O papel dos militares na história da Fronteira Oeste gaúcha: das guerras platinas às operações de vigilância no século XXI. Anais do IV Encontro Internacional de Ciências Sociais. Pelotas-RS: UFPel, 2014.

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O papel dos militares na história da Fronteira Oeste gaúcha: das guerras platinas às operações de vigilância no século XXI Camilo Carneiro Filho1 Pós-Doutorando no PPGEEI/UFRGS [email protected] Mario Luiz de Oliveira Graduando de Relações Internacionais/UNIPAMPA [email protected]

Resumo: A Fronteira Oeste gaúcha configura uma região com uma história, tradições e cultura características que a diferenciam significativamente de outras regiões brasileiras. Como todo espaço sociogeográfico, a Fronteira Oeste é uma construção social, sendo o passado de guerras e batalhas contra os castelhanos um traço formador de sua identidade. Sua história está intimamente ligada à presença de destacamentos militares estabelecidos para a defesa contra possíveis invasores estrangeiros. Não por acaso essa parte do território gaúcho se encontra em uma área considerada de segurança nacional pela legislação brasileira. Ainda que a presença de um grande número de destacamentos militares em cidades da Fronteira Oeste seja uma realidade antiga, nos últimos anos, a região vem sofrendo os impactos da política do governo federal destinada à faixa de fronteira do Brasil. Uma política que destaca as antigas funções da fronteira – segurança e controle – por meio de operações como a denominada Ágata. Essas operações, onde o Exército trabalha em conjunto com uma série de órgãos federais, alteram o cotidiano dos habitantes da zona de fronteira. O presente trabalho busca apresentar os principais eventos bélicos e os tratados dos séculos XVIII e XIX que contribuíram à formação do folclore e do imaginário coletivo na Fronteira Oeste gaúcha, bem como analisar o papel do Exército na política contemporânea do governo brasileiro voltada para a fronteira. Palavras-chave: Fronteira Oeste; Exército Brasileiro; guerras platinas; cidades gêmeas; operação Ágata.

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Pesquisador do Projeto Fronteira Sul (apoio CAPES/Pró-Defesa), coordenado pelo Prof. Aldomar Rückert (CNPq e UFRGS). Bolsista Pós-Doc (CAPES) no PPGEEI sob supervisão do Prof. Paulo Visentini.

Introdução

O território que hoje corresponde ao Uruguai e ao estado do Rio Grande do Sul foi originalmente habitado por índios charruas e guaranis, recebeu reduções jesuíticas e só passou a receber maior atenção das coroas ibéricas pouco mais de um século após a chegada dos europeus na América devido a distância do litoral, a inexistência de grandes concentrações populacionais e a ausência de metais preciosos (ALBORNOZ, 2000). Somente a partir do século XVII, a região passou a ser impactada de forma mais efetiva por iniciativas das coroas ibéricas, atraídas pelo grande contingente de gado selvagem, oriundo das Missões Jesuíticas. No início do século XVII, os pampas do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina estavam povoados de cavalos (que haviam sido abandonados na região do Prata em 1536 e tinham se multiplicado aos milhares) e o povo que vivia nessa região se tornou um povo cavaleiro. A posterior introdução do gado bovino, que também tornou-se abundante nos atuais territórios do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina, sedimentou uma nova cultura. O gado solto e sem dono passou a ser caçado por homens que posteriormente viriam a ser conhecidos por gauchos (gaúchos). Além de constituir a base da alimentação o gado fornecia produtos que seriam comercializados ou contrabandeados. Na origem da formação do gaúcho, sobretudo o da fronteira, também devem ser destacados os índios pampeanos. Sua miscigenação com o europeu fundiu as culturas ibérica e americana. Muitas foram as denominações antecessoras da palavra gaúcho, que surgiu em crônicas de viajantes na América do Sul por volta de 1770, denotando os homens do pampa (também denominados vagabundos do campo, mozos perdidos, gaudérios, etc.) presentes no Rio Grande do Sul, no Uruguai e na Argentina (BRAZ, 2014). O surgimento do gaúcho, homem do campo que atravessava fronteiras entre Estados distintos, sem reconhecê-las, pouco ou nada subordinado a leis, moldou uma nova cultura em uma região onde a presença e o controle do Estado era muito frágil e em alguns casos inexistente. Uma cultura que surgiu em meio a numerosas alterações sofridas pelas fronteiras platinas ao longo de séculos, em decorrência de uma série de batalhas e tratados. A constituição da fronteira Brasil-Uruguai foi o resultado de confrontos entre as coroas ibéricas que tiveram prosseguimento com as independências das colônias

