O papel dos psicofármacos na clínica contemporânea

July 18, 2017 | Autor: Wilson Franco | Categoria: Psicología, Psicología clínica, Psicanálise, Saúde Mental, Psiquiatria, Medicalização
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O papel dos psicofármacos na clínica contemporânea
Wilson Franco, 13 de maio de 2015


Bom, quero agradecer de partida à comissão organizadora. Fico,
realmente, muito feliz em estar aqui, é muito importante pra mim! Primeiro
pela oportunidade de discutir esse assunto, segundo por poder discuti-lo ao
lado de Dalgalarrondo, e terceiro mas não menos importante por poder voltar
a esse espaço de Semana de Psicologia, espaço que não frequentava desde
2008, e estou feliz de estar de volta.

Confesso que o tema, amplo como é, às vezes me dá uma certa vertigem,
e aí, para não cair no senso comum, criei uma espécie de corrimão, que é: o
papel dos psicofármacos na clínica contemporânea é indivisível do papel dos
psicofármacos na vida cotidiana contemporânea, por um lado, e das mudanças
estruturais quanto à natureza da clínica e quanto a seu papel social.
Tentei criar, por isso, expedientes para apresentar a vocês por quê penso
assim, e para mostrar a vocês como penso que isso funciona.

Comecemo com um exemplo; tomemos como exemplo... um cara. O cara
acorda no momento ideal do próprio sono, porque o iWatch (que nome
horroroso!) dele vela pelos ciclos REM dele; aí ele vai ao banheiro (porque
o Tamarine cuida da vida intestinal dele) e lê as matérias que o Flipboard
escolheu para ele; recebe notícias de amigos que o Facebook considera os
mais próximos dele, ou apresenta manchetes e piadas que sabe que ele
costuma gostar; vai trabalhar pelo caminho que o Waze dita e, enquanto
trabalha, caso tenha dor de cabeça, toma uma Coristina porque ele é da
"geração que não para por uma gripe", ou Doril pra que a dor dele suma.
Depois do almoço (vamos dizer que hoje o almoço foi light e ele não
precisou de Epocler nem de Estomazil) ele toma um Red Bull, pra manter o
ritmo - quando chegar em casa há de tomar um Slow Cow, pra relaxar e
conseguir dormir; talvez fume um ou dois maços de cigarro - se bem que hoje
em dia pega mal -, pode ser que tome um whiskinho quando chega em casa. O
Tinder e o Viagra ficam guardadinhos, hoje é dia de semana.

Esse cara não usa psicotropicos, perceberam? Porém... suponhamos que
ele se perceba ansioso, bem ansioso; por que será? Coisa estranha... mas
vejam, que podemos esperar dele?

A. que ele reflita sobre a origem de sua ansiedade? 

B. Que ele considere por bem pegar leve no trabalho para estabelecer
um ritmo de vida mais saudável?

C. Que ele procure uma aula de yoga, meditação? 

D. Procure um médico que prescreva um aplicativo ou remédio que tampe
esse buraco?

Lembrem: se ele não parou por uma gripe, vai parar por uma ansiedade?
Ele é da geração Coristina D!

Enfim, como esse cidadão é um cara absolutamente prosaico nas
calçadas da Avenida Paulista ou no carro ao lado no congestionamento nosso
de cada dia, por isso penso que o papel dos psicofármacos é facilmente
acessível a quem, como diz a poeta, ande pelo mundo prestando atenção.

Bom, sobre o papel dos psicofarmacos na clínica contemporânea...
temos um problema para abordar o assunto: a tendência hoje é que os
fármacos sejam representantes de uma lógica clínica específica, uma lógica
pragmática, calcada nos algoritmos, nas evidências, no pragmatismo e na
efetividade, e quando essa lógica opera ela determina decisivamente o
funcionamento da clínica. Acho, nesse aspecto, que seria importante que o
psicofármaco tivesse um papel não-todo: que ele não tampasse o horizonte de
problematização, que mantivesse o exercício clínico fundado na interrogação
e na absoluta novidade que é um encontro entre humanos - um cuidador e
alguém que procura cuidado; é claro que, de partida, seria necessário que
houvesse horizonte para problematização na clínica em geral, que a clínica
não estivesse tão absolutamente determinada por lógicas administrativas
empresariais (convênios, indústrias, empresas, corporações profissionais),
técnicas (protocolos, algoritmos, catálogos) e estatais (sindicatos). É
claro que sempre haverá determinantes na clínica e que ela sempre é social,
política, geograficamente determinada; o importante é que isso opere, como
nunca deixará de ser, como um conjunto de determinantes a agir sobre o
raciocínio do clínico, porém não obstruindo seu papel de cuidador envolvido
em um processo singular com a pessoa diante dele. Se pudermos aproveitar o
vínculo sem discriminá-lo como placebo, parece-me que ficamos melhor. 
Pensando em alguém que procura um psiquiatra com queixa de ansiedade, seria
bom que o clínico pensasse no papel do ansiolitico, não para reduzir a
ansiedade, mas para ajudar aquela pessoa em sua vida e em seus processos.
Mal comparando, dá pra dizer que algumas pessoas ficam gripadas e tomam
remédios porque não podem parar de trabalhar (o moço do exemplo acima
certamente acharia que está aqui) ou tem uma festa ou precisam cuidar das
crianças, há quem tire uns dias para se recuperar, há quem tome remédio
porque não aguenta conviver com os sintomas, com a dor, com o sofrimento
(eu imaginaria que o moço do exemplo acima está aqui).

