O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais: o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal

May 25, 2017 | Autor: Silvia Frota | Categoria: Cultural Studies, Nationalism, National Identity, Critical Discourse Analysis, Identity Studies
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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais: o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal

Silvia Valencich Frota

Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura, especialidade de Cultura e Comunicação

2016

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais: o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal Silvia Valencich Frota

Orientador:

Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura, especialidade de Cultura e Comunicação

Júri: Presidente: Doutora Maria Cristina de Castro Maia de Sousa Pimentel, Professora Catedrática e Membro do Conselho Científico, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Vogais: -

Doutor Fernando Ramallo Fernández, Professor Titular, Facultade de Filoloxia e Tradución da Universidade de Vigo – Espanha:

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Doutora Marta Susana Filipe Alexandre, Professora Adjunta Convidada, Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria;

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Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia, Professor Associado com Agregação, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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Doutora Maria Teresa Barbieri de Ataíde Malafaia, Professora Associada, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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Doutor Manuel Amador Frias Martins, Professor Auxiliar com Agregação, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

2016

Indicação de direitos de cópia

A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa têm licença não exclusiva para arquivar e tornar acessível, nomeadamente através do seu repositório institucional, esta tese, no todo ou em parte, em suporte digital, para acesso mundial. A Faculdade de Letras da Universidade Lisboa e a Universidade de Lisboa estão autorizadas a arquivar e, sem alterar o conteúdo, converter a tese ou dissertação entregue para qualquer formato de ficheiro, meio ou suporte, nomeadamente através da sua digitalização, para efeitos de preservação e acesso.

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Aos meus pais

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Resumo A língua, ainda hoje, figura como um importante e recorrente elemento de identificação e, em especial, de identificação com uma certa identidade nacional. Neste estudo, procura-se refletir sobre os diferentes modos como a relação entre língua e identidade nacional é construída no âmbito do debate sobre a adoção do Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa, de 1990. Tal acordo, assinado por diferentes países, todos membros da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa), propõe, entre outros objetivos, a promoção da unificação da grafia do português nos diversos países que o têm como língua oficial. Com essa preocupação em mente, são analisados artigos de opinião sobre o acordo ortográfico, publicados pelos jornais portugueses, em 2012. O enquadramento teórico-metodológico adotado é o da análise do discurso, em sua vertente crítica, entrelaçado com os princípios da linguística sistêmico-funcional. As identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas numa perspectiva não essencialista, que se fundamenta nos diferentes processos de contrução discursiva nos quais a língua desempenha um papel relevante. Parte-se de uma breve retrospectiva do desenvolvimento dos nacionalismos na Europa, centrada no papel da língua, para, a seguir, identificar-se o contexto português, naquilo que interessa a este estudo. Passando-se à análise propriamente dita, identifica-se e analisa-se um conjunto de representações associadas à ideia de pátria, nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz, que são, neste estudo, caracterizados como “marcadores identitários”. Também as relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais e supranacionais são levadas em conta, num esforço de identificação de simetrias e assimetrias, de movimentos de aproximação ou afastamento e de afirmação de força ou fraqueza, que, em alguma medida, representam tentativas de caracterização de um “eu” e de um “outro”, sempre marcadas por relações de poder.

Palavras-Chave: identidade nacional, cultura nacional, língua nacional, acordo ortográfico, análise do discurso.

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Abstract Language today still figures as an important and recurrent identification element and, in particular, identification of a certain national identity. In this study, we try to realize the different ways the relationship between language and national identity is built in the debate on the adoption of the Portuguese spelling agreement (Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa de 1990). The agreement that is signed by different countries all of them members of the CPLP (Community of Portuguese speaking countries) aims to promote the unification of Portuguese spelling among others objectives. Considering this, opinion articles on the spelling agreement published by the Portuguese newspaper in 2012 are analyzed. The theoretical and methodological framework adopted is that of discourse analysis, in its critical perspective, intertwined with the principles of systemic functional linguistics. National identities, in this context, are understood within a non-essentialist perspective that is based on different discursive construction processes in which language plays an important role. The starting point is a brief review of the development of nationalisms in Europe, centered on the role of language. Then the Portuguese context is characterized as far as it is considered relevant to this study. Turning to the analysis itself, a set of representations, which are characterized as "identity markers" in this study, are identifyied and analyzed. They are associated with the idea of homeland, nation, sovereignty, people, culture, identity and matrix. Also the relationship between Portugal and other national and supranational entities are taken into account in an effort to identify symmetries and asymmetries, approach or distance movements, strength or weakness positions, which, to some extent, represent attempts to define an "I" and an "other" and always embody power relations.

Keywords: national identity, national culture, national language, spelling agreement, discourse analysis.

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Agradecimentos Agradeço a todos aqueles que, de algum modo, contribuíram para que este projeto chegasse ao fim: ao Manuel Frias Martins, pela primeira conversa sobre língua e identidade, ainda antes do meu ingresso na FLUL; à Urbana Pereira, pela calorosa presença e pelos constantes cuidados ao longo deste percurso; à Maria Krebber, pela amizade e cumplicidade, que muito amenizaram as inseguranças, a solidão e as angústias que acompanham um projeto como este. Por fim, e sobretudo, agradeço ao Carlos Gouveia pela orientação, pelo apoio e pela amizade sempre.

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Índice

Introdução……………………………………………………………………….

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PARTE I Capítulo 1 – As identidades nacionais na Europa do século XXI ………………

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Capítulo 2 – Língua e identidade nacional………………………………………

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Capítulo 3 – A construção discursiva das identidades nacionais………………..

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PARTE II Capítulo 4 – Contextualização e apresentação do corpus………………………..

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Capítulo 5 – Análise dos marcadores identitários……………………………….

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Capítulo 6 – Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

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Capítulo 7 – Reflexão final………………………………………………………

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Conclusão………………………………………………………………………..

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Apêndice A………………………………………………………………………

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Apêndice B………………………………………………………………………

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Apêndice C………………………………………………………………………

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Apêndice D………………………………………………………………………

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Referências………………………………………………………………………

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Obs.: Anexos disponíveis apenas em suporte digital.

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Índice de Quadros Quadro 4.1 – Total de artigos por jornal analisado Quadro 4.2 – Total de artigos publicados por autor Quadro 4.3 – Dispersão dos artigos ao longo do ano Quadro 4.4 – Posição assumida face ao AO90 Quadro 4.5 – Síntese dos argumentos Quadro 5.1 – Marcadores identitários Quadro 5.2 – Marcadores identitários e contabilização de ocorrências Quadro 5.3 – Pátria Quadro 5.4 – Relação entre pátria e língua Quadro 5.5 – Nação Quadro 5.6 – Acepções de nação Quadro 5.7 – Classificação de nacional/is Quadro 5.8 – Povo Quadro 5.9 – Classificação de povo Quadro 5.10 – Cultura Quadro 5.11 – Classificação dos usos da palavra cultura Quadro 5.12 – Classificação de cultural/is Quadro 5.13 – Identidade Quadro 5.14 – Identidade: língua x ortografia Quadro 5.15 – Relações de identidade Quadro 5.16 – Matriz Quadro 5.17 – Representações de matriz Quadro 5.18 – Marcadores identitários: quadro-resumo Quadro 6.1 – Situações de comparação e relações comparativas simples ou complexas Quadro 6.2 – Relações simétricas ou assimétricas Quadro 6.3 – Brasil como interveniente frequente no total de relações de comparação Quadro 6.4 – Intervenientes que figuram nas relações de simetria Quadro 6.5 – Brasil como interveniente frequente nas relações de simetria Quadro 6.6 – Estratégias de representação do Brasil quando um dos intervenientes, ao lado de outros países de língua portuguesa: referências explícitas e implícitas Quadro 6.7 – Estratégias de representação do Brasil quando único interveniente: referências explícitas e implícitas Quadro 6.8 – Classificação das representações implícitas do Brasil quando único interveniente Quadro 6.9 – Relações simétricas: convergentes e divergentes Quadro 6.10 – Relações simétricas convergentes e divergentes: Brasil e outros intervenientes Quadro 6.11 – Relações assimétricas: intervenientes Quadro 6.12 – Relações assimétricas: o Brasil como interveniente Quadro 6.13 – Relações assimétricas: outros intervenientes Quadro 6.14 – Relações assimétricas: forças e fraquezas Quadro 6.15 – Portugal no pólo forte: os PALOP como principais intervenientes Quadro 6.16 – Portugal no pólo forte: Timor, Brasil e Espanha intervenientes Quadro 6.17 – Relações assimétricas: quadro geral Quadro 6.18 – Portugal no pólo fraco: principais intervenientes Quadro 6.19 – Relações de simetria e assimetria: quadro-resumo

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Introdução

No final do século passado, apregoaram seu fim, mas, nesta segunda década do século XXI, os Estados-Nação – e os nacionalismos que estão em suas respectivas origens – ainda figuram como intervenientes relevantes neste jogo de azar que cria, desenvolve e regula mercados globais de consumo de ideias, valores, produtos, capitais e, também, de pessoas, e que constitui uma arena internacional de atuação social em sentido amplo. No contexto europeu, aqui equiparado ao contexto da União Europeia, os nacionalismos se fazem presentes na manutenção da divisão política dos Estados-membros em unidades nacionais, nos discursos de afirmação e proteção de uma língua ou de uma cultura nacional, nas plataformas políticas defendidas principalmente pelos partidos de extrema-direita, nas campanhas de incentivo ao turismo, nas disputas esportivas internacionais, nos concursos televisivos como o Eurovisão, entre tantos outros casos e situações. Os exemplos acima corroboram, em alguma medida, a tese de que os chamados Estados-Nação ainda são importantes intervenientes no cenário internacional, mas não implicam afirmar que os papéis desempenhados por eles não se tenham transformado ao longo das últimas décadas. Como regra geral, parece haver uma maior concorrência entre as situações em que o Estado-Nação age sozinho e aquelas em que atua em concerto com outros Estados-Nação, ou seja, cada vez mais, os Estados são chamados a atuar como membros de uma instituição ou organização internacional, ou nesse contexto, do que a agir em nome próprio e individual. Essas transformações do papel dos Estados-Nação, e dos nacionalismos propriamente ditos, está diretamente relacionada com os diferentes processos de globalização que marcaram especialmente o século XX e que seguem se desenvolvendo na atualidade. Tais processos extrapolam as fronteiras nacionais, mas não necessariamente prescindem da ideia de nação. Pelo contrário, muitas vezes parecem se valer dela, quando, por exemplo, se organizam em

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torno de acordos comerciais ou tratados internacionais ou, ainda, exploram as especificidades das diferentes e diversificadas culturas nacionais. Nesses cenários, a unidade de negociação é a unidade nacional, embora o resultado que se busque alcançar seja, em geral, muito mais amplo. Nesse mesmo sentido, mas no âmbito específico das políticas adotadas pela união europeia, parece haver um esforço recorrente, com vistas a assegurar uma suposta soberania ou independência nacional – entendidas, neste contexto, como direito à autodeterminação – que, em geral, surge como um valor a ser protegido e preservado. Com tal afirmação, no entanto, não se pretende corroborar essa tese nem polemizar em torno dela. Por ora, basta reconhecer a existência de movimentos em sentidos diversos: os que afirmam que a cautela adotada na definição das políticas europeias no que diz respeito à proteção das soberanias nacionais pode ser entendida como desejável e saudável; os que a consideram, não mais desejável, mas necessária e incontornável; ou, ainda, os que entendem tal cuidado como excessivo e prejudicial para a construção de uma identidade europeia comum. Nesse contexto de transformação dos nacionalismos, no entanto, seja essa transformação conducente ao fim das nações ou não, interessa agora verificar o que acontece com as chamadas identidades nacionais. Pensando-se especificamente nos critérios identitários, isto é, nos elementos que, no passado, e em especial, ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, foram frequentemente associados à construção das identidades nacionais – como os conceitos de território (e fronteira), soberania, etnia (e raça), povo, história (e memória) e língua entre outros –, interessa refletir sobre seus respectivos usos nos dias de hoje. A noção de território nacional como sendo o espaço físico onde se localiza espacialmente a nação e que delimita sua área de atuação, associado à ideia de fronteira, ou seja, de limites físicos e de controlo de acesso ao território nacional, é fortemente impactada pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação que redefinem, de certo modo, a própria noção de espaço, que agora se amplia para dar conta do mundo digital e do mundo virtual. Além disso, sob pressão dos processos de globalização que conduzem ao estabelecimento de novos mercados e novas solidariedades, os quais, em muitos casos, concretizam-se na criação de entidades multi, inter ou transnacionais, essas fronteiras se deslocam para além dos estados nacionais, muitas vezes instaurando uma zona cinzenta, de indefinição entre o território de um país e o do país vizinho. Exemplo dessa situação é a União Europeia e o seu esforço de abertura e de livre circulação interna, levado a cabo pela 4

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atribuição de maior porosidade às fronteiras, ao ponto de, às vezes, estas se tornarem transparentes ou mesmo invisíveis. A ideia de soberania da nação, por sua vez, como direito de autodeterminação e de livre arbítrio, ou seja, como o reconhecimento da sua capacidade de e da sua autoridade para tomar decisões no âmbito do seu território, sem sofrer ingerências externas, é relativizada pelo contexto sócio-econômico global, que instaura um novo jogo de forças e interdependências. Apenas como exemplo dessas transformações, pode-se citar duas situações recorrentes: a globalização dos mercados financeiros e a globalização dos meios de comunicação de massas. Com a mobilidade do capital – que se traduz na internacionalização das unidades de produção, das instituições financeiras, assim como dos mercados de consumo entre outros – e a consequente criação de novos e ampliados fluxos que transcendem os limites e o controlo quer das nações de origem, quer das nações de destino, estabelece-se uma forte relação de interdependência caracterizada por maior instabilidade e riscos de contaminação entre países. Nessas condições, se é verdade que uma crise econômica pode ser deflagrada pela ação (ou omissão) de um único país, dificilmente pode ser contornada sem o consórcio de muitos outros, ameaçados pelos riscos de contágio. Na perspectiva da internacionalização dos meios de comunicação, que implica, por exemplo, a circulação de imagens e mensagens em âmbito global – muitas vezes em tempo real, desafiando o controlo e a censura locais –, estes concorrem para a construção de reputação e imagem dos diferentes sujeitos nacionais, interferindo nas relações estabelecidas entre nações, nas negociações internacionais, no desempenho financeiro e influenciando, inclusive, decisões de natureza política. Também o conceito de raça sofre um profundo revés, em parte em função da sua apropriação pelos regimes totalitários da primeira metade do século XX, com destaque para o nazismo, e das dramáticas consequências que acarretou. Posto de lado o conceito de raça, com seu sentido pejorativo e sua carga negativa, é preciso encontrar uma maneira de suprir sua ausência, corrigir seus defeitos. A ideia de etnia, como indicativo de uma origem comum, é a que melhor parece corresponder a tais necessidades. Mas também o conceito de etnia é transformado, como bem ilustra a reflexão de Fredrik Barth (1998) sobre o tema. O autor apresenta o conceito de etnia, não mais como um fato consumado, isto é, como uma caraterística inata e irrevogável de um indivíduo ou de um grupo, mas sim como o resultado de um processo de seleção e descarte de traços avaliados positiva ou negativamente, ou seja, também como resultado de um processo de construção. O

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recurso à etnia, portanto, deixa de ser uma referência estática e eterna e torna-se em algo, em alguma medida, volátil e passível de transformação ao longo do espaço-tempo. Nesse mesmo sentido, a noção de povo como os autores, isto é, os criadores originais de uma nação e, ao mesmo tempo, como os seus legítimos e autênticos herdeiros, também é reconfigurada à luz dos processos de globalização e da intensificação dos movimentos migratórios. Multiplicam-se, assim, os deslocamentos, modificando-se os desenhos das cidades, que, aos poucos, transformam-se em espaços multiculturais. Pessoas de diferentes nacionalidades convivem num mesmo espaço, interagem, estranham-se, identificam-se, num constante movimento de atração e repulsa. Os direitos de cidadania – conquistados pelos antes estrangeiros e agora cidadãos – ampliam a capacidade de ação do indivíduo, equiparam o que antes era desigual, atenuam ou mesmo apagam as diferenças. Em muitos países, partidários do jus solis, filhos de pais estrangeiros, nascidos no país são considerados nacionais ou, ao menos, têm essa possibilidade ao seu dispor, alimentando em alguma medida o cenário de concorrência entre os conceitos de povo (no viés de uma partilha étnica) e cidadão (no viés de uma partilha de direitos), que se confundem em certas situações e constrastam em outras. A história, com sua forte carga temporal e de continuidade, também é reinventada, ao lado da ideia de memória. A história deixa de ser o resgate ou o registro de fatos e acontecimentos do passado e tranforma-se numa narrativa, isto é, numa versão motivada, parcial e sempre inacabada desse passado. Torna-se, desse modo, objeto de disputa entre indivíduos, instituições, ideologias, governos – e o mesmo pode-se afirmar da memória, seja individual, seja coletiva. As relações de poder entretecidas nessas narrativas de história-memória têm, afinal, sua existência reconhecida, mesmo que nem sempre seus conteúdos sejam facilmente identificáveis. Essa história-memória perde seus contornos essencialistas e afirma-se como invenção. Agora, portanto, não mais se presta com tanta facilidade à comprovação incontestável da existência secular de uma nação, recurso muito frequente no passado dos nacionalismos. Finalmente, resta referir o papel da língua como elemento de identificação, isto é, o recurso à língua como critério de nacionalidade, que ainda parece estar em vigor. A associação entre uma língua e uma nação está muitas vezes presente, por exemplo, nos discursos de proteção à língua, seja ela minoritária ou não, contra o risco de extinção – ameaçada por línguas mais fortes, como o inglês – ou de ser maculada ou contaminada por expressões e palavras estrangeiras. Nesse sentido, não são incomuns iniciativas, às vezes no 6

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campo jurídico, que visam proibir o uso dos chamados estrangeirismos ou mesmo de instituir multas pecuniárias por erros gramaticais – caracterizados como atentados contra a língua – em contexto de publicidade ou de circulação pública de informação. Também reforçam essa relação entre língua e identidade os discursos que atribuem valor cultural e econômico às línguas, como, por exemplo, as iniciativas que procuram reunir países que partilham uma mesma língua em busca, entre outras, de vantagens comerciais e políticas, como a lusofonia ou a francofonia. Nesse contexto, a língua é entendida como patrimônio ou bem passível de ser possuído e rentabilizado. A associação entre língua e cultura também contribui para a valorização do papel das chamadas línguas nacionais como força que une os indivíduos nacionais e os diferencia dos estrangeiros ao estabelecer uma relação entre a língua e um certo caráter nacional, isto é, um suposto padrão de comportamento cristalizado em representações, em geral idealizadas e arquetípicas, que muitas vezes exercem grande influência nos processos de autoidentificação e também no modo como a nação é percebida pelos outros. Mas, se o caráter identitário da língua parece persistir na Europa atual, não se pode negar que o contexto de uso das línguas se tenha transformado, até porque todos os critérios acima indicados estão ligados e são interdependentes, fazendo com que a transformação de um afete de algum modo os demais. Com os processos de globalização, o desenvolvimento das tecnologias de comunicação, o aumento da mobilidade de dados, bens e pessoas e a multiplicação das migrações, o contato entre línguas também se intensifica. A língua única, como valor, perde espaço para a diversidade linguística – agora, é esta última que é valorizada. O indivíduo monolíngue perde potencial competitivo face ao indivíduo plurilingue tanto nos mercados de trabalho como na sociedade em geral. No contexto europeu, o multilinguismo é a ideologia linguística adotada, embora não isenta de contestação, o que significa dizer que a identidade europeia se constrói em torno da diversidade linguística e não em torno da construção de uma só língua para a Europa (cf. a Resolução do Conselho da União Europeia de 21 de novembro de 2008, sobre uma estratégia europeia a favor do multilinguismo). Mas, nesse cenário, as línguas também podem assumir diferentes papéis. Com o esbatimento das fronteiras físicas e a virtualização e fragmentação do espaço no interior do continente, as línguas parecem se sobressair como uma espécie de barreira natural, a separar ingleses, franceses, portugueses ou alemães. Em reforço a tais discursos, a língua ainda figura como um importante canal de acesso ao exercício pleno da cidadania, quando não à aquisição primeira dessa cidadania em muitos casos.

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Resta saber qual é o impacto dessas mudanças e transformações na relação entre língua e nação, ou melhor, no modo como o indivíduo se vale da língua para construir sua identidade nacional ou a de outrem. O objetivo desta pesquisa é refletir sobre esse tema no contexto da União Europeia de hoje. Será que o potencial da língua como elemento de identificação nacional realmente permanece? E, se permanece, mantém-se inalterado ou se transforma? Nesse contexto, o que se pode dizer sobre a relação entre língua e identidade nacional no âmbito do projeto europeu: ela surge como um empecilho para a construção de uma identidade europeia ou consiste numa estratégia relevante para a sua construção? Com tal objetivo em mente, analisa-se o caso de Portugal, às voltas com um acordo ortográfico (AO) que visa uniformizar a grafia da língua entre os países lusófonos e que tem suscitado polêmica no país, parte dela em torno de questões de identidade. Para desenvolver essa reflexão, estuda-se o caráter identitário das discussões sobre o AO, a partir da análise de artigos de opinião publicados na mídia impressa em Portugal. A presente pesquisa está dividida em duas partes. Na primeira, que reúne os capítulos de 1 a 3, constrói-se o enquadramento teórico e metodológico que servirá de norte para o desenvolvimento do estudo do caso português e, ao mesmo tempo, de contraponto para a análise dos dados obtidos. Na segunda parte, que reúne os capítulos de 4 a 7, desenvolve-se a análise de caso propriamente dita. No primeiro capítulo, faz-se um recorte das teorias sobre as identidades a fim de se delinear aquelas que são objeto deste estudo: as identidades nacionais. Parte-se da perspectiva dos estudos culturais sobre o tema, explorando-se seu caráter transdisciplinar e, especialmente, as relações entre identidade e modernidade, marcadas nos tempos atuais pela ideia de crise, fragmentação e multiplicação, ou seja, discute-se o fim da identidade singular e inteira, por um lado, e a configuração de um cenário de concorrência entre identidades diversas, que ora se completam, ora se contradizem ou se anulam. Dentre as identidades, desenvolve-se o conceito de identidade nacional, traçando-se uma breve retrospectiva da história dos nacionalismos na Europa especialmente a partir do século XIX. A ideia de nação como comunidade imaginada, proposta por Anderson (2006), é o pano de fundo contra o qual se desenha essa identidade, num processo que mobiliza diferentes critérios como os conceitos de raça, etnia, língua, território, povo, soberania, cultura, história, memória entre outros. A seguir, explora-se a relação entre identidade nacional e cultura – conceitos que, em certos momentos, parecem se sobrepor. A própria definição de Anderson (2006: 4) de nacionalismo como sendo um tipo especial de artefato cultural já aponta para essa 8

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interconexão. O recurso a um conjunto de valores, comportamentos, tradições, memórias, visões de mundo e tantos outros elementos que podem ou não fazer parte dessa ideia de cultura nacional serve também aos processos de identificação individual e coletiva, de classificação de si mesmo e de outrem, de reconhecimento da igualdade e da diferença. Por fim, essa reflexão sobre as identidades em geral e as identidades nacionais especificamente debruça-se sobre a atualidade dos processos de globalização e seus impactos sobre o conceito de nação e de identidade nacional. Tal contexto é em muito devedor da ideia de que os nacionalismos estariam perto do seu fim, isto é, de que já não seriam a grande força de transformação social que foram ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, como destaca Hobsbawm (2012). As identidades nacionais são ainda o foco do segundo capítulo, mas, desta vez, a ênfase da análise recai especificamente sobre o papel da língua em sua construção. Segundo Hobsbawm (2012), é nas décadas finais do século XIX que a língua adquire papel de destaque na construção dos nacionalismos, configurando, assim, uma espécie de nacionalismo linguístico. A máxima uma língua, uma nação conquista terreno e impulsiona a construção das chamadas línguas nacionais, às quais é associado um ideário de pureza e superioridade em relação às demais línguas, ou versões dela, faladas num dado território. Mas, se a princípio parece ser a qualidade da língua como meio de comunicação e expressão que se destaca, numa reflexão mais aprofundada sobre as identidades nacionais o que chama a atenção é a forte carga simbólica que as línguas adquirem. Nesse sentido, interessa analisar a ideia de língua como símbolo da nação e dos nacionalismos; de língua como matéria-prima do indivíduo nacional, como edificadora de mundos, ou melhor, de representações dele, conformando o espaço de ação da nação e do seu povo. No espaço de interação entre língua e identidade nacional acima delineado, o conceito de cultura também se faz presente. Aliás, muitas vezes parece difícil delimitar os campos de ação de cada um desses conceitos – língua, identidade nacional e cultura – dada a forte correlação estabelecida entre eles. A língua é identificada como elemente essencial da cultura nacional, contribuindo para sua formação e constituindo-se no interior dessa cultura simultaneamente. Cabe também à língua a importante função de transmissão dessa cultura nacional – no bojo da qual se engendram e manifestam as identidades nacionais –, como se a língua carregasse, isto é, transportasse cultura. Nesse contexto, e levando-se em conta o projeto europeu, interessa refletir sobre essa relação entre língua, identidade e cultura no âmbito da diversidade linguística, ou melhor, no âmbito da ideologia ou política linguística adotada pela Europa: o multilinguismo. Na 9

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construção de uma identidade europeia, que papel a língua desempenha? Se as línguas carregam cultura e se as identidades são dependentes desse contexto cultural, é possível construir uma identidade singular para a Europa? É com essa discussão que se encerra o segundo capítulo. O terceiro capítulo é dedicado ao enquadramento teórico-metodológico propriamente dito, que tem como ponto de partida a noção de discurso. Parte-se da proposta de Foucault (1997), isto é, da ideia de discurso como modo de organização de significados, para explorar o seu papel como elemento estruturante de e estruturado por relações sociais, transpassado por relações de poder e disputas ideológicas. De entre a amplitude de discursos possíveis, destacam-se aqueles produzidos e veiculados pela mídia, isto é, os discursos midiáticos, uma vez que são estes os que constituem o corpus desta pesquisa. Considerando-se as funções desempenhadas pela mídia nas sociedades modernas e as relações sociais que ela estabelece e inspira, o discurso midiático parece sobressair como elemento formador de opinião pública, conquistando, assim, uma certa relevância. Nesse contexto, as propostas de investigação apresentadas pela análise do discurso ganham destaque e são elas que orientam esta investigação. A vertente da linguística sistêmico-funcional é central nesta abordagem e serve como diretriz para o levantamento e análise dos dados obtidos a partir de uma seleção de artigos de opinião publicados sobre o acordo ortográfico nos jornais portugueses ao longo de 2012. Por fim, explicita-se a posição assumida no estudo das identidades nacionais como sendo a da construção discursiva. Afasta-se, assim, as visões essencialistas das identidades, em geral produzidas em torno de certas representações recorrentes e resistentes à mudança, e afirma-se o seu caráter de processo e construção, sempre dinâmico e em constante transformação. Nesse contexto, as identidades são entendidas como tomadas de posição no âmbito do discurso, em consonância com Tann (2010). Com o quarto capítulo, tem início a segunda parte desta pesquisa, voltada especificamente para a contextualização, a identificação, o tratamento e a análise de dados. Parte-se da elaboração de uma breve retrospectiva histórica de Portugal, onde são identificados alguns episódios potencialmente relevantes para a análise do papel da língua na construção das identidades nacionais portuguesas, como a fixação das fronteiras do país e a participação de Portugal na chamada era dos descobrimentos. A seguir, é o contexto da língua que ganha relevância, mas, desta vez, a ênfase recai sobre a atualidade. Neste século XXI, interessa observar que discursos se digladiam no debate 10

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sobre a língua portuguesa e sobre as suas perspectivas – ou não – de desenvolvimento, valorização econômica, afirmação cultural entre tantas outras. Com essa análise, busca-se refletir sobre o futuro da língua portuguesa como elemento de construção identitária das diferentes nações que a adotam. Em continuidade a essa reflexão, passa-se à apresentação, justificativa e descrição do conjunto de dados que será analisado, isto é do corpus, que consiste em matérias de opinião publicadas nos jornais portugueses, ao longo de 2012, sobre o acordo ortográfico, como já referido anteriormente. Na análise desses textos, são considerados exclusivamente os discursos de caráter identitário, alguns explícitos, outros não. Com essa afirmação, ficam excluídos da análise muitos outros discursos sobre o acordo ortográfico, cuja natureza técnica, jurídica ou política não apresentam, a priori, conotação identitária. Por fim, encerra-se este capítulo com o delineamento das estratégias de análise, que serão apresentadas de forma pormenorizada nos capítulos cinco e seis. Tais estratégias estão divididas em duas partes principais. Na primeira delas, procura-se analisar certos elementos que, com alguma frequência, surgem nos discursos dos nacionalismos. Na segunda, reflete-se sobre as diferentes posições contruídas por e para Portugal na relação com outros países citados nos textos. No quinto capítulo, parte-se para a análise propriamente dita do corpus, que será desenvolvida também no capítulo seguinte. Nesta primeira parte da análise, a perspectiva adotada é a da identificação dos principais elementos – designados como marcadores identitários – a serem mobilizados na construção de discursos em torno da ideia de identidade nacional, em geral, e identidade nacional portuguesa em particular. Pátria, nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz são os temas mobilizados via tais marcadores, definidos em função de suas respectivas frequências ao longo do corpus – verificada pela contagem de palavras do texto – e da sua relevância para os discursos e teorias sobre os nacionalismos, elaboradas e desenvolvidas especialmente a partir do século XIX, na Europa. Por fim, analisa-se o modo como tais marcadores são utilizados, assim como os discursos e representações de identidade nacional sinalizados por eles. Nesse processo, procura-se realçar as relações estabelecidas entre os mesmos e o conceito de língua – aqui entendido de forma abrangente para incluir a ideia de ortografia. O papel simbólico desempenhado pela língua na construção das identidades nacionais é, assim, posto em destaque.

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Introdução

No sexto capítulo, a estratégia de análise desloca-se dos marcadores identitários para se concentrar nas relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais ou supracionais, com o intuito de se compreender melhor de que forma as identidades são estabelecidas por via da construção da ideia de um ou vários outros. É dessa tensão entre um eu e um outro que se pretende inferir o papel da língua como símbolo de uma certa identidade nacional. Com tal objetivo, primeiro busca-se identificar os discursos que relacionam Portugal a outras entidades nacionais e supranacionais, para, a seguir, analisar tais relações em função das simetrias e assimetrias que são estabelecidas. Nos casos das relações de simetria, isto é, de equivalência de forças ou posições, estas são classificadas como positivas ou negativas, dependendo do modo como são valoradas em seus respectivos contextos. Nos casos das relações de assimetria, busca-se identificar que posição Portugal ocupa: se o pólo forte – relação assimétrica em que Portugal assume posição de vantagem – ou o pólo fraco – relação assimétrica em que Portugal ocupa posição de desvantagem. Por fim, tais relações – simétricas e assimétricas – são analisadas em conjunto, de forma constrastada, de modo a se construir um panorama alargado das diversas relações estabelecidas entre Portugal – na perspectiva do eu – e diferentes entidades nacionais ou supranacionais – na perspectiva do outro. Os principais resultados identificados a partir dessa ação são reunidos num quadro-resumo. No sétimo e último capítulo, busca-se relacionar os discursos teóricos desenvolvidos nos capítulos 1 a 3 às análises de dados desenvolvidas nos capítulos 4 a 6, numa perspectiva comparada. Considerando-se, portanto, a evolução dos conceitos de identidade e de identidade nacional, pretende-se compreender melhor que papel a língua, como símbolo, desempenha hoje na construção dessas identidades no contexto europeu. Com essa finalidade, retomam-se os conceitos estudados no âmbito dos marcadores identitários, que são agora novamente analisados à luz do conjunto de resultados obtidos e dentro do enquadramento teórico-metodológico definido para esta pesquisa. Do mesmo modo, os diferentes discursos de representação de Portugal, que afloram na perspectiva da comparação entre o país e outras entidades nacionais e supranacionais, são mais uma vez avaliados. Por fim, a partir do conjunto de dados, conceitos, discursos e representações reunidos e construídos ao longo desta pesquisa, busca-se refletir sobre o conceito de identidade nacional hoje e o espaço ocupado pelas línguas, numa perspectiva simbólica, em sua construção. No presente cenário, propõe-se o exercício do questionamento das forças e 12

Introdução

fraquezas que são atribuídas às identidades nacionais, assim como das oportunidades e ameaças que se lhe apresentam.

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PARTE I

Capítulo 1 As identidades nacionais na Europa do século XXI Identidade e modernidade Identidade nacional Identidade nacional e cultura Identidade nacional e globalização

Identidade é uma palavra recorrente nos discursos atuais, tanto na academia, como nos jornais, na televisão, no cinema, nos videojogos, na internet, nas conversas do dia-a-dia, nos consultórios médicos. No entanto, tanta insistência em torno do seu uso – às vezes abusivo – não torna mais fácil a sua definição; pelo contrário. Identidade parece ser mais uma noção do que um conceito propriamente dito, muitas vezes confundindo-se com subjetividade, personalidade, imagem, cultura, comunidade entre tantos outros termos. Ainda assim, apesar desses contornos fluidos e difusos, surge como tema central nas discussões sobre a modernidade – aqui entendida como os tempos atuais (ou, mais precisamente, como modernidade tardia ou pós-modernidade). Este capítulo se inicia precisamente com uma reflexão sobre a ideia de identidade na modernidade. A partir dos estudos de Hall (2014), entre outros, procura-se explorar os papéis desempenhados pelas identidades na caracterização da atualidade. Identidades múltiplas ou identidades fragmentadas? Identidades em crise ou a era das identidades? Identidades líquidas? Esses são alguns dos temas que orientam a discussão. Parte-se do princípio de que o debate sobre as identidades é prolífico e pode assumir contornos distintos a partir das perspectivas que sejam adotadas. Identidades de gênero, etária, religiosa, étnica, profissional são apenas algumas delas, entre as quais destaca-se as identidades nacionais, que serão aqui analisadas. Com essa finalidade, parte-se da elaboração de uma breve retrospectiva histórica dos nacionalismos na Europa, explora-se o tema das identidades nacionais e alguns dos seus possíveis significados. Nesse contexto, importa ressaltar que, não raras vezes, as identidades nacionais se confundem com o conceito de cultura ou identidade cultural. Nesses casos, identidade nacional e identidade cultural passam a indicar uma mesma coisa, girando em torno da construção de uma suposta cultura nacional como recurso de identificação individual e coletiva. Essas relações entre cultura e identidade são analisadas na tentativa de se melhor compreender os significados possíves das identidades nacionais hoje.

As identidades nacionais na Europa do século XXI

Por fim, na “Europa da Nações”, engajada num processo de integração, em diferentes níveis, entre nações soberanas e na construção de uma entidade supranacional, interessa refletir sobre o que acontece com as identidades nacionais. Mais do que isso, na era da globalização, pode-se ainda falar em identidades nacionais? Essas são algumas das questões que se pretende discutir ao final deste capítulo. O objetivo deste capítulo é, portanto, introduzir o tema das identidades e, mais especificamente, das identidades nacionais, a partir de uma reflexão teórica e de uma breve retrospectiva do desenvolvimento e transformação da ideia de identidade. Entre tantos caminhos possíveis, procura-se, aqui, traçar um pequeno recorte que servirá como ponto de partida para este estudo.

Identidade e Modernidade

O conceito de identidade é historicamente situado. Essa afirmação, que, a princípio, pode parecer banal e desnecessária, marca uma posição que deve ser explicitada desde já: as identidades não são inatas nem eternas; não são uma força da natureza ou um fato à espera de constatação. Na maioria das vezes, quando se fala em identidade, seja na esfera pública, seja na privada, em geral dá-se como certo o mútuo entendimento; mas convém frisar que tal se dá menos em função de um conhecimento partilhado e indisputado do seu significado do que pela operação de um mecanismo de naturalização e essencialização que incorpora as identidades aos discursos da atualidade. Para refletir sobre o tema, pode-se partir, por exemplo, acompanhando Hall (2014), da Europa do iluminismo. O paradigma da racionalidade, que aflora no século das luzes, traz à tona o sujeito racional, movimento este bem representado pela máxima de Descartes: “Penso, logo existo”. Uma certa noção de individualidade ganha corpo e se propaga no espaço – em especial, no espaço urbano, com o desenvolvimento das cidades. É nas cidades que o sujeito se depara com uma infinidade de outros: rostos, vozes e movimentos que passam, muitas vezes, sem retorno. Se, no espaço rural, isto é, no campo, a vida avança entre cores, odores e vozes conhecidas, o mesmo não acontece nas cidades. A consciência de si e da diferença, no reconhecimento de um ou muitos outros, está no cerne dessa primeira noção de identidade, tendo a razão ou a racionalidade como motor e justificativa. Como bem destaca Benjamim 20

As identidades nacionais na Europa do século XXI

(2006: 40), citando Georg Simmel, o desenvolvimento dos meios de transporte coletivo constitui um bom exemplo desse estranhamento no contato com o outro e do incômodo que provoca:

“As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades… caracterizam-se por um evidente predomínio da actividade do olhar sobre a do ouvido. As causas principais deste estado de coisas são os meios de transporte colectivos. Antes do aparecimento dos autocarros, dos comboios dos eléctricos no século XIX, as pessoas não conheciam a situação de se encontrarem durante muitos minutos, ou mesmo horas, a olhar umas para as outras sem dizerem uma palavra.” A nova situação não era, como reconhece Simmel, nada tranquilizadora.

