiro é o da actuação pública do autor em nome de determinadas causas, quer a sua literatura seja marcada por elas, quer não. É o nível por assim dizer directo de relação entre o escritor e a liberdade (se ele escolher esse lado, o da liberdade). Se o escritor fizer uma interpretação mais estrita do seu empenhamento público, então condiciona a obra à função de retransmitir um sinal ou um símbolo de filiação partidária. Surgem assim a poesia panfletária e a literatura empenhada, neo-realista, que tanta importância tiveram no combate revolucionário em todo o ‘Terceiro Mundo’. Eram, no entanto, literaturas com mensagem prédefinida, com o que davam um contributo fraco para a criação de hábitos democráticos, na medida em que a aceitação do imprevisível é uma das condições da liberdade. Ocorre-me, porém, esta pergunta: porque é que, na poesia, era possível passar essa mensagem com mais facilidade que no panfleto propriamente dito? Sabemos porquê: porque o panfleto era mais facilmente vigiado. Porque o poeta pode mexer nas palavras com mais liberdade. É-lhe reconhecido esse direito. A sua função acutilante, decisiva, então, não é a de contribuir pessoalmente para o processo político, mas a de testar artisticamente as condições do diálogo pelo uso inovador das palavras e das conexões entre elas. Veja-se, na nossa história, como a diversificação dos cânones literários se deu antes ainda da desmontagem do sistema de partido único. A nossa literatura tornou-se multipartidária ao longo dos anos 80; a nossa política tornou-se multirreferencial a partir dos ano 90. Isto acontece porque, para uma sociedade ou uma aspiração democráticas, o trabalho do poeta é o de reinventar as palavras de maneira a que exprimam a nossa atualidade. Recriá-las, seja na sonoridade, no campo semântico, no desenho gráfico, ou em vários desses níveis ao mesmo tempo. Ele pega numa palavra (vamos supor: ‘socialismo’) e vê se ela não se corrompe. Normalmente corrompe-se e, por isso, o artista tem que violar o consenso social sobre aquela palavra, tem que a mudar em algum aspecto, para extirpar a sua corrupção. Nem que seja dizendo “xuxialismo” ou “xuxualismo”. A linguagem e a prática da liberdade vão à poesia como o doente ao médico, o automóvel à oficina. A eficácia da cura deriva do facto de, antes de mais nada e acima de tudo, a poesia ter a função de dizer outra coisa, não o que se costuma ouvir, ou de falar de outra maneira, maneira e coisa que surpreendem e fazem hesitar até os lápis da censura. E, por sua natureza, fá-lo geralmente usando as palavras em vários sentidos possíveis, deixando no ar a hipótese de comunicarem esta ou aquela verdade. Por exemplo quando o poeta nos diz: “Fui à Rua da Maianga a ver se a via. Havia não” A palavra poética chama sempre a atenção para o que se alterou, enquanto o discurso totalitário tende para repetir a mesma coisa e para falar da mesma maneira, propondo ao leitor apenas um significado.

