O PAPEL DO INTELECTUAL CABO-VERDIANO PÓS-INDEPENDENTE EM O MEU POETA, DE GERMANO ALMEIDA

May 31, 2017 | Autor: M. Andrade Gomes | Categoria: Identidade Nacional, Intelectualidade, Literatura de Cabo Verde
Share Embed


Descrição do Produto

ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O PAPEL DO INTELECTUAL CABO-VERDIANO PÓS-INDEPENDENTE EM O MEU POETA, DE GERMANO ALMEIDA MARIANA ANDRADE GOMES (UFBA) Ainda que tal afirmação possa parecer óbvia ou até mesmo desnecessária, acredito que seja relevante assinalar o meu lugar de fala enquanto pesquisadora estrangeira e brasileira que, por hora, não esteve em Cabo Verde. Faço tal colocação para destacar que todo o conhecimento que tenho acerca do país no qual debruço meus estudos foi granjeado através de textos bibliográficos, o que, de certa forma, limita meu horizonte crítico à leituras sociológicas, históricas, políticas e literárias realizadas por terceiras pesquisadoras e pesquisadores. Sinalizo isso não como forma de me esquivar de um debate crítico, mas sim, como uma forma de pontuar de onde parte minha perspectiva analítica e indicar possibilidades de revisões tanto nos campos teóricos quanto nas interpretações no decorrer desta pesquisa de doutorado. Após sublinhar o prisma analítico do presente texto, ressalto também que o presente estudo é um recorte da tese de doutorado em que analiso o riso político

na(s)

literatura(s)

de

Cabo

Verde

enquanto

formas

de

reivindicação/legitimação na construção de identidades nacionais. Com esta pesquisa proponho uma problematização das demandas literárias caboverdianas postuladas por escritores intelectuais, notadamente enfocando na figura de Germano Almeida, que buscam elaborar (até mesmo consolidar) em seus romances aspectos específicos de uma literatura que se traduza como plataforma da(s) nacionalidade(s) do arquipélago. Outrossim, demarco o caráter de construção dessas identidades nacionais para acentuá-las enquanto processo, elaboração, criação e negociação por meio das postulações de Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade (2006). Deste modo, compreendo as identidades nacionais como não essenciais ou autênticas, tampouco as entendo como definitivas ou generalizantes, seguindo as pressuposições de Hall (2006, p.38). Ademais, compactuo com a perspectiva estabelecida por Paul Gilroy em seu texto intitulado Identidade, pertencimento e a crítica da similitude pura (2007) no qual o autor destaca a identidade em seu aspecto político, concebida 822

ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

como produto do processo histórico, situada a partir de contextos históricos e moldadas pelos interesses de grupos (geralmente) dominantes que podem ser o Estado, uma nação, um movimento, uma classe ou “alguma combinação instável de todos eles.” (GILROY, 2007, p. 125). Destarte, a partir da concepção das identidades como constructos políticos, é mister enfatizar o caráter narrativo que estas assumem enquanto intersecção dos apontamentos teóricos de Gilroy e Hall. As identidades então passam a serem vistas sob a encruzilhada analítica cunhada por Hugo Achugar (2006) ao asseverar que sua elaboração se dá por meio de relatos; ficções que podem ser institucionalizadas e oficializadas (denotando seu aspecto político de acordo com Gilroy(2007)) através de negociações (o que evidencia seu caráter não essencial, semelhantemente ao que estabelece Hall(2006)) entre os círculos hegemônicos. Achugar no capítulo A nação entre a memória e o esquecimento: para uma narrativa democrática da nação (2006) sinaliza que as questões identitárias são elaboradas por intermédio de relatos que, em macro contextos, conformam a(s) ideia(s) de nação, por exemplo, surgindo de negociações que podem envolver “ativistas vinculados aos sujeitos sociais tradicionais”, novos sujeitos e intelectuais em um confronto pelo poder do discurso e pela representação. É a partir dessas discussões teóricas acerca das demandas identitárias que enfatizo a relevância do papel do intelectual – especificamente, o intelectual produtor de literatura – enquanto mediadores e criadores de narrativas de memórias definidos, logicamente, por marcadores ideológicos, que configuram determinadas identidades nacionais. Para iniciar essa proposta interpretativa, destaco a relevância que o grupo claridoso assumiu para/nas letras de Cabo Verde ao imprimir em suas obras

seus

posicionamentos

políticos-ideológicos

no

período

pré-

independência.