Como descreve Hall (2014: 17-22), o crescimento e a multiplicação das cidades, associados à crescente complexidade da vida social e do nível de organização necessário para mantê-la em funcionamento e sustentá-la, implicam o estabelecimento de novas fidelidades. O indivíduo racional, pouco a pouco, cede seu lugar ao sujeito social, num deslocamento que parece refletir as novas exigências e capacidades inerentes e necessárias à vida em grupos alargados e heterogêneos, ou seja, em círculos sociais ampliados. Os processos de socialização, a formação de e a interação entre grupos e as novas relações de poder operam sobre aquele indíviduo racional, transformando-o em sujeito social, que, por sua vez, desempenha novos papéis em sociedade. Esses novos papéis ou identidades sociais fornecem, em alguma medida, estabilidade e segurança, proporcionando uma sensação de conforto e de pacificação de conflitos, ao instilarem no sistema um certo grau de previsibilidade e de expectativas pré-fixadas. Do indivíduo racional ao sujeito social, chega-se ao século XX, marcado, ao menos na perspectiva europeia, por duas grandes guerras em sua primeira metade e pelo despoletar de movimentos de acirramento e multiplicação de contatos entre pessoas, grupos e entidades (associações, instituições e organismos de natureza diversa), identificados como processos de globalização, que provocariam um forte impacto no tecido social, promovendo profundas transformações, especialmente nas últimas décadas do século passado e neste início de século XXI. A noção de identidade – em suas diferentes versões – vai tomando forma ao longo dessas transformações, sem que seja possível (ou mesmo importante) fixar um ponto de partida. Apenas como referência, vale a pena notar que no vocabulário de termos relevantes em cultura e sociedade (Keywords: A Vocabulary of Culture and Society), de Raymond Williams (1981), publicado em 1976, o verbete “identidade” sequer aparece. No entanto, em

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sua versão revista e ampliada (New Keywords: A Revised Vocabulary of Culture and Society), editada por Tony Bennett, Lawrence Grossberg, Meaghan Morris, publicada em 2005, o verbete “identidade”, elaborado por Kevin Robins (Bennett et al, 2005), não só é incluído como aparece com algum destaque. A perspectiva adotada por Robins, em tal verbete, é a da identidade como identificação, isto é, como uma percepção de igualdade individual ou coletiva, que supostamente se mantém inalterada ao longo do tempo. Essa ideia de permanência contida na ideia de continuidade atuaria como uma espécie de estratégia de organização da complexidade da vida moderna tanto no campo subjetivo (psicológico) como social. Os caráteres de unidade e continuidade das identidades serviriam de contraponto ao pluralismo, à diversidade e à transformação tão característicos desta modernidade tardia:

Identity is to do with the imagined sameness of a person or of a social group at all times and circumstances; about a person or a group being, and being able to continue to be, itself and not someone or something else. Identity may be regarded as a fiction, intended to put an orderly pattern and narrative on the actual complexity and multitudinous nature of both psychological and social worlds. The question of identity centers on the assertion of principles of unity, as opposed to pluralism and diversity, and of continuity, as opposed to chance and transformation. (Bennet et al, 2005).

Essa definição de identidade é apenas uma entre tantas possíveis, uma vez que os estudos de identidade são objeto de disciplinas diversas como a sociologia, a psicologia, a antropologia e os estudos culturais em meio a outras possibilidades. A abordagem adotada nesta pesquisa, entretanto, é a dos estudos culturais, que não só reconhece os diferentes vieses adotados por áreas de conhecimento distintas, como se vale deles para construir sua reflexão – tarefa que pode ser desenvolvida a partir de estratégias diferentes e que, portanto, deve ser clarificada. Com tal intutito, propõe-se aqui pensar-se em três categorias distintas, identificadas como “multidisciplinar”, “interdisciplinar” e “transdisciplinar”. Entende-se a multidisciplinaridade como a opção que se vale de diferentes áreas do conhecimento na análise de um dado objeto ou na reflexão sobre um tema qualquer. Nessa perspectiva, a divisão do conhecimento em áreas distintas e estanques é assumida à partida e respeitada. O resultado obtido é uma espécie de soma das diferentes mais-valias oferecidas por cada área. Ao longo desse processo e segundo seus críticos, faz-se presente o receio de contaminação entre elas, associado ao risco de perda de rigor científico ou de coerência teórico-metodológica.

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As identidades nacionais na Europa do século XXI

Entende-se a interdisciplinaridade como a opção que, embora também opere a partir das múltiplas disciplinas, não reconhece a existência de limites claros e definidos entre elas. Pelo contrário, reconhece o contato e a sobreposição, ou seja, a existência de um espaço liminar, valorado positivamente e explorado nessa perspectiva. No entanto, segue reconhecendo a divisão do conhecimento em áreas de saber com suas características e especificidades. Entende-se a transdisciplinaridade como a opção que rompe com a clássica divisão do conhecimento em disciplinas independentes, construindo-se a partir de diferentes teorias e ideias de origens diversas. Não se quer aqui pôr em causa a classificação e divisão do conhecimento para fins didáticos – esse não é o tema em discussão. O que se reclama é uma perspectiva de conjunto, que trabalha a partir de ideias e reflexões, recusando-se à classificação tradicional ou mesmo à ideia da classificação como um fim em si mesma – a classificação é aqui entendida como um recurso de raciocínio, estratégia de reflexão. Há um potencial de transformação que é valorizado nessa abordagem, sem que isso signifique abdicar do rigor científico ou da coerência teórico-metodológica – embora, muito provavelmente, atribuindo-se a tais termos significados em alguma medida diferentes dos tradicionais. A perspectiva da transdisciplinaridade, no enquadramento dos estudos culturais, é aquela adotada nesta pesquisa, o que não implica desconsideração pelos riscos inerentes à transposição de um conceito de uma área para outra. Considera-se, no entanto, que um conceito – ou uma ideia, um pensamento, uma reflexão, uma teoria – é indissociável do seu contexto, isto é, do contexto no qual é produzido. Desconsiderar tal relação, impossibilita esse exercício nos moldes propostos. Em outras palavras, o que se defende é que o conhecimento é construído a partir do diálogo, da relação e do embate entre ideias. Partir de uma ideia desenvolvida por outro/s, apropriar-se dela e transformá-la é atividade inerente à produção do conhecimento e não uma ameaça à mesma. Claro que não se está isento do risco de se construir ideias ou relações inconsistentes ou incoerentes, que, nesse caso, logo serão constestadas, criticadas, descartadas ou transformadas. Mas tal movimento é salutar para o desenvolvimento e a produção de conhecimento. Também é preciso considerar que, muitas vezes, compreender mal significa simplesmente discordar da corrente dominante, isto é, compreender diferentemente de outros ou não conseguir convencer seus pares da validade e pertinência de uma perspectiva – isso se dá em função de vários fatores, que, em geral, envolvem relações de poder, prestígio e posição de quem fala ou de contra quem se fala. 23

As identidades nacionais na Europa do século XXI

A discussão em torno dos conceitos de multi, inter e transdiciplinaridade, além de controversa, não é, no entanto, objeto deste estudo. O que se pretende é simplesmente explicitar a posição aqui adotada. Feito esse alerta e esclarecido tal ponto, retoma-se a discussão sobre as identidades no contexto atual, caracterizado como pós-modernidade ou modernidade tardia. Em A Condição Pós-Moderna (1986), Lyotard reflete sobre os tempos atuais, marcados pelo aumento da complexidade das relações sociais entre sujeitos e pela fragmentação e multiplicação dos centros. É o momento que representa o suspiro final das grandes narrativas que caracterizavam o período que lhe antecede, ou seja, o fim dos discursos com pretensão de generalidade e universalidade que serviam de justificativa e de estrutura para uma dada sociedade – não mais a busca por regras gerais, aplicáveis a toda multiplicidade e complexidade de situações e casos, mas sim o caso específico e particular, sempre contingente. Para o autor, esse cenário constitui uma mudança, uma transformação suficientemente relevante para marcar uma distinção entre a noção de modernidade e de pós-modernidade, também chamada de modernidade tardia – expressões utilizadas para denominar o período que se estende da segunda metade do século XX até a atualidade. No âmbito deste trabalho, como regra geral, as referências à modernidade, contemporaneidade e modernidade tardia remetem para o tempo presente. É nesse contexto da modernidade tardia que Stuart Hall (2014: 22-28) afirma que as identidades perdem seu centro, num processo marcado, principalmente, por cinco movimentos: o pensamento marxista, o surgimento da psicanálise, a semiologia de Saussure, as ordens do discurso de Foucault e as teorias feministas. Essa afirmação se assenta num cenário anterior no qual as identidades teriam adquirido uma certa estabilidade ou fixidez ou, ao menos, seriam assim percebidas. Tanto o pensamento marxista, desde o século XIX, como os movimentos feministas, a partir dos anos 60 do século XX, ao promoverem um novo tipo de identidade ampliada, colaboram para esse processo de deslocamento do centro (ou descentramento) das identidades. A promoção de uma identidade da classe trabalhadora assim como a de uma identidade feminina promovem a ideia de identidade desterritorializada e descontínua, isto é, estabelecem uma relação identidade/diferença que não depende da vinculação a um território ou a uma progressão temporal contínua. Pressupõem uma identidade motivada pelo status social e econômico – pela ideia/condição de trabalhador – ou pelo status social e biológico – pela ideia/condição de mulher. 24

As identidades nacionais na Europa do século XXI

As teorias psicanalíticas, a partir de Freud e depois com Lacan, promovem a noção de subjetividade, ao mesmo tempo em que ressaltam o papel do inconsciente no desenvolvimento humano e na construção do indivíduo. Os discursos em torno da supremacia da razão e do predomínio do indivíduo racional na construção da identidade são fortemente influenciados pela noção de inconsciente e da sua relevância na formação do ser humano. A semiologia de Saussure, ao se debruçar sobre os modos de criação e troca de significados, ou seja, sobre os processos de comunicação, põe em evidência a complexidade da interação humana e sua dependência de um sistema de trocas simbólicas. A língua é afirmada como um sistema social e simbólico, dotado de um repertório de significados – construídos e reconstruídos ao longo do tempo-espaço – do qual o indivíduo se vale para viver em sociedade. A teoria sociológica de Foucault, que posiciona o discurso como elemento estruturante da sociedade, põe em causa mais uma vez a autonomia do indivíduo racional, suspendendo a invisibilidade, ou melhor, revelando as redes sociais (poder/saber) que limitam e delimitam a possibilidade de ação e manifestação humanas. São as ordens do discurso que pré-determinam o que pode ou não ser dito, de que modo, por quem, em que contexto, com qual valor, numa espécie de condicionamento da autonomia e do poder de agência do indivíduo. Em comum, todas elas anunciam o fim da supremacia do indivíduo racional como o principal – ou mesmo, o único – ator social, dotado de autonomia, capaz de determinar seu próprio destino, contrariando, de certo modo, a máxima de Descartes (“Penso, logo existo”). Fazem-no ao trazer à luz uma série de outras perspectivas e forças que interagem e condicionam em algum grau a vida em sociedade. O indivíduo torna-se sujeito numa dupla perspectiva: do ser e do estar, ou seja, quer numa perspectiva estática e essencialista, quer numa perspectiva dinâmica e performativa. A ideia de fragmentação, recorrente nos discursos da modernidade tardia, parte do paradigma de uma identidade una e indivisa que se perde ou se parte, ou seja, de identidades que se fragmentam. Com o fim das grandes narrativas, a narrativa das identidades, em sua completude, também se perde. A complexidade da vida moderna, a multiplicação das variáveis que regulam as relações entre sujeitos, as difíceis e confusas equações de interdependência entre fatores e o consequente aumento da especialização, associado ao aumento da quantidade de informação e dados a circular, permitiriam no máximo vistas parciais, fragmentos que poderiam ou não ser combinados. Essas identidades fragmentadas instauram um estado de tensão permanente, quer em função de um exercício incessante de combinação e conjugação das partes, nem sempre 25

As identidades nacionais na Europa do século XXI

conseguido, mas muitas vezes desejado – numa busca pela estabilidade ou pelo equilíbrio –, quer em função da ansiedade gerada pela tentativa de se reconstituir um todo indiviso – meta, agora, impossível de ser alcançada. Essas tensões transparecem, muitas vezes, nos discursos de afirmação de uma certa “crise das identidades” que se teria instalado nas sociedades modernas. A perda de pontos de referência seguros e estáveis, além da multiplicação das possibilidades de identificação, provocam insegurança e ansiedade no sujeito social moderno, que vivencia essa situação como crise. Ora em paralelo, ora em concorrência com a ideia de fragmentação das identidades – que pressupõe, como já afirmado, a existência anterior de um todo, de uma totalidade, que se perde – está a noção de multiplicação: não mais identidades fragmentadas, mas sim identidades múltiplas. Para dar conta da complexidade do sistema social é preciso se multiplicar – não mais fragmentar o todo, mas sim multiplicá-lo em sua inteireza. Trata-se, na verdade, de uma justificativa ou estratégia diferente para dar conta do mesmo resultado: o fim de uma identidade una e indivisível e o desenvolvimento de novas e diversas identidades. Essa perspectiva parece inverter a ideia de crise convertendo-a em oportunidade. A modernidade tardia não é mais caracterizada pela “crise das identidades”, mas sim como a “era das identidades” – em vez da fragmentação, a multiplicação. Para fazer face à complexidade da modernidade, o indivíduo se vale de várias identidades distintas e independentes: de gênero, etária, profissional, nacional, etc. Nesse sentido, cada indivíduo teria um repertório de identidades à sua disposição, que poderiam ser utilizadas sempre que necessário, segundo o critério de cada um, para melhor atender as necessidades da vida em sociedade. Na era das identidades, o indivíduo exercitaria seu poder de escolha e sua capacidade de compra, como se de um bom consumidor se tratasse, beneficiando-se de um livre-mercado das identidades (Billig, 1995: 134). A identidade de consumidor, desse modo, ganharia proeminência, especialmente numa sociedade caracterizada como sociedade de consumo. A ideia de livre-mercado das identidades acentua a noção de voluntarismo e a perspectiva sócio-econômica associadas ao tema ao delinear um cenário em que as identidades se transformam em mercadoria, passíveis de serem adquiridas ou descartadas em função do poder aquisitivo do consumidor e da sua vontade. Essa contaminação da lógica de mercado a tantas outras esferas da vida social é também uma característica dos discursos da modernidade.

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As identidades nacionais na Europa do século XXI

A metáfora da liquidez, tão bem explorada por Bauman (2006), parece útil na caracterização das identidades nesse contexto de modernidade tardia como “identidades líquidas”. A matéria em estado sólido se transforma. O estado de liquidez acentua o caráter fluido e de certo modo volátil das identidades, que estão em permanente estado de transformação e acentua também sua flexibilidade, isto é, a sua capacidade de assumir formas diferentes em função do seu entorno. O que as perspectivas da crise e da era das identidades têm em comum, no entanto, é a valorização do papel desempenhado por elas nas sociedades atuais. Essa afirmação é em parte corroborada pelo volume de trabalhos produzidos em torno do tema e pela frequência dos discursos que dela se valem. Apesar da grande variedade de posições e conceitos veiculados, é possível refletir sobre o tema a partir de duas visões antagônicas que atravessam essas discussões: as visões essencialistas e as visões não-essencialistas das identidades. Considerando-se os dois extremos, pode-se caracterizar as visões essencialistas como aquelas que partem da ideia de identidade como algo dado, algo que nasce com o indivíduo e o acompanha – mesmo à sua revelia – até a morte. Faz dele o que ele é, regula seus atos, determina seu comportamento, isto é, constitui sua essência. Sendo assim, não pode ser modificada ou transformada. Essas perspectivas retiram poder e autonomia do indivíduo, que passa a estar sujeito a essa identidade, e são compatíveis com os discursos de descoberta, isto é, da ideia do indivíduo que parte em busca de si mesmo. Do lado oposto, estão as visões não-essencialistas que negam o caráter inato das identidades, afirmando seu potencial de criação e transformação. O indivíduo não nasce com uma identidade, mas sim a constrói na relação com si mesmo e com os outros. As identidades resultariam, assim, de um processo de construção. No âmbito dessas teorias, esses processos de construção podem ser descritos e caracterizados de formas bastante distintas, mas, em geral, em todas elas o indivíduo adquire algum poder de participação – maior ou menor, mais ou menos ativo, mais ou menos condicionado. O indivíduo, desse modo, pode escapar à situação de sujeição e passar à posição de sujeito. A grande maioria das teorias e reflexões sobre as identidades em vigor hoje, no entanto, parecem se situar entre um extremo e outro, combinando perspectivas essencialistas e não-essencialistas. Partindo-se dessa premissa, pode-se delinear algumas das concepções mais frequentes a partir de duas analogias: a do núcleo-duro e a da moda, que serão desenvolvidas a seguir. Uma dessas perspectivas de construção identitária pode ser pensada recorrendo-se a uma analogia com o conceito de “núcleo-duro”, retirado do direito. O sistema jurídico27

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constitucional é construído a partir de um núcleo-duro, isto é, de um conjunto de regras e valores fundamentais – estáveis e, praticamente, inalteráveis – aos quais outras normas jurídicas são associadas e incorporadas, sendo consideradas válidas apenas se e à medida que forem compatíveis com ele. Do mesmo modo, as identidades seriam constituídas a partir de um núcleo-duro, de um centro irradiador de controlo, validade e sentido – perspectiva essencialista – em torno do qual o indivíduo construiria sua identidade ao longo da vida – perspectiva não-essencialista. Na segunda perspectiva, recorrendo-se à moda como metáfora, as identidades seriam como as roupas, um traje que se veste e se despe segundo o livre-arbítrio, a escolha, o humor do indivíduo – para cada situação, um traje diferente. Nesse modelo, a noção de estilo permite uma certa ligação entre um traje e outro, criando, em seu conjunto, alguma unidade. Desse modo, seria possível reconhecer o indivíduo independentemente do traje utilizado ao se reconhecer o seu estilo. Embora esse modelo se aproxime mais das visões não-essencialistas, quando comparado com o anterior, ainda é compatível com um viés de essência, presente na definição de cada traje a ser utilizado, ou seja, na definição de um repertório de identidades pré-fabricadas à disposição do indivíduo. A perspectiva adotada nesta pesquisa parte de uma visão não-essencialista das identidades, em que estas são o resultado de um processo constante de construção. Tal processo consiste na tomada de posição no âmbito do/a discurso/prática social. Com essa afirmação, não se pretende fazer qualquer juízo sobre os elementos que condicionam tais processos – sua validade, possibilidade, credibilidade – mas sim afirmar seu caráter relacional e sua necessária fluidez, sua eterna incompletude e sua natureza de projeto sempre em andamento. A discussão desenvolvida até o momento girou em torno das identidades, consideradas no presente contexto num alto grau de abstração. Agora, no entanto, o que interessa é fazer um recorte mais específico de modo a focar naquela que, entre tantas e tão variadas possibilidades, é o objeto principal desta reflexão: a identidade nacional ou, melhor, as identidades nacionais. Como alerta Kuper (1999: 235), as identidades, mesmo na perspectiva individual e privada, são vividas no mundo, no diálogo com o/s outro/s – e, na perspectiva construtivista, são aí construídas. No entanto, são vivenciadas individualmente, ou seja, numa perspectiva subjetiva, o indivíduo descobre essa identidade em si mesmo, no seu interior. Essa identidade consiste na identificação com o outro, com o/s grupo/s com o/s qual/is estabelece relação/ões

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As identidades nacionais na Europa do século XXI

de pertença, encontrando, assim seu lugar no mundo – seja uma nação, uma minoria étnica, uma classe social ou um movimento político ou religioso, como exemplifica o autor. Tais recursos à identificação com o outro e ao estabelecimento de relações de pertença, como referido acima, conduzem ao “mito da nação”, que, como afirma Billig (1995: 137), assim como o mito da tribo ou o da religião, oferece algum conforto ao indivíduo ao propiciar a possibilidade do resgate de uma certa integridade, de uma certa inteireza, isto é, de uma noção do todo em meio à fragmentação e à insegurança inerentes à contemporaneidade.

Identidade nacional

Dois eventos são frequentemente indicados como sendo os precursores dos nacionalismos na Europa: a declaração da independência americana, em 1776, e a revolução francesa, em 1789. Mas é o século XIX aquele caracterizado como sendo o da “era das nações”, ou seja, o período em que os nacionalismos – como movimento político, social e econômico e como ideologia – ganham força e as nações são construídas. Em sua primeira metade, a Europa passa por grandes transformações, com o início da era industrial e a incidência (e persistência) de uma crise econômica que se espraia pelos campos, promovendo insatisfação e conflitos que culminam com uma série de levantes populares um pouco por toda a Europa, período identificado como sendo o da “primavera dos povos” ou “primavera das nações” (1848). O poder dos reis é posto em causa e sua origem divina é questionada pelas novas teorias liberais, com destaque para os pensamentos de Rousseau e Adam Smith, que se fundamentam na ideia de que o poder pertence ao povo e só em seu nome pode ser exercido. Trata-se do período que representa o início do fim dos regimes monárquicos e a ascenção da democracia. Fichte, Korais, Rousseau, Herder e Mazzini, cada um na sua época e à sua maneira, são identificados como os fundadores dos nacionalismos na Europa e, portanto, precursores do seu estudo. No entanto, embora tais estudos constituam uma referência importante para esta pesquisa, é importante ressaltar que seu foco são as identidades nacionais e os nacionalismos como projeto político, meio de mobilização das massas, movimento liberal, requisito democrático entre tantas outras possibilidades, sendo que, muitos desses temas, não são aqui explorados. O que se busca identificar nessas teorias são elementos que contribuam 29

As identidades nacionais na Europa do século XXI

para a reflexão sobre o papel simbólico das línguas na construção das identidades nacionais num contexto bastante específico: a Europa do século XXI. Todas as transformações acima referidas e as instabilidades que lhe são inerentes contribuíram para o deflagrar das duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945) que marcaram a primeira metade do século XX na Europa e redefiniram suas fronteiras. Não por acaso, esse período se confunde com aquele identificado por Hobsbawm (2012) como sendo o do apogeu dos nacionalismos: de 1918 a 1950. É no desdobramento desses conflitos, em 1951, que nasce a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), que viria a ser o embrião do que é hoje a União Europeia. A CECA é sucedida pela Comunidade Econômica Europeia (CEE), em 1967, e, finalmente, pela União Europeia, em 1992. Em seu primeiro momento, trata-se de um acordo comercial estabelecido entre França, Itália, Alemanha Ocidental, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Ao longo dos anos seguintes, no entanto, passa por vários alargamentos e transformações em natureza, funções e objetivos, chegando à sua configuração atual como entidade supranacional, constituída por 28 países soberanos, em busca de integração nos mais variados níveis e engajada na construção de uma identidade própria. A ideia de nação como uma espécie de força da natureza, embora dormente, à espera de irromper constitui o ponto de partida de muitos dos nacionalismos europeus. Nesse contexto, a nação é concebida como o resultado de séculos de vivência em comum, partilhada por indivíduos que se assemelham, que possuem uma mesma origem, que ocupam um dado território, que partilham uma mesma história, uma língua, uma cultura. Todos esses elementos se mobilizam e conjugam na formação de um Estado-Nação – uma nação politicamente constituída e reconhecida –, dotado de autodeterminação, estrutura política e jurídica, instituições públicas, etc. Nesse sentido, a posição construída por Renan (1994) e defendida num importante discurso, proferido em 1882, intitulado “Qu’est-ce qu’une nation?” (“O que é uma nação?”) representa mudança significativa. Para o autor (ibidem:17), a nação seria um “princípio espiritual”, uma entidade dotada de alma e capaz de inspirar sentimentos de solidariedade e sacrifício. Nessa concepção de nação, o que faz de uma determinada comunidade nacional uma nação propriamente dita é o sentimento de solidariedade que ela é capaz de inspirar e que une todos aqueles que dela fazem parte. Tal sentimento seria suficientemente forte para justificar sacrifícios – matar e morrer em nome da nação e daqueles que no passado, hoje e também no futuro, estiveram, estão e estarão dispostos a fazer o mesmo.

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O principal critério de existência nacional seria o desejo de um povo de permanecer unido, a vontade de ser uma nação. Nesse mesmo sentido, pertencer a uma nação seria uma questão de escolha, e não de origem étnica, língua materna, local de nascimento ou de qualquer outro critério objetivo. Para Renan, a pertença nacional consiste num compromisso livremente assumido e reafirmado diariamente numa espécie de “plebiscito diário” (Renan, 1994). O pensamento de Renan rompeu com os modelos clássicos dos nacionalismos em vigor até àquele momento – que, em geral, se afirmavam a partir de elementos como etnia, língua, território, povo, religião, história, antiguidade, etc. – e exerceu grande influência nos estudos sobre o tema. Renan foi, nesse sentido, o precursor de uma série de desenvolvimentos que levariam a uma guinada no campo teórico a partir dos anos 80 do século XX, como exemplificam Anderson (2006) e Hobsbawm (2012). Em geral, as novas teorias nacionalistas se afastam das visões essencialistas da ideia de nação e assumem o viés da construção. Nesse sentido, as ideias de Gellner são um bom indicativo da mudança. Para o autor, são os nacionalismos que engendram a nação, e não o contrário. Gellner (1994: 63) contesta a visão do “despertar da nação”, que enfim toma consciência de si, da sua história e das suas raízes – discurso corrente nos nacionalismos. Para o autor, os nacionalismos consistem em novas formas de organização social, baseadas em sistemas de educação pública organizados, controlados e instituídos pelo Estado. Gellner contesta o mito da nação como uma força latente, mergulhada num sono profundo e ininterrupto, apenas à espera de se manifestar ou, ainda, como uma ordem natural e universal de classificar os homens em grupos distintos. Nesse mesmo sentido, o autor nega a ideia de nação como destino inexorável, apenas postergado, sempre na expectativa de emancipação. Para o autor, as nações são fabricadas a partir de um processo seletivo, arbitrário e inconsciente que se vale de culturas pré-existentes e ora as apaga ora as transforma radicalmente. Nesse processo, vários elementos são mobilizados, com destaque para as línguas, as tradições e um sentido de autenticidade e pureza que seriam característicos da alma da nação (1994: 63-64):

Nationalism sees itself as a natural and universal ordering of the political life of mankind, only obscured by that long persistent and mysterious somnolence. (…) It´s nationalism which engenders nations, and not the other way round. Admittedly, nationalism uses the pre-existing, historically inherited proliferation of cultures or cultural wealth, though it uses them very selectively, and it most often transforms them radically. Dead languages can be revived, traditions invented, quite fictitious pristine purities restored.

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A nação seria, portanto, uma “comunidade inventada”, numa perspectiva que põe em causa a existência de comunidades homogêneas, compostas por indivíduos que partilham uma mesma origem, traços genéticos, língua, etc. e que parece não se sustentar face a uma análise detalhada, um olhar perscrutador. Mas a inexistência – e mesmo a impossibilidade – dessa homogeneidade não impede que uma comunidade seja percebida ou se perceba como tal. Anderson parte das reflexões de Gellner e constrói sua própria teoria, que ainda hoje exerce grande influência nos estudos dos nacionalismos. Critica o recurso à “invenção”, presente no conceito de Gellner, por acreditar que essa expressão remete para o universo da arbitrariedade, da fabricação de uma mentira, dificultando o seu entendimento. Anderson (2006: 5-6) propõe, como alternativa, a definição de nação como comunidade “imaginada”, ressaltando seu caráter “limitado e soberano”, como ilustrado abaixo:

In an anthropological spirit, then, I propose the following definition of the nation: it is an imagined political community – and imagined as both inherently limited and sovereign. It’s imagined because the members of even the smallest nation will never know most of their fellow-members, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the image of their communion.

É interessante observar que, embora Anderson defina os nacionalismos como artefatos culturais, como referido na introdução deste estudo, o autor define nação como comunidade política – e não cultural, religiosa ou étnica, por exemplo. Esse entendimento de nação e nacionalismo parece condizer com o ideário do Estado-Nação, que remete para a ideia de Estado como nação politicamente organizada, ao mesmo tempo em que acentua o papel da cultura em sua construção. A substituição de inventada por imaginada pretende ressaltar a dependência do processo de construção da nação em relação a elementos pré-existentes. As nações não surgem do nada, nem no vácuo, mas sim da mobilização (ativação/passivação, afirmação/negação, apagamento/insersão, transformação/cristalização) de certos elementos que lhe são anteriores ou não, ou seja, o processo de imaginar a nação não é arbitrário, pelo contrário, há sempre condicionamentos. Na comunidade imaginada como nação proposta por Anderson, a noção de soberania que caracteriza os Estados é associada à ideia nação, acentuando o seu direito de se autodeterminar. A definição de limites pode ser interpretada como o estabelecimento de fronteiras, de limites territoriais, mas também de uma clara linha divisória a marcar a diferença, definindo critérios de inclusão e exclusão. Em ambos os casos, a analogia com o

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modelo de Estado-Nação pode ser retomada – mesmo que apenas como destino, esperado, desejado ou almejado. Partilhando a ideia de nação de Anderson, Hobsbawm desenvolve sua análise dos nacionalismos numa perspectiva histórica. Reconhecendo que o processo de imaginação da nação é, como já alertavam Gellner e Anderson, em muito dependente do sistema educativo e da apropriação seletiva de culturas pré-existentes, Hobsbawm debruça-se sobre o papel da tradição, que, para ele, também é resultado de um processo de construção. Num célebre artigo sobre a invenção da tradição, Hobsbawm (1994: 77-78) identifica três desenvolvimentos que considera prioritários para a invenção das tradições: o desenvolvimento de um sistema nacional de educação primária, a criação de cerimônias públicas e a produção em massa de monumentos públicos. Hobsbawm (1994: 76) chama a atenção para o paradoxo que envolve as nações que, embora se afirmem e percebam como entidades naturais e seculares, muitas vezes à espera de serem afirmadas e reconhecidas, mas sempre profundamente enraizadas e cujas origens se perdem no tempo, são, pelo contrário, bastante atuais – são o resultado de um processo de construção, isto é, são organizações características da modernidade. Nesse mesmo sentido, Giddens (2002) afirma que os Estados-Nação são a mais destacada forma social produzida pela modernidade. Assim, o Estado-Nação se distinguiria de outras entidades sociopolíticas tradicionais pela sua forma particular de territorialidade, vigilância e controlo, onde se destaca o monopólio do uso legítimo da força, como registrado abaixo:

Modernity produces certain distinct social forms, of which the most prominent is the nationstate. As a sociopolitical entity the nation-state contrasts in a fundamental way whith most types of traditional order. It develops only as part of a wider nation-state system (which today has become global in character), has very specific forms of territoriality and surveillance capabilities, and monopolises effective control over the means of violence. (Giddens, 2002: 15).

O papel da tradição também é explorado por Giddens (2000: 60-61), que estabelece uma relação com o conceito de “memória coletiva” proposto por Hallbwachs (1990). Segundo este último, a memória não implica a preservação do passado, pois este é continuamente revisto e reescrito em função do presente. A memória, portanto, seria essa reconstrução, em parte individual, mas, sobretudo, social e coletiva desse passado. A tradição, para Giddens, consiste num “meio de organização da memória colectiva” (2000: 61), envolvendo a ideia de ritual e um caráter de obrigatoriedade, que o autor 33

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caracteriza como dotado de conteúdo moral e emocional. Giddens, portanto, também se afasta de uma abordagem essencialista do tema, explorando outras dimensões da ideia de tradição. Deslocando-se o foco do conceito de nação para o de povo, Deutsch (1994) desenvolve sua perspectiva sobre os nacionalismos a partir da ideia de que a participação e a pertença a um povo implicam a habilidade de comunicação mais eficiente e abrangente entre seus indivíduos, em comparação com aqueles que não fazem parte do grupo. Funda-se na possibilidade de comunicação, de compreensão mútua. A nação é uma comunidade de sentido e a existência de uma língua comum é condição essencial para a sua existência. Essa perspectiva, que ele identifica como sendo funcional, envolve a partilha de recursos comunicativos, isto é, da capacidade e habilidade de utilização da informação, por meio de uma série de ações que incluem a recolha, transmissão, combinação e uso de dados e que depende, portanto, da partilha de códigos de comunicação comuns, ou seja, da existência de uma cultura de comunicação partilhada, como afirma Deutsch (1994: 27):

What is proposed here, in short, is a functional definition of nationality. Membership in a people essentially consists in wide complementarity of social communication. It consists in the ability to communicate more effectively, and over a wider range of subjects, with members of one large group than with outsiders. This overall result can be achieved by a variety of funcionally equivalent arrangements.

A partir das ideias reunidas até aqui, pode-se vislumbrar a variedade e multiplicidade de narrativas e abordagens que caracterizam as teorias sobre os nacionalismos. Nesse cenário, destaca-se a iniciativa de Smith (2001: 19-20), que, ao refletir sobre os nacionalismos na modernidade, identifica cinco perspectivas gerais que, juntas, representam a diversidade de estudos e teorias sobre o nacionalismo em vigor: (i) as nações como comunidades políticas territoriais; (ii) as nações como vínculo político primário e principal fonte de lealdade de seus membros; (iii) as nações como os principais atores políticos na arena internacional; (iv) as nações como construções dos seus cidadãos, em especial dos seus líderes e grupos de elite; e (v) a nação como enquadramento, como veículo e como beneficiária do desenvolvimento político e social. A perspectiva das (i) nações como comunidades políticas territoriais acomoda as teorias que refletem sobre a ideia de nação no âmbito dos Estados-Nação, ou seja, como entidades soberanas, situadas num dado território, com fronteiras claras e definidas, com um sistema jurídico e político que garanta os direitos-deveres dos seus cidadãos, com uma comunidade coesa. 34

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A seguir, a ideia de (ii) nação como vínculo político primário e principal fonte de lealdade entre os indivíduos nacionais engloba as teorias que exploram a perspectiva política da nação/pátria, que demanda lealdade e sacrifício, em sobreposição às demais formas e recursos de identificação. Os conceitos de dever cívico, cidadania, democracia e participação são temas recorrentes. A proposição seguinte consiste na identificação das (iii) nações como sendo os principais atores políticos na arena internacional e remete, portanto, para as situações de contato entre Estados, ou seja, para a organização das nações no cenário internacional e os diferentes papéis que podem desempenhar. Nesse contexto, são recorrentes temas como a multiplicação e o aumento da influência de entidades supranacionais, com seus reflexos sobre a ideia de soberania nacional, o aumento da interdependência entre as nações e os efeitos da globalização. Uma outra perspectiva identificada pelo autor consiste na concepção das (iv) nações como o resultado de processos de construção realizados por seus cidadãos, acenando, assim, para as teorias construcionistas, que afirmam o caráter contingente da ideia de nação como organização social da modernidade, cuja criação é em muito devedora dos interesses da liderança e das elites nacionais. As relações de poder, as ideologias, o potencial de identificação e mobilização em torno da ideia de nação são explorados, ao mesmo tempo em que se destaca a relação de dependência entre o conceito de nação e outras instituições da modernidade, seus valores e sua infraestrutura: “transporte, burocracia, língua, educação, mídia, partidos políticos, etc.” (Smith, 2001: 20). Por fim, o autor conclui apresentando a definição de (v) nação como o enquadramento, como o veículo e como a beneficiária do desenvolvimento político e social, afirmando a nação como “único instrumento para garantir as necessidades de todos os cidadãos na produção e distribuição de recursos e único meio de assegurar o desenvolvimento sustentável” (Smith, 2001: 20). Isso porque a ideia de nação seria a única dotada de força suficiente para sensibilizar indivíduos e mobilizar as massas em termos de “compromisso, dedicação e auto-sacrifício” (ibidem) inerentes à modernização. Independentemente da formulação que se adote, no entanto, pode-se afirmar que a ideia de nação e os nacionalismos ainda desempenham papel relevante nas sociedades modernas, inspirando e despertando alianças e rivalidades, mobilizando pessoas, consistindo em ou configurando elementos de identificação e solidariedade, num mundo em constante transformação que parece, cada vez mais, exigir atores e performances globais.

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Smith (2001: 1) é taxativo ao afirmar que, na perspectiva das ciências sociais, nações e nacionalismos são entidades da modernidade, cuja construção se inicia na segunda metade do século XVIII e que têm seu apogeu na primeira metade do século XX, mas que, a partir daí, vêm perdendo sua força e importância muito em função da transcendência das fronteiras nacionais, característica da atual era global. Essa é também a visão de Hobsbawm, que, secundado por Anderson, defende a ideia de que os nacionalismos teriam chegado ao fim, no sentido de que não mais seriam a principal força motriz das transformações sociais experimentadas na atualidade, ao contrário do que fora durante os dois últimos séculos. Em resumo, a tese do fim dos nacionalismos, mais do que o fim propriamente dito, assinala uma mudança, quer do conceito de nação, quer dos movimentos que o informam. A questão que se põe, portanto, é de se saber se as mudanças acima referidas são suficientemente drásticas para que os conceitos de nação e nacionalismo, como entendidos até agora, deixem de dar conta desses novos significados e tenham de ser substituídos; ou, por outro lado, se tais conceitos seguem operacionais e úteis e, portanto, tais mudanças implicam, simplesmente, um alargamento dos significados anteriores e novas perspectivas de análise, num movimento corrente e recorrente em qualquer estudo que se desenvolva ao longo do tempo-espaço. De modo geral, não parece haver muitas dúvidas de que o papel dos nacionalismos tenha mudado ou, pelo menos, de que esteja em fase de transformação, em comparação com o período do seu apogeu. A questão se torna mais controversa, no entanto, quando se trata de analisar a natureza de tais mudanças e, especialmente, de se saber se estas implicaram a perda de relevância dos nacionalismos para as sociedades europeias modernas, como afirma Hobsbawm (2012), tema que será retomado mais à frente. Na segunda metade do século XX, o foco de tensão se desloca da Europa para os EUA e a URSS, no contexto da chamada Guerra Fria. A Europa é dividida pela “cortina de ferro”, que separa a Europa ocidental da Europa de Leste. A Alemanha, partida em dois desde o final da 2ª Guerra, só voltaria a se reunificar em 1990, após a queda do muro de Berlim, em 1989, e um pouco antes da dissolução da URSS, em 1991. Deparamo-nos, em 2015, na Europa, com um cenário marcado por tensões em que os discursos nacionalistas ocupam posição de destaque. Apenas como exemplo: na Espanha, tensões entre catalães, bascos e “espanhois”, sem mencionar os galegos; no Reino Unido, o referendo pela independência da Escócia, sem esquecer eventuais conflitos com a Irlanda; na Bélgica, a crise política de 2010-2011 que deixou o país sem governo por 541 dias. 36

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O cenário atual também é marcado por uma crise econômica, que tem abalado a Europa nestes últimos anos, e pela questão das migrações, que neste momento adquire contornos dramáticos. Em tal contexto, multiplicam-se os discursos nacionalistas, agora não mais de afirmação nacional, exclusivamente, mas sim de discriminação ou mesmo de xenofobia, adotados, em geral, mas não só, por partidos de extrema-direita, como a Frente Nacional, de Marine Le Pen, na França, e o UKIP, de Nigel Farage, no Reino Unido. Hobsbawm já alertava para esse fenômeno, que, embora possa emergir em associação aos nacionalismos, não se confunde com eles. Como afirma o autor, a xenofobia, longe de ser um programa político ou uma ideologia, é simplesmente uma expressão de angústia ou mesmo de fúria que, segundo Hobsbawm, raramente seduz mesmo os mais ardentes nacionalistas:

However, xenophobia, readily shading into racism, a more general phenomenon in Europe and North America in the 1990s even than it was in the days of fascism, provides even less of an historic programme than Mazzinian nationalism. Indeed, it rarely even pretends to be more than a cry of anguish or fury. Moreover, even the romantic sympathisers with the sovereign independence of selected small peoples are rarely found insisting on the Janus-like characteristics of M. Le Pen’s National Front. It has one face, and most of us would prefer it to have none. (Hobsbawm, 2012: 170).