sul-americanas – Questões Platinas (1816 a 1870). A linha internacional só tomou as proporções atuais após uma série de eventos. No início do século XIX houve a incorporação do Uruguai – província Cisplatina (1821 a 1828) – pelo Brasil, imbróglio resolvido com o Tratado de Paz de 1828, assinado pelo Império do Brasil e pelas Províncias Unidas do Rio da Prata. Posteriormente, foram firmados tratados de fronteira entre Brasil e Uruguai em 1851, 1852 e 1853, mas as pendências só encontraram solução após a intervenção do Barão do Rio Branco, com a assinatura do tratado de 1909. O passado histórico, repleto de disputas territoriais, faz da fronteira meridional do Rio Grande do Sul uma região muito diferente das demais regiões do estado. Fato possível de ser atestado ao se analisar a forma de regionalização dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul – COREDES –, onde os municípios da fronteira meridional estão agrupados em três conjuntos – Fronteira Oeste, Campanha e Sul –, enquanto os demais municípios gaúchos estão reunidos em outros vinte e cinco agrupamentos, de tamanho bem mais reduzido. A Fronteira Oeste gaúcha é uma região do estado do Rio Grande do Sul formada pelos municípios de Alegrete, Barra do Quaraí, Itaqui, Maçambará, Manuel Viana, Quaraí, Rosário do Sul, Sant’Ana do Livramento, São Borja, São Gabriel e Uruguaiana. Além de ter sido impactada pelas guerras entre luso-brasileiros e castelhanos, a identidade fronteiriça também sofreu influência da presença militar, da pecuária bovina (ainda hoje atividade econômica de destaque na região) e das reduções jesuíticas. As numerosas semelhanças histórico-culturais justificam por que a identidade dos habitantes da Fronteira Oeste é marcada por um hibridismo e mesmo por uma verdadeira sobreposição de identidades. Situação aprofundada a cada dia pelos profundos laços entre fronteiriços gaúchos e uruguaios. Não obstante, no contexto da poesia regional do Rio Grande do Sul, a fronteira indica genuinidade, ou seja, o gaúcho mais gaúcho é aquele que reside na fronteira. Corroborando com esse entendimento, Bento (2012) afirma que ainda que fronteiras sejam lugares de passagem, existem exceções, como a de algumas cidades da fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, caso de Sant’Ana do Livramento e Rivera, por exemplo, onde a fronteira é vivida no cotidiano de uma conurbação binacional. Na fronteira, a proximidade entre brasileiros e uruguaios pode ser notada através das semelhanças culturais, do cristianismo, da existência de famílias mistas, do

portunhol e dos DPUs – dialetos portugueses do Uruguai –, falados em algumas áreas do norte uruguaio. Apesar dos laços que atestam uma integração de fato entre as cidades e os povos da fronteira dos dois países, nos últimos anos, a política do governo brasileiro direcionada à fronteira tem dado enfoque às tradicionais funções de controle e segurança. Nesse contexto, desde 2011, as Forças Armadas brasileiras, através das edições da operação Ágata, têm efetuado o combate à criminalidade, sobretudo ao narcotráfico e ao contrabando, nas fronteiras terrestres do Brasil.