Se o cara do exemplo procurasse um psiquiatra, seria bom que o
psiquiatra levasse em consideração a vida que o homem vive e a maneira como
a ansiedade encaixa na vida dele. Nesse sentido, a questão não é o
ansiolítico em si, mas sim o papel do psiquiatra, da relação e, no limite,
a concepção de cuidado e de cura.

Vou reincidir nessa historia de mal comparar: imaginemos que há dois
tipos de médicos: o despachante e o conversadeiro. Você procura o
despachante e ele tem pressa, pressa é o que ele tem a oferecer. Em 5
minutos ele descobriu os sintomas que te levaram lá e preencheu a
prescrição. É tudo simples e rápido e não tem o que entender, compra isso
aqui e toma desse jeito, não precisa fechar a porta.

Aí você procura o conversadeiro e - bom, pra começar do começo, você
fica horas na sala de espera (não que não fique na sala de espera do
despachante!). Mas enfim, depois disso você entra, e ele quer saber o que
você faz; quando foi ao medico pela última vez; porque você casou tão
jovem; de onde é seu sotaque; pergunta várias coisas sobre o que te levou a
procurá-lo - algumas óbvias, algumas estranhas. Aí ele puxa um papel de
prescrição e... te conta uma história: a historia da ansiedade. "Sabe, tem
vários tipos de ansiedade...". Ele te conta do que costuma ser feito nesses
casos como o seu, conta historias de pessoas com quadros semelhantes que
ele atendeu no passado, sugere algumas coisas. Você pondera com ele e ele
te prescreve algumas coisas, de quebra te dá algumas dicas de farmácia ou
laboratórios diagnósticos, passa o cartão de alguém, recomenda um
restaurante perto de onde você mora, e até logo.

Os dois podem prescrever psicofármacos, e eles devem ajudá-los - e a
seus pacientes - largamente. O ponto diferencial, no meu entendimento, é
que o despachante trabalha "no sistema", enquanto o conversadeiro parece um
artesão, um mestre de ofício. O despachante usa o psicofármaco como um
tampão, um procedimento padrão (num algortimo ou não), enquanto o
conversadeiro prescreve um psicofármaco em função do papel que ele pode ter
em sua vida, considerando sua esposa, o esporte que você pratica, sua
rotina.

Eu não consigo conceber o ofício clínico como um ofício de sistema;
para mim, clínica é uma arte. Entendo que o clínico se debruça sobre a
situação, pensa e encontra um jeito de mostrar ao paciente como aquele
quadro intervém na vida que ele vive, e procura modos de ajudá-lo a
mobilizar formas de viver dali em diante.

O cara do exemplo, se ficasse muito ansioso, procuraria remédio. Aí
eu pergunto: remédio pra que? Para a ansiedade, evidente, para que ela
suma. Ele se daria super bem com um despachante: "tenho ansiedade, "toma
esse ansiolítico", "legal, passar bem".

Agora imaginem o desconserto do cara se ele encontra um médico
conversadeiro: "por que você trabalha tanto?"; "por que acha que sente essa
ansiedade toda?", "posso te dizer que não me espanta sua ansiedade?"... o
cara olha o médico e não entende nada; o médico olha pra pessoa adiante
dele e não vê ninguém. Bom, deixa eu perguntar de novo: remédio pra que?