O protagonismo histórico, social e político da Revista Claridade De acordo com Maria Aparecida Santilli no livro Literaturas de Língua Portuguesa, Marcos e Marcas, Cabo Verde (2007), no primeiro número da 823

ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Revista Claridade, surgida em 1936 e findada em 1966 na cidade de Mindelo 173, subtitulada “Revista de arte e letras”, o percurso de “reencontro da identidade cabo-verdiana” (2007, p. 24) já era delineado. Aparecida Santilli destaca que a “caboverdianizão [sic] temática” encontrava-se na “raiz do pensamento claridoso” em seu compromisso de definir um “perfil do caboverdiano, pela perspectiva do próprio cabo-verdiano” (Ibidem, p. 23). Ao fazer uma síntese dos conteúdos das secções do primeiro número da Claridade, a autora realça os direcionamentos ideológicos assumidos por seus responsáveis, a saber, os escritores Manuel Lopes, Baltasar Lopes da Silva (sob o pseudônimo de Osvaldo Alcântara) e Jorge Barbosa. Na secção intitulada “Tomada de vista”, conforme postula a autora, as várias e breves observações, apresentam, quando compreendidas como conjunto, contornos de um manifesto no qual os posicionamentos ideológicos condutores da revista são explicitados. Em subpartes dessa secção alguns pontos são levantados como: a tentativa de invalidar a imagem do cabo-verdiano a partir de uma visão estigmatizada pelo exotismo – estigma esse carregado por todos os países do continente africano e,

como alternativa

para o esvaziamento dessa

característica depreciativa, a ligação com a África, nesses termos, deve ser rompida – e o dilema ir/ficar 174, no qual se assume o mote “fincar os pés na terra” como marca estratégica de valorização do país. Ainda sobre o protagonismo claridoso, é mister asseverar que, em face da exiguidade do mercado editorial nas ilhas, a difusão da literatura se dava por meio de periódicos e, tanto as estruturas quantos os conteúdos, permaneciam muito vinculados aos moldes da antiga metrópole – mesmo com a tentativa da geração dos nativistas em imprimir as cores cabo-verdianas às letras do país. Conquanto o surgimento da revista não tenha implicado no rompimento definitivo dos laços com Portugal, ressalta-se que essa demarcou, de acordo com José Carlos Gomes dos Anjos em Intelectuais, literatura e

173

José Carlos Gomes dos Anjos (2006, p. 148) pontua que a formação dos componentes claridosos foi realizada em Lisboa durante as décadas de 20 e 30, período de ápice do movimento modernista português que se contrapunha à vertente romântico-clássica. 174 Esse impasse simboliza o conflito interno da população do arquipélago afligida por intensas secas, solo pouco produtivo e restrito mercado de trabalho restando somente a emigração como possibilidade de sobrevivência.

824

ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

poder em Cabo Verde (2006, p. 76), a “independência literária 175 ” de Cabo Verde, representando o “marco fundador da nacionalidade do arquipélago”. Acerca do período histórico no qual a Revista Claridade se situa, Gabriel Fernandes em sua dissertação Entre a europeidade e a africanidade (2000), contextualiza a época de surgimento do periódico com a derrubada da República Parlamentar em Portugal no ano de 1926, seguida pela instauração do Estado Novo (1930-1933 176 ), como momento fulcral de alteração das relações entre os intelectuais cabo-verdianos e o poder colonial gerando repercussão no processo de construção simbólica de identidade. Fernandes (2000, p. 68-69) assinala que o compromisso assumido pelo novo regime de “salvar a pátria” trouxe como consequência a repressão de qualquer manifestação de caráter independentistas das colônias ao passo que também estimulou a difusão de ideais assimilacionistas e integracionistas. Segundo Gabriel Fernandes, interessava ao governo português promover quadros intermediários que servissem ao propósito de expandir o Estado. Nessa conjuntura: A mera possibilidade de os cabo-verdianos preencherem esse espaço abriu o caminho a um dos mais controversos períodos de produção simbólica de identidade, em que, embora reproduzindo a ambivalência discursiva e prática dos nativistas, a nova elite letrada despoja-a do seu potencial emancipatório e de resistência, apresentando, em seu lugar, um tipo de regionalismo que não podia significar mais do que um desdobramento do projeto uninacional. (Ibidem,p.69)