O papel do Exército na expansão e consolidação das fronteiras

A história da construção da fronteira meridional do Brasil foi resultado de um processo de conquistas e perdas militares. No período colonial, os tratados firmados entre as potências da Europa nem sempre eram cumpridos em terras americanas. Ao longo das fronteiras entre os impérios ibéricos na Bacia do Prata muitos territórios trocaram sucessivamente de mãos. A contenda, que envolvia inicialmente espanhóis e portugueses no século XVII, prosseguiu até o século XIX com confrontos entre argentinos, uruguaios, paraguaios e brasileiros. Laytano (1983) recorda que são numerosos os exemplos de cidades gaúchas que nasceram em torno de quartéis, fortalezas, acampamentos e presídios militares. Por sua vez, Vieira (2012) afirma que a fundação das cidades de Laguna, Colônia do Sacramento e Rio Grande configuram marcos históricos importantes na construção e organização do espaço social no Rio Grande do Sul. A fundação do Forte Jesus, Maria, José de Rio Grande, em 1737, constituiu o núcleo da colônia de "Rio Grande de São Pedro", que posteriormente viria a se tornar o município de Rio Grande. A partir de 1810, devido à instabilidade política que resultaria na independência das colônias espanholas na Bacia do Prata, o governo português enviou tropas para resguardar a fronteira luso-espanhola. Até então, três eram os caminhos de invasão do território gaúcho: através de São Borja; por Aceguá; e pelo Chuí. As tropas luso-brasileiras enviadas deram origem a cidades como Jaguarão (em 1802 foi erguido o acampamento militar que originou a cidade), Bagé (1811), Alegrete (em 1817 foi erguido o povoado que lhe daria origem) e Sant’Ana do Livramento (1823).

O estabelecimento de povoamentos e não apenas a ocupação de regiões por tropas era parte da estratégia militar de homens como Veiga Cabral, comandante militar do Rio Grande entre 1780 e 1801, que teve um papel de liderança na vitoriosa guerra de 1801 (BENTO; GIORGIS, 2002). Essa estratégia já havia sido defendida no início do séc. XVI por Maquiavel, que entendia que um meio eficiente para a manutenção de um território recentemente conquistado era a criação de colônias em um ou dois lugares que se tornassem redutos importantes desse território. Para esse autor, se apenas forças militares fossem enviadas para a preservação do território, os custos seriam muito altos (MACHIAVELLI, 2008). O surgimento de cidades na metade sul do Rio Grande do Sul a partir do final do século XVIII e início do século XIX coincidiu com o início de um ciclo econômico com base na criação de gado bovino: a produção do charque. Ao longo de toda a região do pampa uruguaio, argentino e sul rio-grandense o charque era produzido para os mercados interno e externo. No Rio Grande do Sul, cidades fronteiriças como Pelotas, Bagé e Rio Grande passaram a exercer papel de destaque configurando pólos de estabelecimentos charqueadores (VIEIRA, 2012). Os anos do período colonial e posteriormente os do Império testemunharam o aparecimento de outras cidades criadas por iniciativas de forças militares em campanha de penetração pelo interior. Nessas circunstâncias surgiram Santa Maria e Rio Pardo. Essa última nasceu a partir da construção do Forte Jesus Maria José, o aquartelamento do Regimento de Dragões que, segundo Oliveira (2012), de tanto ali ficar e cobrir-se de glória acrescentaria à tropa de elite do Exército o nome da cidade histórica.

A geopolítica do Prata: do século XVII ao século XX

O Exército foi um ator de destaque na formação da fronteira meridional, haja vista a necessidade de defesa dos interesses geoestratégicos luso-brasileiros na Bacia do Prata. No ano de 1680, a coroa portuguesa iniciou o estabelecimento da Colônia do Sacramento na margem oposta à cidade de Buenos Aires. O núcleo desse estabelecimento foi uma fortificação iniciada com planta no formato de um polígono quadrangular. Colônia do Sacramento configurava um enclave em território espanhol pelo qual navios portugueses passaram a realizar o contrabando de produtos através dos rios Uruguai, Paraná e Paraguai.