Ainda assim, a combinação entre xenofobia e nacionalismos, por mais equivocada que seja, parece ter, na atualidade, um potencial explosivo e não deixa de ser um sintoma de que, em algum momento, a construção de uma relação saudável entre um suposto eu e um certo outro falhou. A xenofobia, como uma visão deturpada dos nacionalismos, em geral alimenta posições discriminatórias que não raro evoluem para a violência.

Identidade Nacional e Cultura

Assim como identidade, cultura é também um conceito fugidio que, à primeira vista, parece de fácil apreensão, mas que, numa tentativa de análise mais cuidada, escorrega pelas mãos. Em alguns casos, o conceito de cultura é definido de forma tão abrangente que passa a significar quase tudo, pondo em risco sua funcionalidade conceitual. Em outros, sua definição é tão cerrada que impossibilita uma reflexão minimamente coerente sobre seu uso e operacionalidade.

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Toma-se como ponto de partida a definição de cultura, segundo o preâmbulo da Declaração Universal da Diversidade Cultural da UNESCO, de 2012, como sendo o “conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”. Nessa definição, a cultura é apresentada como um marcador da diferença – “traços distintivos” – e definida de forma bastante abstrata – modos de vida, valores, tradições, crenças. Uma vez que a cultura se baseia na distinção, ou seja, na diferença, e partindo-se do princípio de que identidade e diferença são ideias correlatas, depreende-se da citação acima a relevância do conceito de cultura para os estudos de identidade. Corrobora essa afirmação, a constatação presente na declaração da UNESCO (2012: preâmbulo) de que a cultura “se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade”. Ainda sobre o papel da diferença na construção das identidades, destaca-se a posição de Boaventura de Sousa Santos (2001: 46), que não só realça a participação dos processos de diferenciação como os identifica como fonte de desiguadade e manifestação de relações assimétricas de poder. Nesse sentido, as identidades seriam, primordialmente, formas de dominação, como abaixo referido:

As identidades são o produto de jogos de espelhos entre entidades que, por razões contingentes, definem as relações entre si como relações de diferença e atribuem relevância a tais relações. As identidades são sempre relacionais mas raramente são recíprocas. A relação de diferenciação é uma relação de desigualdade que se oculta na pretensa incomensurabilidade das diferenças. Quem tem poder para declarar a diferença tem poder para a declarar superior às outras diferenças em que se espelha. A identidade é originariamente um modo de dominação assente num modo de produção de poder que designo por diferenciação desigual.

A relação de simbiose entre identidade e diferença é também explorada na perspectiva dos estudos de cultura. Nesse contexto, vale destacar a teoria desenvolvida por Stuart Hall (Silva, 2000), centrada no binômio identidade/diferença, que melhor se traduz no estudo das identidades como processo, sempre em andamento, de identificação, como mencionado abaixo:

Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveriamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos pelos outros.

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Para o autor, num entendimento alargado da noção de cultura como modo de vida, valores, crenças, história, memória, costumes, tradições, partilhar uma certa identidade nacional implicaria partilhar uma certa identidade cultural – o que significa dizer que, em alguma medida, os conceitos de identidade e cultura estariam, portanto, sobrepostos, partilhando um certo conteúdo e mesmo algumas características. Nesse contexto de aproximação entre cultura e identidade, parece importante destacar que, assim como as identidades nacionais, as identidades culturais também assumem, muitas vezes, contornos essencialistas. Contestando tais visões, e, especialmente os discursos que associam cultura à ideia de raça ou etnia, Kuper (1999: 227) afirma que a cultura não é uma questão de raça, ou seja, que não está inscrita geneticamente nos seres humanos, mas sim que resulta de um processo de aprendizagem. Num esforço de afastamento do viés essencialista, entende-se que a ideia de cultura implica aprendizado e transmissão, embora tais processos nem sempre sejam desenvolvidos de forma consciente. Em comunidades estáveis e isoladas, a cultura passa despercebida, tornase invisível. Mas, num cenário de mobilidade e de comunicação descontextualizada, a cultura na qual o indivíduo se desenvolve e aprende a comunicar torna-se central para a construção de um sentido de identidade (Gellner, 1994: 69). É no contexto de contato entre culturas diferentes, muitas vezes promovido pelo deslocamento ou afastamento do contexto cultural em que vive o indivíduo, que este se apercebe da sua cultura. Anderson (2006: 267) também contribui para o debate da relação entre identidade e cultura ao afirmar que as nações, assim como as pessoas, valem-se da construção de narrativas para dar sentido às suas identidades. A percepção de continuidade no tempo e no espaço, o resgate da memória e, sua contrapartida, o abandono ao esquecimento, são entretecidos para dar corpo a essa estratégia discursiva. Em sintonia com tal afirmação, a ideia de nação como estratégia narrativa é desenvolvida por Bhabha, que explora especialmente um espaço de indefinição e ambivalência onde categorias como “povo”, “minorias” e “diferença cultural” se confundem e sobrepõem em permanente deslocamento e constante recepção. A noção de limiar é explorada pelo autor como o espaço onde fronteiras se perdem ou em que nunca estão claramente fixadas. Bhabha entende nação como sendo a medida da liminaridade da modernidade cultural (1994: 292). Nesse sentido, na modernidade tardia, as nações já não são necessariamente o espaço de homogeneização cultural, onde diferenças são apagadas e suprimidas, mas sim arena onde diferentes narrativas disputam primazia e afirmam o caráter ambivalente da nação. Essas 39

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contranarrativas põem em causa as visões essencialistas, características das comunidades imaginadas como nação, ao evocar e apagar contiuamente suas fronteiras totalitárias (Bhabha, 1994: 300). Em resumo, o que se depreende da posição do autor é a definição de nação como estratégia discursiva de identificação cultural e exercício de poder, que se vale de um duplo movimento narrativo (1994) para constituir a categoria de povo ora como sujeito, ora como objeto, num movimento contínuo de oscilação. O povo é objeto de uma pedagogia nacionalista que o institui e constitui como povo, ao mesmo tempo em que é sujeito nos processos de significação que afirmam ou reafirmam a existência atemporal e contínua desse mesmo povo, que sempre existiu e sempre existirá. Segundo Bhabha (1994: 296-297), é nessa partição entre a temporalidade acumulativa e contínua do pedagógico (identidade narrativa) e a estratégia recursiva e repetitiva do performativo (identidade performativa) que a nação como narração é produzida. Afirmar a relevância do conceito de cultura para a construção das identidades nacionais ou que os conceitos de identidade nacional e cultural são, muitas vezes, sobrepostos, não significa negar as especificidades de um e de outro. Nesse contexto, a reflexão de Van Dijk (2005: 79-80) sobre os conceitos de conhecimento nacional e conhecimento cultural, no contexto da produção de discursos, parece contribuir para realçar algumas diferenças. Segundo o autor, o conhecimento nacional é aquele partilhado por todos os cidadãos de um dado país e adquirido via sistema escolar e meios de comunicação de massas. É sempre pressuposto, seja nos discursos públicos, seja nas conversas entre membros dessa comunidade nacional. Já o conhecimento cultural é aquele partilhado pelos membros de uma mesma cultura e construído a partir da identificação com uma dada língua, religião, história, hábitos, origem ou aparência (2005). É adquirido primeiro na família e depois na escola, na mídia, na interação com amigos. Para o autor, a principal diferança entre eles é que o conhecimento cultural é o pano de fundo contra o qual operam todos os outros conhecimentos, entre eles, o nacional. Outra distinção importante reside no fato de o conhecimento cultural ser mais genérico e abstrato, enquanto o nacional girar em torno de eventos reais/concretos num dado momento histórico e social.

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Identidade Nacional e Globalização

Os processos de globalização têm sido apontados como causa de inúmeras mudanças não só na esfera internacional, como também nas esferas nacional e local. Com a globalização, transforma-se, entre outras, a relação espaço-tempo – a comunicação global, desterritorializada e instantânea passa a ser possível. O outro não precisa mais ser imaginado, deixa de ser um outro distante e inerte, muitas vezes objetificado, para se tornar um outro presente. Nesse cenário, o contato com o outro passa a ser rotineiro e a possibilidade de interação e interpelação, ou seja, de “interrogação mútua”, na expressão de Giddens (2000: 93), concretiza-se. O contato entre diferentes modos de vida e culturas, porém, configura sempre uma perturbação – benéfica ou não –, ou seja, gera algum tipo de instabilidade e, muitas vezes, choques. Nesse contexto, o recurso às identidades, entre elas as nacionais, ou o apego a certas representações e discursos relacionados a elas parecem constituir alguma garantia de estabilidade e segurança, mesmo que apenas aparente. No momento atual, de globalização e mobilidade, de migrações em massa, de porosidade de fronteiras, os limites físicos de um Estado-Nação deixam de ser suficientes – ou, pelo menos, perdem força – para definir uma comunidade nacional, que agora se alarga e pulveriza (há mais armênios vivendo na diáspora do que na Armênia, por exemplo). Talvez as fronteiras de uma cultura possam hoje desempenhar o papel das antigas fronteiras territoriais, ou talvez as línguas nacionais possam desempenhar esse papel – partindo-se do pressuposto de que seria possível defini-las com exatidão e clareza. Mas também é possível que a própria noção de fronteira tenha perdido sua validade e operacionalidade, pelo menos em parte, no contexto atual. Segundo Billig (1995: 132-133), a globalização, ao diminuir os espaços e as diferenças entre as nações, faz com que as identidades nacionais também percam força ou relevância em detrimento de outras estratégias de identificação. O autor destaca o papel crescente das identidades construídas em torno da ideia de “estilos de vida”, associadas predominantemente a padrões de consumo. Também Hall alerta para uma transformação das identidades no contexto atual, muitas vezes definido como sendo uma espécie de campo de batalhas entre forças globais e locais (Hall, 2014: 44 e 45). Essas transformações são, em geral, associadas a um aumento da oferta de identidades à disposição do indivíduo, numa clara comparação com o setor econômico, e à

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supervalorização do consumo e do papel do consumidor – muitas vezes identificado como sendo o novo cidadão moderno – nesta modernidade tardia.

Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribiu para esse efeito de “supermercado cultural”. No interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinições culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. Esse fenômeno é conhecido como “homogeneidade cultural”. (Hall, 2014: 43).

Segundo o autor, as sociedades atuais vivem marcadas por um movimento de oscilação entre a valorização da “tradição” e da “tradução”, onde a tradição sinaliza um apego às formas essencialistas de cultura e identidade e a tradução remete para o cenário mais dinâmico de contato, diversidade e transformação. Nos casos em que a balança pende para a tradição verificam-se, por exemplo, o renascimento dos velhos nacionalismos, como na Europa Oriental, e os fundamentalismos, nas suas mais variadas formas (Hall, 2014: 52 a 54). A perda de soberania dos Estados-Nação, que agora precisam se organizar em instituições supranacionais para exercer poder ou a ele resistir (seja o poder político, econômico, social, etc.), faz com que as identidades nacionais percam sua força como principal e mais elementar reduto de identificação coletiva, capaz de sobrepujar tantas outras identidades. Para Billig (1995), nesta modernidade tardia, o território nacional perde sua capacidade de inspirar identidades e vínculos, cedendo lugar a novas formas de identificação, inspiradas, desta vez, não mais nas línguas nacionais, mas sim na linguagem eletrônica dos computadores e meios digitais. O espaço delimitado dos Estados-Nação é subtituído pelo espaço alargado que surge com as novas tecnologias, dando lugar a novas formas de ser, estar, pensar e sentir neste mundo que se globaliza.

Thus, the thesis of postmodernism proclaims a vision of a future world. In this world, no longer is the national territory the place from which identities, attachments and patterns of life spring. The order of the national world gives way to a new mediaevalism. The binary language of electronics is like a new latin, binding together the knowledgeable across political kingdoms. In place of the bordered, national state, a multiplicity of terrae are emerging. And those, who see their identities in terms of gender or sexual orientation, are, like monks before them, bound by no earthly terra, restricted by no mere sense of place. Thus, a new sensibility  a new psychology  emerges in global times. (Billig, 1995:134).

Como parte dos processos de globalização, tem-se o estabelecimento, criação ou valorização de entidades supranacionais, mas também – e, em parte, como reação a eles – o 42

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fortalecimento de entidades locais, num duplo movimento de globalização e glocalização. O termo glocalização (Robertson, 1995: 26) refere-se aos movimentos de resistência às forças globais e seu potencial de massificação, isto é, de imposição de um padrão único, supostamente global e homogêneo, destruindo, assim, as especificidades locais e pondo em risco a diversidade cultural. A emersão de entidades supranacionais e locais no cenário europeu, no entanto, não implica necessariamente a dissolução das entidades nacionais ou mesmo uma mudança drástica do seu papel – implica, sim, um novo equilíbrio de forças, com a entrada de novos atores sociais. Na discussão atual sobre nações e nacionalismos, o que parece estar em causa é a definição desses papéis – a natureza da mudança e sua intensidade, assim como a definição desse novo jogo de forças, com a identificação de pontos fortes e fracos, de estabilidade e instabilidade, de equilíbrio e desequilíbrio. No que diz respeito às identidades nacionais, porém, as questões que surgem parecem ser outras. As identidades nacionais ainda são relevantes, isto é, o recurso à ideia de nação na construção da identidade (coletiva do indivíduo) ainda é potencialmente interessante, ainda possui força suficiente para sobrepujar outras formas de identificação, ainda é capaz de mobilizar pessoas e comunidades em torno de uma causa? Não parece haver dúvidas de que as identidades nacionais seguem em uso, quer no âmbito internacional, quer no local. As entidades supracionais revelam grande preocupação e cuidado em seus discursos e políticas para não ferir sucetibilidades nacionais. No âmbito dessas mesmas entidades, em geral, as discussões e deliberações ainda são conduzidas entre nações. Do mesmo modo, mas no sentido inverso, as entidades locais também se constroem ainda muito em função dos contextos nacionais nos quais se inserem. Mas, ainda que se reconheça a persistência da ideia de nação, a arena de debates parece ter-se alargado. As identidades nacionais concorrem agora não só com tantas outras identidades de natureza diversa, mas também com outros tipos de identidades territorializadas: identidades supracionais (o cidadão do mundo, o cidadão global), identidades regionais (o europeu, o africano), identidades locais (o minhoto, o lisboeta). Corroboram a afirmação acima os discursos de valorização da diversidade, que, aliados à perspectiva da construção das identidades, ampliam o campo de oportunidades de identificação. Nesse cenário, o indivíduo ganha liberdade e poder para assumir diferentes posições e exercer o poder inerente a elas – com ou sem sucesso –, mas, ao mesmo tempo, corre o risco da perda de segurança e estabilidade.

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As identidades nacionais na Europa do século XXI

Claro que não se pode esquecer que as identidades nacionais, assim como todas as outras, podem ter valor negativo ou positivo e podem ser fator de inclusão ou exclusão, dependendo do contexto. Também é preciso destacar que tais identidades – e certas representações delas – não são sempre assumidas voluntariamente pelo indivíduo, e sim, muitas vezes, atribuídas a ele como uma espécie de rótulo que determina seu campo de ação e movimentação. Nos cenários em que os indivíduos podem assumir diferentes posições e entrar conscientemente no jogo das identidades, há sempre a possibilidade de se apropriar e se tirar proveito delas. Mas, ao contrário, quando ficam presos a determinadas representações, tornam-se reféns dessas identidades – exemplo de tais situações são os movimentos fundamentalistas em suas diversas naturezas política, religiosa, econômica, etc. É nesse contexto que ganham corpo as teorias que apregoam o fim dos nacionalismos. Pressionados pela globalização – aqui traduzida no desenvolvimento das tecnologias de comunicação; no aumento da mobilidade de bens, pessoas e dados; e na crescente interdependência entre Estados – e pela transformação da organização mundial indissociável dela, os nacionalismos estariam perdendo força. Mas os acontecimentos desse final de século XX parecem contrariar essa tese. Apenas como exemplo, vale lembrar a guerra, que novamente varreu os bálcãs entre 1991 e 1995, dessa vez protagonizada especialmente pela Sérvia, Croácia e Bósnia-Herzegovina, na esteira da dissolução da Iugoslávia – conflito que, mais uma vez, trouxe à tona as velhas ideologias nacionalistas. Contrariando a posição acima esboçada, no entanto, e a favor da tese do fim dos nacionalismos, defendida por ele, Hobsbawm (2012: 163) afirma que os desmantelamentos da Iugoslávia e da URSS, no final do século XX, assim como os conflitos deles decorrentes, são ainda efeito do embate de forças verificado no início do século, e não consequência dos nacionalismos atuais. Hoje, em vez de impérios que se fragmentam em nações, são as grandes nações que se fragmentam – ou ameaçam se fragmentar – em pequenas e médias nações na perspectiva de um suposto nacionalismo etnolinguístico (Hobsbawm, 2012). Em vez de um embate de forças, tem-se um jogo de pressões. O foco se desloca da força em si mesma – que incide sobre uma dada superfície – para o seu efeito – a pressão que exerce sobre essa mesma superfície, uma vez que tais forças já não são tão claras e identificáveis, mas sim invisíveis e difusas.

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As identidades nacionais na Europa do século XXI

Em suma, muitas das disputas alimentadas e fomentadas pelos nacionalismo de hoje não mais se valem do exercício de poder militar – embora este ainda persista (como, por exemplo, no caso Ucrânia versus Rússia) – mas sim de um plebiscito, de uma campanha de valorização de uma certa língua, de uma manifestação a favor de uma minoria ou contra a discriminação de um grupo, do preconceito contra os imigrantes, dos discursos xenófobos de uma suposta afirmação nacional de certos partidos políticos. Billig (1995), ao refletir sobre o tema, chama a atenção para o que ele denomina de “nacionalismo banal”. Não mais o “morrer pela pátria”, o sacrifício último do cidadãopatriota (ainda muito valorizado, especialmente nas séries de TV americanas em torno das figuras dos marines e rangers, por exemplo), mas sim de outras formas de afirmação e identificação, muitas vezes superficiais, rotineiras, enfim, banais – a bandeira pendurada nas fachadas dos prédios ou agitadas nas ruas em dias de jogos, ou utilizada como pingente num colar ou pulseira ou como estampa numa peça de vestuário; a sensação de sucesso partilhada numa disputa internacional sobre um assunto qualquer (música, gastronomia, comércio, turismo, etc.); a identificação com uma celebridade nacional que faz sucesso mundo a fora. De modo geral, parece razoável afirmar que a imagem da nação – suas representações e discursos – ainda se faz bastante presente, refletindo e influenciando a construção da identidade de cada um e de todos. As identidades nacionais estão estampadas nos documentos de identificação individual e são critério de acesso a parte significativa dos direitos e deveres do indivíduo; estão nas vitrines das lojas, nas telas de cinema, nos concursos de música, na séries de TV, nas redes sociais; estão nos jornais e noticiários, no centro de debates sobre igualdades e desigualdades sociais, direitos humanos, conflitos militares e crises humanitárias, sociais, econômicas, políticas, militares, de saúde pública. As identidades nacionais constituem, ainda, um importante critério de inclusão/exclusão no mundo contemporâneo.

Síntese

Neste capítulo, partiu-se do conceito de identidade, em sentido amplo, para então se analisar as identidades nacionais. Fez-se um recorte teórico – um entre tantos possíveis – destacando-se o papel das identidades no contexto da modernidade tardia, no qual elas parecem assumir maior relevância e complexidade. As noções de multiplicação, fragmentação 45

As identidades nacionais na Europa do século XXI

e crise das identidades foram algumas das perspectivas exploradas. Essa reflexão serviu de fundo para a introdução das identidades nacionais na Europa, apresentadas a partir de uma breve retrospectiva histórica onde o século XIX e a primeira metade do século XX adquirem maior relevância. A seguir, explorou-se a relação entre identidade nacional e cultura na tentativa de melhor compreender os vínculos e interdependências que ligam tais conceitos, especialmente no contexto europeu atual, marcado pelo projeto de união europeia. Trazendose tal discussão para este início de século XXI, procurou-se desenvolver o tema em contraponto com os processos de globalização, refletindo-se sobre alguns dos diferentes significados que assumem e sobre o impacto que exercem sobre a ideia de nação e, consequentemente, de identidade nacional.

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Capítulo 2 Língua e identidade nacional Língua e identidade nacional: perspectiva histórica Língua e identidade nacional: perspectiva simbólica Língua, cultura e identidade nacional Língua, multilinguismo e identidade nacional

De entre os diferentes elementos que são mobilizados na construção das identidades nacionais está a língua, cuja relevância para esse processo pode ser inferida quer pela frequência das referências, quer pela intensidade dos discursos de associação entre língua e a ideia de nação e nacionalismo. O fato de a língua consistir num dos poucos critérios que podem ser inferidos objetivamente (Hobsbawm, 2012) parece contribuir para o cenário em que a língua ganha relevância e destaque no processo de construção identitário. Neste capítulo, parte-se de uma reflexão sobre o papel da língua na construção dos nacionalismos europeus numa perspectiva histórica. Hobsbawm situa sua importância num dado período, registrando uma mudança na percepção dos nacionalismos a partir de 1870, que conduz à afirmação de um nacionalismo linguístico ou etnolinguístico. Anderson (2006), por sua vez, destaca o papel das línguas de imprensa e a importância do seu desenvolvimento no contexto do capitalismo industrial que se afirma nos séculos XIX e XX. A seguir, explora-se a relação entre língua e identidade nacional numa perspectiva simbólica, isto é, a ideia de língua como símbolo, como ícone de uma nação, como elemento de referência e de identificação. A língua como símbolo, numa sociedade onde os sistemas simbólicos adquirem cada vez mais importância, e o papel da mídia na construção, transmissão e disseminação desses símbolos são alguns dos temas desenvolvidos. Prosseguindo com a reflexão, analisa-se a relação entre língua e o conceito de cultura, os quais, muitas vezes, aparecem sobrepostos ou, ao menos, num contexto de interdependência. A língua como limite do mundo, isto é, como limite da possibilidade de conhecimento, ou como elemento condicionante e conformador do indivíduo e da sua visão de mundo são algumas das abordagens discutidas. Em complemento a elas, estuda-se a noção de língua como portadora e transmissora de cultura, desempenhando papel central na criação, manutenção e disseminação de uma suposta cultura nacional, no âmbito da qual as identidades são construídas.

Língua e identidade nacional

Por fim, o papel da língua na construção das identidades europeias é analisado no contexto do multilinguismo, no qual a moeda corrente deixa de ser a língua em sua unicidade e passa a ser a língua em sua diversidade – que é, então, valorizada e interpretada como uma mais-valia para o projeto europeu. Mas, se no contexto da interação entre os diferentes países que constituem hoje a União Europeia, a diversidade linguística é interpretada como valor, em outros, como no contexto das migrações, com as tensões e pressões linguísticas que este encerra, tais discursos de valorização nem sempre prevalecem, promovendo uma certa confusão e instabilidade no interior do sistema. O objetivo deste capítulo é identificar e explorar algumas das diferentes perspectivas de análise da relação entre língua e identidade nacional que possam contribuir para a reflexão sobre o tema no contexto europeu atual. Pretende-se também, com tal esforço, construir um pano de fundo contra o qual se possa pensar a posição de Portugal, no que diz respeito às questões identitárias que afloram das discussões sobre o novo acordo ortográfico, que será objeto da segunda parte desta pesquisa.

Língua e identidade nacional: perspectiva histórica

Embora a língua como fator de identidade ou de identificação seja um elemento recorrente em muitos dos discursos sobre os nacionalismos, seu papel pode ser – e tem sido – questionado. O que se discute não é tanto a existência de uma relação entre língua e nação, mas sim sua natureza e suas transformações ao longo do tempo. Pensando-se numa relação de causa-efeito, são as línguas que dão origem às nações ou são as nações que criam as línguas? Nesse contexto, quando falamos em língua, de que língua falamos: dos vernáculos orais ou escritos, das línguas administrativas dos antigos impérios coloniais, das línguas de cultura, línguas de imprensa, línguas nacionais? Para refletir sobre tais questionamentos, parte-se do pensamento de Anderson (2006: 71-73), que, ao discorrer sobre a importância das línguas para os nacionalismos, ou melhor, sobre a importância das línguas para a construção de uma consciência nacional, destaca o papel desempenhado pelas línguas de imprensa. Segundo o autor (ibidem: 42-43), a formação de uma consciência nacional é indissociável de um contexto bastante específico: a combinação, que ele caracteriza como “explosiva”, entre o capitalismo (como modo de produção), a imprensa (como tecnologia de comunicação) e a diversidade linguística. 50

Língua e identidade nacional

O capitalismo, com sua dependência da formação de mercados de consumo e de mãode-obra para a produção em massa, promove a concentração de pessoas e torna cada vez mais necessária a comunicação entre elas. Novas tecnologias de comunicação são desenvolvidas e a adoção de uma língua comum, num contexto de coexistência de línguas diversas, torna-se necessária e economicamente vantajosa. Com o desenvolvimento da imprensa, a língua passa a configurar um espaço ampliado de comunicação e compreensão mútuas ou, como afirma Anderson (2006: 72), campos de trocas e comunicação unificados em torno da língua, agora situada abaixo do latim, mas acima dos vernáculos orais, numa referência à criação daquilo que ele chamou de línguas de imprensa, já mencionadas acima. Nesse contexto, e em decorrência dele, a língua ganha uma certa fixidez, característica do registro escrito e da pretensão de compreensão por um público heterogêneo e alargado. Do mesmo modo, novas relações de poder atreladas às línguas são construídas, ou seja, as línguas de imprensa são também configuradas como línguas de poder, concorrendo, em alguma medida, com as línguas administrativas. Essas novas línguas irradiam sua força pela sociedade, favorecendo aqueles indivíduos e grupos cujos vernáculos são alçados à categoria de língua de imprensa ou que dela se aproximam e que, por esse motivo, ganham prestígio face aos demais. Como parte desse processo, multiplicam-se as publicações de gramáticas, vocabulários e estudos comparados, que mobilizam um número cada vez maior de especialistas e estudiosos, empenhados no desenvolvimento, na classificação e na organização das línguas em famílias e grupos. Anderson (2006: 71), citando Seton-Watson, identifica o século XIX, na Europa, como sendo a “era dourada” dos filólogos, gramáticos, lexicógrafos e literatos. A escolha, definição e padronização de uma língua de imprensa não é indiferente ao processo de construção das línguas nacionais. Pelo contrário, as línguas de imprensa contribuem para esse processo ao atribuir prestígio a uma certa língua em detrimento de outras, que, consequentemente, acabam por ganhar maior estabilidade e conquistar maior número de falantes – tornam-se, assim, candidatas preferenciais ao posto de língua nacional e, nesse sentido, as precursoras das mesmas. Para Hobsbawm, as línguas nacionais são construídas ao longo da constituição das nações propriamente ditas, num processo de forte cariz político-ideológico que pode envolver diferentes estratégias – a partir, por exemplo, de uma suposta correção ou padronização de línguas pré-existentes ou mesmo de sua invenção. Esse pensamento contraria o mito da nação como força natural e latente, adormecida durante séculos, ou seja, como uma consciência 51

Língua e identidade nacional

coletiva em vias de se emancipar, reafimando seu caráter de artefato cultural e de produto de um dado contexto social, histórico e situado que aflora a partir do final do século XVIII na Europa:

The politico-ideological element is evident in the process of language-construction which can range from the mere ‘correction’ and standardization of existing literary and culturelanguages, through the formation of such languages out of the usual complex of overlapping dialects, to the resuscitation of dead or almost extinct languages which amounts to virtual invention of new ones. For, contrary to nationalist myth, a people’s language is not the basis of national consciousness but, in the phrase of Einar Haugen, a ‘cultural artifact’. (Hobsbawm, 2012: 111)

Mas a existência de uma língua nacional, de acordo com Hobsbawm, nem sempre foi essencial para o processo de construção das nações. Para o autor, durante a fase inicial dos nacionalismos (de 1780 a 1870 aproximadamente), a língua não constitui um fator decisivo de identificação nacional. Ele cita, entre outros, o exemplo da França à época da Revolução Francesa, onde 50% dos franceses não falavam francês e apenas 12 ou 13% eram capazes de falar a língua “corretamente” (2012: 60). No período subsequente, no entanto, as línguas rapidamente assumem relevância. Retomando o caso francês, logo após a revolução, tem início um movimento de uniformização linguística, excepcional para a época, no entender de Hobsbawm. Essa política de difusão e afirmação da língua francesa é mais uma evidência de que, no princípio dos nacionalismos, falar a língua nacional não foi um critério relevante para a afirmação de uma nacionalidade – no caso, a francesa. No entanto, aderir a ela posteriormente, ou seja, falar o francês, torna-se, progressivamente, pré-requisito obrigatório para o exercício da cidadania e para a identificação nacional:

The French insistence on linguistic uniformity since the Revolution has indeed been marked, and at the time it was quite exceptional. (…) But the point to note is, that in theory it was not the native use of the French language that made a person French – how could it when the Revolution itself spent so much of its time proving how few people in France actually used it? – but the willingness to acquire this, among the other liberties, laws and common characteristics of the free people of France. In a sense acquiring French was one of the conditions of full French citizenship (and therefore nationality) as acquiring English became for American citizenship. (Hobsbawm, 2012: 21).

As línguas são, assim, mobilizadas para a causa nacional, num movimento que marca a transformação dos nacionalismos de uma fase inicial, caracterizada por Hobsbawm (apud Smith, 2001: 121) como sendo a do nacionalismo das massas, cívico e democrático, que se

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Língua e identidade nacional

desenvolve no período entre 1830 e 1870, para uma nova forma de nacionalismo: o nacionalismo etnolinguístico, que se afirma entre 1870 e 1914. Segundo Hobsbawm (2012), as línguas, cujas origens são difíceis de precisar, mas que, invariavelmente, remetem para um passado longínquo e incerto, prestam-se na perfeição às estratégias de enraizamento das nações nesse passado distante: constituem uma espécie de prova de existência e capacidade de sobrevivência, assim como um atestado do seu direito ao reconhecimento público como nação com o estatuto de Estado e todos os direitos a ele inerentes. Essa afirmação de antiguidade, típica da nação moderna recém-criada, embora represente um paradoxo e, mais do que isso, um equívoco, como defende Hobsbawm, é recorrente. Fundamenta-se numa concepção da nação como resultado de um desenvolvimento natural e progressivo, lento e duradouro, que se desenrola quase que à revelia da indústria humana. A nação ganha, assim, a força dos fenômenos naturais que há muito tempo e em larga escala subjugam a vontade do homem:

We should not be misled by a curious, but understandable, paradox: modern nations and all their impedimenta generally claim to be the opposite of novel, namely rooted in the remotest antiquity, and the opposite of constructed, namely human communities so ‘natural’ as to require no definition other than self-assertion. (Hobsbawm, 1994: 76).

A existência de uma língua nacional e os discursos em torno dela tornam-se, assim, fundamentais para os nacionalismos e a construção das nações, como indica o movimento das elites locais no sentido de adquirir proficiência em tais línguas. Essas elites, em geral criadas e educadas nas línguas de prestígio – ou seja, nas línguas administrativas e de cultura – nem sempre dominavam os vernáculos. No momento em que o domínio da língua local é alçado à condição de prova de uma nacionalidade, é preciso encontrar uma explicação para tal deficit. Segundo Anderson (2006), a justificativa para tal falta era o estado de dormência em que vivia e sobrevivia a nação, uma espécie de sono cujo despertar se dá ao longo do século XIX. Anderson, no mesmo sentido de Hobsbawm, também identifica uma transformação no papel da língua para os nacionalismos. Segundo ele, se, num primeiro momento, as línguas não são percebidas como fator de identificação nacional, atreladas a um dado grupo ocupante de um território específico, num momento posterior passam a operar como verdadeiras barreiras naturais, separando comunidades nacionais sob o domínio dos antigos impérios: “os vernáculos ‘não civilizados’ começaram a ter a mesma função política que o Oceano

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Língua e identidade nacional

Atlântico desempenhara anteriormente: ou seja, a de “separar” as comunidades nacionais subjugadas dos antigos reinos dinásticos” (Anderson, 2006: 257). Outro fator que contribui para a construção das identidades nacionais em torno da unidade linguística é a realização dos censos. Como afirma Anderson (2006), no final do século XIX, os censos, que a princípio tinham por objetivo quantificar o número de indivíduos pagadores de impostos ou aptos para a atividade militar – deixando de fora, assim, mulheres e crianças, por exemplo –, passam a se organizar em torno de outros critérios de classificação. Religião, etnia e língua são incluídos ou realçados à medida que o império se especializa e multiplica suas funções, ampliando, ao mesmo tempo, a máquina administrativa para dar conta dos novos sistemas de educação, saúde, administração da justiça, policiamento, etc. Essas transformações seguem sempre a lógica dos realizadores dos censos que, segundo Anderson, gira em torno de uma quase obsessão pela completude e pela ausência de ambiguidade, impossíveis de serem efetivamente aplicadas. Cria-se, assim, uma espécie de ficção onde as categorias listadas são entendidas como únicas, claras, distintas e isentas de zonas cinzentas e de indefinições: “(t)he fiction of the census is that everyone is in it, and that everyone has one – and only one – extremely clear place” (Anderson, 2006: 166). Nesse novo desenho, a inclusão da língua como categoria de classificação e objeto de quantificação nos censos é bastante debatida, como afirma Hobsbawm. Segundo o autor, no congresso internacional de estatística de 1860, sua inclusão é considerada opcional, cabendo a cada Estado analisar sua relevância e optar ou não por ela. Em 1873, no entanto, passar a ser expressamente recomendada (Hobsbawm, 2012: 97). Portanto, se a língua, naquele momento, não era ainda um critério essencial de identificação nacional para alguns Estados, tal cenário se modifica com sua inclusão no censo, quando grupos passam a se identificar e diferenciar a partir dela como nunca haviam feito antes. Desenvolve-se, em torno da língua, uma certa consciência ou percepção da identidade e da diferença, de pertença a um grupo maioritário ou minoritário, da partilha de uma posição de vantagem ou desvantagem no interior dos impérios:

What nobody quite appreciated was that asking such a question would in itself generate linguistic nationalism. (...) In truth, by asking the language question censuses for the first time forced everyone to choose not only a nationality, but a linguistic nationality. The technical requirements of the modern administrative state once again helped to foster the emergence o nationalism (…). (Hobsbawm, 2012: 100).

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Língua e identidade nacional

Um outro desdobramento da inclusão das línguas como categoria nos censos relaciona-se com a associação da língua e suas estatísticas a outros critérios de classificação simultaneamente adotados, como etnia, religião, estatuto sócio-econômico entre outros, trazendo à tona relações de poder que antes poderiam passar despercebidas e criando novos pontos de contato e ligação, assim como de conflitos. Especialmente a partir de 1830 e até o final do século XIX, as línguas paulatinamente ganham destaque como critério de nacionalidade, configurando uma espécie de nacionalismo linguístico. Falar a língua torna-se critério de identificação nacional e também de reconhecimento público como membro integrante de uma nacionalidade específica. O amor à língua se confunde com o amor à nação. Proteger e afirmar a língua torna-se sinônimo de proteger e afirmar a nação. A língua é entendida como sendo a alma da nação, e não o resultado de uma construção historicamente situada e de tradições inventadas:

Yet the ‘national language’ is rarely a pragmatic matter, and still less a dispassionate one, as is shown by the reluctance to recognize them as constructs, by historicizing, and inventing traditions for, them. Least of all was it to be pragmatic and dispassionate for the ideologists of nacionalism as it evolved after 1830 and was transformed towards the end of the century. For them, language was the soul of a nation, and, as we shall see, increasingly the crucial criterion of nationality. (Hobsbawm, 2012: 95).

Nesse sentido, vale ainda destacar o papel da língua na construção das chamadas nações tardias: Alemanha e Itália. Unificadas na segunda metade do século XIX, em ambos os casos, a língua – ou seja, o alemão e o italiano, respectivamente – desempenha papel crucial como fator de identidade, embora não fosse, à época, utilizada pela grande maioria das pessoas quer num caso quer noutro. Mais do que meras línguas administrativas, o alemão e o italiano eram línguas de cultura e de valor literário, consistindo, segundo Hobsbawm (2012: 103), no único elemento que fazia daqueles indivíduos alemães ou italianos. Essa mesma ideia é defendida por Blommaert & Verschueren que, ao citarem o exemplo alemão, identificam a língua como sendo virtualmente o único recurso de identificação nacional possível:

The German quest for a nation-state was considerably facilitaded by the spread of German dialects across a large part of Europe. Though only few people actively used a common language of culture, politically the geographical area in question had been so fragmented that language was not only a useful, but virtually the only possible, focus for unity. Moreover, by the time of German unification in the second half of the nineteenth century, European nationalism was taking a linguistic turn (expressed, i.a., in the insertion of a language question in national censuses). (Blommaert & Verschueren, 1992: 364).