Assim, em consonância com a empresa de disseminação de ideais de unificação com Portugal, os claridosos pleiteavam um status de diferenciação em relação às outras colônias africanas, almejando ganhos políticos através desta coligação. Todavia, Fernandes declara que no plano prático essas regalias nunca foram concedidas à Cabo Verde e a esperada equiparação entre portugueses e nativos nos cargos da administração colonial nunca ocorreu. Ao passo que a legitimação por parte da metrópole nunca se efetuou, a “elite letrada”, como descreve Gabriel Fernandes (2000, p.70), também buscava ostentar valores que justificassem seu prestígio junto a população. 175

Afirmação do então presidente do Instituto Cabo-verdiano do Livro (ICL) em discurso anunciado durante a comemoração dos cinquenta anos de lançamento da Revista Claridade (ANJOS, 2006, p. 76). 176 Este regime só termina com a Revolução de 25 de abril de 1974.

825

ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Para tanto, não se escusava de lançar mão de expedientes que a aproximasse de Portugal, defendendo que Cabo Verde era uma região apenas afastada geograficamente da metrópole, e distanciando-se do continente africano de modo a livrar-se do já citado estigma do exotismo, além das figuras de miséria e atraso com as quais se costuma associar os países da África 177. Todavia, o papel de fundador da identidade nacional atribuído aos intelectuais claridosos tem sido reivindicado por grupos que, ora os situam como precursores do rompimento com Portugal, ora os compreendem como difusores da identidade regionalista e ainda vinculada à antiga metrópole. Nesses termos, José Carlos Gomes dos Anjos (2006, p. 83) assevera que os rituais de consagração da revista realizados nos anos 80 e 90 explicitam ainda mais o

anseio em inculcar os princípios identitários de uma “cabo-

verdianidade” inaugurada pelo movimento do que os próprios textos contidos na Claridade. Como exemplo disso, o autor postula: Durante a fase mais dura da Primeira República, Baltasar Lopes, embora considerado o maior escritor cabo-verdiano, foi condenado a um certo ostracismo, acusado de colaborador do regime fascista; hoje Baltasar Lopes é resgatado como um precursor do movimento nacionalista, ou, até, como fundador literário da nacionalidade. (Ibidem, p. 84)

Tal pontuação corrobora com a visão de que os relatos de memória são constantemente construídos e negociados a partir das necessidades e interesses de grupos dominantes; a imagem do famoso Nhô Baltas, como é popularmente conhecido em Cabo Verde, foi diametralmente definida com base nas demandas das conjunturas sócio-históricas nas décadas de 30 e posteriormente, nos anos 80 e 90.

A tradição intelectual em Cabo Verde: breves apontamos sobre a Claridade, elite letrada, apagamento seletivo do componente cultural africano e trânsitos pessoais Jane Tutikian em seu artigo O siso dO Meu Poeta: o riso do meu autor (2006) afirma que a independência política precedeu a independência cultural. A autora (2006, p.61) coloca que a realidade política e histórica de Cabo Verde 177

Esta discussão se enriquece demasiadamente quando se observa a construção da mestiçagem a partir dos claridosos. Como indicações de leitura sobre o assunto, as obras de José Carlos Gomes dos Anjos e Gabriel Fernandes citadas nas referências deste texto apresentam contribuições de relevo acerca da temática.