As embarcações chegavam à Bacia do Prata com fazendas, vinhos, azeite, sal e principalmente escravos. Retornavam com couros, sebos e prata das minas de Potosi, na Bolívia (ALBORNOZ, 2000). A configuração desse cenário, fez crescer em importância os esforços militares das duas potências ibéricas, ávidas por resguardar os interesses estratégicos na Bacia do Prata. Nesse contexto, Portugal construiu fortalezas – cujos vestígios hoje se encontram em municípios como Rio Pardo, Caçapava do Sul e São José do Norte – e estimulou a criação de povoações como Canguçu, Piratini e Herval, para conter invasões ao território do Rio Grande do Sul. Além da fase monárquica, por quase um século do período republicano, nessa região foi empregado o principal esforço militar do Brasil. No entender de Hayes (1991), o semestreiro ou soldado-fazendeiro constituía a espinha dorsal do sistema militar português. O mapa 1 apresenta partes das linhas de importantes tratados firmados no período colonial que alteraram as fronteiras dos domínios das coroas ibéricas na Bacia do Prata. Através do mapa é possível perceber a intensidade das disputas travadas por luso-brasileiros e castelhanos entre os séculos XVII e XIX. Ao se observar o mapa 1 é possível notar que muitas foram as áreas que trocaram de mãos após as assinaturas de tratados entre as coroas ibéricas. Nesse sentido, um ponto a se destacar é que o avanço luso-brasileiro sobre terras espanholas (que haviam sido determinadas pelo Tratado de Tordesilhas) foi consolidado com base no princípio do uti possidetis, pelo qual aquele que de fato ocupa um território possui direito sobre este. Dentre as fronteiras alteradas ao longo do período colonial está a que abrangia as Missões Jesuíticas. A área das reduções situadas na margem oriental do rio Uruguai, onde se encontravam sete dos trinta povos das Missões, passou, em 1777, ao domínio português em troca da Colônia de Sacramento, que por sua vez passou a integrar a América espanhola. Além desses territórios, outras áreas localizadas ao sul das linhas estipuladas pelos tratados de Santo Ildefonso e Madri também mudaram de mãos devido à assinatura de tratados. Partes dos atuais departamentos uruguaios de Cerro Largo e Rocha, onde estão situadas cidades como Río Branco e Chuy, fizeram parte do território português até o século XVIII (PESAVENTO, 2002). Da mesma maneira, grande parte da área que hoje corresponde às regiões da Fronteira Oeste e da Campanha gaúcha formaram, no passado, parte do território

espanhol. Esse território abrange cidades importantes, como Alegrete, Uruguaiana, Quaraí e Sant’Ana do Livramento, entre outras. Mapa 1 – Alterações de limites causadas pelos tratados de fronteira no extremo Sul do Brasil: período colonial

As fronteiras platinas só começaram a se consolidar e a tomar as configurações atuais a partir da segunda metade do século XIX. No caso da fronteira Brasil-Uruguai, grande parte das questões foi sanada com os tratados da década de 1850. No entanto, nos primeiros anos da década de 1860, o presidente uruguaio Bernardo Berro implementou medidas nacionalistas que desagradaram os estancieiros e charqueadores brasileiros instalados no Uruguai ou no Rio Grande do Sul. A demanda desse grupo coincidiu com o movimento geopolítico do Império do Brasil de ocupar os territórios brasileiros fronteiriços para garantir a posse do território imperial. Assim, em comum acordo com as autoridades e elites do sul do Império, o governo brasileiro passou a ocupar também espaços disputados com Paraguai – áreas no Mato Grosso – e Argentina – oeste catarinense e sudoeste paranaense – provocando uma fricção nas relações com esses países (GOLIN, 2004). Essa ocupação do território se valeu de estratégias como o aldeamento de índios, a concessão de glebas e o estímulo à ocupação espontânea – para exploração da madeira, cultivo de erva-mate e criação de gado –, que tiveram a participação de tropas da Guarda Nacional e da Companhia de Pedestres (milicianos). Na parte setentrional do Arco Sul, por exemplo, no final do século XIX, o governo brasileiro criou a Comissão Estratégica do Paraná, cujos objetivos eram desbravar e ocupar a fronteira por meio da abertura de estradas, instalação de linhas telegráficas e criação de colônias militares. Nesse sentido, a fundação da Colônia Militar do Iguassu, em 1888, constituiu um marco na ocupação efetiva da fronteira Brasil-Argentina, que viria a ser definida pouco depois, com o tratado de 1890.