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Essa centralidade do papel da língua caracteriza os nacionalismos linguísticos, que giram em torno, não só da língua como símbolo de uma identidade nacional, mas especialmente da língua de educação e de administração, isto é, da língua adotada pelos sistemas de educação pública e pelos governos – “linguistic nationalism was and is essentially about the language of public education and official use” (Hobsbawm, 2012: 96). Em tal cenário, a transformação do papel da língua está intrinsecamente relacionada com a construção das chamadas línguas nacionais, ou seja, de uma língua comum a todos os membros de uma dada nação, que permite a comunicação mas também a identificação recíproca, a partilha de valores e cultura, o sentimento de pertença e, do mesmo modo, mas em sentido inverso, a delimitação, a marcação da diferença e a instauração da suspeita face à imaginação do outro. Mas, se, na construção das línguas nacionais, prevalecem os discursos de atribuição de relevância às suas funções comunicativa e cultural, Hobsbawm aponta em direção oposta, identificando as questões de poder, status, política e ideologia como sendo centrais ao desenvolvimento dos nacionalismos linguísticos: “(a)t all events problems of power, status, politics and ideology and not of communication or even culture, lie at the heart of the nationalism of language” (Hobsbawm, 2012: 110). Nesse contexto, vale ainda destacar que o processo de construção das línguas nacionais só se torna possível com o desenvolvimento concomitante da imprensa e dos sistemas de educação de massas (Hobsbawm, 2012: 10), que simultaneamente promovem e dependem da literacia numa dada língua, agora de cariz nacional, padronizada e prestigiada. Mais uma vez, o capitalismo representa a força propulsora desse processo, com sua dependência de mercados ampliados e meios de comunicação e circulação desenvolvidos e a consequente demanda cada vez maior por literacia. A ampliação do papel da literacia em tal cenário também é destacada por Gellner (1994) em sua reflexão sobre a modernidade, caracterizada, segundo ele, pela transformação da vida social e econômica, por maior mobilidade e pela emancipação do proletariado industrial. De acordo com o autor, as instituições da modernidade, com seu aparato econômico, de governo e educação, requerem novas literacias, favorecendo, assim, a língua de poder, que passa a representar uma espécie de passaporte para se alcançar a cidadania em sua plenitude (ibidem: 60). Em resumo, a modernização das sociedades, marcadas por um maior desenvolvimento e dependência tecnológica e dos meios de produção em massa, cria novas exigências, entre elas, uma demanda cada vez maior pela literacia na língua nacional, que precisa ser 56

Língua e identidade nacional

devidamente apropriada, não só no âmbito da oralidade, como no da escrita. Essa nova situação acentua a relevância dos sistemas de educação secundária desenhados para atender uma população cada vez maior e mais concentrada, acompanhando o crescimento do chamado proletariado industrial e promovendo um certo grau de homogeneização e padronização (Hobsbawm, 2012: 93-94). Nesse processo, começa a ganhar corpo a ideia de audiência de massas: numerosa, supostamente homogênea e padronizada, que é acompanhada pelo desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação, ou seja, pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de massas, com destaque para o rádio, a televisão e o cinema, ainda na primeira metade do século XX. Por um lado, os meios de comunicação de massas contribuem para o desenvolvimento e a valorização da língua nacional, uma vez que dependem dela para distribuir seus produtos e alcançar seu público. Ao mesmo tempo, o domínio da língua torna-se essencial para a fruição de tais produtos, que circulam cada vez com mais frequência e conquistam relevância crescente na estrutura das sociedades modernas. Por outro lado, como afirma Hobsbawm (2012: 141-142), tais mídias representam a possibilidade de novas formas de expressão e identificação nacional – para além das questões envolvendo a definição de fronteiras, de disputas jurídicas ou de língua – e de circulação de símbolos nacionais, que antes estavam restritos à esfera pública e agora alcançam o espaço privado:

However, deliberate propaganda was almost certaingly less signficant than the ability of the mass media to make what were in effect national symbols part of the life of every individual, and thus to break down the divisions between the private and local spheres in which most citizens normally lives, and the public and national one. (ibidem: 142).

Essa breve reflexão sobre a relação entre mídia e língua – realizada, aqui, numa perspectiva histórica – e as funções que tal relação desempenha ao longo do processo de construção das identidades nacionais pode ser estendida até a atualidade. Nas sociedades europeias atuais, a língua ainda parece figurar como elemento de identificação nacional e a mídia segue ocupando lugar de destaque na estruturação dessa sociedade. Tais temas serão desenvolvidos a seguir, a partir de duas perspectivas distintas – a simbólica e a cultural – e no contexto do multinguismo: aposta da União Europeia na valorização da diversidade linguística que caracteriza seu território.

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Língua e identidade nacional

Língua e Identidade Nacional: perspectiva simbólica

Deutch (1994), em sua reflexão sobre os nacionalismos, já assinalava a dependência da nação em relação à língua, como referido no capítulo anterior. Para o autor, a possibilidade de comunhão de uma história comum, do sentimento de pertença e da compreensão mútua entre os membros da nação era condição sine qua non para sua existência e tal compreensão só seria possível a partir da partilha de um conjunto de recursos e estruturas comunicativos desenvolvidos em torno de um sistema comum de símbolos, que seria a língua:

The community which permits a common history to be experienced as common, is a community of complementary habits and facilities of communication. It requires, so to speak, equipment for a job. This job consists in the storage, recall, transmission, recombination, and reapplication of relatively wide ranges of information; and the ‘equipment’ consists in such learned memories, symbols, habits, operating preferences, and facilities as will in fact be sufficiently complementary to permit the performance of these funcions. A larger group of persons linked by such complementary habits and facilities of communication we may call a people. (...) The communicative facilities of a society include a socially standardized system of symbols which is a language, and any number of auxiliary codes, such as alphabets systems of writing, painting, calculating, etc. (Deutsch, 1994: 26).

Nessa sua definição funcionalista dos nacionalismos, a língua é explorada em seu viés predominantemente comunicativo. A participação num dado grupo, ou seja, o reconhecimento de alguém como membro integrante dessa comunidade – e, da mesma forma, seu autoreconhecimento como membro dessa comunidade – consiste na capacidade de se comunicar socialmente. Em outras palavras, ser capaz de se comunicar de forma mais eficiente com integrantes desse grupo do que com aqueles que dele não fazem parte configura um recurso essencial de identificação e de auto-identificação. A língua, no entanto, além de um sistema simbólico, é por si só um símbolo – e é esse o viés que se pretende explorar neste estudo, ou seja, o da língua como símbolo de uma certa identidade nacional e, nessa condição, dotada de poder econômico, político, sociocultural e também simbólico, na acepção de Bourdieu (1999). A língua como símbolo de uma origem comum, a língua como símbolo de uma raiz antiga e profunda, a língua como símbolo de uma certa visão de mundo, a língua como símbolo de poder, a língua como símbolo de um temperamento ou comportamento, a língua como símbolo de uma cultura, a língua como símbolo da nação são apenas alguns exemplos. Nessa perspectiva, importa não só a construção de representações simbólicas associadas à língua, mas também o potencial de disseminação e fixação das mesmas. Com o aumento exponencial da mobilidade e o desenvolvimento dos meios de comunicação, 58

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característicos da modernidade, o campo de partilha e difusão dessas representações se expande. Tal movimento se dá primeiro no campo nacional, impulsionado pelo sistema educativo e pela mídia, pela infra-estrutura e pelas instituições nacionais, e, depois, para além da arena nacional, com a globalização e os desdobramentos que lhe são inerentes. O desenvolvimento dos sistemas nacionais de educação, quer no nível primário, quer no secundário, propicia a fomação de um ambiente ideal para a circulação da informação e também de ideias, valores e ideologias. Ao mesmo tempo, permite algum grau de controlo por parte das instituições – de governo, religiosas, políticas, da sociedade civil, etc. – responsáveis pela definição e aplicação das políticas educativas ou que participam desse processo em alguma medida. No que diz respeito à construção das identidades nacionais, a implementação de tais sistemas educativos faz com que uma certa ideia de nação, com suas diferentes estratégias de representação, seja criada e partilhada por essa rede, naturalizando-se como sendo a definição correta, isto é, a única, a verdadeira, a autêntica, cristalizando, assim, uma visão essencialista dessa identidade nacional e criando, simultaneamente, a ilusão de homogeneidade e naturalidade comungada pelos membros dessa comunidade. Também a mídia, como principal meio de difusão de sistemas simbólicos (Thompson, 1995), adquire cada vez mais relevância nos processos de construção identitária. Essa afirmação se fundamenta no crescente papel desempenhado pela mídia nas sociedades modernas, impulsionado pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação. Em outras palavras, para se entender e refletir sobre a natureza desta modernidade tardia, é essencial analisar o papel desempenhado e o impacto provocado pelos novos meios de comunicação:

The development of communication media was interwoven in complex ways with a number of other developmental processes which, taken together, were constitutive of what we have come to call ‘modernity’. Hence, if we wish to understand the nature of modernity – that is, of the institutional characteristics of modern societies and the life conditions created by them – then we must give a central role to the development of communication media and their impact. (Thompson, 1995: 3).

A fim de se ter uma percepção mais clara dessa situação, basta pensar que as transformações promovidas pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de massas incluem a ampliação dos espaços e oportunidades de ação individual e coletiva, o alargamento dos horizontes de visão, o acesso a uma quantidade exponencial de informação, a possibilidade de conhecimento e de formação e expressão de opinião (assim como a

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responsabilidade que a acompanha) sobre acontecimentos diversos, a redefinição das esferas públicas e privadas, entre tantos outros. Com essas transformações, a necessidade de mediação – seja em função das distâncias físicas que separam o indivíduo do acontecimento ou do excessivo volume de informação que se torna possível, por exemplo – também é acrescida, reforçando a importância da mídia, como instrumento de mediação por excelência, e a dependência do indivíduo em relação a ela, num movimento circular, ou seja, é o desenvolvimento dos meios e tecnologias de comunicação que cria novas necessidades de acesso e consumo da informação, necessidades essas que só podem ser atendidas pelo desenvolvimento desses mesmos meios e tecnologias de comunicação. Mas essa situação não é nova nem resulta diretamente do desenvolvimento da internet, pelo contrário, as transformações associadas ao desenvolvimento da mídia e ao seu impacto nas sociedades são estudadas há muito tempo. Já nos anos 60, por exemplo, Schiller (Thompson, 1995) desenvolvia a tese do imperialismo cultural ao analisar o papel dos EUA na disseminação de informação e entretenimento. Segundo o autor, o imperialismo cultural americano seria uma das consequências dos processos de globalização, uma nova forma de manifestação do poder econômico dos EUA, que agora estaria a se manifestar como aculturação, isto é, como imposição de uma homogeneidade baseada nos padrões americanos, como destruição das especificidades nacionais e locais, em resumo, como destruição da diversidade cultural. A tese do imperialismo cultural americano é questionada por Thompson, que relativiza os efeitos do poderio americano no campo da comunicação e, consequentemente, da disseminação de sistemas simbólicos no âmbito global. Parte fundamental da argumentação de Thompson reside nos processos de recepção dos produtos de comunicação por parte de suas respectivas audiências e na importância das diferenças culturais na interpretação e leitura desses produtos. Segundo Thompson, para se apreender verdadeiramente a amplitude e a intensidade das transformações operadas pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação, com suas novas e complexas redes e fluxos de comunicação e informação, é preciso afastar-se da concepção de comunicação como mera transmissão de dados. As funções da mídia nas sociedades modernas são muito mais alargadas e incluem o importante papel de instituidora de novos tipos de relações sociais, de outras formas de interação e de relação com o outro e consigo mesmo:

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(…) (W)e can understand the social impact of the development of new networks of communication and information flow only if we put aside the intuitively plausible idea that communication media serve to transmit information and symbolic content to individuals whose relations to others remain fundamentally unchanged. We must see, instead, that the use of communication media involves the creation of new forms of action and interaction in the social world, new kinds of social relationship and new ways of relating to others and to oneself. (Thompson, 1995: 4).

No campo da política linguística é possível encontrar outros indícios dessa perspectiva simbólica. Muitas das políticas que vigoram ainda hoje giram em torno de uma suposta língua-padrão, de prestígio, poder e qualidade superior, que deve ser protegida e que, não raras vezes, serve de instrumento para desvalorizar e desprestigiar outras línguas ou mesmo outras versões dela mesma, ou seja, suas variantes – na verdade, a própria ideia de variação já parece implicar uma espécie de hierarquia de valores ao pressupor um centro, isto é, uma referência estável contra a qual essa variação é construída e, muitas vezes, medida e avaliada. No debate em torno das línguas nacionais, as ideias de valor e de superioridade da língua, associadas aos discursos de valorização de uma suposta pureza, por exemplo, manifestam-se em discursos como os que falam sobre os riscos de “contaminação” e a necessidade de “proteção contra ameaças” de natureza diversa. Em alguns casos, verifica-se mesmo uma tentativa de imobilizar a língua, fixando seu conteúdo e enrijecendo as regras de uso, num esforço – destinado ao fracasso, uma vez que toda língua viva se desenvolve e altera ao longo do tempo e do seu uso – de evitar a mudança a qualquer custo. Outra linha de argumentação recorrente é aquela que se fundamenta em discursos de defesa da preservação da língua e da sua imobilidade em favor da garantia do entendimento mútuo. Não mais se trata de afirmar seu valor e superioridade face às demais, portanto, mas sim de apelar para a perspectiva da língua em sua função comunicativa. Nesse caso, a perspectiva simbólica é aparentemente relegada ao pano de fundo, enquanto a perspectiva utilitária da língua é trazida à cena. Ainda nesse sentido, o conceito de língua materna parece ser bastante representativo das relações que são estabelecidas entre língua e identidade. A escolha dessa expressão, que remete para os laços de famíla, traz à tona uma série de representações bastante fortes para as sociedades europeias modernas no que diz respeito à figura da mãe como primeira fonte de vida, origem, alimento, orientação, proteção, afeto. O vínculo materno é referido frequentemente como sendo um dos mais fortes no que diz respeito à natureza humana. A relação de filiação também surge como um forte elemento de identificação individual, constando, por exemplo, de boa parte dos documentos utilizados para identificar o indivíduo ao longo da sua vida em sociedade. A referência à língua materna – que, em parte, 61

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por conta desse imaginário e daquilo que ele implica, vem sendo substituída em algumas áreas por expressões como primeira língua, por exemplo – remete para um universo de expectativas, posturas e sentimentos face às línguas e ao seu uso que parecem condizer com os discursos de afirmação nacional construídos em torno das línguas, acentuando seu papel de ícone da nação. Como refere Hobsbawm, um exemplo significativo da dimensão simbólica assumida pelas línguas nacionais e traduzida, em parte, nessa preocupação com a pureza e a autenticidade das línguas nacionais – exemplo repetidamente narrado, mas com diferentes países ocupando a posição de protagonismo –, consiste no esforço repetitivo e intensivo de excluir da língua certas palavras que não são consideradas suficientemente autênticas ou originárias, ou seja, palavras emprestadas ou tomadas de outras línguas de contato. Tais vocábulos são, em geral, substituídos por novas versões mais adequadas à ideologia linguística nacional:

Indeed, languages become more conscious exercises in social engineering in proportion as their symbolic significance prevails over their actual use, as witness the various movements to ‘indigenize’ or make more truly ‘national’ their vocabulary, of which the struggle of French governments against ‘franglais’ is the best-known recent example. (Hobsbawm, 2012: 112).

Nesse contexto, entende-se por ideologia linguística os valores, práticas e crenças relacionadas com o uso das línguas que vigoram numa dado contexto social, espacial e temporal. Dizendo-se de outro modo, entende-se por ideologia o conjunto de ideias, percepções e expectativas sobre a língua, motivadas por um dado contexto sociocultural, que se manifestam nas diferentes instâncias de uso da mesma (cf. Wodak and Boukala, 2005). Os discursos de valorização da pureza e da integridade, associados aos temores de miscigenação e contágio, permeiam a discussão sobre os nacionalismos linguísticos e também o debate sobre os chamados nacionalismos etnolinguísticos. Embora os conceitos de língua nacional e nacionalismo se aproximem e sobreponham, há, nessa última referência ao nacionalismo etnolinguístico, uma associação bastante direta entre língua e origem, ou seja, prevalece a associação da língua a uma origem comum, ou etnia, que pode se confundir, inclusive, com a ideia de raça. Hobsbawm chama a atenção para essa relação, que ele classifica como “óbvia”, entre racismo e nacionalismo. Segundo o autor, em alguns momentos tais conceitos chegam a se confundir, embora raça e língua não possam ser inferidas uma a partir da outra. De certo

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Língua e identidade nacional

modo, as referências ao “nacionalismo linguístico” e ao “nacionalismo etnolinguístico” parecem corroborar a tese de Hobsbawm:

The links between racism and nationalism are obvious. ‘Race’ and language were easily confused as in the case of ‘Aryans’ and “Semites’, to the indignation of scrupulous scholars like Max Muller who pointed out that ‘race’, a genetic concept, could not be inferred from language, which was not inherited. Moreover, there is an evident analogy between the insistence of racists on the importance of racial purity and the horrors of miscegenation, and the insistence of so many – one is tempted to say of most – forms of linguistic nationalism on the need to purify the national language from foreign elements. (Hobsbawm, 2012: 108).

De qualquer modo, não se pode ignorar a força dos sentimentos que levam os indivíduos a se identificarem como membros de um grupo, atribuindo-se uma dada identidade étnica e linguística em contraste com outros, que, em geral, representam uma ameaça contra a qual aquele grupo precisa de se defender. Esse é o cenário esboçado por Hobsbawm (2012: 170) e que, em alguma medida, fundamenta sua afirmação de que a xenofobia é a ideologia de massas mais disseminada no mundo, como já comentado no capítulo anterior.

Língua, Cultura e Identidade Nacional

Pelo menos desde a afirmação de Wittgenstein de que a língua de um indivíduo define os limites do seu mundo (Potter, 1997), no sentido de que a língua constitui um dos mais importantes meios de apropriação e apreensão de tudo aquilo que o rodeia, a relação entre língua e visões de mundo tem sido fequentemente debatida. Em outras palavras, o que se debate é o lugar da língua e seu peso na construção da realidade, no singular e no plural. Entre os muitos estudos desenvolvidos nessa área, destaca-se o trabalho de Sapir e Whorf, representado pela hipótese de que a língua de um indivíduo determina ou condiciona sua visão de mundo. A língua, nesse contexto, seria um elemento estruturante da vida em sociedade e essencial para a definição de seus contornos; mais do que uma forma de dizer ou representar algo, a língua seria condição de sua existência. Um exemplo bastante esquemático, mas também ilustrativo, seria o dos esquimós, que contariam com um conjunto muito maior e variado de palavras para indicar a cor branca, recurso que permitiria uma indicação mais precisa para o estado da neve. Essa capacidade de reconhecimento do seu meio ambiente seria fundamental para sua sobrevivência e indissociável dela, estando, ao mesmo tempo, dependente da existência e conhecimento desse 63

Língua e identidade nacional

conjunto ampliado de palavras para dizer o estado e a condição da neve. Em outras palavras, na perspectiva do indivíduo, a condição de existência, no campo da realidade, de um conjunto ampliado de estados da neve é indissociável da existência simultânea desse vocabulário com ele compatível. De modo geral, a existência de alguma relação entre língua e mundo é pouco contestada, o que, no entanto, é objeto de debate é a natureza e o grau dessa relação. A língua determina uma visão de mundo ou influencia tal visão? Se influencia, em que medida ou de que modo? Mais especificamente, e já direcionando o debate para o tema em causa nesta pesquisa, interessa refletir sobre em que medida a língua que falamos faz de nós quem somos ou, em outras palavras, em que medida a língua que falamos determina ou influencia nossa identidade. A sociolinguística também explora essa relação entre língua, visão de mundo e identidade ao extrapolar a perspectiva da língua como meio de comunicação, estritamente, e analisar seus diferentes papéis no contexto social. A língua é, assim, analisada numa perspectiva mais abrangente, como forma de ação e estratégia de interação em sociedade, como recurso de identificação e de estabelecimento de relações interpessoais entre outros. É no âmbito da discussão acima que o conceito de cultura é trazido ao debate, estabelecendo-se uma relação de interdependência entre língua e cultura. Embora não sejam sinônimos, não se pode negar a existência de uma forte componente cultural no conceito de língua ou, em sentido inverso, de uma forte componente linguística no conceito de cultura. Em comprovação ao acima afirmado, basta observar a frequência de vezes em que um termo é tomado pelo outro, numa sobreposição nem sempre explícita ou intencional. Nessa perspectiva, a ideia de que as línguas são dotadas de cultura parece fazer sentido. Nascer, ser educado, crescer e conviver numa certa língua, portanto, implicaria partilhar uma certa cultura em toda a sua amplitude – língua e cultura seriam, assim, indissociáveis. Essa partilha de ou comunhão numa mesma língua e cultura configura um forte recurso de identificação individual e coletiva, e também de identificação nacional – muitos dos discursos de afirmação nacional, em geral de caráter essencialista, valem-se dele para construir uma percepção de homogeneidade e identidade, por exemplo. Corroborando a posição que associa cultura e identidade, Hall (2014: 29) destaca a sobreposição existente entre esses dois conceitos no âmbito nacional, descrevendo as culturas nacionais como “comunidades imaginadas”, numa referência explícita à definição de nação de Anderson. Para o autor, assim como as nações, as culturas nacionais são construções da modernidade e fonte de identificação individual e coletiva, como referido a seguir: 64

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As culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de forma subordinada, sob aquilo que Gellner chama de “teto político” do Estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais modernas. (Hall, 2014: 30).

Uma vez que a relação de interdependência entre língua e cultura já foi aqui destacada, parece razoável ampliar essa discussão para abranger as relações de interdependência entre cultura, língua e identidade, que estão aqui em causa. Seguindo tal raciocínio, a língua definiria os limites, isto é, o campo de atuação dessa cultura – e, se pensarmos nas culturas nacionais, poderiam, inclusive, atuar como uma espécie de sucedâneo das fronteiras da nação. Nesse sentido, parece interessante referir a acepção de cultura nacional de Santos (2001: 25-6), segundo a qual esta seria uma construção dos Estados-Nação, que, ao longo do século XIX, teriam tomado para si a tarefa de diferenciar a cultura interior às suas fronteiras daquilo que lhe era exterior, homogeneizando essa cultura no interior do seu território, para então extrapolar essa noção de território físico que define os limites dessa cultura nacional e pensar o papel da língua nesse contexto. Como afirmam Wodak e Boukala (2015: 258), cada vez mais, são a língua nacional, a ideia de etnia e a cultura que operam como definidores desses limites e fronteiras, figurando como elementos importantes nos debates sobre as políticas de identidade: “ ‘(b)order politics’ is part of national identity politics and is now increasingly defined by the national language (“the mother tongue”), ethnicity and culture, thus transcending the political borders of the nation state”. Mas, além de portadoras de cultura e em consequência disso, as línguas são também importantes ferramentas de transmissão e disseminação cultural. Por meio da língua, a cultura nacional é transmitida de uma geração para outra, numa perspectiva temporal, e também disseminada para além do espaço – físico ou virtual – que ocupa, num contexto em que os sistemas de educação e ensino e as novas tecnologias da informação e de comunicação desempenham papel relevante. Dessa relação entre língua e cultura resulta uma aproximação entre os discursos que se aplicam a uma ou outra: os discursos de valorização da diversidade cultural se confundem com os discursos de valorização da diversidade linguística; os discursos de proteção de uma dada cultura se confundem com os de proteção de uma dada língua. Aliás, em matéria de língua e cultura, predominam os discursos de valorização e proteção ao lado da constante presença de uma ameaça, como se fossem ambas – língua e cultura – cacterizadas por um 65

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permanente estado de fragilidade ou como se estivessem em situação de risco ou perigo constante. É bem verdade que muitas vezes tais questões estão associadas às línguas e culturas minoritárias, mas nem sempre é assim. Veja-se, por exemplo, o caso dos EUA, onde se pode encontrar discursos que consideram o castelhano como uma ameaça face à crescente porcentagem de indivíduos de origem hispânica no total da população americana. Ainda, no mesmo sentido, considere-se os discursos em tom acusatório sobre o desrespeito à línguapadrão, entendido como forma de destruição do patrimônio cultural nacional, ou sobre as tentativas de legislar sobre a língua e seu uso, estipulando multas a “erros” ou determinando a abolição de “estrangeirismos”, entre outras iniciativas. Também Hall analisa a relação entre língua, cultura e identidade por meio do discurso. Segundo o autor, a nação consiste num sistema de representação cultural, no sentido de ser a nação o enquadramento contra o qual as representações de cultura são construídas ou que seleciona ou provê um conjunto de representações da cultura que são assim associadas a uma identidade nacional específica. Com essa definição, o autor afasta as visões essencialistas das identidades nacionais, como ilustrado abaixo:

(…) na verdade, as identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser “inglês” devido ao modo como a “inglesidade” [englishness] veio a ser representada – como um conjunto de significados – pela cultura nacional inglesa. Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural (Hall, 2014: 30).

No interior desse sistema de representação, a cultura nacional é um discurso, ou melhor, um “dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade” (ibidem: 36), ou seja, um mecanismo de identificação ou de produção da identidade (e da diferença) que atua apagando as diferenças entre os indivíduos que se imaginam como membros de uma dada nação e realçando as diferenças entre tais indivíduos e aqueles identificados como pertencentes a uma outra entidade nacional. Uma outra perspectiva de análise da relação entre língua, cultura e identidade nacional é evidenciada na construção de estereótipos, muitos deles presentes nos relatos de uso da língua por famílias onde pais e filhos têm diferentes nacionalidades. Afirmar que um casal namora em francês, briga em alemão e fala com seus filhos em inglês, por exemplo, não parece suscitar grandes surpresas numa sociedade que partilha certos lugares-comuns, como a

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ideia de que o francês é uma língua romântica, o alemão é uma língua agressiva ou dura e o inglês é uma língua de poder e sucesso internacional. Nesse contexto, entende-se por estereótipo o conjunto de representações cristalizadas e repetidas, partilhadas por um número ampliado de pessoas e utilizadas, de modo recorrente, na construção e caracterização das identidades – seja de forma afirmativa, seja de forma negativa. Embora nem sempre seja possível definir o conteúdo de tais estereótipos de modo consensual, tal fato não impede nem restringe o seu uso nos discursos do cotidiano, tampouco minimiza sua força e importância. Os estereótipos constituem um forte recurso de construção de identidade e diferença e desempenham papel de relevância na construção de uma certa imagem pública, tanto no que diz respeito à autoimagem, como também no que diz respeito à imagem que se atribui ao outro. Em geral, tais representações se valem de preconceitos de natureza diversa e incorporam um grande potencial de violência, os quais, muitas vezes, passam despercebidos em função da adoção, também recorrente, de um certo tom jocoso ou humorístico:

We could go on almost ad infinitum with such more or less serious anecdotal remarks about nationality or the alleged mentality of nations. While this can be amusing to a certain extent, we are also aware of how often nationalist attitudes and ethnic stereotypes articulated in discourse accompany or even determine political decision-making, and we note with concern the increase in discriminatory acts and exclusionary practices conducted in the name of natinalism in many parts of Europe (Wodak et al, 1999: 1).

Retomando o exemplo do contexto familiar marcado pela pluralidade de identidades nacionais, efetivas ou potenciais – cenário que tem vindo a se multiplicar nas sociedades europeias atuais, onde se verifica um esforço no sentido de promover a mobilidade de pessoas, ao menos no que diz respeito aos países membros da União Europeia –, pode-se identificar outras questões referentes à língua, cultura e identidade. Preocupações como a escolha do nome da criança para que seja facilmente pronunciável em línguas diferentes ou do debate sobre a língua que será adotada nesse primeiro momento de socialização familiar são cada vez mais frequentes. Como regra geral, a ideia de que a criança só tem a ganhar com o aprendizado de línguas diferentes parece prevalecer, ou seja, é interpretada como uma maisvalia. Em resumo, nessas discussões sobre língua, identidade e cultura, parece haver um esforço de acomodação das diferenças. Em outras palavras, procura-se promover a criação de um espaço comum entre línguas diferentes, que não passa necessariamente pela adoção de

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Língua e identidade nacional

uma única língua partilhada por todos, como uma espécie de língua franca ou de uso global generalizado.

Língua, Multilinguismo e Identidade Nacional

Interessa agora refletir sobre o que acontece com a relação entre língua e identidade nacional na Europa de hoje, ou melhor, sobre o que acontece com a percepção dessa relação. A rigor, a afirmação peremptória de que a cada nação corresponde uma língua nacional (ou, em sentido inverso, a existência de uma língua nacional conduzindo ao reconhecimento ou constituição da nação), que ganhou força ao longo dos séculos XIX e primeira metade do XX, há muito vem sendo desafiada. Corroboram a afirmação acima os vários exemplos de nações únicas que se valem de diferentes línguas nacionais (como a Suíça ou a Bélgica), assim como os exemplos de nações distintas que partilham uma mesma língua nacional (como Portugal e o Brasil ou o Reino Unido e os EUA). Tais situações, no entanto, não parecem abalar a fé generalizada na máxima de uma língua, uma nação, ao menos nos discursos do cotidiano. No contexto da União Europeia, no entanto, vigora a política ou ideologia do multilinguismo, que consiste, grosso modo, na valorização da diversidade linguística característica da Europa, indissociável da promoção do contato e do aprendizado entre as diferentes línguas oficiais faladas nos países-membros. Traçando um paralelo com as entidades nacionais tradicionais, interessa pensar qual seria o papel da língua hoje na construção de uma identidade para a Europa. Partindo-se, portanto, do pressuposto de que existe alguma afinidade entre o conceito de identidade nacional e o de identidade europeia – e entendendo-se esta última como sendo uma espécie de identidade supranacional, ou seja, da mesma natureza das identidades nacionais, mas de um tipo distinto – importa refletir sobre a viabilidade de um projeto identitário fundado no multilinguismo, isto é, na diversidade e variedade de línguas, em contraste com a ideia de unidade linguística. Seguindo tal raciocínio, a proposta de construção de uma identidade europeia em torno do conceito do multilinguismo parece, a princípio, representar a negação da afirmação inicial de uma língua, uma nação, no sentido de tentar promover um tipo de identidade nacional (nesse caso, supranacional) sem a suposta unidade linguística equivalente. Mas tal leitura 68

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concorre com outros discursos inerentes ao multilinguismo, nem sempre explícitos, como aqueles que giram em torno do respeito por e da proteção das diversas línguas nacionais. Dizendo-se de outro modo, é possível identificar, entre tantos cenários possíveis e concorrentes, um estado de tensão que se instaura entre os discursos de valorização da diversidade linguística na Europa e os discursos de proteção da unidade – ou, melhor, uniformidade – linguística de cada país-membro. Nessa perspectiva, a relação entre língua e identidade é valorizada, assim com um certo nacionalismo linguístico, que não consegue se afastar significativamente de visões essencialistas das identidades. Os discursos construídos em torno da ideia de valorização e proteção da diversidade linguística e cultural da Europa, assim como da necessidade de desenvolvimento de políticas e programas de educação, ensino, mobilidade e conhecimento recíprocos a fim de combater preconceitos e discriminação e promover a integração, estão presentes, por exemplo, no Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas que, ao descrever as “finalidades e os objetivos da política linguística do Conselho da Europa” (QECR, 2001: 20), caracteriza a diversidade como valor, mas também como obstáculo a ser superado, como exemplificado a seguir:

- (…) o rico património que representa a diversidade linguística e cultural na Europa constitui uma valiosa fonte comum que convém proteger e desenvolver, sendo necessários esforços consideráveis no domínio da educação, de modo a que essa diversidade, em vez de ser um obstáculo à comunicação, se torne numa fonte de enriquecimento e de compreensão recíprocos (Destaques acrescentados.)

Esse mesmo discurso, porém, que valoriza a diversidade linguística, parece inspirar, em alguma medida, a proteção – ou um cuidado que parece, muitas vezes, excessivo – das chamadas línguas nacionais e, mais especificamente, da associação ou mesmo do vínculo entre língua e nação. É nesse contexto que se fala na convivência entre as línguas ou mesmo na importância da diversidade, sem se explorar, efetiva e necessariamente, as possibilidades de construção de uma identidade não linguística ou fundada exatamente na existência de um repertório ampliado e sempre em movimento de línguas. Nesse sentido, a tentativa de construção de uma identidade nacional a partir do multilinguismo parece representar, não a contradição, mas sim o seu contrário, isto é, a afirmação e validação da relação entre língua e nação, uma vez que nos discursos do multilinguismo essa relação parece permanecer intocada – mais do que isso, é, na maioria dos casos, protegida e valorizada.

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Considerando o posicionamento acima, seria interessante refletir sobre os fundamentos do raciocínio por trás dele – ou seja, analisar se tal respeito pela relação língua/nação resulta do reconhecimento de sua validade e importância ou se consiste pura e simplesmente em condição de viabilidade do projeto do multilinguismo na Europa, ao menos no momento atual – mas tal desenvolvimento não é possível no âmbito desta pesquisa. Assim, a diversidade linguística – e sua contrapartida: a diversidade cultural – surge como mais-valia e elemento de identificação e diferenciação de um conceito de Europa, isto é, de uma identidade europeia, sem promover mudanças significativas na relação língua/nação. No entanto, muitos dos discursos atuais – do final do século XX até hoje – que relacionam língua e identidade parecem se valer dos conceitos do passado, mais especificamente da ideologia associado à ideia do nacionalismo linguístico, posição corroborada por trabalhos recentes. Blommaert e Verschueren (1992), por exemplo, em seu estudo sobre o papel desempenhado pelas línguas no âmbito das ideologias nacionalistas europeias nos anos 90, realizado a partir da análise de discursos da mídia, concluem que estas seguem sendo utilizadas como elemento de identificação (e diferença) de um dado grupo, em geral associado a uma suposta homogeneidade étnica e cultural. Em muitos casos, essas relações (entre língua e identidade ou etnia e cultura) são tomadas como adquiridas, isto é, prescindem de justificativas ou explicações. No contexto acima delineado, o nacionalismo é entendido como sendo o resultado do desenvolvimento natural das sociedades humanas, fundamentado numa identidade étnica e linguística (ibidem: 373), no âmbito da qual a língua consiste num traço essencial e indissociável dessa suposta origem ou identidade comum: “(i)n popular ideology (not to be confused with public ideology) however, language tends to be much more fundamental, even natural and inalienable, aspect of ethnicity or group identity in general” (ibidem: 375). Os autores destacam a importância da homogeneidade, isto é, da ideia de que a vida em sociedade requer a existência de semelhanças entre as pessoas, sendo que as diferenças constituem um obstáculo a ser vencido ou mesmo um perigo a ser evitado. Nesse sentido, a sociedade ideal é aquela que se fundamenta numa só língua, numa só origem, numa só religião e numa só ideologia, e o nacionalismo é o movimento que promove o desenvolvimento natural dessas sociedades ideais, onde a semelhança e a homogeneidade representam o valor da pureza:

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In other words, the ideal model of society is mono-lingual, mono-ethnic, mono-religious, mono-ideological. Nationalism, interpreted as the struggle to keep groups as ‘pure’ and homogeneous as possible, is considered to be a positive attitude within the dogma of homogeneism. Pluri-ethnic or pluri-lingual societies are seen as problem-prone, because they require forms of state organization that run counter to the ‘natural’ characteristics of groupings of people. (Blommaert e Verschueren, 1992: 362).

O papel da língua como recurso de construção de identidade e diferença, de união ou divisão, faz dela uma espécie de “campo de batalha” (ibidem: 370) nos casos, por exemplo, que envolvem diferentes grupos em meio a conflitos nacionalistas – em torno de identidades nacionais afirmadas ou sufocadas, reconhecidas ou em busca de reconhecimento – ou conflitos étnicos, que incluem, em muitos casos, confrontos entre as diferentes minorias que coexistem no interior de um dado território nacional. A língua como característica distintiva de grupos naturais torna-se, nesse contexto, objeto de opressão e discriminação, fonte ou móvel de violência, injustiça e intolerância. Ao refletir sobre os nacionalismos no período logo após a dissolução da URSS e a reunificação alemã, Blommaert e Verschueren (1992) destacam a perspectiva da violência associada aos nacionalismos, delineando um cenário pouco animador. Para os autores, as transformações dos nacionalismos, longe de representarem uma mudança em sua natureza violenta e conflituosa a favor da democracia e da pluralidade, representam simplesmente uma mudança de escala. Agora não é mais o poder de opressão dos impérios contra os povos dominados que está em causa, mas sim o poder de opressão e o racismo das nações contra os grupos minoritários que delas fazem parte e que veem negados seus direitos à língua e cultura, entre outros:

Nationalism has been a notorious cause of conflicts, and has let to dome of the worst events in history. Also, the ‘liberated’ Moldavians and Kazakhs or Slovaks, as well as the liberated East-Germans, seem to be building a track record of oppression and racism agains minorities. Every minority has its own minorities. And for members of minority groups, be they immigrants in Western-Europe, or Gagauz people in Moldavia, the ‘national’ government may be as bad as the empire, because in both cases very little attention is given to their linguistic, cultural or whatereve rights. Only the structural level of the debate has shifted. Nothing has been achieved to guarantee more democracy in a pluralist sense. (Blommaert e Verschueren, 1992: 373).

Considerando-se mais explicitamente o contexto do multilinguismo, interessa destacar um estudo recente, realizado por Wodak e Boukala (2015: 268), que visa analisar a relação da língua na construção do sentimento de pertença e das identidades nacionais na Europa da atualidade. Sua principal conclusão é que, na Europa de hoje, embora o multinguismo vigore 71

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como princípio, implicando, em alguma medida, a valorização da diversidade, a defesa da liberdade linguística e a promoção do aprendizado das línguas, este parece se restringir ao conjunto de línguas oficiais da União Europeia, como citado abaixo:

Proficiency in the national languages of EU members is used as a strategy for the exclusion of “strangers” and the enforcement of a (supra)national identity via border and body politics. Hence, the multilngualism of the EU is limited to member states’ national languages, in spite of the wording of official EU multilingualism policies.