826

ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

se modificou após a instauração da emancipação em 5 de julho de 1975, mas pontua também que essa mudança foi gestada durante muito tempo atravessando questões como demandas étnicas, geográficas, culturais e políticas. É nesse cenário que a figura do PAIGC (1956) adquire relevo. O Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde foi liderado, inicialmente, por Amílcar Cabral, membro da minoria cabo-verdiana na Guiné Bissau, até seu assassinato anos antes da proclamação da independência. Cabral afirmava que “cultura não é sinal de libertação, libertação sim, é sinal de cultura” (Ibidem). Jane Tutikian (2006) também assinala que “Tudo isso representa um sofrido processo de conscientização cultural e nacional, até porque as independências

políticas

e

econômicas

normalmente

precedem

a

independência cultural que instaura, em última análise, a própria busca da identidade nacional.” (Ibidem). Tal colocação possibilita uma interpretação acerca dos proventos adquiridos durante e depois do processo emancipatório, mais notadamente, o incremento dos debates sobre as questões étnicas que se intensificaram nas produções literárias. Com o PAIGC e a figura cabralina, e anteriormente os contatos entre estudantes africanos de outras ex-colônias durante sua formação em Portugal – situação na qual o próprio Amílcar Cabral se encaixava –, a reivindicação da herança africana e a aproximação com países continentais, principalmente a Guiné-Bissau, foram intensificadas. Nesse sentido, José Carlos Gomes dos Anjos (2006) e Gabriel Fernandes (2000, 2002) discorrem sobre o (quase) efetivo esvaziamento do espólio africano pelas elites letradas cabo-verdianas. Ao adotar modelos ocidentais europeus o patrimônio da África era repelido, quando não objetificado por meio de identificações pejorativas do continente como exótico, como supracitado, não civilizado e meramente emocional, contrastado com a racionalidade e ilustração associadas à Europa. Como demonstração do apagamento do aspecto negro-africano da cultura cabo-verdiana, o próprio discurso sobre a mestiçagem como fruto de uma relação harmoniosa entre o homem branco europeu, que povoou nos primeiros momentos as ilhas, e a mulher negra escravizada reduz

827

ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

significativamente o conflito desta “união”, posto que o legado materno dos países africanos e das etnias que habitaram em Cabo Verde são violentamente obnubiladas. Na descrição dessa “junção” fornecida por João Lopes Filho (1983, p.19), o autor assinala o caráter não afetivo da ligação entre brancos e negras ao afirmar que isto ocorreu devido à escassez de mulheres brancas no arquipélago, em decorrência do envio pela coroa portuguesa somente de homens brancos para habitar as ilhas. Todavia, não fica explicitado que a relação entre os senhores colonos e as mulheres em condição de subserviência, obviamente, não foi consensual. Tampouco esse fato modificou o status dessas, pois, mesmo tendo relações sexuais, ou ainda vivendo “maritalmente”, nunca (ou raramente) foram oficializadas como esposas (posto que a maioria desses “patrões” possuíam cônjuges em Portugal). Desse modo, Onésimo Silveira em seu renomado (e polêmico 178 ) ensaio Consciencialização na literatura caboverdiana, lançado em 1963 e republicado em 2015, ressalta o afastamento que os intelectuais caboverdianos, notadamente, os claridosos, adotaram em relação ao aspecto negro-africano da população. Problematiza Silveira (2015, p. 21): Além de acusarem, como já dissemos, uma nítida fuga aos componentes negróides da cultura caboverdiana, há outro aspecto importante e correlacionado do problema, que se pode e deve pôr, das relações entre o povo e os criadores da moderna literatura caboverdiana; [...] A pretensa identificação mesmo em termos compensatórios seria inconciliável com a referida fuga aos elementos negróides da nossa cultura. Tanto uma coisa como a outra mostram que a literatura criada pelos claridosos muito aquém ficou de realizar a identificação entre escritor e povo; [...]