A Fronteira Oeste gaúcha e o cenário atual das fronteiras platinas

As interações econômicas da Fronteira Oeste com os países platinos remonta o século XIX, quando as cidades da região passaram a se conectar com os portos de Buenos Aires e Montevidéu tanto através de estradas de ferro, como por meio da navegação no rio Uruguai. Por muito tempo os portos castelhanos concorreram, obtendo alguma vantagem, com o porto de Rio Grande. Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, os saladeiros e charqueadas instalados na Fronteira Oeste tiveram papel chave no desenvolvimento da economia da região,

que chegou a atrair investimento inglês, como no caso do saladeiro fundado por George C. Dickinson, em 1910, em Itaqui. Uma das vantagens era a possibilidade de aquisição de matéria prima (tanto de forma lícita como também ilícita) nos três países – Brasil, Argentina e Uruguai – e as facilidades de transporte, comercialização e escoamento da produção (COLVERO; SERRES, 2009). Atualmente, a divisa Brasil-Uruguai é denominada pelos fronteiriços de “fronteira da paz”. O caráter pacífico prevalece ainda que, atividades ilícitas como o abigeato (furto de gado) e o contrabando caracterizem os dois lados da fronteira desde o período colonial. Todavia, não se constatam na fronteira Brasil-Uruguai as tensões observadas em outras díades da fronteira brasileira, onde diversos tipos de tráfico – drogas, armas, combustíveis, metais preciosos e pessoas – marcam a vida e se propagam no interior dos territórios nacionais (PEREIRA, 2011). Em relação ao Uruguai, é possível afirmar que sua condição mais significativa ao longo da história foi a de ser país fronteira. A circunstância que levou o seu território a constituir primeiramente a marca fronteiriça entre os domínios portugueses e espanhóis na Bacia do Prata e logo a emergir como Estado-tampão, “um algodão entre dois cristais”, entre os dois grandes da América do Sul (CAETANO, 2001). O Uruguai, ao longo de sua história fez uso da política do pêndulo, constituindo um elemento de equilíbrio em meio à rivalidade entre brasileiros e argentinos, a partir do século XIX. Por volta de 1848, a situação geopolítica do Prata, com as disputas travadas entre o governo imperial e as forças de Rosas era difundida em narrativas alarmistas pelas imprensas do Brasil, do Paraguai, do Chile e de Montevidéu, o que levou alguns setores da elite à histeria. Aquela altura as imprensas desses países disseminavam a ideia de que Rosas possuía um projeto geopolítico de expandir as fronteiras argentinas, inspirado na reconstrução do mapa do vice-reino do Rio da Prata. Tal projeto implicaria na absorção dos territórios de Uruguai, Paraguai, Bolívia e possivelmente da metade oeste do Rio Grande do Sul (GOLIN, 2004). Ao longo das primeiras décadas do século XX a Argentina desenvolveu um projeto geopolítico que se notabilizava pelo aproveitamento dos recursos navegáveis da Bacia do Prata e pela ascensão logística obtida através de uma rede férrea que permitiria a conexão entre a parte meridional da América do Sul e a cidade de Buenos Aires.