O multilinguismo assumiria, assim, uma dupla face, configurando-se como estratégia de inclusão e integração dentro do espaço territorial delimitado pela União Europeia e como uma estratégia de exclusão de todos aqueles que não pertencem a tal grupo. Esse entendimento parece contrariar as diretrizes gerais sobre as quais o conceito se assenta, já mencionadas anteriormente. Nesse estudo, Wodak e Boukala refletem sobre a relação de dependência, cada vez mais acentuada, que é estabelecida entre o domínio de uma língua europeia e o acesso à Europa, onde as políticas de língua adotadas pelos países membros, em acordo com as recomendações gerais, configuram elemento relevante no processo de construção das identidades nacionais individuais e coletivas. Para os autores, interessa perceber em que medida as ideologias nacionalistas têm participado da configuração das políticas migratórias, de aquisição de cidadania e da integração linguística por parte dos migrantes, num contexto em que a língua parece se tornar uma importante barreira de acesso à legalidade (ibidem: 254). Outra perspectiva que interessa ressaltar na análise dos resultados desse estudo consiste na identificação de um discurso de contraposição entre o conceito de multilinguismo e o de língua comum. Embora o multiliguismo seja percebido como um recurso de valor, é a partilha de uma língua comum que é apontada como catalizador da integração e instrumento de participação na sociedade: “Multilingualism is defined as a valuable resource; the “commom language” (…), however, is promoted as the means to be able to participate in society (Wodak and Boukala, 2015: 264). A corroborar a afirmação acima, pode retomar-se a referência ao QERC (2001: 20), citada anteriormente, que identifica a diversidade de línguas como um “obstáculo à comunicação”, embora o faça no sentido de indicar um modo de vencê-lo, transformando essa diversidade em “fonte de enriquecimento e de compreensão” mútuos por via do ensino e aprendizagem das línguas, por exemplo. 72

Língua e identidade nacional

Em resumo, parece haver alguma tensão em torno do conceito do multilinguismo na Europa de hoje, tensão na qual a questão das identidades nacionais ocupa posição central. Essa tensão divide os indivíduos que têm como língua materna uma das línguas oficiais da União Europeia daqueles que têm como língua materna uma língua não-europeia. Tal afirmação é reveladora de uma distinção – da demarcação de uma diferença – entre os membros da comunidade europeia: como se houvesse membros autênticos, isto é, verdadeiramente europeus, e os não-autênticos, ou seja, os migrantes, mesmo que em situação de legalidade, mesmo que cidadãos europeus. Tomando de empréstimo a definição de multiculturalismo de Verkuyten para pensar o multilinguismo num maior grau de abstração, pode-se entendê-lo como um pano de fundo – uma ideologia, uma teoria, um conjunto de crenças – contra o qual são desenvolvidas pollíticas e diretrizes para o ensino e a educação: “(m)ulticulturalism is considered, for example, as an ideology, a lay theory, a set of normative beliefs, a framework for policies, and a guideline for education and educational activities” (Verkuyten, 2007: 149). Nesse contexto de coexistência e convivência da diversidade linguística, o indivíduo pode agora construir sua identidade – individual e coletiva – a partir dessa pluralidade, e não mais em torno da unidade linguística. Em outras palavras, nesse processo de construção identitária, o conjunto de línguas que fazem parte do repertório do indivíduo num dado momento é chamado a colaborar, como destaca Simpson (2008) ao analisar o contexto do multilinguismo, mas na perspectiva africana. Segundo o autor, tal raciocínio se estende à construção das identidades nacionais e do sentimento de pertença.

In terms of language-centred identity, it is perhaps natural do expect that the full range of language(s) which make up an individual’s linguistic inventory has an influence on the creation of self-image and the way that an individual sees him/herself as relating to others, including the national population and the construct of the nation-state, and hence that languages used for formal purposes also form part of speakers’ sense of national identity. (Simpson, 2008: 24).

Por fim, um último tema que parece interessante explorar para melhor se entender a relação entre língua, multilinguismo e identidade nacional refere-se ao papel das línguas como demarcadoras da diferença: no contexto de coexistência de línguas diferentes num dado espaço físico – neste caso, o da União Europeia – em que as fronteiras nacionais físicas perdem paulatinamente definição e status, as línguas poderiam servir como sucedâneo destas, instituindo novas geografias no interior da Europa.

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Língua e identidade nacional

No desempenho dessa nova função, certas características das línguas são valorizadas: exatamente aquelas que supostamente fazem das línguas uma nova versão das fronteiras. Entre elas, destacam-se a sua visibilidade, que permite a identificação da diferença e parece funcionar bastante bem como critério de inclusão/exclusão numa dada sociedade; sua mobilidade, que faz com que ela melhor se adapte à fluidez e constante movimentação das fronteiras; e sua permeabilidade, que responde melhor às necessidades de contato e interação características do projeto europeu. Mas o recurso à língua como estratégia de definição das fronteiras nacionais, no cenário da União Europeia, em que as barreiras territoriais tornam-se cada vez mais transparentes e líquidas, é posto em causa na análise da Europa contemporânea, num estudo que parece indicar que a pluralidade e a multidirecionalidade dos fluxos de comunicação estariam a relativizar o impacto das línguas como delimitadoras de um novo espaço público: “the idea of serving and participating in creating a public sphere defined by national or language boundaries has been losing its impact in CEE contexts where communication flows have become more multidirectional an increasingly pluralistic” (Krzyzanowski and Galasinska, 2009: 10). A partir do conjunto de reflexões acima, pode-se afirmar, com alguma segurança, que as línguas desempenham papel relevante na construção de uma identidade europeia especialmente na perspectiva simbólica, que é aquela que aqui interessa. Mais do que as línguas em si, são os discursos de valorização da diversidade linguística que parecem caracterizar essa identidade e fundamentar as políticas de ensino e difusão de línguas, assim como iniciativas no campo da cultura entre outros. Nesse contexto, a valorização da diversidade linguística como fator de identidade não parece alterar a relação de associação – ou mesmo o vínculo – entre língua e identidade nacional estabelecido no interior de cada um dos Estados-membros. Essa afirmação é, em parte, confirmada pelo esforço dos órgãos de administração da União Europeia em acomodar as diferentes línguas nacionais ou assim reconhecidas em seu território, o que leva ao reconhecimento de vinte e quatro línguas oficiais e à manutenção de uma estrutura de trabalho que envolve aproximadamente 1750 linguistas e 3600 intérpretes, entre permanentes e contaratados, além do pessoal de apoio.

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Língua e identidade nacional

Síntese

Neste capítulo, procurou-se analisar a relação entre língua e identidade nacional. Como ponto de partida, foi traçada uma breve retrospectiva histórica do papel desempenhado pelas línguas na construção das identidades nacionais europeias, onde adquirem especial relevância a partir da segunda metade do século XIX. A seguir, analisou-se a perspectiva da língua como símbolo de uma certa identidade e os desdobramentos dessa ideia especialmente a partir da segunda metade do século XX, entrelaçados com o desenvolvimento e a popularização dos novos meios de comunicação de massas. Também a associação entre cultura e língua e seu grande potencial no campo das construções de identidade de diversas naturezas – neste caso, com destaque para as identidades nacionais – foi explorada nessa etapa da reflexão. Por fim, considerou-se o impacto do multilinguismo para os nacionalismos europeus deste início de século XXI.

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Capítulo 3 A construção discursiva das identidades nacionais O discurso O discurso midiático A análise crítica do discurso e a linguística sistêmico-funcional A construção discursiva das identidades

Embora os estudos das identidades – entre elas as nacionais – possam ser desenvolvidos a partir de bases bastante diferentes, a opção adotada nesta pesquisa já foi explicitada em seu título: assume-se como pressuposto que as identidades resultam de um processo de construção discursiva. Com essa afirmação, pretende-se afirmar o caráter processual, dinâmico e em constante transformação das identidades, afastando-se, assim, as abordagens essencialistas. Neste capítulo será explicitado o enquadramento metodológico adotado: o da análise crítica do discurso (ACD). A perspectiva da ACD, no entanto, engloba um amplo e diversificado espectro de ferramentas e, por isso, precisa ser melhor especificada. Antes de prosseguir, porém, é preciso ressaltar que esta tese situa-se no campo dos estudos de cultura e não da análise crítica do discurso, servindo-se desta última, entretanto, para alcançar seus objetivos. Como ponto de partida, analisa-se o conceito de discurso, central à presente abordagem, e seu papel na percepção daquilo que é chamado de realidade. Partindo-se do pensamento de Foucault (1997), a relação entre discurso (ordens do discurso) e sociedade (práticas sociais) é explorada na construção de um contexto mais amplo no âmbito do qual este trabalho se situa. Após delineada essa perspectiva mais genérica, reflete-se especificamente sobre o discurso midiático, uma vez que o corpus de análise provém de textos veiculados nos jornais. As especificidades de tais discursos são realçadas de forma a promover uma melhor compreensão dos dados analisados. Essa discussão também contribui para uma avaliação da relevância do corpus selecionado e do papel que tais discursos representam nas sociedades modernas. Explorada a ideia de discurso e de discurso midiático, passa-se à análise do discurso propriamente dita, na vertente crítica. Não se trata aqui de apresentar a diversidade de vertentes disponíveis – tarefa incompatível com o presente projeto – mas sim de definir os

A construção discursiva das identidades nacionais

contornos da matriz teórico-metodológica a partir da qual a presente análise é definida. A opção pela ACD fundamenta-se em seu forte cariz transdisciplinar e na sua versatilidade, que garantem ao pesquisador a flexibilidade necessária para desenvolver sua análise ao mesmo tempo em que suporta tais escolhas com seu sólido respaldo teórico e aplicado. A seguir, identifica-se o viés específico que, a partir da matriz teórica, será adotado: o da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF). Por fim, o conceito de construção discursiva das identidades nacionais, enquanto objeto particular desta dissertação, é apresentado e analisado à luz das diferentes teorias e posicionamentos que vêm sendo desenvolvidos nos últimos anos. A abordagem aqui adotada é em parte devedora dos trabalhos de Wodak (Wodak et al, 1999) e Martin e Wodak (2003), entre outros, e desenvolve-se a partir de análises quantitativas e qualitativas de dados, realizadas no âmbito de um estudo de caso. O objetivo deste capítulo é, portanto, identificar e apresentar os principais elementos teóricos que guiarão este estudo e, mas especificamente, a análise de dados propriamente dita. Destina-se, também, a descrever e caracterizar as metodologias adotadas e a justificar certas escolhas que foram tomadas ao longo desta reflexão e que conduziram ao presente quadro teórico-metodológico.

O Discurso

Nos anos 60, numerosos estudos e pesquisas no âmbito das ciências sociais viriam a definir os contornos do movimento que ficou conhecido como “virada discursiva”. O marco dessa mudança foi a publicação de um livro de ensaios filosóficos, editado por Richard Rorty, em 1967, com o título The Linguistic Turn, cujo objetivo era promover a reflexão sobre as drásticas mudanças no campo da filosofia associadas à linguagem, as quais defendiam, a grosso modo, que as grandes questões filosóficas podiam ser solucionadas por via da linguagem ou por meio de uma melhor compreensão do seu uso (Rorty, 1970: 3). Essa ideia se faz presente numa série de teorias que estabelecem uma relação intrínseca entre a linguagem e a vida em sociedade, entre elas as que se fundamentam na ideia de construção discursiva da realidade, e que estão na base de muitos dos movimentos que influenciaram e ainda influenciam o pensamento e a produção de conhecimento na Europa, e

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A construção discursiva das identidades nacionais

não só, como o pós-estruturalismo, o construtivismo e também o pós-modernismo, por exemplo. Adotar a perspectiva da construção da realidade, no entanto, não significa ignorar os fatos, mas sim enquadrá-los num contexto de disputa por seus significados, assumindo a existência

de

diferentes

possibilidades;

implica,

ainda,

suspender

a

ideia

de

inequivocabilidade, autenticidade, inteireza, verdade, frequentemente associadas a eles. Nessa concepção de realidade, nega-se a possibilidade de apreensão da existência independente e indisputável de um fato, afirmando-se que este existe sempre em relação a alguma coisa, numa referência à noção de contexto. Também a teoria estruturalista partilha da ideia de construção. Segundo Potter (1997), nessa tradição, a construção dos fatos – e, por inferência, da/s realidade/s – é o resultado de disputas entre diferentes visões e representações de mundo, que atendem a interesses específicos. Essas disputas são marcadas por relações de poder que se manifestam de diversas formas. Nesses embates, o conceito de ideologia desempenha papel crucial. Para o autor, é a ideologia, em suas diferentes estratégias de realização, que, em grande parte, sustenta as relações de poder ao imprimir a certas relações sociais um caráter de necessidade, naturalidade e atemporalidade:

(...) many researchers in the structuralist tradition have developed an explicitly critical concern with fact construction: for them the point of looking at fact construction is to demonstrate the way particular representations of the world are partial, related to interests, or work to obscure the operation of power. Often the concern with fact construction comes from a broader concern with questions of ideology, most prominently: in what ways can a set of social relations be made to seem necessary, natural and timeless? (Potter, 1997: 69).

Como se depreende de tal afirmação, entende-se por ideologia o conjunto de verdades partilhadas, isto é, de crenças que estruturam ou sustentam as estruturas da vida em sociedade sem que as pessoas se apercebam delas. As ideologias moldam – e também toldam – determinadas visões de mundo, constituindo-se, assim, em importante instrumento de dominação e poder. Ainda sobre o conceito de ideologia importa destacar que, embora há muito e intensamente debatido, ele está longe de alcançar consenso. Para parte da doutrina, ele teria perdido sua funcionalidade e deveria ser abandonado em função do seu caráter “sumamente ambíguo e elusivo”, como informa Žižek (2010: 9). Para as teorias críticas e, em especial, para a análise crítica do discurso, no entanto, a ideologia é uma noção central e essencial para a compreensão dessa perspectiva crítica. 81

A construção discursiva das identidades nacionais

Considerando-se o exposto até o momento, interessa ainda afirmar que, no âmbito desta pesquisa, a ideologia é entendida como elemento intrínseco e, por isso mesmo, indissociável, da vida social, e não como uma visão deturpada da realidade (Gouveia, 2001: 338-339), como defendem alguns, nem como prerrogativa única daqueles que detêm o poder e o exercem contra os demais. A noção de representação também é essencial para o entendimento dessa abordagem. No viés construtivista, representar implica contruir significados (Hall, 2014). Nesse processo, língua e cultura são conjugados para atribuir, transmitir e também modificar o sentido de coisas, objetos, pessoas e eventos. Isso significa dizer que os significados não são inerentes às coisas e, portanto, passíveis de serem descobertos, nem imutáveis ao longo do tempo-espaço. Pelo contrário, pessoas diferentes, participantes de culturas distintas, vivendo em épocas diversas constroem significados particulares. Representar implica, também, seleção e escolha, e revela uma visão de mundo. Representar implica olhar para algo ou alguém e identificar que elementos são significativos, que elementos são dele indissociáveis ou que elementos são necessários e suficientes para invocar novamente o ponto de partida no processo de representação. Representar implica, portanto, interpretação, julgamento e valoração; implica trazer à tona certas características e relegar outras ao pano de fundo, ou seja, implica, em alguma medida, transformação. Nesse processo, as relações de poder se materializam no poder de representar, isto é, de construir significados, de manter, modificar ou descartar certas representações em detrimento ou a favor de outras; no poder de atribuir valor positivo a uma representação e negativo à outra. Tal valor manifesta-se de formas diferentes: uma representação é melhor ou pior do que outra, mais ou menos fidedigna, credível, natural, mais ou menos importante ou relevante; é a única possível, não há alternativas a ela, é necessária ou inútil, correta ou incorreta, completa ou parcial, etc. Mais uma vez, o conceito de ideologia mostra-se relevante, agora para a compreensão dos processos de representação ou, como afirma Hall, já mencionado acima, de construção de significados. O papel da ideologia torna-se ainda mais evidente se considerarmos a definição de Thompson (1990: 7) de ideologia como sendo a “construção de significados a serviço do poder”, que opera a partir de estratégias distintas, como a da legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação (ibidem: 60). Žižek, por sua vez, define ideologia como sendo a “matriz geradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como as mudanças nessa relação” (Žižek, 2010: 7).

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A construção discursiva das identidades nacionais

Mas, independentemente da estratégia adotada na construção de diferentes representações, é no discurso que elas se materializam. Essa ideia consiste num dos fundamentos da perspectiva da construção social pela via discursiva (Hall, 1997: 15) e, consequentemente, da construção discursiva das identidades, que será explorada ainda neste capítulo. Tal posicionamento é em muito devedor da concepção de discurso proposta por Foucault. De acordo com Gouveia (2001: 337), o discurso, segundo Foucault, consiste nos “modos, quase sempre linguísticos, mas não exclusivamente linguísticos, de organizar o significado”. A partir desse conceito, Foucault (1997) desenvolve a noção de “ordem do discurso”, estabelecendo forte relação entre discurso e prática social. Segundo o autor, as instituições sociais estruturam-se – e são estruturadas – a partir de discursos. Não só criam tais discursos – e são por eles criadas – como estabelecem critérios de aceitabilidade e valor. O indivíduo, em sociedade, mais do que autor do seu próprio discurso, aprende a se valer daqueles que correspondem aos seus interesses num dado contexto. É esse sistema de saber/conhecimento que possibilita ao indivíduo – grupo ou instituição – o exercício do poder. Retomando a associação entre discurso e representação, pode-se entender o discurso como recurso de construção e expressão de representações sociais. O discurso, portanto, constitui uma forma de exercício de poder. Tal poder se manifesta na possibilidade ou capacidade de instituir discursos dominantes; de atribuir valor a um dado discurso e desvalorizar outro; credibilizar ou descredibilizar; de oficializar ou marginalizar; de tomar o discurso individual como coletivo; de sobrepô-lo aos demais; de naturalizar o discurso; de torná-lo único e necessário, descartando qualquer alternativa como impossível ou inviável. Há, assim, uma forte carga ideológica nos discursos. Ainda sobre o conceito de discurso, Foucault destaca sua imbricação com a noção de poder e o contexto de luta instituído em torno e por causa dele, caracterizando-o como um bem, ou seja, como um objeto escasso e de valor que estipula e atua segundo regras próprias e que suscita o interesse e a cobiça dos diferentes atores que transitam pelo tecido social, com ambições de natureza, inclusive, política:

(…) o discurso (…) aparece como um bem – finito, limitado, desejável, útil – que tem as suas regras de aparecimento, mas também as suas condições de apropriação e de utilização; um bem que põe por conseguinte, a partir da sua própria existência (e não simplesmente nas suas “aplicações práticas”), a questão do poder; um bem que é, por natureza, objecto de uma luta, e de uma luta política. (Foucault, 2005: 163).

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A construção discursiva das identidades nacionais

A partir da definição de Foucault, mas de forma alargada, entende-se por discurso o conjunto de recursos linguísticos, mas não só, dos quais o indivíduo se vale para (1) construir e expressar ideias, conceitos e pensamentos; (2) representar diferentes visões de mundo e de realidade; (3) assumir posições para si e relacionar-se com os outros; e (4) atuar em sociedade. Nessa perspectiva, ressalta-se a relevância do papel desempenhado pelo discurso no processo de construção social e de atribuição de significado à realidade. Afirmar a relação de interdependência entre discurso e prática social é condição necessária, se bem que embora não suficiente, para descrever a matriz teórico-metodológica aqui adotada. A ideia de interdependência, em sentido amplo, pode englobar diferentes relações. Para melhor explorá-las, pode-se estabelecer um paralelo com as ideias de tradução, representação e construção apenas como recurso explanatório e, portanto, sem o intuito e a pretensão de caracterizar uma teoria específica. É possível pensar a relação entre discurso e prática social como sendo semelhante à relação de tradução, aqui considerada, em sentido estrito, na perspectiva de transposição de um texto produzido num idioma para outro. Tal comparação implica uma ideia de paridade, ou seja, de espelhamento entre discurso e prática social, como se fosse possível traduzir discurso em prática social e vice-versa. Nesse sentido, discurso e prática seriam materializações de uma mesma essência, não implicando necessariamente uma real transformação desta. Essa perspectiva pressupõe também uma relação temporal onde algo deve ser primeiro criado ou constituído, para, depois, ser traduzido, num processo que se realizaria ao menos em duas etapas distintas e sucessivas. A relação de representação, por outro lado, implica maior grau de mudança, quer pelo processo de seleção e descarte que lhe é inerente, quer pelas demais estratégias de representação que podem incluir, por exemplo, substituições de elementos e comparações diversas. Aqui também uma relação temporal se interpõe no sentido de que algo ou alguém deve existir a priori para então ser representado. Em comparação com a relação de tradução, portanto, a relação de representação seria caracterizada por um maior grau de transformação na relação entre prática e discurso, mantendo-se a perspectiva da sucessão ao longo do tempo. Por fim, a relação de construção implica criação – não incondicionada, uma vez que toda a criação se dá num certo contexto – e permite, portanto, a transformação. Ao mesmo tempo, prescinde de uma perspectiva temporal, ou seja, da existência anterior de algo, da ideia de sucedibilidade. É a que comporta maior abrangência de significados e a que melhor acomoda a noção de interdependência entre discurso e prática social, na perspectiva adotada

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A construção discursiva das identidades nacionais

nesta pesquisa, permitindo movimentos simultâneos de construir e ser construído, estruturar e ser estruturado. Partindo-se do pressuposto acima apresentado, consistente com o viés do construtivismo social, pode-se também explorar o seu inverso, isto é, a decomposição desse processo de construção como estratégia de acesso e possiblidade de reflexão sobre o mesmo. Assim, se a realidade – ou a apreensão dela – é o resultado de um processo de construção, desfazer tal processo, ou seja, desconstruí-lo, pode revelar os valores, as crenças, as ideologias e as relações de poder que o informa. Se os discursos constróem e são construídos no âmbito de práticas sociais, desconstruí-los revela os elementos que os informam e viceversa. A desconstrução, nesse contexto, consiste no processo de decomposição que revela os diferentes elementos constituintes de uma dada representação, assim como os diferentes modos e graus de interrelação entre eles. Mais do que isso, uma vez negada a ideia de verdade pela afirmação do seu caráter ilusório, segundo afirma Christopher Norris (Potter, 1997: 80), a desconstrução surge como um importante meio de acesso às diferentes realidades sociais – visões de mundo partilhadas ou disputadas – que vivenciamos. Dessa ideia deriva a importância da análise do discurso ou das práticas discursivas.

As práticas discursivas têm grandes efeitos ideológicos. Pelo modo como representam a realidade e posicionam os sujeitos podem ajudar a produzir e a reproduzir relações de poder desiguais. A associação das questões de poder e de ideologia com o discurso é tornada evidente pelo carácter de princípio estruturante da realidade que a este está associado: enquanto prática social, o discurso estabelece uma relação dialéctica com a estrutura social, na medida em que se afirma como um dos seus princípios estruturadores, ao mesmo tempo que é por ela estruturado e condicionado. (Gouveia, 2001: 340).

Nas sociedades democráticas de hoje, o poder se manifesta, mais do que pelo exercício da força ou do chamado poder coercitivo do Estado, pela capacidade de produzir consensos. Dessa constatação, deriva, em parte, o conceito de poder como hegemonia, proposto por Gramsci, que revela o embate ideológico que atravessa e informa as práticas discursivas, caracterizadas por disputas “pela instauração, sustentação, universalização de discursos particulares” (Resende & Ramalho, 2011: 25). Nesse sentido, analisar e compreender as diversas relações que são construídas entre poder e discurso afigura-se como essencial para o melhor entendimento das sociedades atuais. Os discursos, no entanto, não são simplesmente formas de instrumentalização ou operação das

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A construção discursiva das identidades nacionais

disputas de poder, mas sim configuram-se em objeto dessa disputa e, em última instância, do poder propriamente dito, conforme destaca Foucault:

Nisto nada há de surpreendente: uma vez que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é objecto do desejo; e uma vez que – e isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo qual, e com o qual se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (Foucault, 1997: 10-11).

Nessa reflexão sobre discurso e poder – e mais precisamente sobre o poder de construção de realidades – importa ainda destacar o conceito de poder simbólico, desenvolvido por Bourdieu (1999: 166). Para o autor, o poder simbólico consiste exatamente nesse poder de construção da realidade, que não se destaca pela estratégia da força, mas sim pelo seu potencial de naturalização das escolhas, o que não significa que seja menos violento do que a força bruta. Pelo contrário, tem algo de pervasivo e abstrato, que apaga as suas origens e o envolve numa névoa que confunde e dificulta a resistência e o combate. Bourdieu define o poder simbólico como sendo o poder que só pode ser exercido com a cumplicidade de todos: de quem não quer saber que está sujeito a ele e de quem não quer saber que efetivamente o exerce (1999: 164). Como corolário das afirmações acima, pode-se dizer que os discursos particulares utilizados por grupos sociais detentores de poder – as elites econômicas, sociais e intelectuais, por exemplo – são também, e não por acaso, discursos de poder. São discursos de poder porque característicos da classe dominante e são discursos da classe dominante porque reconhecidos como discursos de poder, num movimento circular que se retroalimenta. O conjunto de discursos característicos de um certo campo social, simultaneamente configurados por e configuradores de um dado gênero de poder, em alguma medida, reafirmam a divisão desigual de bens e recursos, pré-configurando os lugares, isto é, as posições discursivas que o indivíduo pode ocupar na sociedade e o grau de mobilidade ao qual ele pode ter acesso. O discurso jurídico, por exemplo, ao valorizar construções gramaticais rebuscadas, citações em latim e a utilização de jargões técnicos, entre outros, torna-se incompreensível para todos aqueles que não tenham aprendido a se movimentar na esfera do direito e que, portanto, não dominem seus discursos, representando, em muitos casos, obstáculo de acesso à justiça, como muitas campanhas pela igualdade de direitos têm destacado. Em resumo, na perspectiva da construção discursiva da realidade, reconhece-se a existência de uma relação intrínseca entre discurso e prática social, marcada por disputas 86

A construção discursiva das identidades nacionais

ideológicas e de poder entre outras. Tais disputas estruturam e dão forma ao tecido social – sempre em transformação e renovação – influenciando ou mesmo, em alguns casos, condicionando diferentes formas de interação social.

O discurso midiático

O papel da mídia nas sociedades modernas tem sido objeto de debate, especialmente a partir do início do século XX, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massas. A popularização da rádio, entre os anos 20 e 30, e da televisão, entre os anos 50 e 60, marca momentos decisivos nesse processo, com a ampliação das audiências e o desenvolvimento posterior de uma série de teorias que, em geral, destacam seu poder (McQuail, 2003: 423429). A mídia ocupa também papel de destaque nos estudos sobre a modernidade, muito em função da relevância do desenvolvimento dos meios de comunicação de massas para os chamados processos de globalização e sua análise e para a modificação e transformação das relações econômicas, políticas, sociais e culturais que caracterizam o momento atual. Tais transformações englobam uma série de mudanças que afetam também, mas não só, o próprio conceito de Estado-Nação e seus papéis, como, por exemplo, alterações ligadas “ao desmantelamento das fronteiras; à diminuição da soberania dos Estados nacionais com a criação das grandes entidades transnacionais; à livre circulação de bens e de capitais; à descrença nas grandes narrativas”, como ilustra Fiorin (2013: 15). Para Thompson (1995: 3), como já referido no capítulo anterior, a mídia é um dos elementos constitutivos da ideia de modernidade, configurando muitas das instituições e dos modos de vida que lhe são inerentes. Desempenha, portanto, papel estruturante das novas realidades sociais que se afirmam e são, ao mesmo tempo, estruturadas por elas. Nesse sentido, a literacia midiática torna-se imprescindível para a vida moderna. Para o autor, mais do que recurso configurador das intituições da modernidade, a mídia institui e define novas formas de ação e interação no mundo social e novos modos de relacionamento intra e interpessoal (Thompson, 1995: 4). Nesse contexto, a perspectiva da transformação da relação espaço-tempo talvez seja um bom exemplo do alcance de tais mudanças. Como afirma Giddens (2002), na modernidade, não mais tempo e espaço se

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A construção discursiva das identidades nacionais

definem reciprocamente, sendo possível pensar num espaço sem tempo e num tempo sem espaço. Também a centralidade da comunicação para o capitalismo moderno reforça o papel da mídia nas sociedades atuais, entrelaçando poder econômico e poder simbólico. A mídia, como importante recurso de produção e transmissão de sistemas simbólicos, figura, assim, como fonte de poder, mas também como meio de acesso a ele e, sobretudo, como palco da luta pelo poder. Essas relações caracterizam as chamadas sociedades da informação (cf. Hassan, 2011), ou seja, sociedades organizadas em torno de sistemas de produção e circulação de informação, como esclarecem Resende e Ramalho:

A importância da linguagem, nessas mudanças, está em sua centralidade no novo modo de produção capitalista, isto é, baseado no conhecimento, na informação, pressupõe uma economia baseada no discurso. O novo capitalismo depende de tecnologias de comunicação (…). Como a mídia tem papel fundamental nesse processo, hoje as representações estão, sem precedentes, cada vez mais associadas aos meios de comunicação. (Resende & Ramalho, 2011: 55)

Na sociedade da informação, como afirma Castells (2009), o poder é o “poder da comunicação”, ressaltando assim o papel das redes de comunicação na instituição, configuração e gestão das relações de poder numa sociedade onde os sistemas simbólicos se multiplicam e ganham cada vez mais relevância. Nessa nova sociedade, agora organizada em torno de redes e fluxos, o poder se materializa no poder de estabelecer e modificar redes, atribuir valor a elas, destruí-las, etc. A mídia – assim como os órgãos políticos, as principais instituições econômicas e as entidades públicas – têm o poder de definir discursos e de permitir ou não o acesso de outros interlocutores a esse processo (Krzyzanowski e Galasinska, 2009: 6). Ela atua como produtora e reprodutora de ideologias, crenças e histórias, e exerce grande influência nas sociedades modernas em todas as suas dimensões (Martin e Wodak, 2003: 11). Em outras palavras, o poder da mídia se concretiza em sua capacidade de criar, influenciar e disseminar crenças, valores, relações sociais e identidades (Fairclough, 1995: 2), ao veicular determinadas representações em detrimento de outras, definindo e sendo definida por práticas discursivas (ibidem: 50). Esse posicionamento contraria a ideia de que a mídia atuaria como uma espécie de espelho da realidade (McQuail, 2003), atuando de forma imparcial e objetiva, numa busca incessante pela informação fidedigna e pela verdade, que tem suas origens no século XIX, mas que ainda encontra alguma repercussão – pelo menos numa perspectiva deontológica, isto é, do “dever ser”. Pelo contrário, a mídia constrói versões 88

A construção discursiva das identidades nacionais

alternativas dessas realidades, sujeitas aos interesses específicos, às relações de poder e aos objetivos daqueles que participam de sua produção (Fairclough, 1995: 103-104). Construir versões alternativas da realidade, no entanto, não significa distorcê-la, como bem alerta Luhmann (2000:7). Para o autor, afirmar que a mídia distorce a realidade com suas representações seria reconhecer a existência apriorística e essencialista dessa realidade, a qual ele contesta. Para si, a questão que se coloca, portanto, não é a de se saber se a mídia constrói a realidade, mas sim como a constrói. Não se pretende, com essa afirmação, atribuir à mídia superpoderes, uma vez que o seu papel na produção da notícia não é isento de debate e controvérsias, mas sim destacar sua relevância como elemento estruturante do e estruturado pelo tecido social. Nesse sentido, vale a pena relembrar a reflexão de Stuart Hall (2009) e outros sobre a perspectiva social da produção da notícia, onde se destacam os papéis dos definidores primários e dos definidores secundários nesse processo. Segundo os autores, a mídia faria parte do segundo grupo, deixando a posição de definidor primário para as diferentes fontes de informação e os detentores de poder, sejam estes pessoas ou instituições. A notícia seria, portanto, produzida como resultado de um processo em que definidores primários e secundários desempenham seus papéis, não sendo nem pura e simplesmente uma “criação” da mídia, nem mera afirmação e repetição da ideologia da “classes dominantes”:

The media, then, do not simply ‘create’ the news; nor do they simply tansmit the ideology of the ‘ruling class’ in a conspiratorial fashion. Indeed, we have suggested that, in a critical sense, the media are frequently not the ‘primary definers’ of news events at all; but their structured relationship to power has the effect of making them play a crucial but secondary role in reproducing the definitions of those who have privileged access, as of right, to the media as ‘accredited sources’. From this point of view, in the moment of news production, the media stand in a position of structured subordination to the primary definers. (Hall et al, 2009: 653).

Não é objeto deste estudo, no entanto, aprofundar essa discussão. Importa apenas destacar que a mídia desempenha papel relevante na construção da realidade e da vida em sociedade. Segundo Fairclough (1995:52), ela constitui um eficaz instrumento de medida da mudança sociocultural, uma vez que esta se manifesta na diversidade e na transformação das práticas discursivas da mídia. Nessa perspectiva, a análise dos discursos midiáticos – e sua imbricação no campo sociocultural – revela-se importante para a compreensão de diferentes visões de mundo nesta modernidade tardia.

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Também questões relacionadas à cultura ganham cada vez mais destaque no debate social, sendo seu potencial de transformação reconhecido e valorizado. Tal destaque à cultura estende-se às noções de língua e discurso, indissociáveis da ideia de cultura. Nesse cenário, o efetivo acesso à cidadania e ao conjunto de direitos (e deveres) que ele implica passa a ser mediado por cultura, discurso e língua, configurando um universo que inclui também, como ressalta Fairclough, o discurso da mídia, numa referência que faz lembrar mais uma vez a importância da literacia midiática, já mencionada anteriormente:

The media, and media discourse, are clearly a powerful presence in contemporary social life, particularly since it is a feature of late modernity that cultural facets of society are increasingly salient in the social order and social change. If culture is becoming more salient, by the same token so too are language and discourse. It follows that it is becoming essential for effective citizenship that people should be critically aware of culture, discourse and language, including the discourse and language of the media. (Fairclough, 1995: 201).

Uma vez que o corpus de análise desta pesquisa consiste em textos publicados em jornais, interessa destacar duas características centrais dos mesmos: seu caráter público e sua pretensão de acessibilidade. Tais características, embora distintas, estão interrelacionadas e orientam parte significativa do processo de produção e consumo de notícias, independentemente do perfil editorial do veículo de publicação. O caráter público aplica-se ao seu conteúdo, que deve girar em torno de temas de interesse público, ou seja, de questões pertinentes à chamada esfera pública em contraposição ao conceito de espaço privado – distinção que se torna cada vez mais difícil de elaborar no contexto da modernidade tardia (cf. Innerarity, 2006), mas que não será discutida no âmbito deste estudo. Também a forma como tal conteúdo é produzido e reproduzido assume o caráter público, isto é, resulta da participação dos diferentes atores que se movimentam no espaço público. Daí a relevância do discurso midiático como meio de acesso aos discursos que circulam e dão forma a esses espaços, discussão já, em parte, desenvolvida no capítulo anterior. A questão da acessibilidade refere-se tanto ao registro jornalístico em si mesmo quanto à disponibilidade material do jornal. O registro jornalístico, no que diz respeito à linguagem, é – ou, ao menos, pretende ser – acessível à maior parte dos leitores. Valoriza-se, portanto, o discurso direto e conciso, claro e simples. Ao mesmo tempo, por se tratar de um meio de comunicação, cuja distribuição é central para seu sucesso, também a questão da acessibilidade física é contemplada.

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Tal caráter público e de acessibilidade contribui para a posição de destaque ocupada pela mídia no tocante à construção da chamada opinião pública. Os jornais participam ativamente do processo de formação de opinião, quer ao produzir e divulgar notícias e informações, quer ao atuar como plataforma e arena de debate, divulgando opiniões – as suas e as de outras pessoas, grupos ou instituições. Nesse contexto, os artigos opinativos ganham destaque, não por serem os únicos elementos a cumprirem essa função – certamente não o são –, mas sim por expressa e explicitamente a assumirem. Segundo Habermas (Glyn et al, 1999: 32-33), o conceito de opinião pública varia de uma época para outra, estando sempre entrelaçado, no entanto, com a ideia de “esfera pública” – é sempre fluido e contingente, variando seus significados em função do uso que lhe é dado. No âmbito desta discussão, entende-se opinião pública como consenso ou, mais especificamente, como o conjunto de discursos em torno do qual se obtém algum grau de concordância, mesmo que esta seja – e em geral é – momentânea, frágil e cambiante. Não significa a opinião da maioria, mas a posição da maioria que se faz ouvir. A opinião pública representa, assim, o conjunto de discursos contra os quais os demais serão medidos e confrontados, ressaltando-se que o seu conteúdo não está isento de disputas nem pode ser claramente determinado. Embora não haja consenso sobre a definição do conceito de opinião pública, dificilmente sua importância é contestada no âmbito da relação de associação entre democracia, liberdade de imprensa e opinião pública. Nesse sentido, a opinião pública, mais do que o ato de ouvir e ser ouvido, engloba também o recurso ao fazer-se ouvir, como garantia fundamental do indivíduo numa sociedade democrática, cabendo à mídia o importante papel de mediação e de expressão dessa liberdade. Ainda no que diz respeito a essa discussão, importa destacar a figura dos formadores de opinião ou influenciadores. Num sentido amplo, são aqueles cuja opinião exerce maior influência sobre os demais em função de sua posição na sociedade – detém um conhecimento maior sobre o tema (ou assim é percebido), ocupam uma posição de destaque na comunidade (o padre, o acadêmico, o líder empresarial, etc.) ou detém espaço privilegiado nos meios de comunicação (colunista, blogueiro, editorialista, etc.). Em geral, os chamados influenciadores atuam como se fossem os tradutores ou intérpretes do conteúdo veiculado pela mídia para um público mais abrangente (Abercrombie e Longhurst, 2007: 184). Em suma, numa tentativa de sistematizar a discussão desenvolvida até aqui, importa ressaltar que, embora não faltem alertas para o caráter irremediavelmente subjetivo da notícia, apesar das inúmeras tentativas de afirmação de sua imparcialidade e objetividade (White, 91

A construção discursiva das identidades nacionais

2001: 61), a opção de análise de textos da mídia, escolhida nesta pesquisa, recaiu especificamente sobre textos opinativos, nos quais tal subjetividade é assumida logo à partida, afastando-se, assim, qualquer pretensão de isenção. Nesse contexto, entende-se que os artigos opinativos veiculam as ideias e posições dos seus respectivos autores, que são, em geral, identificados como ‘formadores de opinião’, ou seja, pessoas que, pela sua posição ou status na sociedade – cargos que ocupam, experiência vivida, conhecimento especializado, imagem pública, etc. –, exercem influência e atuam como porta-vozes das diferentes correntes que marcam o debate público. De modo geral, a análise dos discursos veiculados nos artigos de opinião permite a construção de uma visão aproximada do debate social, das diferentes vertentes e correntes de pensamento que circulam nos cafés, nas universidades, no governo, nas ruas, etc. Sintetizam e representam, em alguma medida, diferentes argumentos, ao mesmo tempo em que municiam – alimentam e se retroalimentam de – atuais e novos intervenientes. Na maioria das vezes, esses textos se entrelaçam, ora para reforçar uma posição, ora para contradizê-la. É do conjunto desses fragmentos e recortes que se pretende construir possíveis imagens ou visões do conjunto.