A partir deste texto, Onésimo Silveira (2015) evidencia o caráter elitista e eurocêntrico do mais celebrado movimento literário de Cabo Verde. Movimento este formado por “funcionários médios e profissionais liberais que publicavam poesias” (ANJOS, 2006, p. 75) e que transitavam por várias esferas da vida social e política do país. Uma ilustração desses trânsitos pode ser

178

Sobre a reverberação e a transgressão do texto de Silveira, Inocência Mata (2015, p.59) discorre: “E se hoje parece normal considerar-se polémico o ensaio de Onésimo Silveira, e até radical, deve dizer-se que nos anos de chumbo (e os anos 60 do século passado foram-no até à exaustão para as colônias portuguesas!) esse tipo de questionamento visava, como diria quarenta anos depois Gabriel Fernandes, , contra uma (Fernandes, 2002).”

828

ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

encontrada na trajetória de Baltasar Lopes. Formado em Letras, Filologia Romana, e frequentador ordinário do curso de direito, Lopes chegou a ser reitor do Liceu Gil Eanes em São Vicente e também exerceu a advocacia, defendendo causas sobre heranças dentre outras 179 . Sua relevância para o ensino no arquipélago ficou registrada ao adotar sua data de nascimento para a comemoração do dia do professor. Assim, percebe-se que a presença destes autores não se restringiu ao campo literário, posto que obtiveram notabilidade em outras searas, como no caso anteriormente citado de Baltasar Lopes. Nisto também se enquadra Germano Almeida que trafegou no mercado editorial, atuando na Ilhéu Editora 180 ; ambiente jurídico, sua ininterrupta carreira como reconhecido advogado; esfera política, como diplomata e deputado pelo MPD; e sua atividade literária, que lhe rendeu a epígrafe de famigerado escritor de repercussão internacional.

O meu poeta: rupturas ou continuidades?

Paula Gândara, autora de um dos primeiros estudos sobre a obra de Germano Almeida, aponta em seu livro Construindo Germano Almeida (2008) que se encontram muitas ressonâncias da escrita claridosa nos textos almeidianos, mais especificamente, sobressaindo-se o diálogo com o romance Chiquinho, de Baltasar Lopes. A pesquisadora descreve esta relação afirmando que: O espaço literário que enforma o texto almeidiano insere-se ainda na mesma ânsia de criação duma literatura nacional de que Claridade é índice primeiro. No entanto, este desejo de uma linguagem que seja espelho narcísico da nação espraia-se bem além de si, para outros espaços afirmativos onde o contexto social e político se enquadram com humor e ironia. (GÂNDARA, 2008, p. 10)

Nessa direção, Jane Tutikian (2006) também enfatiza os elos entre a Claridade e a produção de Almeida, no entanto, avança no sentido de assinalar uma “superação” que este realiza em detrimento do movimento literário: 179

Cf. Blog Made in Cabo Verde. Disponível em: . Acesso em 8 dez. 2015. 180 Além de ter sido um dos fundadores da Revista Ponto e Vírgula (março de 1983 a dezembro de 1987), e coproprietário do jornal Aguaviva (cf. TUTIKIAN, 2006, p. 64).

829

ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB [...] é importante observar que o escritor, mesmo sem romper com a tradição, vai além do Movimento Claridoso, sim. Deve-se a ele a revelação de uma nova face da literatura caboverdeana, na medida em que, distanciando-se dos temas eixos daquele movimento, como a fome, a seca e a emigração, (tão evidenciados em Cabo Verde-Viagem pela História das Ilhas, obra de 2003, onde revela o sofrimento e a resistência do povo) introduz o humor – e muitos o consideram verdadeiro cultor da ironia do Mindelo – na literatura caboverdeana. (TUTIKIAN, 2006, p. 64)