Esses fatos explicam por que o território correspondente às díades da Fronteira Oeste gaúcha com a Argentina (Província de Corrientes) e o norte do Uruguai (Departamentos de Rivera e Artigas) vêm configurando uma fronteira ativa desde o período colonial. Esse território tem como eixo de articulação o rio Uruguai, além de ser servido por um extenso sistema rodo-ferroviário que o conecta com centros de poder regionais e internacionais – Buenos Aires, Montevidéu, Porto Alegre e o porto de Rio Grande. Ao longo da fronteira gaúcha as cidades gêmeas mais integradas e dinâmicas são Uruguaiana-Paso de los Libres/AR e Sant’Ana do Livramento-Rivera/UR, tendo ainda uma relevante importância os pares formados por São Borja-Santo Tomé/AR, Itaqui-Alvear/AR e Quaraí-Artigas/UR (MATTOS, 1977). Além disso, a Fronteira Oeste possui notória importância no cenário brasileiro no que tange ao setor de logística de cargas internacionais. No período entre outubro de 2012 e setembro de 2013, os dez maiores fluxos de caminhões (importação e exportação) registrados por postos de fiscalização localizados no Arco Sul da fronteira do Brasil foram os das cidades de: Foz do Iguaçu-PR (162.514); Uruguaiana-RS (144.426); São Borja-RS (90.039); Chuí-RS (26.103); Jaguarão-RS (21.312); Dionísio Cerqueira-SC (18.330); Porto Xavier-RS (15.781); Santa HelenaPR (15.461); Sant’Ana do Livramento-RS (12.722) e Guaíra-PR (7.233). Ou seja, a Fronteira Oeste possui três (2°, 3° e 9°) dos dez municípios com maiores fluxos de cargas rodoviárias internacionais do Arco Sul (ABTI, 2014). Ainda no âmbito da logística de importações e exportações de cargas, a Fronteira Oeste se destaca por possuir o maior porto seco da América Latina e terceiro maior do mundo, localizado na cidade de Uruguaiana e também pelo Centro Unificado de Fronteira, instalado na ponte que liga São Borja à cidade argentina de Santo Tomé – uma iniciativa pioneira no país por concentrar todos os organismos públicos argentinos e brasileiros em um mesmo prédio, o que agiliza os procedimentos de importação e exportação. No que tange à economia da Fronteira Oeste, apesar do peso da pecuária e da agricultura, o setor de serviços de cidades gêmeas como Sant’Ana do Livramento, Uruguaiana e São Borja também possui grande importância, sobretudo na geração de empregos. Nesse sentido, um grande número de lojas, farmácias, agências bancárias, casas de câmbio, táxis, vans, restaurantes, pousadas e hotéis atendem uma população de turistas brasileiros, sobretudo nas férias, feriados e

finais de semana, em busca dos free shops e cassinos instalados do outro lado da fronteira (na Argentina e no Uruguai os jogos de azar são legalizados). No Uruguai um dos cassinos mais freqüentados pelos brasileiros é o de Rivera, que está situado em uma das avenidas por onde corre a divisa entre os dois países. No entanto, a cidade tem nos free shops sua principal atividade econômica. Nessas lojas são vendidos produtos importados (perfumes, roupas, eletrônicos, bebidas, comidas, etc.), que atraem muitos brasileiros, principalmente gaúchos. Por sua vez, nas cidades da província argentina de Corrientes localizadas na fronteira com o Rio Grande do Sul, nos últimos anos, os cassinos, as lojas, os postos de combustíveis e supermercados vêm atraindo muitos turistas do Brasil em função da valorização do real. Cidades como Santo Tomé e Paso de los Libres vêm tendo suas economias aquecidas por grupos de brasileiros que viajam em busca de entretenimento (cassinos) e dos bons preços de produtos alimentícios (carne, doces, cervejas, vinhos, açúcar), vestuário gaúcho (botas, alpargatas), combustível (gasolina e diesel) e produtos de limpeza. Em que pesem as interações entre as cidades gêmeas, a Fronteira Oeste possui um conjunto de projetos que corroboram a afirmação do presidente Mujica, do Uruguai, de que o MERCOSUL se encontra estagnado. Nesse sentido, no âmbito da integração transfronteiriça alguns projetos fracassaram – como o aeroporto binacional de Rivera e a usina termelétrica de Uruguaiana – e outros não promoveram uma integração tão eficaz – como a Ponte Internacional São BorjaSanto Tomé e suas altas tarifas de pedágio.