A análise crítica do discurso e a linguística sistêmico-funcional

A premissa inicial da análise crítica do discurso (ACD) é de que existe uma relação intrínseca entre discurso e prática social. O discurso constitui um recurso para a apreensão do mundo e para a ação e interação nele. Nesse sentido, o discurso consiste numa estratégia de mediação social essencial, embora não única, da qual o indivíduo se vale para viver em sociedade. Retomando o conceito de ordem do discurso desenvolvido por Foucault e já mencionado anteriormente, as instituições sociais instituem (e são instituídas por) um conjunto de práticas discursivas que informam e conformam sua atuação e sentido. Conhecer e operar no âmbito de tais práticas – ou ordens do discurso – é condição sine qua non de acesso e exercício de poder. Mais do que dois elementos distintos, as ordens do discurso e as práticas sociais são duas faces de um mesmo objeto, duas perspectivas de abordagem de uma mesma coisa, ou seja, são indissociáveis. Dizendo de outro modo, o texto, como materialização de uma prática 92

A construção discursiva das identidades nacionais

discursiva, carrega em si mesmo as condições que lhe são exteriores. Como afirma Gouveia (2009), a partir de um dado contexto pode-se prever os diferentes discursos que serão mobilizados, assim como, a partir de tais discursos, pode-se apreender o contexto no qual estes se desenvolvem:

(…) os significados que podemos querer fazer são fortemente dependentes de aspectos contextuais, para além de que uma parte importante quer da nossa capacidade quer da nossa habilidade linguísticas é o conhecimento que temos de como as coisas são típica ou obrigatoriamente ditas em certos contextos. Ou seja, a relação entre a língua e os seus contextos de uso, ou dito de outra forma, a relação entre um texto e o seu contexto, é de tal forma motivada que, a partir de um contexto, será possível prever os significados que serão activados e as características linguísticas potenciais mais previsíveis para as codificar em texto. Da mesma forma, dado um texto, será possível deduzir o contexto em que o mesmo foi produzido, porquanto as características linguísticas seleccionadas num texto codificarão dimensões contextuais, tanto do contexto de produção imediato, situacional – quem diz o quê a quem, por exemplo -, como do contexto mais geral, cultural – que tarefa está o texto a desempenhar na cultura. (Gouveia, 2009: 25-26).

As práticas discursivas são, portanto, formas de mediação entre os campos textual e social, sendo os discursos construídos e constrangidos por um dado contexto social e cultural, o que não implica negar a natureza cíclica e histórica dos mesmos. Como Krzyzanowski e Galasinska (2009: 6) afirmam, a apropriação e reapropriação de discursos é recorrente na prática discursiva, alcançando tanto discursos anteriores como posteriores, num esforço constante de recontextualização. Também Fairclough afirma a interdependência entre as práticas discursivas e o contexto sociocultural. Para o autor, tais práticas atuam como mediadoras entre texto e contexto, estabelecendo entre ambos um vínculo. O contexto sociocultural, ao condicionar o modo como os textos são produzidos e consumidos, atua também sobre as práticas discursivas no interior das quais os textos são concretizados:

(…): I see discourse practice as mediating between the textual and the social and cultural, between text and sociocultural practice, in the sense that the link between the sociocultural and the textual is an indirect one, made by way of discourse practice: properties of sociocultural practice shape texts, but by way of shaping the nature of the discourse practice, i.e. the ways in which texts are produced and consumed, which is realized in features of texts. (Fairclough, 1995: 59-60).

Esse entendimento amplia o universo de significação do texto, extrapolando a noção de autoria – isto é, a ideia de que o texto é essencialmente o resultado de um processo criativo original e independente, levado a cabo pelo autor – e de intencionalidade – isto é, a noção de

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que os efeitos produzidos pelo texto resultam exclusivamente da intenção do autor ou, ao menos, da sua ação (mesmo que não intencional). Em parte, a perspectiva crítica da análise do discurso – que está longe de alcançar consenso entre seus diversos praticantes – implica a ideia acima. Martin e Wodak (2003: 6), por exemplo, entendem o conteúdo crítico da análise do discurso como recurso de afastamento em relação aos dados, de reinserção (recuperação ou ligação) do campo textual no social, de desmascaramento das operações ideológicas e de posições políticas e de autorreflexão do analista em relação ao seu papel e ao objeto de análise. Para eles, o texto, via de regra, não é unicamente obra do seu autor, mas sim local de disputa de diferentes discursos, ideologias e posições, onde são negociadas as diferenças. Uma vez reconhecida a controvérsia, importa esclarecer o entendimento que foi aqui adotado. No âmbito desta pesquisa, atribui-se dois significados preponderantes ao conteúdo crítico da análise do discurso: um deles está associado explicitamente a questões de poder, enquanto o outro é dirigido à produção de significados – ambas as perspectivas serão explicitadas a seguir. Na primeira abordagem, a análise crítica do discurso busca revelar as relações de poder que regulam as práticas discursivas/sociais, promovendo a mudança, ou seja, busca trazer à tona as relações de poder e, assim, criar a possibilidade de mudança. Não se trata de um poder único, nem de uma divisão dicotômica entre opressores e oprimidos, mas sim de um poder difuso, que se manifesta das mais diversas formas. Esse potencial de mudança é também destacado por Krzyzanowski e Galasinska (2009: 12), que entendem os discursos como recursos de produção e reprodução da sociedade e da cultura, atuando, portanto, necessariamente em sua contínua transformação e na promoção da mudança, quer no âmbito cultural, quer no da política, sendo tais atividades interdependentes. Na segunda abordagem, a análise crítica do discurso pretende revelar o conteúdo implícito, invisível, escondido no texto de forma intencional e não intencional. Todo texto é composto por aquilo que diz, aquilo que pressupõe, aquilo que carrega e transmite sem o saber e aquilo que deixa de fora, ou seja, como afirma Fairclough (1995: 108), citado a seguir, pelo não dito, pelo dito e pelo pressuposto:

Any text is a combination of explicit meanings – what is actually ‘said’ – and implicit meanings – what is left ‘unsaid’ but taken as given, as presupposed. Presuppositions anchor the new in the old, the unknown in the known, the contentious in the commonsensical. A text’s pressupositions are important in the way in which it positions its readers or viewers or

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listeners: how a text positions you is very much a matter of the common-sense assumptions it atributes to you. (Fairclough, 1995: 106-107).

Para o autor, a ACD deve operar em três dimensões: na dimensão do texto, na dimensão da prática discursiva e na dimensão sociocultural (Fairclough, 1997: 9). Em outras palavras, a análise do discurso deve abarcar tanto forma como conteúdo, pois são ambos indissociáveis, ou seja, além das características linguísticas do texto, importa analisar seus modos de produção, consumo e distribuição, assim como o contexto sociocultural de fundo. Tal análise não prescinde da reflexão sobre as relações de poder que se estabelecem em torno das práticas discursivas. Nessa perspectiva, a noção de poder é ampliada, passando a indicar não só as assimetrias entre os participantes no discurso como suas respectivas capacidades para exercer controlo sobre os modos de produção, consumo e distribuição do mesmo, num dado contexto (Fairclough, 1997: 1). O posicionamento de Fairclough acomoda um grande número de possibilidades de análise – bem exemplificadas por Ramalho & Resende (2011), na citação abaixo – relacionadas com a materialização de discursos em textos. Essa abertura proposta por Fairclough e a amplitude e liberdade de escolha a ela associada informam, em algum grau, as análises que serão apresentadas nesta pesquisa.

(…) a representação de grupos específicos de atores sociais em textos de ampla circulação; a recontextualização de discursos de um campo a outro; as influências de discursos específicos sobre construções identitárias e sobre modos de ação; a representação de aspectos específicos do mundo por meio de discursos particulares; os modos como grupos específicos de atores sociais atualizam discursos particulares na representaça de suas experiências, etc. (Ramalho & Resende, 2011: 58).

A análise crítica do discurso engloba numerosas e diversificadas perspectivas de análise, as quais nem sempre podem ser conciliadas (Martin e Wodak, 2003: 5). Essa grande versatilidade da ACD representa uma vantagem e, ao mesmo tempo, um desafio. Por um lado, representa uma vantagem ao permitir diferentes abordagens e, assim, um certo refinamento na adequação do meio de análise ao corpus específico, associado à persecução de um conjunto de objetivos. Por outro lado, representa um desafio pelo risco desse ecletismo induzir o analista a uma “contradição epistemológica”. Para evitar tal risco, como alertam Weiss e Wodak (2005: 124), é preciso justificar e fundamentar cada escolha de análise adotada. Entre as ferramentas disponíveis, a opção de pesquisa adotada neste trabalho é a da linguística sistêmico-funcional (LSF), entendida, em sua dupla faceta teórica e metodológica, como “teoria geral do funcionamento da linguagem humana” e “modelo de análise textual” 95

A construção discursiva das identidades nacionais

(Gouveia, 2009: 14). Neste estudo, essa segunda abordagem é aquela que mais interessa e que será, portanto, explorada. Segundo Halliday (1994), pode-se identificar três macrofunções principais, atribuídas à língua, que ele chama de “metafunções” – são elas a metafunção ideacional, a metafunção interpessoal e a metafunção textual. A metafunção ideacional relaciona-se com o papel da língua na construção de representações de mundo; a metafunção interpessoal relaciona-se com o papel da língua na construção de relações subjetivas, ou seja, entre sujeitos; e a metafunção textual relaciona-se com o papel da língua na construção e organização de sentido, como explica Gouveia, ao referir-se às funções ideacional, interpessoal e textual respectivamente:

(…) Na sua essência (…), a linguagem desempenha três funções fundamentais, para além da função comunicativa, equacionada como primordial e básica por um aparelho teórico que encara a troca e a negociação do significado como a razão da existência da linguagem. Concretizando, a linguagem serve para expressarmos conteúdo, para darmos conta da nossa experiência do mundo, seja este o real, exterior ao sujeito, seja este o da nossa própria consciência, interno a nós próprios; mas a linguagem serve também para estabelecermos e mantermos relações sociais uns com os outros, para desempenharmos papéis sociais, incluindo os comunicativos, como ouvinte e falante; e, por fim, a linguagem providencia-nos a possibilidade de estabelecermos relações entre partes de uma mesma instância de uso da fala, entre essas partes e a situação particular de uso da linguagem, tornando-as, entre outras possibilidades, situacionalmente relevantes. (Gouveia, 2009: 15).

É importante esclarecer que a língua desempenha essas diferentes funções de forma simultânea, ou seja, elas estão sempre presentes no texto, embora em diferentes graus. Na análise de cada uma delas, a linguística sistêmico-funcional oferece um conjunto distinto de ferramentas, que, em geral, aplicam-se à oração, considerada a unidade de análise mínima de preferência da LSF, embora não única. No âmbito desta pesquisa, será explorada preferencialmente a metafunção ideacional, com o objetivo de analisar as diferentes representações de caráter identitário construídas ao longo do corpus, uma vez que tal metafunção é aquela que se relaciona por excelência com as questões de representação (Gouveia, 2009: 16). A análise da metafunção ideacional, com sua vocação para a identificação de diferentes visões de mundo, permite a reflexão sobre os discursos e recursos mobilizados no processo de construção identitário. Embora a LSF ofereça uma série de ferramentas de análise textual que permitem, a partir do estudo da escolhas gramaticais realizadas (perspectiva micro), identificar os discursos e as práticas sociais que as informam (perspectiva macro), nesta pesquisa tais ferramentas não serão utilizadas em sentido estrito. No atual contexto, a contribuição da LSF

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A construção discursiva das identidades nacionais

consiste na apropriação dos seus princípios teórico-metodológicos e da sua abordagem funcional sobre a língua e suas instâncias de uso. Numa primeira etapa – o estudo dos marcadores identitários, que será desenvolvido no capítulo cinco –, como regra geral, a ferramenta de análise escolhida foi o estudo dos grupos nominais num esforço de delineamento dos diferentes campos de significação construídos em torno de cada um desses marcadores. Com esse objetivo em mente, no entanto, outros recursos de análise foram mobilizados em complemento ou concorrência, isto é, de forma independente, com essa primeira perspectiva. Numa segunda etapa – o estudo das posições assumidas por ou atribuídas a Portugal em relação a outras entidades nacionais ou supranacionais, que será desenvolvido no capítulo seis –, a análise concentrou-se na interpretação dos processos e na identificação dos múltiplos e variados recursos de comparação utilizados pelos diferentes autores para construir posições de simetria ou assimetria entre as entidades envolvidas. Resta ainda esclarecer que o enquadramento metodológico adotado nesta pesquisa combina análises quantitativas e qualitativas, com a predominância destas últimas. A análise quantitativa resume-se à contabilização de palavras no texto, de modo a identificar a incidência de um certo vocabulário associado aos discursos sobre identidades nacionais, que será explicitada no capítulo cinco. Uma vez identificado tal vocabulário, passa-se à análise qualitativa, que não integra análise gramatical, em particular, mas tão somente categorização de significados veiculados e parametrização desses significados. Tais análises quantativa e qualitativa são desenvolvidas como parte de uma metodologia – ou estratégia – de investigação identificada como sendo um estudo de caso, isto é, um estudo detalhado de algo claramente definido – neste caso, dos argumentos de natureza identitária identificados nos artigos de opinião sobre o AO publicados em 2012 na imprensa portuguesa. Neste estudo, procura-se analisar de que modo a língua, em sua dimensão simbólica, é utilizada na construção de determinadas identidades nacionais portuguesas. A partir da recolha de dados de diferentes jornais portugueses no período delimitado acima, que são, a seguir, descritos pormenorizadamente, procura-se identificar, descrever e analisar os argumentos que remetem para o tema da identidade nacional com o objetivo de se construir um estudo de caso capaz de contribuir para um melhor entendimento do papel da língua na construção das identidades nacionais na Europa de hoje. Nesse sentido, tal estudo pode ser caracterizado como “instrumental” de acordo com a proposta de classificação de Coutinho e Chaves (2002: 226), derivada de Stake, segundo a qual um caso pode ser 97

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classificado como instrumental quando “é examinado para fornecer introspecção sobre um assunto, para refinar uma teoria, para proprocionar conhecimento sobre algo que não é exclusivamente o caso em si”, ou seja, “o estudo do caso funciona como um instrumento para compreender outro(s) fenómeno(s)”. Não se trata, no entanto, de se afirmar que o presente caso de estudo configuraria um exemplo recorrente do contexto europeu ou, em algum sentido, emblemático, nem tão pouco que a partir do seu estudo seria possível compreender a/s realidade/s da Europa, em toda sua diversidade e complexidade. Longe disso, entende-se que a presente análise representa um dos possíveis discursos sobre língua e identidade nacional na Europa de hoje, ou mesmo um entre os muitos discursos possíveis sobre língua e identidade nacional em Portugal, ou, ainda, um entre os muitos discursos possíveis sobre língua e identidade nacional em Portugal no âmbito da discussão sobre o acordo ortográfico. No entanto, ainda assim, com todas as suas limitações e a impossibilidade de generalizações, este estudo de caso representa um contributo para se pensar questões relativas à língua e à identidade nacional. Também não se pode esquecer que boa parte do seu valor advém muito provavelmente mais das questões que levanta do que daquelas que responde. Como bem alerta Ponte (2006: 16), embora referindo-se à investigação no campo da educação, não se deve “menosprezar o facto que muito do valor dos estudos de caso deriva das questões que ajudam a levantar”.

A construção discursiva das identidades

Potter (1997: 86), ao refletir sobre a afirmação de Foucault (1997) de que os discursos não só produzem objetos mas também sujeitos, estabelece uma relação entre o modo como se fala sobre um objeto e uma identidade específica, ou seja, entre os discursos construídos em torno de um dado objeto e a construção da identidade de quem fala sobre ele. Essa posição é partilhada neste trabalho, que se fundamenta no processo de construção discursiva das identidades. Como já explorado anteriormente, a relação de simbiose entre prática discursiva e prática social configura espaço produtivo para a análise cultural. As práticas discursivas, sua unidade, os discursos de resistência, sua tranformação, os elementos que figuram de forma recorrente nessas construções, os elementos que são excluídos, as relações estabelecidas e 98

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desafiadas, em conjunto, concorrem para o entendimento do modo como as identidades são apreendidas e representadas no contexto europeu atual, mais especificamente, neste caso, o português. Nesse mesmo sentido, Gouveia (2013: 1063) alerta para a relação de interdependência entre práticas discursivas e identidade, ao afirmar que é da articulação entre essas práticas – que gozam de certa durabilidade e estabilidade – na produção de significados, sejam eles sociais, institucionais ou organizacionais, que as identidades são, em grande parte, construídas. Sempre abertas e mutáveis, essas identidades são, ao mesmo tempo, motivadas por tais práticas e elemento de transformação das mesmas. Como destacam Martin e Wodak (2003: 8), a história das nações e dos povos nunca termina de ser contada, nunca está completa. Está sempre em construção e transformação, sendo suscetível ao jogo de forças, sempre cambiante, daqueles que em nome individual ou coletivo participam do processo. Concorrem nesse embate o sistema educativo, os discursos políticos, a mídia, as organizações da sociedade civil, assim como narrativas individuais e testemunhos que entrelaçam a história de um à história de todos. O poder, nesse contexto, manifesta-se na escolha de uma dada narrativa, em detrimento de outras, que então é naturalizada como sendo o passado, ou seja, como aquilo que realmente aconteceu. Nesse processo, os recursos de representação da nação vêm à tona, colaborando para a construção e transformação das narrativas nacionais. Anderson e Hobsbawm, entre outros, já haviam alertado para a relevância dos sistemas nacionais e unificados de educação, a invenção da tradição, a construção de monumentos e a instituição de cerimônias e ritos nacionais na elaboração e disseminação dessas narrativas. Mais recentemente e, de certo modo, em decorrência desses estudos, juntam-se a eles os discursos de revisão do passado (cf. Martin e Wodak, 2003, por exemplo) e de valorização da cultura em exibição, concretizados na promoção dos museus e nas ações de proteção e divulgação do patrimônio (cf. Boswell e Evans, 1999, por exemplo), entre tantas outras possibilidades. Wodak e de Cillia (Wodak et al, 1999) oferecem exemplo bastante ilustrativo ao analisarem os eventos comemorativos do pós-guerra na Áustria. Como estratégia de superação do passado nazista, a declaração de independência da Áustria é caracterizada como uma espécie de “renascimento”. A partir dessa metáfora, é possível deixar para trás um passado marcado pela “fatalidade” da guerra e suas consequências e começar outra vez, como um recém-nascido: puro, inocente, sem máculas. Essa nova relação com o passado é destacada por Giddens (2002: 2 e 3) em sua caracterização da modernidade tardia como marcada pela superação da tradição e, 99

A construção discursiva das identidades nacionais

especialmente, pela instauração do princípio da “dúvida radical”. Em outras palavras, nos tempos atuais, nesta era pós-tradicional, as certezas do passado teriam sido substituídas pela dúvida, isto é, por hipóteses que poderiam ou não ser confirmadas e cujo status de afirmação ou negação poderia sempre ser revisto e alterado. Essa possibilidade de revisão incessante estende-se à construção das identidades, configurando aquilo que o autor identifica como o “projeto reflexivo” da identidade, como citado a seguir. Nesse contexto, o indivíduo busca manter alguma coerência em suas narrativas biográficas, que estão em constante processo de revisão, a partir das escolhas que tem à sua disposição num ambiente marcado pelo predomínio dos sistemas abstratos, entendidos, nesse contexto, como sendo os recursos simbólicos que consistem em meios de troca dotados de um valor-padrão e de uso generalizado.

The reflexivity of modernity extends into the core of the self. Put in another way, in the context of a post-traditional order, the self becomes a reflexive project. Transitions in individuals’ lives have always demanded psychic reorganization, something which was often ritualised in traditional cultures in the shape of rites de passage. But in such cultures, where things stayed more or less the same from generation to generation on the level of the collectiviy, the changed identity was clearly staked out –as when an individual moved from adolescence into adulthood. In the settings of modernity, by contrast, the altered self has to be explored and constructed as part of a reflexive process of connecting personal and social change. (Giddens, 2002: 33-34).

Embora Giddens, em sua reflexão, refira-se especialmente à identidade individual ou autoidentidade, é importante destacar que as identidades coletivas – dentre elas as identidades nacionais – são indissociáveis das identidades individuais, lembrando, mais uma vez, o alerta de Kuper (já citado no primeiro capítulo) de que, assim como as identidades individuais são vivenciadas no mundo, isto é, no contato com os outros, as identidades coletivas são sempre, ao final, vivenciadas individualmente, ou seja, numa perspectiva subjetiva. Retomando-se a perspectiva da identidade/diferença, na construção das identidades, e, em especial, das identidades nacionais, ganha destaque o mecanismo de criação de um eu e de um outro, que funciona, a grosso modo, pela afirmação das semelhanças e supressão das diferenças no interior do grupo e, simultaneamente, pela afirmação das diferenças e supressão das semelhanças na relação entre o grupo e aquilo/aquele que lhe é exterior. Nesse processo de construção de identidades e diferenças, uma série de recursos são mobilizados. Como afirma Wodak, a ideia de pertença a uma comunidade imaginada como nação é construída a partir de práticas sociais e discursivas de inclusão e exclusão, criadas e vivenciadas pelos diferentes atores sociais que interagem num dado contexto sociocultural e histórico: 100

A construção discursiva das identidades nacionais

In summary, we will assume the following theses: The national identity of individuals who perceive themselves as belonging to a national collectivity is manifested inter alia, in their social practices, one of which is discursive practice. The respective national identity is shaped by state, political, institutional, media and everyday social practices, and the material and social conditions which emerge as their results, to which the individual is subjected. The discursive practice as a special form of social practice plays a central part both in the formation and in the expression of national identity. (Wodak, 1999: 29).

Síntese

Neste capítulo, foram apresentados e discutidos os conceitos nos quais se fundamenta o enquadramento teórico-metodológico adotado analiticamente nesta pesquisa, em particular no que se refere às estratégias de análise textual. Partiu-se da noção de discurso, na acepção de Foucault, que foi, a seguir, desenvolvida para se explorar a relação de simbiose entre texto e contexto, ou discurso e prática social. O papel operado pelas ideologias e o discurso como instrumento de representação foram alguns dos temas destacados, sempre tendo-se em vista a perspectiva sociocultural e histórica. A mídia e os discursos produzidos e/ou veiculados por ela também foram objeto de atenção e reflexão, dada a natureza do corpus de pesquisa. Do entrelaçamento e desenvolvimento desses conceitos, chegou-se à análise do discurso, apresentada aqui em sua perspectiva crítica, apontada como a principal diretriz de análise e cujos contornos foram delineados. Ao lado da ACD, a linguística sistêmico-funcional foi identificada como a abordagem que informa a análise propriamente dita, a ser desenvolvida nos próximos capítulos. Por fim, a opção pela construção discursiva das identidades nacionais foi explicitada.

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PARTE II

Capítulo 4 Contextualização e apresentação do corpus Portugal: contexto histórico-cultural O acordo ortográfico e os artigos de opinião Mapeamento geral dos argumentos Perspectivas de análise

O Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), que vigora hoje em Portugal, tem suscitado polêmica, como se depreende da frequência e do calor dos debates veiculados pelos meios de comunicação portugueses nos anos subsequentes à sua entrada em vigor. Entre a diversidade de temas que alimentam a discussão, interessa destacar aqueles que giram em torno de questões de identidade nacional; afinal, são eles o objeto deste estudo. Neste capítulo, parte-se de uma breve e fragmentada retrospectiva de determinados momentos da história de Portugal, em especial a partir do século XIX, que contribuíram para a construção da identidade do país. Pretende-se, assim, construir um dado contexto históricocultural que servirá de enquadramento geral para a análise propriamente dita. Nesse processo, procura-se destacar o papel da língua portuguesa como elemento intrínseco à construção de certas versões de identidade para Portugal. A seguir, são apresentados os contornos do atual acordo ortográfico, firmado por meio de um tratado internacional e que conta com a adesão de vários países de língua oficial portuguesa, entre eles Angola, Brasil, Moçambique e Portugal. Assinado em 1990, o acordo entrou em vigor no país em 2009, sendo adotado no âmbito do sistema nacional de educação apenas no ano letivo 2011/2012. A assinatura do acordo e, mais especificamente, as disputas que se instauram em torno da legalidade e aplicação do mesmo foram – e ainda são – objeto de debate, sendo a mídia uma das suas principais arenas. É nessa fonte que se vai buscar os artigos de opinião publicados sobre o tema em 2012, nos jornais portugueses, e que constituem o corpus desta análise. Passa-se, então, à apresentação e descrição detalhada do mesmo. Uma vez explicitado o corpus, promove-se a identificação e o mapeamento dos principais argumentos de caráter identitário trazidos ao debate público. Deixam-se de lado, portanto, as discussões sobre a legalidade e viabilidade técnica e jurídica do acordo para se destacar as questões relativas à identidade e, em especial, ao papel da língua na construção dessas identidades.

Contextualização e apresentação do corpus

Por fim, são identificadas as duas principais perspectivas de estudo que conduzirão a análise das diferentes representações identitárias construídas para Portugal ao longo do corpus. A primeira delas consiste em refletir sobre (1) o modo como diferentes elementos são articulados nesse processo de construção de uma ou múltiplas identidade/s para Portugal; já a segunda procura entender (2) como essas identidades são construídas a partir do contraste com outras entidades nacionais ou supranacionais. O objetivo deste capítulo é, portanto, delinear um contexto histórico-cultural alargado que servirá de base para a reflexão sobre as identidades nacionais portuguesas, tendo sempre como ponto de partida a questão da língua, e suas diferentes estratégias de construção, que será desenvolvida nos capítulos seguintes. Ao mesmo tempo, visa apresentar, justificar a escolha e descrever em detalhes o corpus já identificado.

Portugal: contexto histórico-cultural

Portugal, localizado a Sul na Europa Ocidental, faz divisa com um único país, a Espanha, que se espalha a Leste e Norte do seu território. A Oeste e Sul, está o oceano Atlântico. Desde a criação do Condado Portucalense, em 1096, e da estabilização das fronteiras portuguesas – processo que transcorre especialmente entre 1128 e 1297, não obstante as disputas travadas ao longo do tempo e eventuais instabilidades – até ao Portugal de hoje, o país passou por uma série de experiências que marcaram sua história, como não poderia deixar de ser. Embora o período que aqui nos interessa seja o do século XIX em diante, em função do seu relevo para o desenvolvimento dos nacionalismos europeus, importa ressaltar um momento histórico anterior, que desempenhou e ainda desempenha papel de destaque na construção da identidade portuguesa: os ‘descobrimentos’ ou, em outras palavras, as grandes navegações. Os descobrimentos portugueses têm início com a conquista de Ceuta, na África, em 1415, e prosseguem ao longo dos séculos XV e XVI. Um dos países pioneiros nas navegações, Portugal realiza uma série de conquistas, estabelecendo novas rotas comerciais e dando início a um império colonial que ampliaria seu domínio para Ásia, África e América do Sul e só chegaria ao fim no final do século XX.

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Contextualização e apresentação do corpus

Esse período é relevante para a construção da identidade portuguesa, quer pela circunstância material que encerra – a multiplicação de contatos com um outro, a construção da ideia desse outro e, de forma interdependente, da noção do eu – quer pela perspectiva simbólica, que será explorada mais à frente. Feita essa ressalva, avançamos no tempo para encontrarmos Portugal no início do século XIX, envolvido em tensões com a França, que acabariam levando à transferência da família real portuguesa e sua corte para o Brasil, então colônia de Portugal, em 1808, numa tentativa de escapar às invasões napoleônicas e salvaguardar a soberania do país. Os franceses acabariam por ser vencidos com a ajuda dos aliados ingleses, permitindo o retorno do rei à Portugal em 1820. Em 1822, o país perde sua maior colônia, com a declaração de independência do Brasil, embora este siga sob o domínio do filho do monarca português, D. Pedro, que se torna seu primeiro imperador. Este é também o ano da primeira constituição portuguesa, em cujos dispositivos já se encontram referências aos conceitos de nação e pátria. Enquanto a nação figura como fonte de soberania, a exaltação da pátria se materializa num dever constitucional – “amar a pátria” – e na valorização e celebração do seu passado, da sua história, da sua cultura, da sua existência propriamente dita (Sobral, 2012: 60-61). Ao longo das décadas seguintes, a Inglaterra passa a exercer cada vez mais poder sobre o agora enfraquecido império português, culminando no incidente de 1890 – o ultimato inglês – que põe fim às pretensões expansionistas de Portugal na África. Portugal é obrigado a abdicar do chamado “mapa cor-de-rosa”, pelo qual reivindicava o território que se estendia entre Angola e Moçambique, colônias portuguesas à época. Esse episódio põe em evidência a situação de Portugal que, embora potência colonial, há muito tinha perdido força face aos impérios coloniais da época. Essa debilidade transparece em alguma medida na caracterização feita por Boaventura de Sousa Santos (2001: 26-29) do colonialismo português como um “colonialismo subalterno”. Com tal expressão, o autor afirma o papel de Portugal como país colonizador e simultaneamente relativiza seu poder em função da fragilidade da posição portuguesa no cenário europeu, marcada, sobretudo, pela dependência de Portugal em relação à Inglaterra. O século XIX é apontado como sendo o do apogeu dos nacionalismos na Europa, como já referido no primeiro capítulo. Em Portugal, é também o momento em que o poeta Camões é alçado à posição de herói nacional, três séculos após sua morte. Camões, frequentemente considerado o “pai da língua portuguesa”, é o autor de uma das mais poderosas representações literárias da identidade portuguesa. Trata-se do poema épico Os 109

Contextualização e apresentação do corpus

Lusíadas, publicado em 1572, onde o poeta narra as peripécias portuguesas durante as grandes navegações, exaltando Portugal e os portugueses. Ao longo do século XIX e em paralelo à criação, na esfera política, dos chamados Estados-Nação, ganham também destaque as chamadas culturas nacionais. O papel dos Estados, nesse processo de construção, consiste em diferenciar a chamada cultura nacional em relação àquilo que lhe é exterior, ou seja, além-fronteiras, e homogeneizar essa cultura em seu interior, ou seja, no interior do território nacional (Santos, 2001: 25-26). A construção das chamadas línguas nacionais também marca o século XIX, pois estas são elementos integrantes, ou melhor, ferramentas poderosas na construção de Estados nacionais, à medida que diferenciam e essencializam seus falantes, como afirma Lopes (2013: 22), a partir de Blommaert e Rampton. Tal processo de construção promove a associação – de cariz político, social, ideológico e também econômico – entre uma língua e uma nação, que depois será exportada para fora da Europa com o colonialismo. Importa também observar que tal processo, em alguma medida, atua como elemento conformador de ideologias linguísticas que são utilizadas na construção de identidades culturais e nacionais ainda hoje, “naturalizando” diferenças (Lopes, 2013: 27) e colaborando para o exercício de um mecanismo de inclusão/exclusão fundado na percepção da identidade e da diferença, como discutido no capítulo dois. Em Portugal, a língua portuguesa é alçada à posição de língua oficial do reino ainda no final do século XIII, por D. Dinis, à época da estabilização das fronteiras físicas. O idioma português conforma, assim, pouco a pouco, mais um fator de diferenciação entre Portugal e seu entorno. No século XVI, surgem as primeiras gramáticas de língua portuguesa – a de Fernando de Oliveira (1536) e a de João de Barros (1540) –, que já reconhecem a ligação entre língua e identidade (Sobral, 2012: 51). Com os descobrimentos, Portugal difunde o português pelo seu império colonial, levando-o a três continentes: América do Sul, África e Ásia. A expansão da língua nas colônias leva a um aumento exponencial do número de falantes, que sobrevive ao império e permanece nos dias de hoje. Segundo dados divulgados em 2013 pelo Observatório da Língua Portuguesa, há mais de 240 milhões de falantes de Português espalhados pelo mundo, sendo língua oficial em oito países: Angola (19,8 milhões de habitantes), Brasil (194,9 milhões), Cabo Verde (496 mil), Guiné-Bissau (1,5 milhões), Moçambique (23,3 milhões), Portugal (10,6 milhões), São Tomé e Príncipe (165 mil) e Timor-Leste (1,1 milhões). Retomando a retrospectiva histórica, em Portugal, o início do século XX não é menos turbulento: em 1908, o rei D. Carlos e seu filho e herdeiro são assassinados em plena praça 110

Contextualização e apresentação do corpus

pública, pondo fim à monarquia portuguesa. Segue-se um breve período de República (19101926), que será interrompido por um golpe militar, e, em 1933, a instituição do chamado Estado Novo, que dá início a uma das mais longas ditaduras da Europa. Durante esse período, a identidade nacional portuguesa é construída em torno do discurso oficial de valorização do passado e das glórias do império, que, em alguma medida, assume os contornos de uma espécie de culto à nação. É o Portugal singular que se afirma, bem representado pelo slogan oficial “orgulhosamente sós” (Sobral, 2012: 79), em discursos tão frequentemente veiculados pelos meios de comunicação de massas, então sob controlo estatal. Mas não só em Portugal a mídia desempenha papel relevante na construção dos nacionalismos. Em toda a Europa, com a popularização dos meios de comunicação de massas – em especial a rádio, a televisão e o cinema –, novas formas de mobilização e envolvimento são desenvolvidas. Esses processos permitem, de algum modo, que o nacionalismo se popularize por meio da difusão dos seus ideais – antes partilhados apenas por uma elite ou grupo – por toda a sociedade. A criação, fortalecimento e centralização de instituições públicas, como o exército e a escola, aliadas aos movimentos de valorização de uma suposta tradição nacional – com a construção de monumentos e a organização de eventos públicos, por exemplo – são alguns dos recursos utilizados nesse processo (Sobral, 2012: 76-77; Hobsbawm, 1994) A primeira metade do século XX é também lembrada pelas duas grandes guerras que marcaram a história da Europa e do mundo, e que servem de substrato para o projeto da União Europeia, que, por sua vez, começa a se desenvolver a partir do seu fim. Embora Portugal tenha participado do primeiro conflito (1914-1918) ao lado dos Aliados, mantém-se oficialmente neutro em relação ao segundo (1939-1945). Nas décadas seguintes, Portugal mergulha na guerra colonial – a chamada Guerra do Ultramar, iniciada em 1961, envolvendo Angola, Guiné-Bissau e Moçambique – numa tentativa de manter suas colônias na África, no momento em que o colonialismo parecia ter chegado ao fim – ou, numa outra perspectiva, no momento em que este se transformava em uma nova forma de exploração: o neocolonialismo. A guerra colonial marca os extertores do regime ditatorial português, que chega ao fim em 1974, com a Revolução dos Cravos, depois de 41 anos de existência. Representa, também, o fim do império português com as independências de Angola e de Moçambique, em 1975, e também do Timor, que, no entanto, é invadido e violentamente ocupado pela Indonésia nesse mesmo ano, só alcançando sua independência em 2002. 111

Contextualização e apresentação do corpus

Com o fim do império, cerca de 500 mil portugueses precisam ser repatriados, após abandonarem às pressas as antigas colônias – são os chamados “retornados”. Muitos nascidos e criados nas colônias, com outras vivências e culturas, outros modos de falar, outras expectativas e crenças, nunca haviam pisado em solo português. Mais uma vez, uma certa ideia de identidade nacional vem a tona, agora na construção de um eu verdadeiramente português e de um outro, retornado. O país passa por profundas transformações em todas as esferas da vida em sociedade. O início dos anos 80 representa um forte abalo na identidade portuguesa: por um lado, o encolhimento do território com a dissolução do império português e do papel colonial; por outro, o processo de integração na União Europeia (Magalhães, 2001: 310). Após cinco séculos voltado para o Atlântico, Portugal vira-se para o continente, numa rotação de 180º. Embora ainda não saiba que papel desempenhará nesse contexto, parece evidente que este será diametralmente distinto do de Portugal imperial; novas relações de poder serão e deverão ser estabelecidas. A mudança do Portugal imperial para o Portugal europeu é uma mudança de paradigma. Segundo Sobral (2012: 79), tais mudanças afetam profundamente a noção de identidade portuguesa. A glorificação do passado imperial, da “singularidade portuguesa” e da “vocação atlântica” dá lugar ao Portugal europeu, cuja nova identidade ainda precisa ser forjada. Nesse contexto de inserção de Portugal na Europa, vigora uma sensação generalizada de fragilidade, de perda de soberania e, em última instância, de perda de poder em relação ao seu entorno. Segundo Sobral (2012:91), isso advém da percepção da fragilidade da posição do país na tomada de decisões no âmbito da União Europeia, derivada da multiplicação dos contatos via circulação de pessoas, dados, informações. A adesão de Portugal à União Europeia – à época ainda Comunidade Econômica Europeia (CEE) – só acontecerá em 1986. Passado o período de euforia, marcado pelo afluxo de capitais europeus, pela modernização da infraestrutura nacional e pelo desenvolvimento social e econômico, Portugal imerge na crise financeira que se alastrou pela Europa neste início de século, entre planos de austeridade, reduções de salários, cortes de benefícios, aumento de desemprego, entre tantas outras medidas. Depois de passar pela mais longa ditadura da Europa ocidental, vivenciar o fim do império colonial e a chegada dos retornados, aderir à União Europeia e ao euro, Portugal atravessa o século XX e aterra no século XXI para se digladiar com uma crise econômico-

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Contextualização e apresentação do corpus

financeira que ainda não chegou ao fim e cujos desdobramentos, no que diz respeito ao futuro do projeto europeu, ainda não se pode precisar. Chegamos, assim, ao Portugal de hoje, que, segundo Eduardo Lourenço (1988), ainda vive de glórias passadas, do sucesso da sua empreitada marítima. Num texto de grande repercussão – O Labirinto da Saudade, publicado em 1978 – o autor explora essa construção, que, de certo modo, ainda parece atual. Segundo Lourenço, a identidade portuguesa é em muito devedora do “ter sido”, ou seja, daquilo que já foi, numa referência ao passado imperial, construindo para si uma imagem irreal e mitificada, incapaz de refletir sobre o presente e marcada por um sentimento de ausência de sua “própria realidade”, que se arrasta desde o século XIX (1988: 65). Por sua vez, José Gil (2008), ao refletir sobre a identidade portuguesa, destaca o impacto da vivência da ditadura que, segundo o autor, ainda se faz presente num país que resiste a se “inscrever” e vive ainda numa atmosfera de “medo”. Inscrever-se, na perspectiva do autor, implica atuar sobre e transformar as relações sociais e também nós mesmos, ou seja, atuar sobre o mundo ao redor e os espaços que ocupamos nele. Já a atmosfera de medo é entendida como um sentimento difuso e impreciso, um medo ao qual não se consegue atribuir verdadeiro sentido ou sequer identificar sua fonte, o que torna impossível resistir-lhe. Para Boaventura de Sousa Santos (2001), Portugal ocupa hoje na Europa uma posição intermediária – a mesma que já ocupava durante o período colonial. Não se enquadra no grupo dos países em desenvolvimento, tão pouco no dos países desenvolvidos, ocupando uma posição caracterizada pelo autor como “semiperiférica”. Esse deslocamento em relação ao centro implica perda de poder, caracterizada pela relação de dependência em relação ao cenário internacional, enfraquecimento da autonomia ou soberania nacional e pouca capacidade de influência no cenário europeu. Independentemente das diferentes perspectivas adotadas, é possível encontrar elementos que mostram certa consistência em suas respectivas representações da identidade portuguesa: a valorização do passado ou mesmo uma espécie de fixação por ele; boa dose de imobilidade ou incapacidade de ação que poderia se traduzir num espécie de desligamento do presente; e uma debilidade generalizada ou fragilidade da posição no cenário internacional, onde Portugal parece estar sempre a meio do caminho – nem um coisa, nem outra, sempre um quase que não se resolve, mas que, por outro lado, pode também indicar uma tentativa de alcançar esse presente fugidio. Quanto à língua portuguesa, a sua importância hoje pode ser inferida pela criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 1996, que, em sua formação 113

Contextualização e apresentação do corpus

inicial, reuniu Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Em 2012, Timor-Leste viria se juntar ao grupo e, em 2014, seria a vez da Guiné Equatorial aderir à CPLP. Mas, se o universo de falantes da língua portuguesa alcança cifras tão altas, colocando o português entre as dez línguas mais faladas do mundo, sua posição na Europa parece ser diferente. Apenas a título de exemplo, vale referir esta passagem do livro do jornalista inglês, radicado em Portugal, Barry Hatton, sobre o país e sua história, que destaca o estranhamento provocado pelo contato do português no espaço europeu:

A língua singular é outra desvantagem para um conhecimento mais íntimo de Portugal. Se viajarem pela Europa, as pessoas não conseguem identificar a língua que estão a falar e muito menos o que estão a dizer. Os sobrolhos erguem-se quando ouvem falar português, como se estivessem a tentar localizar um raro odor ou paladar. (Hatton, 2011: 28).