O próprio Germano Almeida reivindica a necessidade da “superação” do paradigma claridoso nas letras cabo-verdianas ao declarar que não houve uma ruptura entre essa geração e as contemporâneas, como se “dormir à sombra dos louros da ” (ALMEIDA, 1998, apud, TUTIKIAN, 2006, p. 64) bastasse às escritoras e escritores do arquipélago. O escritor alega que percorreu o mesmo percurso do famigerado movimento cinquenta anos

depois



possivelmente,

na

busca

de

uma

literatura

“mais”

nacionalista/regionalista –modificando o cenário para um aspecto mais urbano. Não obstante, Tutikian (2006, p. 64) enfatiza que houve sim uma “superação” da estética claridosa em Germano Almeida, e esta ocorreu por meio da utilização da sátira e do humor, sendo O meu poeta reconhecido como o primeiro romance “verdadeiramente” nacional da nova República de Cabo Verde. Entretanto, é necessário ressalvar que a linguagem humorística em Cabo Verde não teve como precursor Germano Almeida mas sim João Cleofas Martins, conhecido por Nhô Djungas, aclamado radialista do Mindelo. Mesmo atuando no meio radiofônico, Djunga oralizava suas crônicas, o que não as impedem de serem compreendidas enquanto narrativas dispostas em plataformas não literárias (posteriormente houve uma pequena compilação dos textos realizada por Arsénio D. Fermino de Pina em 2002, intitulada Coisas do Djunga). Ainda assim, a ironia com a qual Germano Almeida aborda a produção literária, o escasso mercado editorial e a estereotipização do escritor enquanto intelectual com aspirações a cargos políticos é intensamente potente e transgressor.

830

ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O personagem principal do romance, que não recebe nome 181, sendo conhecido apenas como Meu Poeta, pulveriza a crítica, transformando-o em um “tipo”. Sua adesão política varia conforme ascendem os grupos ao poder, aliando-se sempre a quem tem mais prestígio. No livro chega a ser pontudo que o crédito recaí muito mais no cargo que a pessoa ocupa do que em sua identidade enquanto individuo, daí a possibilidade do poeta como atemporal e típico. Já a reiteração dos valores nacionais simbolizados pela morna e pelo grogue também suscitam a interpretação da obra como procura pela identidade(s) nacional(is) além da constante reivindicação de uma literatura que esteja mais próxima da “realidade” cabo-verdiana. Contudo, cabe a indagação: que realidade é essa que ainda não se aproxima do aspecto negroafricano associando-se a paradigmas europeus/ocidentais? Há em Germano Almeida uma ruptura dos ideais claridosos ou apenas a linguagem humorística dá conta dessa “superação”?

REFERÊNCIAS ACHUGAR, Hugo. “A nação entre a memória e o esquecimento: para uma narrativa democrática da nação”. In: ______. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. ANJOS, José Carlos Gomes dos. Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde: lutas de definição da identidade nacional. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2006. FERNANDES, Gabriel. A diluição da África: uma interpretação da saga identitária cabo-verdiana no panorama político (pós)colonial. Florianópolis: Ed. UDFSC, 2002. _____________. Entre a europeidade e a africanidade: os marcos da colonização/descolonização no processo de funcionalização identitária em Cabo Verde. Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. Dissertação. Florianópolis: 2000. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/79058. Acesso em: 08. dez. 2015.

181

Os principais personagens do romance como o poeta e seu assistente não possuem nome.

831

ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GÂNDARA, Paula. Construindo Germano Almeida – a consciência da desconstrução. Lisboa: Vega, 2008. GILROY, Paul. “Identidade, pertencimento e a crítica da similitude pura”. In: ______. Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça. Trad. Célia Azevedo. São Paulo: Annablume, 2007. p. 123-162. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2006. LOPES FILHO, João. Contribuição para o estudo da cultura cabo-verdiana. Lisboa: Biblioteca Ulmeiro n. 15, 1983. MATA, Inocência. A Casa dos Estudantes do Império e o lugar da literatura na consciencialização. Lisboa: União das cidades capitais de língua portuguesa, 2015. SANTILLI, Maria Aparecida. Literaturas de língua portuguesa: marcos e marcas – Cabo Verde: ilhas do atlântico em prosa e verso. São Paulo: Arte & Ciência, 2007. TUTIKIAN, Jane. O siso dO Meu Poeta: o riso do meu autor. Via Atlântica, n. 10. São Paulo, dez. 2006. Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2015.

832

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.