Acredito que o problema quanto aos psicofarmacos deve-se acima de tudo
ao fato de que os profissionais psi frequentementr atribuem ao remédio em
si poder curativo, e pior: acham isso óbvio: óbvio que um remédio trata
ansiedade, mas uma terapia assim "só falar", trata ansiedade? Que
estranho... o problema aí é a concepção de sofrimento, de cuidado, de cura,
de vínculo. Entendo que isso não seja privilégio dos profissionais psi, mas
ao contrário que seja reflexo de concepções largamente difundidas, em que o
remédio é tratado como agente direto e imediato da administração de
processos fisiológicos, como rolha ou tampa para os buracos da fragilidade
fisiológica dos homens. E nessa lógica nós, as pessoas, somos mais ou menos
como os "chefes de almoxarifado" ou gestores burocráticos nessa
administração de buracos fisiológicos. 

Queria encerrar com um pequeno trecho de "A comunidade que vem", de
Agamben:
"podemos ter esperança somente naquilo que é sem remédio. Que as coisas
estejam assim e assim - isso ainda é no mundo. Mas que isso seja
irreparável (irremediavel), que aquele assim seja sem remédio, que nós
possamos contemplá-lo como tal - isso é a única passagem para fora do
mundo. (A característica mais íntima da salvação: que sejamos salvos apenas
no ponto em que não queremos mais se-lo. Por isso, nesse ponto, há salvação
- mas não para nós)".

Acho reducionista e triste a sustentação de um discurso que opõe a
indústria farmacêutica como vilã da história e os clínicos e professores e
a gente de bem no geral como os heróis em apuros: eu acho, sim, que a
indústria farmacêutica tem um efeito nefasto na clínica, mas acho que isso
ocorre antes de mais nada porque a formação dos profissionais psi não
supera a mística em torno do papel terapêutico dos remédios, porque achamos
que o trabalho de cuidado é remediar o sintoma.

Acho que damos espaço demais aos remédios porque achamos que oferecer
cuidado é oferecer remédio, mas parece que frequentemente quem nos procura
na clínica não sofre lá onde precisa de ajuda, e precisamos saber por que a
pessoa casou tão cedo e de onde vem o sotaque dela e de onde ela acha que
essa ansiedade vem, porque só aí poderemos ajudar – e isso porque aí
poderemos oferecer abrigo ao que, pelo que entendo, é fundamentalmente
humano, e não tem remédio, nem nunca terá. 



FIM

O debate é politizado de uma maneira preocupante: não que politização
seja ruim, mas parece necessário construir, a cada circunstância,
expedientes de politização que incidam de forma efetiva sobre a práxis. O
que chama atenção e que diverge muito disso, no caso da clínica psi, é que
a politização discursiva cinde o campo entre aderentes e não aderentes - o
que não é problema numa concepção revolucionária baseada numa concepção de
luta marxista-hegeliana, mas que não ajuda em nada na condução cotidiana do
trabalho dos profissionais psi. O que quero dizer com isso é que o
profissional psi, demonizando os remédios ou tomando-os como tábua de
salvação, deixa de lado o trabalho que me parece propriamente psi.

Roy Porter, um historiador da medicina, sinaliza na apresentação de
seu livro "das tripas coração" que a medicina ocidental moderna precisa
poder conciliar melhor em sua estrutura interna os determinantes
psicossomáticos do processo saúde-doença. Eu, quando li esse texto pela
primeira vez e sendo, como sou, marcado por um certo complexo de vira-lata
(por ser psicólogo e por ser psicanalista) li essa passagem com um certo
orgulho, uma sensação de "volta por cima", do tipo "toma essa, seus
'baseados em evidências'! ".
Aí eu li o texto de novo. Li de novo e me pareceu claro que quando
Porter se refere aos determinantes psicossomáticos não está defendendo os
profissionais psi ou o primado da psicologia ou psiquiatria: está apontando
para a articulação entre psique e soma e para a necessidade de considerar a
apropriação emocional e mental quanto aos processos saúde-doença. 
A diferença é fundamental: pensando nos remédios, se falamos da
psicossomática inscrita no horizonte especializado psi, pensamos em
psicotropicos - ansioliticos, antidepressivos etc; se pensamos na
psicossomática inscrita nos processos saúde-doença para além da
especialização psi, pensamos em coristina d, epocler, estomazil - e, claro,
ansioliticos e antidepressivos e etc.
Depois que percebi que Porter não estava defendendo minha categoria, 
passei a concordar ainda mais com ele, e a ver ainda mais sentido em sua
colocação: prestando um pouco de atenção ao discurso cotidiano das pessoas
em nossas grandes cidades contemporâneas, percebemos inúmeros indícios de
que a fundação psicossomática carece de fato de um lugar de maior prestígio
na formação clínica e nos processos de cuidado.
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