Se, no entanto, a língua portuguesa pode provocar certo estranhamento no espaço internacional, a relação de Portugal, e dos portugueses, com sua língua parece inspirar um sentimento de forte ligação e proximidade. O aniversário da morte de Camões, dia 10 de junho, é também o dia de Portugal e da comunidade portuguesa. Camões, aliás, dá nome a ruas e praças um pouco por todo o país. Na capital, Lisboa, uma estátua do poeta ocupa o largo que leva o seu nome, na região do Chiado, um dos pontos turísticos da cidade, onde também se encontra a estátua de António Ribeiro Chiado, poeta do século XVI, contemporâneo de Camões. Outros escritores lhes fazem companhia: uma estátua de Fernando Pessoa, que, ao lado de Camões, é uma das grandes referências literárias portuguesas, fica em frente ao café “A Brasileira”, numa das esquinas da rua Almeida Garrett (1799-1854), e, próximo dali, econtramos uma estátua de Eça de Queirós (1845-1900). E, assim como Garrett e Eça, há muitas outras referências literárias na cidade, como, por exemplo, a Fundação Saramago, que leva o nome do único escritor português vencedor do prêmio Nobel até esta data. Nesse sentido, os célebres versos de Pessoa, tão frequentemente relembrados, parecem bem representar o sentimento de boa parte dos portugueses em relação à língua: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa” (1982, I: 17). Mais do que a associação entre língua e identidade nacional, ocorre aqui uma equiparação ou mesmo uma sobreposição desses dois conceitos.

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Contextualização e apresentação do corpus

O acordo ortográfico e os artigos de opinião

O acordo ortográfico, objeto dos textos que serão analisados a seguir, foi aprovado em 12 de outubro de 1990 pela República Popular de Angola, República Federativa do Brasil, República de Cabo Verde, República da Guiné-Bissau, República de Moçambique, República Portuguesa e República Democrática de São Tomé e Príncipe, no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Intervieram no processo a Academia das Ciências de Lisboa, a Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, com a adesão de uma delegação de observadores da Galiza. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO90) visa à unificação da grafia do português nos diferentes países onde este é língua oficial. Entre os objetivos principais destacam-se a “defesa da unidade essencial da língua portuguesa” e do “seu prestígio internacional”, como explicitado no texto do acordo, publicado no website da CPLP. Concebido como tratado internacional, o AO90, à época da publicação dos artigos de opinião aqui analisados (de 01 de janeiro a 31 de dezembro de 2012), havia sido ratificado por Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor. Em Moçambique, embora o acordo tenha sido ratificado pelo governo em junho de 2012, sua ratificação pelo parlamento seguia pendente em maio de 2015. Até essa mesma data, Angola não havia ratificado o acordo. O AO90 entrou em vigor em Portugal em 2009 e foi introduzido no sistema educativo português no ano letivo de 2011/2012, passando a ser obrigatório a partir de maio de 2015. Para este estudo de caso, foram analisados os artigos de opinião publicados em jornais de notícias portugueses sobre o acordo ortográfico ao longo do ano 2012, como já referido. A seleção dos jornais pesquisados baseou-se nos critérios de (i) maior tiragem e (ii) maior amplitude de cobertura (vide anexo 1) com o intuito de identificar textos com potencial de repercussão ampliada, quer em função de sua disponibilidade em número de exemplares quer em diferentes geografias. Por artigo de opinião entende-se os textos assinados individualmente, que consistem na manifestação explícita do pensamento e da opinião de um determinado autor. Dessa forma, portanto, excluem-se os textos predominantemente noticiosos e os editoriais, que, embora sejam de natureza opinativa, representam a opinião de uma dada instituição (nesse caso, do respectivo jornal) e não de seu autor.

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Contextualização e apresentação do corpus

Segundo os critérios acima indicados (tiragem e cobertura), foram identificados sessenta e três artigos de opinião, publicados em cinco jornais: Público (55,5%), Diário de Notícias (27,0%), Expresso (9,5%), Sol (4,8%) e Correio da Manhã (3,2%). Verificou-se, portanto, a predominância incontestável do Público em número de artigos publicados, seguido pelo Diário de Notícias, com pouco menos de metade do primeiro. Para fins de comparação entre jornais diários, segue-se, ao Público e ao Diário de Notícias, o Correio da Manhã, com apenas dois artigos publicados – número inferior, inclusive, ao dos dois jornais semanais também contemplados no gráfico abaixo, Expresso e Sol:

Público

35

Expresso

6

Sol

3

Correio da Manhã

Série1

2

Diário de Notícias

17 0

10

20

30

40

Quadro 4.1 – Total de artigos por jornal analisado

Quanto aos jornais com periodicidade semanal, a liderança coube ao Expresso, que publicou seis artigos, ou seja, o dobro dos artigos publicados pelo Sol. Uma vez que não se considerou a extensão dos textos, quer em função do número de caracteres, quer em função da mancha gráfica (espaço físico que o texto ocupa no jornal, incluindo fotos, ilustrações, etc.), não parece razoável fazer aqui quaisquer outras inferências a partir de tais números. Entre os sessenta e três artigos publicados, foram identificados quarenta e três autores diferentes, dentre os quais 83,7% publicaram um único artigo e 16,3% publicaram dois ou mais. Nesse último grupo, destacam-se Nuno Pacheco, com nove artigos; Francisco Miguel Valada, com cinco artigos; Vasco Graça Moura, também com cinco artigos; e Alberto Gonçalves, Ferreira Fernandes, Octávio dos Santos e Rui Miguel Ventura Duarte, com dois artigos cada, como indicado no Quadro 4.2. Da análise desses dados, depreende-se facilmente a proeminência de Nuno Pacheco, ocupando a liderança absoluta do ranking, com nove artigos publicados sobre o AO, seguido por Francisco Miguel Valada e Vasco Graça Moura, empatados em segundo lugar, com cinco artigos cada, sendo os autores contrários à aplicação do acordo. À época da publicação dos 116

Contextualização e apresentação do corpus

artigos analisados, Pacheco ocupava o cargo de editor do jornal Público e Graça Moura respondia pela presidência da Fundação Centro Cultural Belém (FCCB).

Vasco Graça Moura

5

Rui Miguel Ventura Duarte

2

Octávio dos Santos

2

Nuno Pacheco

9

Franciso Miguel Valada

Série1

5

Ferreira Fernandes

2

Alberto Gonçalves

2

Outros(*)

36 0

10

20

30

40

Quadro 4.2 – Total de artigos publicados por autor

Considerando-se a dispersão dos artigos ao longo do ano, verificamos uma concentração de matérias em fevereiro (31,7%), em boa parte justificada pela repercussão de uma decisão tomada por Vasco Graça Moura, que determinou a não utilização do acordo ortográfico no Centro Cultural de Belem, instituição a que presidia, como já referido. Essa decisão foi divulgada a partir de 3 de fevereiro de 2012. Excluindo-se o mês de fevereiro, pode-se identificar alguma paridade no total de artigos publicados em janeiro, março, abril e agosto, que gira entre seis e sete, representando, portanto, bem menos da metade do total de artigos publicados em fevereiro, o que atesta a sua atipicidade. Por fim, nos demais meses (maio, junho, julho, setembro, outubro, novembro e dezembro) registrou-se dois ou três artigos cada – com exceção de outubro, com apenas um texto publicado, como indicado no Quadro 4.3. Embora não seja objeto desta pesquisa analisar a posição dos respectivos autores sobre o acordo ortográfico, o mapeamentos de tais posições pode ser útil na caracterização do contexto de análise. Por esse motivo, os artigos de opinião foram classificados em favoráveis (A Favor) ou contrários (Contra) ao AO90. Nos casos em que o autor não assume uma posição ou, pelo menos, não o faz com clareza, os artigos foram classificados com “N.D.”, numa referência à não determinação de uma posição, como registrado no Quadro 4.4.

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Contextualização e apresentação do corpus

DEZ NOV OUT SET AGO JUL JUN MAI ABR MAR FEV JAN

3 3 1 3 7 2 2 2

Série1 7 6 20 7

0

5

10

15

20

25

Quadro 4.3 – Dispersão dos artigos ao longo do ano

N.D.

6

A Favor

8

Série1

Contra

49

0

10

20

30

40

50

60

Quadro 4.4 – Posição assumida face ao AO90

Na grande maioria dos artigos, portanto – 77,5% de um total de sessenta e três textos – , os respectivos autores assumiram posição contrária ao AO. Apenas em 12,7% das ocorrências os autores adotaram postura favorável ao acordo. Nos casos restantes (9,5%), os autores propositadamente não assumiram uma posição ou não foi possível identificá-la com clareza. Uma vez concluída a apresentação do corpus numa perspectiva quantitativa, importa agora justificar sua escolha. A opção por artigos cujo tema central é o AO visa garantir, em alguma medida, a existência de uma relação entre língua e identidade nacional, ou seja, se for possível encontrar argumentos de natureza identitária em artigos sobre o acordo, já teremos aí

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Contextualização e apresentação do corpus

a garantia de existência de alguma relação entre língua e identidade, direta ou indireta, explícita ou implícita, consciente ou inconsciente, deliberada ou não. Por sua vez, a opção pela análise do discurso midiático – e, neste caso, estritamente do discurso produzido e reproduzido pela mídia impressa e publicado também em meio digital – deveu-se, prioritariamente, ao seu caráter público e à questão da acessibilidade. Ambos os critérios são, a princípio, inerentes ao discurso jornalístico, embora nem sempre se manifestem da forma esperada, como já discutido no capítulo anterior. Como alerta Hobsbawm (1990: 11), identificar a visão da sociedade em sua base, ou melhor, das pessoas comuns – e não dos governantes ou dos líderes de grupos engajados na atividade pública – é sempre difícil. A opção pela análise dos discursos da mídia representa uma tentativa de enfrentar essa dificuldade. Embora os artigos de opinião reflitam, a princípio, opiniões individuais, elas refletem pensamentos correntes e recorrentes na sociedade. Por esse motivo, a perspectiva de divulgação e abertura ao debate, característica da mídia e, em maior intensidade, dos artigos de opinião, dificulta o isolamento e permite uma visão mais alargada das percepções e ideais que configuram um certo contexto sociocultural. Em alguma medida, atuam como canal de acesso à pluralidade de discursos e representações que circulam numa dada sociedade, num período específico. Uma vez adotado o entendimento acima sobre o papel da mídia e dos artigos de opinião, busca-se, na análise do discurso, os recursos necessários para revelar e avaliar o potencial de significação que tais discursos realizam, seja de forma explícita ou implícita, intencional ou não. Nesse sentido, Blommaert e Verschueren (1992: 357) destacam a relevância do caráter implícito dos discursos ao afirmar que estes consistem em construções coletivas partilhadas, que impregnam o discurso individual sem que o autor nescessariamente se aperceba, adquirindo, assim, maior importância no contexto da análise:

“(…) more weitght is attached to the implicit frame of reference, the supposedly common world of beliefs in which the reports (or the editorial comments) are anchored, than to the explicit statements made by the reporters (or commentators). This approach is crucial for the investigation of widely shared ideologies”.

Com a análise dos artigos de opinião publicados em 2012, pretende-se identificar de que modos diferentes elementos são articulados nas representações da identidade nacional portuguesa construída e disseminada nesse período. Tais elementos funcionariam como espécies de marcadores identitários, quer pela frequência do seu uso nos discursos sobre 119

Contextualização e apresentação do corpus

identidade nacional em geral, quer pela sua relevância no contexto específico da identidade portuguesa, revelando as representações partilhadas e disputadas. Busca-se, também, analisar as diferentes posições assumidas por e ou atribuídas a Portugal na relação com outros países e entidades nacionais e supranacionais. Nesse contexto, o discurso jornalístico atuaria como uma espécie de discurso intermediário entre as esferas pública e privada – assim como entre instituições e pessoas ou entre especialistas e leigos, por exemplo – permitindo, dessa forma, alguma aproximação entre diferentes concepções e entendimentos que circulam num dado momento, numa certa sociedade, isto é, atuando no papel de mediador ou negociador. Muito se tem discutido sobre o papel da mídia na sociedade moderna. Em geral, esses discursos giram em torno da ideia de que a mídia, em algum grau, exerce papel estruturante da realidade e decisivo na formação da chamada opinião pública, como discutido no capítulo anterior. Sem nos alongarmos mais sobre o tema, que não é objeto desta pesquisa, parece razoável assumir que, em alguma medida, a mídia consiste numa plataforma interessante e relevante para se entender os valores e discursos recorrentes num dado momento, numa certa sociedade sobre uma questão específica: neste caso, a identidade nacional portuguesa e o papel da língua em seu processo de construção.

Mapeamento geral dos argumentos

A partir de uma primeira análise do corpus, procurou-se delinear os principais argumentos trazidos ao debate sobre o acordo ortográfico, tanto na perspectiva dos seus defensores como na dos seus opositores, na tentativa de melhor caracterizar esse corpus e de construir um enquadramento geral que servirá de base para as reflexões que serão desenvolvidas nos próximos capítulos. Para facilitar a identificação dos artigos que compõem o corpus, a cada um foi atribuído um código composto por duas letras – em referência ao jornal onde foi publicado – e dois números – em referência à sequência temporal da publicação. O artigo identificado como DN02, por exemplo, foi o segundo artigo, em ordem cronológica, publicado no jornal Diário de Notícias e selecionado para compor o presente corpus. Seguindo esse mesmo raciocínio, a sigla PB remete para o jornal Público, EX para o jornal Expresso, SL para o jornal Sol e CM

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Contextualização e apresentação do corpus

para o jornal Correio da Manhã. O quadro completo com toda a identificação dos artigos está disponível no apêndice A. Na discussão sobre o AO, alguns temas se destacam por sua frequência e relevância para os estudos de identidade. Para melhor entendê-los e analisá-los, tais temas foram divididos em três grupos, de acordo com sua natureza e com o enfoque que adotam: argumentos de caráter material (i), argumentos de caráter funcional (ii) e argumentos de caráter simbólico (iii). Estes últimos são os que mais interessam no âmbito deste estudo. Na perspectiva material (i), busca-se analisar o acordo em si mesmo, isto é, os argumentos que incidem sobre o texto do acordo – seu conteúdo, as regras que institui, etc. – e sobre o processo de elaboração, tramitação e aprovação. Em geral, os argumentos dessa natureza caracterizam-se pela tecnicidade – real ou aparente – do debate, marcado pela intervenção de juristas, linguistas e outros especialistas. Em relação ao seu conteúdo, sobressaem as questões sobre aspectos técnicolinguísticos, concretizadas, em geral, no debate sobre etimologia, que apontam, sobretudo, para os riscos de eventual perda de relações de origem entre as palavras, com impacto negativo para a educação e a aprendizagem do português europeu pelas gerações futuras, entre outros problemas. Nessa classe de argumentação, destaca-se o uso de um vocabulário muitas vezes afetivo, que remete para o contexto das relações de família. Considerando-se o contexto sociocultural português e o papel de destaque que a instituição da família ocupa dentro dele, tal recurso pode ser bastante interessante na análise das representações de identidade também na perspectiva simbólica. Afeto, responsabilidade, necessidade de proteção são alguns dos temas correlatos que surgem nessas construções, como se pode ver nos seguintes exemplos:





Um tal exemplo é apenas útil para quem estuda Latim, mas diz-nos de como a partir de famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e as escrevem pensam. (…) A simplificação destrói laços de família. [PB25, destaques acrescentados] A verdade é que ninguém se conforma, depois de ter sido obrigado a pôr um p em ótimo, agora lhe dizerem que afinal esse p (no qual nunca encontrou utilidade) não faz falta. Há quem argumente com esse pai tirano, o latim, e com a etimologia da palavra optimus. A palavra sem o p perderá a identidade. Alguns enxofram-se e dizem que lhes matamos o português! [EX04, destaques acrescentados]

Nesse quesito, opositores e defensores do acordo assumem posições relativamente claras: os defensores denunciam a perda da relação etimológica, que é identificada como negativa, com implicações para o ensino e o aprendizado da língua, entre outros. Os 121

Contextualização e apresentação do corpus

defensores, por sua vez, relativizam e minimizam a importância dessas alterações, apontando a reincidência das mesmas ao longo do desenvolvimento das línguas, evidente em acordos anteriores. Em relação ao processo de discussão e aprovação do acordo, o debate se divide entre a análise da tramitação do AO, concebido como tratado internacional, onde as questões técnicojurídicas ganham corpo, e o tema da legitimidade democrática, que questiona a participação de diferentes agentes sociais ao longo de todo o processo de elaboração, discussão, aprovação e implementação do mesmo. Seus críticos apontam falhas e irregularidades na tramitação do tratado internacional, concluindo pela ilegalidade da entrada em vigor do AO, ao mesmo tempo em que acusam um déficit de legitimidade democrática, apresentando o acordo como uma imposição, uma abusiva demonstração de força por parte de uma minoria contra a maioria da população portuguesa, resultado de um processo desenvolvido sem a devida publicidade. Já os defensores do acordo defendem a legalidade de todo o processo e destacam o envolvimento de diferentes atores sociais ao longo de sua gestação, assim como o longo período de desenvolvimento que representaria a possibilidade de intervenção de todos e a devida publicidade. Ainda nessa perspectiva de análise, vale a pena observar o embate entre especialistas e leigos, que levanta uma outra questão: quem pode – no duplo sentido de ter o poder de e estar capacitado para – opinar sobre o ocordo? De certa forma, o pêndulo da balança parece inclinar para o lado dos especialistas – sejam do campo da linguística, sejam do campo do direito –, que são percebidos como dotados de maior autoridade para falar sobre o tema em função do conhecimento que detêm. Não significa dizer que eles estejam em maioria entre os autores dos artigos de opinião analisados, mas sim que as representações que associam saber e poder prevalecem. Tal afirmação é corroborada, por exemplo, pela incidência dos casos em que o autor se esforça por justificar a sua intervenção, uma vez que não se reconhece como integrante do grupo de especialistas. Essa discussão parece refletir uma certa tensão que se estabelece em torno do acordo e da sua natureza técnica ou política, sem deixar de lado todas as posições intermediárias entre um campo e outro. Como regra geral, é possível estabelecer uma relação afirmativa entre a percepção do acordo como estando situado no campo técnico e a valorização do papel do especialista nesse debate ou mesmo a sua identificação como o principal interlocutor nesse processo.

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Contextualização e apresentação do corpus

Na perspectiva funcional (ii), a argumentação em torno dos objetivos do acordo centra-se na questão da unificação da grafia, na valorização da posição do português como língua internacional e na ampliação e fortalecimento do mercado editorial de língua portuguesa. É importante observar que tais argumentos são interdependentes, entendendo-se a unificação da grafia do português como uma estratégia ou meio de acesso dos outros dois objetivos. Em relação à uniformização da grafia, opositores e defensores do acordo ocupam posição antagônica. Para seus partidários, em geral, o acordo promove a unificação da grafia do português e esta, por sua vez, reforça a posição da língua nos contextos acima indicados (internacionalização e fortalecimento/ampliação do mercado editorial). Para seus opositores, os argumentos se dividem basicamente em dois: aqueles que reconhecem o papel do acordo na unificação da grafia, mas entendem que tal unificação não trará vantagens para Portugal, e aqueles que afirmam ser o acordo incapaz de promover a unificação ao prever numerosas exceções. Em relação à valorização do papel do português como língua internacional, as posições se dividem entre aqueles que reconhecem o potencial do acordo como elemento positivo nesse processo e aqueles que o negam – nesse segundo pólo, predominam os opositores do AO. Entre os que reconhecem o potencial, uma nova divisão se verifica: alguns veem essa valorização como benéfica, entendendo que ela se estende à língua portuguesa em sua integridade, enquanto outros veem-na com desconfiança, entendendo que a variedade brasileira é que será privilegiada nesse processo, em detrimento do português europeu. Em relação à ampliação e ao fortalecimento do mercado editorial, como regra geral, a grande maioria dos autores reconhece a implicação do acordo nesse campo, mas nem todos veem vantagem nessa relação. Entre os defensores do acordo, predomina a ideia de que o mercado editorial em língua portuguesa sairá valorizado, com benefìcio para todos os países de língua portuguesa. Entre os opositores, no entanto, tal valorização é entendida como vantagem – muitas vezes desleal ou indevida – para o Brasil, em função do peso/tamanho do seu mercado, em prejuízo para Portugal. Na perspectiva simbólica (iii), a argumentação em torno dos significados do acordo diz respeito ao seu conteúdo simbólico, isto é, ao papel que desempenha ou pode desempenhar no processo de construção identitário. Os argumentos que se destacam nesse quesito giram em torno da ideia da língua como fator de identidade individual e coletiva, mas também em torno dos conceitos de correção da grafia, de valorização ou supressão da diversidade linguística e de vinculação e afeto, como será explicitado a seguir. 123

Contextualização e apresentação do corpus

Em relação à associação entre língua e identidade, essa concepção é quase sempre afirmada – quer pelos partidários do acordo, quer pelos seus opositores. A divergência entre eles surge no que diz respeito à relação entre língua e ortografia. Para os que são contra o acordo, muitas vezes ortografia e língua são tomadas como sinônimos ou, ao menos, como conceitos fortemente interdependentes, e, portanto, a alteração ortográfica promovida pelo AO implicaria alteração da língua propriamente dita. Retomando a relação inicial de afirmação entre língua e identidade, essa linha de raciocínio leva à conclusão de que o AO afetaria a identidade associada àquela, sendo essa percepção sempre valorada negativamente. Para os que são a favor, em geral, os conceitos de ortografia e língua são entendidos como tendo naturezas distintas. As alterações ortográficas promovidas pelo acordo, portanto, não implicariam mudanças na língua propriamente dita. Nesse caso, o AO não afetaria a identidade, isto é, não repercutiria sobre as representações de identidade nacional prevalentes e recorrentes no Portugal de hoje. Em relação à noção de correção ortográfica, os argumentos que se destacam, em geral adotados pelos opositores do acordo, associam as mudanças ortográficas a erros, ou seja, escrever de acordo com a nova ortografia significaria escrever “com erros”. Sustentam tal argumento a ideia de que a norma-padrão adotada em Portugal, anterior ao acordo, é a melhor e a mais correta, o que, em sentido contrário, implica dizer que as demais seriam piores e menos corretas. Em alguns casos, são construídos discursos de aproximação ou mesmo de equiparação entre a nova norma – pós-acordo – e o português falado no Brasil. O português de Portugal, nesse caso, seria melhor ou mais correto do que o português do Brasil. Em relação à questão da diversidade linguística, essa via de argumentação é marcada por um consenso: a princípio, todos defendem a valorização da diversidade, ou seja, a deiversidade como uma mais-valia. As divergências partem daí, com o questionamento da influência do acordo sobre essa diversidade. Para alguns, ele a protege e respeita, pois, embora unifique as grafias, dá espaço para as diferenças concretizadas nas várias exceções que prevê. Para outros, especialmente para os opositores do acordo, ele suprime essa diversidade, isto é, representa uma ameaça a essa diversidade linguística e também cultural, associada aos países de língua portuguesa, ao promover uma espécie de apagamento das diferenças ou tentativa de homogeneização em sua busca pela unificação gráfica, como registrado no exemplo seguinte:



Eu não vou aderir nunca ao acordo ortográfico. Vou escrever sempre como aprendi e me ensinaram. Acho este acordo um embuste, feito de uma forma apressada e imposto, mas não

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Contextualização e apresentação do corpus

aceite. A diversidade numa língua é uma mais-valia cultural, todos os países lusófonos se entenderam na linguagem e escrita, as suas divergências sempre foram políticas ou de outra índole. [PB07]

É interessante destacar aqui uma dualidade que marca os argumentos contrários ao acordo no que diz respeito ao tema da unificação das grafias e das exceções previstas. Por um lado, há os que defendem que tais exceções são excessivas e comprometem o objetivo de unificação ortográfica e há os ignoram o tema destacando e afirmando essa unificação. No primeiro caso, no entanto, a unificação ortográfica parece ser vista de forma positiva, pois o seu não alcance seria justificativa para o descarte do AO. No segundo caso, a unificação ortográfica é vista de forma negativa, pois é exatamente o seu alcance que põe em risco a diversidade que se quer defender. Há, ainda, uma outra construção recorrente que pode ser classificada nesta categoria de argumentos simbólicos: é a noção de língua como patrimônio, bem ou propriedade. Nessas construções, a língua portuguesa é identificada como patrimônio de Portugal – concepção que deriva, ao menos em parte, e que se confunde com a perspectiva de Portugal como sendo a matriz da língua, tema que será melhor elaborado nos capítulos seguintes. Retomando, nesse contexto, o argumento de que o AO90 representaria uma aproximação entre o português europeu e o português do Brasil, com prejuízo para o primeiro, Portugal seria, portanto, usurpado do seu patrimônio, prejudicado em seus direitos de proprietário, desrespeitado em seu papel de matriz. São esses alguns dos argumentos apresentados pelos opositores do AO. Os partidários, em geral, ou recusam a ideia de propriedade ou a afirmam – mas, nesse caso, atribuindo direitos a todos aqueles que adotam o português como língua, e não exclusivamente a Portugal. Entre uns e outros – defensores e opositores –, trocam-se acusações: para os que são a favor, os que são contrários se considerariam os “donos da língua”; para os opositores, são os defensores do AO que se arvoram nesse papel ao quererem impingir o acordo aos demais. Em ambos os casos, no entanto, o argumento de fundo permanece, ou seja, a língua é representada como um bem. A afirmação acima, porém, não implica dizer que todos os autores que se valem dessa representação acreditam nela. Muitas vezes, um autor traz certo argumento à tona não para defendê-lo, mas sim para recusá-lo, num exercício de antecipação às possíveis críticas ou argumentos contrários que hipoteticamente lhe pudessem ser impingidos. Em linhas bastante gerais, são esses os argumentos mais frequentes (cf. Quadro 4.5), embora seja possível identificar muitos outros. Vale ainda a ressalva de que essas ideias e 125

Contextualização e apresentação do corpus

posições são quase sempre entrelaçadas e confundidas ao longo do debate, nem sempre sendo fácil – ou mesmo útil – identificá-las ou isolá-las sem comprometer sua interpretação. Daí a opção por se trabalhar a partir de perspectivas de análise e não a partir de uma divisão e classificação rígida de cada argumento.

Perspectivas

Temáticas Etimologia (questões técnicolinguísticas)

Material Tramitação e legitimidade do AO (questões técnico-jurídicas) Uniformização da grafia Internacionalização da língua portuguesa

Funcional

Fortalecimento e ampliação do mercado editorial Língua como fator de identidade Valorização do português europeu face aos demais (correção ortográfica)

Simbólica

Diversidade linguística como valor Língua como bem ou patrimônio Quadro 4.5 – Síntese dos argumentos

Perspectivas de Análise

Ao longo do corpus é possível identificar referências expressas e veladas a uma suposta identidade portuguesa, embora sempre variável. Algumas delas destacam o papel da língua, outras não. Essas identidades são construídas a partir de estratégias variadas e distintas dentre as quais se destacam a (1) articulação de determinados elementos – identificados no âmbito deste estudo como marcadores identitários, tema que será desenvolvido a seguir – na construção de identidades para Portugal e (2) a contraposição entre Portugal e outras entidades nacionais e supranacionais, elaborada por via da construção de posições de simetria e assimetria, caracterizadas por uma relação de convergência/divergência ou de vantagem/desvantagem, respectivamente. 126

Contextualização e apresentação do corpus

Na primeira perspectiva de análise (1), o ponto de partida foi a seleção de elementos que permitissem a identificação de discursos de identidade nacional em geral e da identidade nacional portuguesa em especial. Tal tarefa foi cumprida a partir da intersecção de duas ações: por um lado, a contagem de palavras do corpus a fim de identificar termos recorrentes; por outro, a elaboração de um vocabulário dos nacionalismos, isto é, de uma relação de termos mobilizados de forma recorrente na construção das identidades nacionais, como povo, nação, língua, cultura, etc. Como resultado desse procedimento, foram identificados sete grupos de palavras, cada um deles composto por uma palavra central e suas derivações, incluindo diferentes categorias morfossintáticas e declinações, assim nomeados: nação, pátria, povo, língua, cultura, identidade e matriz. Vale a pena, ainda, observar que a inclusão de matriz entre os elementos mobilizados na construção dos discursos de identidade nacional, neste contexto, está diretamente relacionada com o histórico colonial português, do qual o atual cenário de dispersão da língua portuguesa é profundamente dependente. Essa discussão será retomada no próximo capítulo. Nesta etapa da análise, não foi feita distinção entre os artigos favoráveis e desfavoráveis à adoção do artigo ortográfico, pois não é esse o tema que interessa a este estudo. Entende-se que, a partir da análise de textos que se posicionam sobre a questão da língua, a presença de elementos identitários por si só indica uma relação entre língua e identidade, como já referido. Esta será a análise desenvolvida no capítulo a seguir. Uma vez identificados os elementos mobilizados na construção de identidade, que, a partir de agora, serão referidos como marcadores identitários, estes foram devidamente identificados ao longo do corpus e, em seguida, analisados em seus respectivos contextos a partir das diferentes estratégias suportadas pela análise crítica do discurso e pela linguística sistêmico-funcional, como já identificado no capítulo anterior. Na segunda perspectiva de análise (2), parte-se da identificação de relações de contraste entre Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais no intuito de se refletir sobre os diferentes modos como os discursos e as representações da identidade nacional portuguesa são elaborados a partir da ativação de um mecanismo de construção de identidade e diferença, que é posto em causa no contato com o outro e, especialmente, com a imaginação desse outro. Com esse objetivo e, mais uma vez, valendo-se da contagem de palavras do corpus, foram primeiro identificadas as demais entidades nacionais ou supranacionais mencionadas, entre países, regiões, instituições, etc. A seguir, tais referências foram contextualizadas a fim 127

Contextualização e apresentação do corpus

de se identificar a existência ou não de uma relação de comparação entre elas e Portugal. Apenas os casos em que tal relação se afirmava foram selecionados. Essa perspectiva de análise será desenvolvida no capítulo seis.

Síntese

Neste capítulo, foi elaborada uma breve retrospectiva histórico-cultural, tendo Portugal como tema, na tentativa de se delinear um contexto bastante geral e abrangente que servirá de base para as análises a serem desenvolvidas nos capítulos seguintes. A seguir, possou-se à identificação do corpus de pesquisa: artigos de opinião sobre o AO90, publicados em jornais portugueses, em 2012. Este foi descrito, a princípio, numa perspectiva quantitativa: foram considerados o número de artigos publicados, seus autores, os veículos em que circularam, sua dispersão ao longo do tempo. Tal descrição foi então complementada com uma análise qualitativa, com foco no mapeamento dos principais argumentos trazidos à discussão sobre o acordo ortográfico. Tais argumentos foram divididos em três categorias em função de sua natureza e enfoque: argumentos de caráter material, argumentos de caráter funcional e argumentos de caráter simbólico. Ao final, procurou-se identificar as duas principais perspectivas de análise que serão desenvolvidas nos capítulos cinco e seis respectivamente: a articulação de marcadores identitários na construção de identidades para Portugal e a construção de posições de simetria e assimetria elaboradas por ou atribuídas a Portugal num contexto de contato e comparação com outras entidades nacionais e supranacionais.

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Capítulo 5 Análise dos marcadores identitários Representações de identidade nacional: marcadores identitários Pátria e nação Soberania Povo Cultura e identidade Matriz Consolidação da análise

Embora as teorias sobre os nacionalismos sejam bastante diversas, é possível identificar alguns elementos que são recorrentemente trazidos ao debate, consistindo numa espécie de vocabulário dos nacionalismos. Tais elementos funcionam aqui como marcadores identitários, ou seja, como indicadores de que o tema identidade nacional, em alguma medida, é trazido ao debate, contribuindo para a argumentação em torno da discussão sobre o acordo ortográfico. Este capítulo se inicia com a identificação de tais marcadores identitários, resultante, num primeiro momento, da contabilização de palavras do corpus dentre as quais são selecionadas aquelas compatíveis com a noção acima apresentada. O conjunto de palavras obtido, dividido em sete grupos, gira em torno dos conceitos de pátria, nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz, como já referido no capítulo anterior. A seguir, cada um desses grupos é analisado em função dos seus respectivos contextos e usos. Além da análise individual dos grupos, alguns deles são também analisados de forma contrastada em função da sobreposição de seu potencial de significação que, muitas vezes, faz com que sejam utilizados como se fossem expressões equivalentes ou mesmo sinônimos: é o caso de pátria e nação e também de cultura e identidade. Conclui-se a etapa de análise desenvolvida neste capítulo com a elaboração de um quadro-resumo dos principais resultados, tendo sempre em vista a relevância dos mesmos para a reflexão sobre os diferentes papéis desempenhados pela língua, em sua perspectiva simbólica, na construção das identidades nacionais na Europa de hoje, em geral, e de Portugal, em particular. O objetivo deste capítulo é identificar os diferentes discursos e representações construídos para as identidades nacionais, sejam elas genéricas ou específicas de/para Portugal, a partir da articulação de elementos que marcam a discussão sobre os

Análise dos marcadores identitários

nacionalismos, especialmente no contexto europeu, mas que são elaborados no contexto específico de uma discussão sobre língua e ortografia.