A atuação contemporânea do Exército na fronteira meridional do Brasil

Ao longo do Arco Sul da faixa de fronteira brasileira o Exército Brasileiro está presente através de quartéis e delegacias em vinte e três municípios do Rio Grande do Sul, em quatro de Santa Catarina e em nove do Paraná (BRASIL, 2014).

Nos

últimos anos o Exército vem tendo um papel de destaque na política do governo brasileiro para as fronteiras, sobretudo a partir de 2011, quando foi deflagrada a primeira edição da operação Ágata. Parte do Plano Estratégico de Fronteiras do Governo Federal – criado para prevenir e reprimir a ação de criminosos na divisa do Brasil com dez países sulamericanos e intensificar a presença do Estado nessa região –, a Ágata está em sua

oitava edição. Em 2014 contou com trinta mil militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, além de agentes das polícias federal, rodoviária federal e militar, bem como profissionais de agências governamentais. Dados que atestam que o governo federal vem exercendo uma vigilância sobre as fronteiras do país que não foi vista em outros tempos. No âmbito da operação Ágata o Exército atua ao longo dos 16.886 quilômetros da fronteira brasileira no controle e bloqueio de vias de acesso, com instalação de postos fixos, móveis e inopinados nas rodovias da faixa de fronteira. No decorrer das ações registraram-se apreensões de veículos em situação ilegal, prisões em flagrante e apreensões de drogas e entorpecentes, além de cigarros e mercadorias diversas (BRASIL, 2014). Um dado importante sobre a operação Ágata na região Sul do Brasil é que essa não foi uma operação pioneira. Antes dela ocorreu a Operação Fronteira-Sul, que era semestral e que pode ser considerada como o embrião da Ágata. A diferença era que na Fronteira-Sul a iniciativa era do Comando Militar do Sul (CMS), de Porto Alegre, que contava com recursos financeiros alocados pelo próprio Exército e com a participação, mediante convite, da Marinha, Força Aérea, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Brigada Militar, Polícia Civil e de órgãos de fiscalização nos níveis federal, estadual e municipal. Naquela época ainda não havia o poder de polícia para as Forças Armadas atuarem na fronteira, por isso os militares precisavam atuar conjuntamente com outras instituições. Atualmente, mesmo possuindo o poder de polícia, as Forças Armadas continuam atuando com instituições parceiras, pois elas são importantes, uma vez que transmitem experiência e conhecimentos em áreas como fiscalização de cargas e documentações, por exemplo. Outro ponto positivo dessas parcerias foi a alocação de recursos provenientes de fora do orçamento do Exército, via Ministério da Defesa. Nesse contexto, o programa ENAFRON (Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras) é importante ao disponibilizar mais meios materiais e financeiros para os órgãos de segurança pública, especialmente os federais. Através do ENAFRON o governo brasileiro visa promover a presença permanente das instituições policiais e de fiscalização na região de fronteira por meio de ações integradas de diversos órgãos federais, estaduais e municipais. Outro ponto a ser destacado é que as operações desenvolvidas pelas forças de segurança do Brasil vêm impactando de forma positiva o cotidiano da população