Se o poeta, portanto, vê onde a palavra faliu, ele denuncia o facto alterando-lhe sentidos, ou sentido e forma, como por exemplo fez Lopito Feijoo nas Cartas de Amor, menos apaixonado e menos distraído do que na altura parecia a alguns. Ou simplesmente o poeta viola as palavras com uma violência metafórica nova, capaz de lhe insuflar as velas com um sentido ainda não corrompido – como fazem José Luís Mendonça ou João Maimona. Ou, ainda, quando o narrador conta a estória que todos nós podíamos conhecer, com que todos nos identificamos, mas que ninguém tinha contado antes, pelo menos assim, como fez João Tala em Surreambulando. Para realizar esta função primordial o poeta precisa de experimentar livremente a linguagem, pelo menos em alguns dos seus níveis. Muito mais do que a qualquer outro ‘profissional’ é-lhe permitido, portanto, falar. Mas não se fica por aí o seu contributo. Representando esse papel, o de escrever outra coisa ou de outra maneira para nos dizer o que deixou de ser dito, o poeta obriga o leitor a repensar nas suas próprias palavras, nos seus valores e nas suas atitudes. Obriga-o a fazer uma espécie de liberalização interna, de relativização de certezas, pelo menos momentânea. Obriga o leitor a debater ideias consigo próprio, como se ele fosse uma espécie de Assembleia, não da República, mas do Pensamento. Ao induzir o questionamento pelo processo de leitura é que o escritor contribui, decisivamente, para que se instaure e mantenha um sistema ‘democrático’. Porque então a ‘democracia’ torna-se uma disciplina incorporada, um exercício pessoal e quotidiano de liberdade. E, sendo exercitada pessoalmente, a liberdade não adoece. O seu principal exercício é o da poesia na medida em que a poesia nos vem dizer algo novo, ou de uma forma inesperada, nos recorda o que já não eramos capazes de dizer. Algo essencial e que, sendo novo, nos recorda qualquer coisa que nos define a todos enquanto homens. De-graus Se há degraus para aprofundarmos a nossa liberdade iremos caminhando, sem violência sobre nós próprios, do novo quanto à forma, ou quanto ao conteúdo, para o simplesmente novo, inesperado. Coloca-se, neste ponto, uma inquietação ao nosso espírito: se o poema é tanto mais livre quanto mais inesperado, o poema totalmente livre será totalmente novo e um poema totalmente novo não se consegue ler. É um facto que, para compreendermos seja o que for, precisamos de usar algumas redundâncias, algumas palavras, figuras de estilo e tipos de ligações entre elas que já são conhecidas pelos leitores. Mas o poeta livre dirá o que falta sem correr o risco de se tornar ilegível porque o novo da poesia se destina a repor o essencial do ser humano. Esse risco afasta-se, portanto, na medida em que somos genuínos, na medida em que ser poeta implica sermos fiéis ao que sentimos, percebemos e pensamos de incontornável em nossas vidas.

Usando a palavra “genuínos” entro em novo risco de ambiguidade. Por isso esclareço-lhe o sentido específico. Lembremo-nos, por exemplo, de momentos em que o que sentimos, mesmo não sendo novo, não conseguimos exprimir com versos, frases, poemas, figuras de estilo, palavras que já lemos e recordamos. Fica sempre a sensação de ‘qualquer coisa por dizer’. Isso nos leva à consciência da intraduzibilidade. Mas não nos damos bem com o nada, seja ele o nadanada ou o nada de palavras, não aceitamos a intraduzibilidade, o nosso corpo foge instintivamente à morte, não suportamos a impossibilidade, nem conseguimos estar em silêncio muitos dias. Somos constantemente levados a tentar exprimir outra vez o que sentimos, ou pensamos, ou vislumbramos mas não conseguimos dizer, ou já não conseguimos dizer. É o que leva certas pessoas em desespero, descontroladas por um grande choque emocional, a repetirem muitas vezes palavras ou frases muito parecidas mudando-as em aspetos que nos parecem ínfimos. É o que torna certos ritmos obsessivos, regressando sempre ao mesmo ponto como se quisessemos perceber em que ponto se perdeu a ligação entre o que dizemos e o que sentimos ou pensamos. Atingimos, então, a fonte da fala, da poesia e do próprio ser humano: a luta pela expressão. Ao partirmos dela para novas palavras é que estaremos a ser genuínos, fiéis à fonte, estaremos assentes na raiz. Atingiremos, então, uma palavra livre, democrática, na medida em que a nossa exigência interior nos leva a só dizermos aquela, não pelo que ela já disse, mas pelo que ela ainda não foi capaz de exprimir sendo capaz de prometer. Essa palavra descolonizada do seu passado mas fiel à sua promessa é que nos livra, ao mesmo tempo, do arbitrário, do autoritário, do prévio e do ilegível. Uma palavra que nos desafia para o diálogo. (Texto inicialmente lido no Simpósio E depois da guerra que futuro para Angola? Amadora: Casa de Angola, 17-18 Novembro 2000. Mais tarde reformulado, em Évora, Junho de 2005 e Luanda, Novembro de 2013).

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