das cidades de fronteira. No caso dos habitantes de Sant’Ana do Livramento, por exemplo, o sentimento é de "relativa segurança", pois apesar de não constituírem "operações de segurança pública", elas acabam tendo características desse tipo. Nos períodos em que as edições da operação Ágata ocorrem nota-se uma diminuição das ações criminosas em virtude da atuação bastante ostensiva das forças de segurança – postos de bloqueio e controle de estradas (fixos e móveis), patrulhas motorizadas e controle de vias urbanas. O emprego de quantidade considerável de meios humanos e materiais (viaturas blindadas de combate, armamento pesado, helicópteros, embarcações fluviais), especialmente na área rural, restringe o abigeato e dificulta a utilização de vias, principalmente as estradas de chão, por traficantes de drogas e contrabandistas. Quanto aos efeitos negativos gerados pelas operações de segurança na fronteira, alguns motoristas que trafegam em rodovias da Fronteira Oeste por vezes reclamam de serem abordados, às vezes por mais de uma vez no mesmo dia, quando se deslocam de um município para outro. Por outro lado, em pequenas cidades fronteiriças do Rio Grande do Sul, como Porto Mauá e Porto Xavier, localizadas na fronteira com a Argentina, parte da população que sobrevive do comércio ilegal de carne e gasolina tem sua renda comprometida em decorrência de operações como a Ágata. Impacto semelhante ao gerado pela Operação Boiadeiro que ocorreu em 2005 e 2006. Durante essa operação, que não tinha caráter de defesa e nem policial, apenas atuava no combate à febre aftosa, a permanência de forças de segurança por quase um mês, em apenas um ponto de bloqueio, gerou desabastecimento na cidade de São Luiz Gonzaga, localizada na faixa de fronteira gaúcha, causando insatisfação na população local.

Conclusão

O processo de criação das cidades luso-brasileiras na fronteira meridional do Brasil foi alavancado por algumas tendências: com o desenrolar dos combates, a realização das marchas e a montagem dos acampamentos, cidades foram surgindo à sombra das tropas; o povoamento era realizado por meio da concessão de sesmarias a militares que se destacavam nos confrontos contra os castelhanos; algumas cidades resultaram de estudos estratégicos e tinham a finalidade de bloquear vias de acesso ao território do Rio Grande do Sul.

O Exército desempenhou um papel preponderante na construção das fronteiras no Rio Grande do Sul, cooperando para o desenvolvimento local e regional do estado. Sua atuação foi fundamental não só nos combates travados para repelir as invasões castelhanas, como também nas tarefas de estender os limites do território luso-brasileiro e de vigiar as ameaças latentes, garantindo a fixação de população em terras lindeiras. O Exército exerceu a função de “defesa” tanto no povoamento das fronteiras como no interior do território, favorecendo sua integração através do fornecimento de logística e de recursos financeiros. Os militares ainda dinamizaram o mercado consumidor interno e participaram do desenvolvimento econômico das novas cidades através da pecuária e dos produtos derivados desta. Ainda hoje, através de operações como a Ágata as Forças Armadas influenciam tanto na dinâmica da economia como no cotidiano dos habitantes de uma região que ajudou a construir. Por sua vez, no que tange ao desenvolvimento contemporâneo da Fronteira Oeste, é importante destacar que em suas cidades gêmeas são desenvolvidas interações cotidianas que geram fluxos espontâneos entre Brasil, Argentina e Uruguai que poderiam ser mais bem aproveitados caso houvesse a otimização das vantagens da região – como o turismo de fronteira – e a melhor gestão de projetos binacionais. Nesse sentido, a implementação do aeroporto binacional de Rivera, a reativação da termelétrica de Uruguaiana e a redução das tarifas de pedágio da ponte São Borja-Santo Tomé são algumas medidas que poderiam impulsionar a integração transfronteiriça e gerar desenvolvimento à Fronteira Oeste. Essas iniciativas poderiam se valer do apoio das Forças Armadas para sua realização – logística, obras de engenharia e garantia do cumprimento da lei – e confeririam um caráter simbólico de integração à região circunvizinha à tríplice fronteira BrasilArgentina-Uruguai, melhorando a imagem de um MERCOSUL que atualmente se encontra estagnado.

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