Representações de Identidade Nacional: Marcadores Identitários

Como já explicitado, a fim de se identificar as diferentes representações identitárias construídas ao longo do corpus, foram selecionados determinados elementos indicativos da presença de argumentos relativos à identidade nacional no âmbito do debate: os marcadores identitários. Nesse quesito, identificou-se sete conjuntos temáticos nomeados como pátria, nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz. Dentre os marcadores identitários acima identificados, a inserção da ideia de matriz é a que parece merecer maior atenção e necessitar de alguma justificativa quanto ao seu potencial na construção dos discursos de identidade. Antes de mais nada, tal expressão mostrou-se recorrente na contagem de palavras do texto, o que levou a uma maior reflexão sobre os possíveis significados que ela assume na argumentação sobre o acordo e especificamente no contexto português. Por um lado, a noção de matriz, como origem, parece remeter para o passado colonial de Portugal e, consequentemente, para o movimento de difusão – e também de imposição – da língua portuguesa a partir da metrópole para as colônias, ou seja, para os diferentes países que fizeram parte do chamado império colonial português e onde hoje a língua portuguesa ainda ocupa posição de prestígio como língua oficial. Essa referência parece importante no presente contexto; afinal, o acordo ortográfico – tema dos artigos de opinião em análise – consiste num acordo internacional sobre a ortografia do português firmado pelos diferentes países de língua oficial portuguesa, todos ex-colônias de Portugal. Por outro lado, mas de forma interdependente à reflexão anterior, matriz também remete para a ideia de molde ou modelo a partir do qual algo é copiado ou reproduzido. Nesse contexto, a matriz ganha em autenticidade, originalidade e correção, em comparação às cópias ou reproduções que são obtidas a partir dela. Existe uma relação de poder que se estabelece entre a matriz e seus derivados, com valorização do primeiro em relação aos demais. Além da ideia de matriz como origem e de matriz como molde ou modelo, podem se fazer presentes também as perspectivas da matriz como forma de controlo (matriz versus subsidiárias) ou como forma de exercício de direitos ou prerrogativa de autoridade (matriz 132

Análise dos marcadores identitários

como detentora de pleno direito sobre a autoria do produto). Em todos esses casos, no entanto, a ideia de matriz surge sempre caracterizada de forma positiva. Retomando os conjuntos temáticos, ou seja, os grupos de palavras (e seus derivados e flexionados) nomeados em função do tema ao qual remetem, embora cada um deles tenha sido analisado separadamente, optou-se por organizá-los em pares nos casos em que uma reflexão comparada mostrou-se interessante. Isso se deu com os grupos Pátria e Nação e também com os grupos Cultura e Identidade – conceitos, que muitas vezes, são sobrepostos ou mesmo tomados um pelo outro em certas situações. Tem-se, portanto, os seguintes conjuntos: (i) Pátria e Nação, (ii) Soberania, (iii) Povo, (iv) Cultura e Identidade e, finalmente, (v) Matriz, como indicado no Quadro 5.1, onde também se registra o total de ocorrências de cada marcador ao longo do corpus.

Grupo Matriz Identidade Povo Cultura Soberania Nação Pátria Total

Ocorrências Identificadas 9 11 23 55 5 34 15 152

Quadro 5.1 – Marcadores identitários

Neste momento inicial da análise, vale observar o predomínio das ocorrências dos marcadores de Cultura, que representam 36% do total, seguidas dos marcadores de Nação, com aproximadamente 23%, e dos marcadores de Povo, com 14,3%. Houve um maior equilíbrio entre as ocorrências de Pátria e Identidade, que reprentaram 9,3% e 8,1% do total, respectivamente. Neste primeiro recorte, portanto, a associação entre língua – aqui representada pela temática geral dos artigos analisados: o acordo ortográfico – e cultura é a que se sobressai. Por fim, resta ainda esclarecer que nem todas as ocorrências identificadas foram consideradas relevantes para este estudo e, portanto, devidamente analisadas. Para cada marcador, foram adotados critérios de exclusão específicos, que são identificados no início da análise de cada grupo. A partir de agora, portanto, serão consideradas apenas as ocorrências

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Análise dos marcadores identitários

que serão efetivamente analisadas. Para identificar o número de ocorrências que resistiram a essa primeira triagem, consulte-se o Quadro 5.2.

Grupo

Ocorrências Analisadas 9 9 20 43 5 21 13 120

Matriz Identidade Povo Cultura Soberania Nação Pátria Total

Quadro 5.2 – Marcadores identitários e contabilização de ocorrências

Pátria e Nação

No grupo de palavras pertencente ao marcador Pátria, foram analisadas treze ocorrências, do total de quinze identificadas – foram excluídas as incidências em que a palavra pátria surgia como exemplo de vocábulo, não em seu sentido próprio. Fazem parte desse grupo as categorias morfossintáticas: pátria/s (61,5%), patriota/s (7,7%), patriótico (7,7%), patriotismo/s (15,4%) e patriotísticas (7,7%), como indicado no Quadro 5.3.

Vocábulo Patriótico Patriotísticas Patriotismo/s Patriota/s Pátria/s Total

Ocorrências (%) 1 (7,7%) 1 (7,7%) 2 (15,4%) 1 (7,7%) 8 (61,5%) 13 (100%)

Quadro 5.3 – Pátria

Verificou-se o predomínio de referências à palavra pátria, no singular ou no plural, representando 61,5% do total, como acima indicado. Em relação às demais palavras, cada uma delas foi mencionada apenas uma vez, com exceção de patriotismo, que foi referido duas vezes. Nota-se, portanto, uma certa diversidade de vocábulos associados ao tema da pátria e, com exceção de “pátria”, algum equilíbrio entre as respectivas frequências no corpus. 134

Análise dos marcadores identitários

No que diz respeito à identificação de uma relação entre pátria e língua, com exceção de dois casos, esta se verifica em todas as demais ocorrências (84,6% do total), seja para afirmar uma interdependência entre tais conceitos, seja para negá-la, como indicado no Quadro 5.4. Nesse sentido, considerou-se como referência à língua tanto a menção expressa da palavra língua como da palavra ortografia – esta última referida tanto de forma direta (menção à “ortografia”) ou indireta (recurso à expressão “modo como se escreve”). Na maioria dos casos, essa interdependência é negada ou contestada, como exemplificado abaixo:

   

a minha pátria não é a língua portuguesa [DN02] a língua mudou e a pátria, obviamente, não acabou [SL01] Portugal continua a mesma pátria, apesar de já não se escrever como no tempo do… [SL01] diz a leitora, "a ortografia nada tem a ver com patriotismo (...)” [DN03]

Há apenas duas ocorrências em que a relação entre pátria e língua é afirmada, que são identificadas a seguir:

 

a língua é algo inegociável e patriótico [PB07] existe um profundo desacordo face a esta imposição convencional de renegar de um trago a forma como aprendemos a escrever e a falar a nossa pátria “pessoana” [PB16]

O recurso à ironia também se faz presente para criticar a associação entre língua e pátria, segundo a qual, apoiar as mudanças ortográficas estabelecidas pelo AO90 seria um ato antipatriótico, de traição à pátria, como se deduz da expressão “vende-pátrias”, utilizada, inclusive, como título de um dos artigos (DN03). Em outras palavras, defender a manutenção da ortografia do português anterior ao AO90 implicaria um ato de defesa da pátria, ou seja, de patriotismo. Essa expressão é ainda qualificada de forma pejorativa pelo qualificador “desavergonhados”, como explicitado a seguir: 

(…) esta questão está entrelaçada com conceções quase “patriotísticas”, permita-se-me esta “desfiguração”: parece existir um núcleo rebelde resistente, uma espécie de "maquisards" da ortografia, oposto aos desavergonhados "vende-pátrias" que aceitam submissamente o império do Acordo Ortográfico. [DN03]

Nessa representação, a crítica à posição assumida por aqueles que defendem tal argumento é reforçada pelo uso de um neologismo – a palavra “patriotísticas” –, destacado pelo uso de aspas, para caracterizar aqueles que defendem essa relação, associado ao recurso a um vocabulário que remete para um cenário de violência e conflito, ao período das grandes guerras – “maquisards” e “império”.

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Análise dos marcadores identitários

Considerando-se as duas ocorrências em que a palavra pátria não é relacionada com a língua, numa delas a pátria é personificada e transformada em agente, embora sua ação seja marcada pela irrelevância ou desperdício, como exemplificado abaixo:



escândalos fátuos com que a pátria sazonalmente se entretém [DN02]

Na outra, a palavra pátria é utilizada como modificador na locução “expressão pátria”, numa passagem, marcada pela ironia, em que a aprovação do acordo ortográfico é “equiparada” à instauração de uma ditadura, como aqui registrado:



Não teria bem esse nome [ditadura], claro, por causa da carga negativa que arrasta, mas seria uma coisa a bem do prestígio da expressão pátria, da sua unidade essencial, de uma política comum, que esta coisa de ter tantos partidos a dizer-se e desdizer-se a todo o momento (garantiam) é realmente uma canseira. [PB14, referência e destaques acrescentados]

Independentemente de se afirmar ou negar a relação entre pátria e língua, no entanto, o que realmente importa é o fato de tal relação se ter verificado. Por esse motivo, não se levou em conta o fato de tais relações serem construídas no âmbito de artigos que se posicionavam a favor ou contra o acordo – mais ainda, não se fez distinção entre as situações em que tais relações eram afirmadas e defendidas pelos respectivos autores e aquelas em que eram identificadas para, a seguir, serem contestadas, num exercício de argumentação. A opção por essa perspectiva de análise se justifica pelo fato de, neste estudo, buscar-se analisar as diferentes representações, construídas em torno da língua, de identidade nacional, e não o conteúdo do acordo ortográfico ou mesmo seu impacto, como já discutido anteriormente.

Estabelece relação

afirmativa negativa

2 (18,2%) 9 (81,8%)

Não estabelece relação Total

11 (84,6%) 2 (15,4%) 13

Quadro 5.4 – Relação entre pátria e língua

Retomando-se, agora, a análise do conjunto de ocorrências, apenas em dois momentos os autores estabelecem uma relação de proximidade e/ou posse com a pátria – uma particular (singular) e outra coletiva – ao se valerem dos pronomes possessivos “minha” e “nossa” respectivamente. É curioso notar que, em ambos os casos, já parcialmente citados acima, os

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Análise dos marcadores identitários

autores fazem referência ao poeta Fernando Pessoa, importante ícone da cultura portuguesa, como abaixo citado:

 

À revelia da proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a minha língua é [DN02] Pelo contrário, (…) não será despiciendo afirmar-se que existe um profundo desacordo face a esta imposição convencional de renegar de um trago a forma como aprendemos a escrever e a falar a nossa pátria “pessoana” [PB16]

Em resumo, as representações identitárias analisadas nesse grupo remetem predominantemente para a associação entre língua e pátria, que mais frequentemente é negada do que afirmada, mas também para a possibilidade de identificação singular ou coletiva entre o indivíduo e a sua pátria e/ou seus compatriotas. Passando-se à análise do marcador Nação, foram analisadas vinte e uma ocorrências de um total de trinta e sete identificadas – foram excluídas as incidências em que a nacional/is surgia como parte integrante da nomenclatura de um órgão, instituição, cargo público ou entidade diretamente relacionada com a discussão sobre o acordo ortográfico. Fazem parte desse grupo as categorias morfossintáticas nação (28,6%) e nacional/is (71,4%), como indicado no Quadro 5.5.

Vocábulo Nacional/is Nação Total

Ocorrências 15 6 21

Quadro 5.5 – Nação

Predominam, portanto, as referências ao modificador nacional, no singular ou no plural, em comparação com o substantivo nação, ao contrário do verificado para o marcador Pátria, por exemplo, no qual o uso do substantivo é que prevalece. Considerando-se a relação estabelecida entre língua e nação, esta se verifica em três (50%) do total de seis ocorrências de nação. Em duas delas, dá-se de forma explícita, em representações construídas de forma a intensificar o papel da língua na representação da nação, como demonstrado a seguir:



Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independente das fronteiras ocacionais dos Estados, mas é a língua que caracteriza e define uma Nação. [DN07, destaques acrescentados]

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Análise dos marcadores identitários



Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e económicos de integração e, consequentemente, de esbatimento das mais lídimas marcas identitárias dos povos, a língua constitui, sem dúvida, um dos últimos redutos do seu específico modo de ser e, por isso, um instrumento privilegiado da sua afirmação neste "admirável mundo novo" de "constelações pós-estaduais". [DN06, destaques acrescentados]

Na terceira ocorrência, tal relação é construída de forma implícita por meio da reprovação do comportamento de Portugal, referido no texto como “uma nação do Velho continente”, de permitir a “alteração leviana de algo tão básico na identidade, na estrutura, na actividade de um país como o é a ortografia” (PB35, citação incluída mais à frente). Ainda considerando-se apenas a palavra nação, esta é utilizada em sua acepção mais genérica nas duas citações acima (DN07 e DN06). Nas demais ocorrências, a palavra nação ora representa Portugal ora representa o Brasil, como indicado no Quadro 5.6. Quando representa Portugal, num caso, fá-lo para criticar a ingerência de um economista estrangeiro nos assuntos do país – repercutindo o teor de uma coluna assinada por Paul Krugman, identificado logo no início do texto, em função da sua nacionalidade, como “o americano Paul Krugman”, e publicada no jornal americano The New York Times –, comentários esses caracterizados como sendo uma interferência indevida do estrangeiro sobre o destino nacional:



É verdade que o sr. Krugman chegou a trabalhar no Banco de Portugal, mas um estágio de três meses em 1976 não habilita ninguem a conduzir a nação através de uma coluna no New York Times [DN11]

Nesse sentido, o uso da palavra nação (ou da expressão “dirigir a nação” em vez de “dirigir o país”, por exemplo) parece aumentar a distância entre o estrangeiro e Portugal, uma vez que o estrangeiro é exatamente aquele que não é nacional, ou seja, que não faz parte da nação. Do mesmo modo e pelos mesmos motivos, a caracterização do outro como estrangeiro parece automaticamente afirmar a sua falta de legitimidade para se manifestar sobre os desígnios da nação portuguesa, como se a atitude do economista, mais do que representar uma afronta à soberania nacional, configurasse uma situação absurda, consistisse quase numa impossibilidade fática.

Em sentido genérico Em referência a Portugal Em referência ao Brasil Total Quadro 5.6 – Acepções de nação

138

2 2 2 6

Análise dos marcadores identitários

No outro caso, já referido acima, Portugal é caracterizado como uma “nação do Velho Continente”, numa passagem em que o autor parece atribuir valor positivo à pertença de Portugal à Europa (o “Velho Continente”) ao repreender o país pela posição assumida face ao acordo ortográfico:



(…) indigna de uma nação do Velho Continente a alteração leviana de algo tão básico na identidade, na estrutura, na actividade de um país como o é a o ortografia, alteração essa que se traduz num autêntico “Processo Retro-ortográfico Sem Curso”. [PB35]

No exemplo acima, o decurso do tempo, ou seja, a antiguidade do país, parece assumir contornos positivos no discurso de afirmação de uma identidade nacional – representação suportada por muitas das teorias nacionalistas da maior parte dos séculos XIX e XX. Outra leitura possível da referência acima citada relaciona-se com a ideia de uma suposta superioridade europeia em relação aos demais continentes; afinal, a atitude de Portugal não é necessariamente indigna de uma nação qualquer, mas sim de uma nação “do Velho Continente”. Nas duas ocorrências restantes, a palavra nação representa o Brasil, ora como sendo a “nação com mais falantes de português”, ora como a “nação mais populosa”. Em ambas as referências, mencionadas num mesmo artigo (PB03), a superioridade numérica brasileira parece confundir-se com uma manifestação e/ou expressão de força. Tais referências surgem em situação de contraste entre Portugal e Brasil, em que este último aparece em posição de vantagem. Concluída a análise das ocorrências de nação, passa-se agora às ocorrências da palavra nacional, no singular ou plural, que é utilizada como modificador. Para melhor entender o seu uso, optou-se por classificar os substantivos modificados por ela em três grandes grupos assim denominados: (i) político-institucional, (ii) cultural e (iii) espacial, como referido no Quadro 5.7. Caracteriza-se o âmbito político-institucional como sendo o da infraestrutura pública, da atuação governamental, das esferas legal, social e econômica, do campo institucional e regulado. Nesse contexto, predomina a ideia de nação como instituição, como pessoa jurídica dotada de direitos e deveres, assim como a perspectiva da organização e também da burocracia, em geral associadas à figura do governo. Tal classificação destaca-se também por um maior grau de concretude, ou seja, é possível delimitar o conteúdo de expressões como legislação nacional, por mais vasta que esta seja, ou mesmo identificar a estrutura do sistema educativo nacional. Por outro lado, o mesmo não se pode dizer das expressões como 139

Análise dos marcadores identitários

“interesse nacional” e “dificuldades nacionais”, cujos conteúdos são difíceis de precisar de forma genérica, mas que ganham concretude em contextos específicos.

Classificação PolíticoInstitucional

Referências classe política nacional legislação nacional sistema educativo nacional interesse nacional dificuldades nacionais ordens jurídicas nacionais órgãos nacionais

Cultural

cultura nacional atitude nacional artistas nacionais vida nacional espaço nacional âmbito nacional

Espacial

Nº Parcial Total 1 1 1 9 3 (60%) 1 1 15 1 (100%) 1 3 1 (20%) 1 1 3 1 (20%) 1

Quadro 5.7 – Classificação de nacional/is

Caracteriza-se o âmbito cultural como sendo o das manifestações culturais propriamente ditas, das artes, tradições, costumes e comportamentos. Nesse contexto, predomina a ideia de nação como lugar de pertença e fonte de identidade. Parece haver também um maior grau de abstração envolvendo as expressões classificadas nesta categoria, sendo, à partida, impossível definir ou delimitar o conteúdo de cultura nacional ou atitude nacional típica, ou mesmo identificar quem poderia ser classificado como sendo um artista nacional. Caracteriza-se o âmbito espacial como sendo o da abrangência física, da ocupação de determinado território em seu sentido mais literal. Nesse contexto, predomina uma perspectiva física da nação, ao mesmo tempo delimitadora – da vida e de uma dada perspectiva (âmbito), por exemplo – e delimitada, isto é, confinada num espaço. Houve uma predominância de ocorrências classificadas na categoria políticoinstitucional (60%), em comparação com as categorias cultural (20%) e espacial (20%), as quais registraram o mesmo número de ocorrências. Uma vez que os artigos analisados têm como tema um tratado internacional firmado, no âmbito da CPLP, sobre a ortografia da língua portuguesa, partilhada por todos, essa predominância não é surpreendente. Talvez também por isso mesmo a única expressão recorrente seja “interesse nacional” – representando 33% (três 140

Análise dos marcadores identitários

de nove) do total das ocorrências no âmbito político-institucional e 20% (três de quinze) do total geral de ocorrências –, pois, em última instância, é isso que está em jogo num tratado internacional. No entanto, também podemos analisar esses dados como uma forma de ampliação da esfera da língua – afinal, é ela que motiva a discussão – isto é, como um indicador de que seu papel extrapola a questão da cultura, abarcando áreas como infraestrutura, organizaçãos políticas, etc. Ainda nesse sentido, vale a pena notar uma ausência: não há uma única ocorrência de nacional (ou nacionais) direta e explicitamente relacionada à língua – língua nacional ou ortografia nacional. Em resumo, as representações identitárias analisadas nesse grupo não remetem de forma significativa para uma relação direta entre nação e língua – mas, nos poucos casos em que o fazem, merece destaque a intensidade das representações construídas. Por outro lado, as ocorrências classificadas nesse grupo estendem-se por amplos e variados domínios da vida em sociedade, com detaque para o âmbito político-institucional. Contrastando os marcadores Pátria e Nação, verifica-se significativas diferenças no uso de ambos. Se, para pátria, a relação com a língua é construída de forma direta e recorrente, o mesmo não se dá com nação. O recurso aos possessivos como estratégia de apropriação e/ou identificação surge apenas associado à pátria, nunca à nação. Em pátria, predominam os usos como substantivo, enquanto, em nação, prevalecem os usos como modificador.

Soberania

No grupo de palavras identificadas como marcadores de Soberania, foram analisadas cinco ocorrências. Em três delas, o conceito de soberania aparece num contexto negativo, marcado pela ideia de enfraquecimento ou falta (“perda de soberania”, em PB03, e “soberania diluída”, em DN06) ou de limitação ou dificuldade de atuação (“jogos sinuosos de soberania”, em PB33). O tema da perda de soberania é bastante comum na atualidade, sendo, com frequência, relacionado com os processos de globalização e com o atual cenário geopolítico e econômico, marcado pela formação e fortalecimento de entidades e instituições supranacionais como a própria União Europeia. Nesse contexto, o poder de decisão da entidade nacional sofreria 141

Análise dos marcadores identitários

grandes perdas, uma vez que os resultados e as consequências de suas decisões já não poderiam ser confinados ao território nacional. Do mesmo modo, mas em sentido inverso, também não seria possível blindar o território nacional contra decisões tomadas por entidades estrangeiras. Do mesmo modo, a limitação ou dificuldade de exercício da soberania está associada à questão da perda ou limitação acima referida. Num cenário marcado concomitantemente pela acentuada interdependência entre países e pelo aumento da complexidade das relações de força entre eles, o modo de ação e realização desse poder soberano também é transformado. Perda de transparência, instabilidade de posições e menor previsibilidade dos efeitos e impactos decorrentes do exercício da soberania são alguns dos temas em destaque nesse processo de mudança. Além da ideia de perda ou enfraquecimento, a palavra soberania também é utilizada para caracterizar certos órgãos públicos (“órgãos de soberania”, em PB03). Nesse contexto, pode ser identificada como função e responsabilidade de certos órgãos de governo, identificados como sendo os tomadores de decisão no âmbito do AO. Nesse sentido, a expressão “órgãos de soberania” parece surgir como alternativa a “órgãos de governo”, no sentido da administração pública. A relação entre soberania e governo mais uma vez remete para o cenário dos Estados-Nação, aos quais cabe a função, a responsabilidade, o direito e a prerrogativa do exercício da soberania. Por fim, na última ocorrência analisada, a ideia de soberania extravasa o âmbito político-administrativo, sendo associada ao conceito de cultura na expressão “soberania cultural e não só” (PB35). Verifica-se, portanto, um alargamento do uso do conceito de soberania para a esfera da cultura nessa construção, em que soberania surge como equivalente a independência ou liberdade. Soberania cultural, portanto, poderia ser interpretada como a liberdade da qual goza um país para construir, definir, proteger a sua própria cultura, sem interferências externas indevidas. Nesse contexto, mais uma vez o processo de globalização poderia ser invocado como ameaça em função do potencial de homogeneização cultural que seria concretizado por via da imposição de uma cultura ou padrão-cultural dominante e pela destruição das culturas locais ou autóctones – tese desenvolvida e expressa no conceito de imperialismo cultural, já abordado no segundo capítulo. Simultaneamente ao alargamento acima mencionado, a ideia de soberania cultural parece implicar também uma aproximação, mesmo que indireta, entre a ideia de EstadoNação e cultura, à medida que ambos passam a partilhar essa mesma característica ou poder: a 142

Análise dos marcadores identitários

soberania. Essa aproximação condiz com o crescente papel da cultura na construção das identidades nacionais, tema que será retomado no desenvolvimento deste capítulo. Em resumo, as representações identitárias analisadas neste grupo remetem para a perda ou enfraquecimento da soberania estatal, afirmação recorrente em tempos de globalização e no contexto europeu. Também atribuem responsabilidade aos órgãos públicos, caracterizados como órgãos de soberania. Por fim, ao alargar o conceito de soberania para o campo da cultura, chamam a atenção para uma perspectiva crítica da globalização, que é aqui relacionada com o conceito de imperialismo cultural.

Povo

No grupo de palavras que constituem o marcador Povo, foram analisadas vinte ocorrências das vinte e três identificadas – foram excluídas as incidências nas quais popular/es e popularmente faziam parte do nome de um país ou remetiam à ideia de frequência de uso ou popularidade/apreço, e não especificamente ao conceito de povo. Fazem parte desse grupo as categorias morfossintáticas povo/s (80%) e popular/es (20%), como referido no Quadro 5.8.

Vocábulo Popular/es Povo/s Total

Ocorrências (%) 4 (20%) 16 (80%) 20 (100%)

Quadro 5.8 – Povo

Verificou-se a predominância das representações construídas em torno do substantivo povo – quatro vezes superior a incidência de popular/es. Nas dezesseis ocorrências de povo, destacam-se as construções em que algo é atribuído ao povo (43,75%), seguida das referências a povo como agente ativo/passivo (37,5%) e, por fim, pelas referências em que algo é endereçado/direcionado ao povo (18,75%), como indicado no Quadro 5.9. Destacaram-se as relações de atribuição (43,75%), seguidas de perto pelas relações de agência (37,50%). As relações de endereçamento, por outro lado, representam metade, ou menos, das ocorrências classificadas nas categorias anteriores (18,75%).

143

Análise dos marcadores identitários

Tipo de relação Atribuição

Referências



de (um) povo do/s povo/s de (outros) povos de cada povo Agência o/s povo/s o (próprio) povo os (outros) povos “de” (pelo) povo Endereçamento ao povo para (todos os) povos

Parcial

Total

2 3 7 1 (43,75%) 1 3 16 (100%) 1 6 1 (37,50%) 1 2 3 1 (18,75%)

Quadro 5.9 – Classificação de povo

Nas ocorrências em que algo é atribuído ao povo, este é representado como portador de vontade (em PB07), idiossincrasias, mundividências (ambas em PB25) e identidade (em DN06 e EX04). O povo é também o detentor de vida (em DN10) e língua (em PB26), e essa mesma língua é identificada como sendo sua propriedade e matriz (ambas em EX04). Por fim, o povo é personificado – ganha “costas” (em DN07) – sendo então atraiçoado, enganado, quando algo é feito às escondidas, sem que lhe seja permitida a participação, numa referência ao processo de aprovação do AO. Nas ocorrências em que o povo é agente, ora este é objeto de uma definição ou caracterização – sendo equiparado a uma comunidade (em DN07) ou considerado incapaz (DN10) – ora assume o papel de sujeito, desempenhando as funções de pensar (em PB25), acordar/concordar (em DN10), dar uso, utilizar (ambos em PB29) e cercar (DN08). No entanto, com exceção do verbo cercar, os demais processos parecem remeter para uma certa passividade, aqui entendida como ausência de iniciativa e, talvez, de mobilidade, isto é, de ação propriamente dita. Quanto a referência a cercar, parece também importante ressaltar a opção do autor pela expressão “cercado de povo” em vez da alternativa “cercado pelo povo”. A opção da preposição de em detrimento de por parece indicar uma espécie de despersonalização ou de coisificação do povo. Nesse contexto, o povo que cerca não parece representar uma ameaça, pelo contrário, é quase a matéria que cerca o orador, que também poderia estar cercado por árvores, cadeiras ou problemas. Mais uma vez, portanto, a possibilidade de ação parece esvaziada. Por fim, o povo como destinatário de algo, isto é, em situações em que algo é a ele endereçado, aparece sempre em posição desfavorável, caracterizada pela perda de poder ou capacidade. Nessas relações de endereçamento, o povo é invariavelmente subestimado, seja 144

Análise dos marcadores identitários

na perspectiva em que é obrigado a ceder – algo é imposto ao povo (em PB03) –, seja na perspectiva em que é incapaz de entender – algo é explicado ao povo (em PB11) – ou seja na perspectiva em que lhe é retirada a iniciativa da decisão – algo é considerado adequado ao povo (em DN06). Das quatro ocorrências de popular, em metade delas este é definido em oposição a erudito (em PB06 e PB33) e, na outra metade, é utilizado como modificador das massas (em PB01) e de dinâmicas (em DN10). O povo organiza-se em massas simultaneamente “dotadas de vigor e liberdade”, mas “ignorantes”, e que, por isso, precisam ser instruídas e iluminadas. É bem verdade que essa última afirmação é feita em tom de ironia, deixando claro que o autor não partilha dessa ideia, mas tal recurso, em vez de negar a suposta ignorância das massas, pressupõe, em alguma medida, que essa percepção é recorrente ou mesmo generalizada. Passando-se agora à análise do papel da língua nas representações construídas em torno do conceito de povo, pode-se identificar três linhas principais de argumentação, que giram em torno da concepção de língua como (i) elemento constituinte ou formador dos povos, (ii) manifestação ou expressão do modo viver e pensar ou (iii) bem, recurso ou propriedade dos povos. Em geral, tais noções são de alguma forma sobrepostas, não sendo possível estabelecer linhas divisórias claramente demarcadas. Ainda assim, no entanto, e apesar de todas as nuances e interdependências entre tais argumentos, essa divisão pode ser útil para se refletir sobre as relações estabelecidas entre língua e povo. São exemplos da perspectiva da língua como elemento constituinte ou formador dos povos os seguintes excertos:





Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e económicos de integração e, consequentemente, de esbatimento das mais lídimas marcas identitárias dos povos, a língua constitui, sem dúvida, um dos últimos redutos do seu [EstadoNação/povos] específico modo de ser e, por isso, um instrumento privilegiado da sua afirmação neste "admirável mundo novo" de "constelações pós-estaduais". [DN06, referências e destaques acrescentados] Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independente das fronteiras ocasionais dos Estados, mas é a língua que caracteriza e define uma Nação [DN07, destaques acrescentados]

São exemplos da perspectiva da língua como manifestação ou expressão do modo viver e pensar as representações abaixo:



A ideia espantosa de a escrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser negociada por academias e imposta por lei só poderia surgir num país de atitude aristocrata, hoje como na Primeira República. [DN10, destaques acresentados]

145

Análise dos marcadores identitários

 

Um tal exemplo é apenas útil para quem estuda Latim, mas diz-nos de como a partir de famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e as escrevem pensam. [PB25, destaques acresentados] A minha experiência de classicista, de passagem pela gramática comparativa (…), abriu-me à percepção das constantes e das volubilidades da semântica e dos étimos e, com isto, das idiossincrasias e mundividência de cada povo falante de uma das muitas línguas desta grande família. [PB25, destaques acresentados]

São exemplos da perspectiva da língua como bem ou propriedade dos povos as passagens a seguir:

 

Para o acordista, mesmo sendo um leigo ou exactamente por ser um leigo, o linguista é uma espécie que vai contra um século democrático em que a língua é do povo. [PB26, destaques acresentados] -, a entrada em vigor do AO deverá ser diferida para o momento em que, precisamente, a existência de um vocabulário comum, contendo as grafias consideradas adequadas para todos os povos da lusofonia, torne finalmente exequível o clausulado do Tratado. [DN06, destaques acresentados]

E, ainda, num último exemplo que parece ilustrar bastante bem o modo como os argumentos acima são entrelaçados:



Posto isto, o AO é importante porque aproxima da fonética uma série de palavras. E fá-lo, pela primeira vez, em função de um idioma que, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes. [EX04, destaques acresentados]

Em resumo, as representações identitárias analisadas neste grupo remetem para uma ideia de povo em posição de subalternidade ou passividade. Na maioria das vezes, surge como objeto, não como sujeito/ator. A relação entre língua e povo também é explicitada, sendo construída, em geral, de forma a valorizar o papel da língua na constituição e nos modos de ser e viver de um povo, que é representado como seu proprietário ou usuário privilegiado.

Cultura e identidade

Nos marcadores de Cultura, foram analisadas quarenta e três ocorrências das cinquenta e cinco encontradas – foram excluídas as incidências em que as palavras cultura e cultural surgiam como parte integrante da nomenclatura de um órgão, instituição, cargo público ou entidade. Fazem parte desse grupo as categorias morfossintáticas cultura (30,2%), cultural/is (60,5%) e culturalmente (9,3%), como indicado no Quadro 5.10. 146

Análise dos marcadores identitários

Vocábulo Cultural/is Cultura Culturalmente Total

Ocorrências (%) 26 (60,5%) 13 (30,2%) 4 (9,3%) 43 (100%)

Quadro 5.10 – Grupo cultura

Verificou-se, portanto, o predomínio do modificador cultural/is (60,5%), seguido por cultura (30,2%), com metade das ocorrências do primeiro. As referências a culturalmente, por sua vez, representam pouco mais de 9% do total de referências. Considerando-se apenas cultura, em oito ocorrências de um total de treze, a palavra ora modifica ora é modificada. Analisando-se esses oito casos, quando modifica (25%, ou seja, em dois entre oito casos), recai sobre os conceitos de homem e comunidade – “homem de cultura”, em DN04, e “comunidade de cultura”, em DN07. Quando é modificada (75%, ou seja, em seis de um total de oito casos), recebe os atributos de “abertura e fair play” (em DN10), “nacional” (em DN10), “portuguesa” (em PB03 e PB29) ou ainda os pronomes possessivos minha (em PB29) e nossa (em DN10), como se verifica no Quadro 5.11.

Modifica ou é modificada

É modificada

Possessivos Portuguesa/Nacional Abertura e ‘fair play’

2 3 1

Modifica

6

8

2

Outros Total

5 13 Quadro 5.11 – Classificação dos usos da palavra cultura

Considerando-se o grupo de ocorrências em que cultura é modificada (seis casos), registra-se o uso do pronome possessivo (33,3% dos casos) tanto para indicar uma relação de identidade entre o autor e a cultura à qual se refere (“minha cultura”), quanto para indicar maior proximidade entre o autor e os portugueses em geral (“nossa cultura”), condição que, neste contexto específico (jornal português de circulação nacional), poderia ser atribuída à grande parte dos leitores. Ainda no que se refere ao uso de possessivos, parece interessante destacar que a referência à “minha cultura” é feita por uma autora de nacionalidade espanhola, que afirma ser a língua portuguesa parte da sua cultura. Este é um dos argumentos dos quais a autora se vale para justificar sua manifestação sobre o AO, como se o seu texto consistisse em uma 147

Análise dos marcadores identitários

intromissão indevida pelo fato de ela não ser portuguesa ou, ao menos, de não ser falante nativa do português e, portanto, tal justificativa fosse necessária. Em três ocorrências (50%), a cultura é identificada como portuguesa, duas vezes de forma direta (“cultura portuguesa”), e uma vez de forma indireta (“cultura nacional”). Ainda, se nós considerarmos que a referência à “nossa cultura” foi feita por um autor português, teríamos de adicionar mais uma ocorrência à forma indireta, considerando, portanto, que do total de seis casos em que a palavra cultura é modificada, esse modificador remete para Portugal em 66,7% dos casos. É a partir da relação acima que são construídas as representações em que a cultura aparece em situação de risco ou perigo iminente, sendo tal risco manifestado expressamente ou assumindo os contornos de um alerta ou, ainda, de uma falta – é o que acontece em 30,8% das ocorrências (ou seja, em quatro de treze casos). A ideia central é a de que o AO, ao modificar a ortografia – e, por inferência, a língua –, modificaria também a cultura a ela associada. Essa ideia de risco é manifestada expressamente – “descaracterizar a cultura através da ‘linguagem’ escrita” (em DN07) e “os que tomam o novo acordo como atentado à cultura nacional” (em DN10) –, mas também pode assumir os contornos de um alerta – “a cultura não pode nem deve ser colonizada” (em PB07). Ainda nessa ideia de risco está a não afirmação da cultura no âmbito internacional, numa passagem em que se criticam os esforços (ou a falta deles) de divulgação da língua, destacada a seguir:



A fraca implantação e afirmação, no mundo, do português escrito e falado em Portugal, podendo ter raízes fonológicas, não iliba os responsáveis políticos que desistiram de afirmar a cultura portuguesa fora de portas. Veja-se o miserável papel que o Instituto Camões tem desempenhado ao optar pela redução do apoio ao ensino do Português no estrangeiro, junto das nossas comunidades de emigrantes que poderiam ser um dos veículos mais importantes da difusão da cultura e da língua portuguesa [PB03]

No que se refere explicitamente à relação entre língua e cultura, do total de treze ocorrências, em três delas (23,1%), a ideia de cultura é diretamente relacionada à língua. Nesse contexto, a língua surge como um elemento formador e conformador da cultura, como indicam os seguintes exemplos:

  

A etimologia é configuradora de memória e cultura [PB25] (…) as diversas línguas formam cultura [PB25] (…) o Português faz parte da minha cultura [PB29]

148

Análise dos marcadores identitários

O discurso de associação de uma língua – em sentido amplo – a uma cultura é recorrente nas teorias dos nacionalismos. Nesse sentido, a língua que se fala representaria um elemento essencial da cultura partilhada, como se a língua carregasse em seu bojo valores, afetos, anseios, habilidades, impulsos, forças, fraquezas, vivências, histórias, memórias e gostos. Concluída a reflexão sobre as referências à cultura, passa-se à análise das vinte e seis ocorrências em que se verifica a menção a cultural/is. Para melhor entender sua utilização, optou-se pela classificação dos elementos modificados por ela em quatro grupos: (i) patrimônio, (ii) contato ou partilha, (iii) identidade e (iv) campo, como detalhado no Quadro 5.12.

Tipo

Patrimônio

Contato

Campo

Identidade

Referência bens culturais custos culturais patrimônio cultural empobrecimento cultural mais-valia cultural valor cultural riqueza cultural contexto de voragem cultural global relações culturais autonomia cultural influência cultural epopeia cultural soberania cultural assunto cultural questão cultural plano cultural fundamento cultural responsabilidade cultural atitude cultural traço cultural básico identidade cultural memória cultural contextualização histórico-cultural

Nº 1 1 3 1 1 2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1

Parcial

10 (38,5%)

6 (23,1%)

5 (19,2%)

5 (19,2%)

26

Total Quadro 5.12 – Classificação de cultural/is

149

Análise dos marcadores identitários

Em Patrimônio (i), foram classificadas as representações em que o conceito de cultura é, em alguma medida, equiparado a um bem dotado de valor, inclusive econômico, e passível de ser possuído. Tais representações, portanto, reforçam uma perspectiva patrimonial de cultura. Em Contato ou Partilha (ii), foram classificadas as representações em que o conceito de cultura surge circunscrito ou limitado, em alguma medida, por outras culturas – quer em situação explícita de contato com culturas diversas, quer em situação implícita, onde se afirma sua soberania ou autonomia (afinal, só faz sentido afirmá-lo em face de um outro). Em outras palavras, foram assim classificadas as representações que remetiam para um cenário de diversidade cultural, de contato e partilha entre culturas. Em Identidade (iii), foram classificadas as representações nas quais a ideia de cultura é associada a elementos formadores e conformadores de identidade, em sentido mais estrito, o que inclui referências a memória, história, comportamentos entre outros. Em Campo (iv), foram classificadas as representações nas quais a cultura configura uma área temática ou de ação, isto é, um campo de atuação ou enquadramento temático. Houve uma predominância de referências na categoria Patrimônio, que representou 38,5% do total, seguido por Contato, com 23,1%. As categorias Campo e Identidade, por sua vez, reuniram o mesmo número de referências, respondendo, cada uma, por 19,2% do total. No que diz respeito a essas três últimas categorias, no entanto, apesar da diferença significativa em pontos percentuais, vale observar que estes refletem uma diferença bastante pequena em números absolutos: seis casos na categoria Contato contra cinco casos, respectivamente, nas categorias Campo e Identidade. Esse relativo equilíbrio nas categorias mencionadas, de certo modo, coloca em destaque a predominância da categoria Patrimônio. A atribuição de valor patrimonial à cultura é uma tendência cada vez mais forte, haja vista a Declaração Universal da Diversidade Cultural, da UNESCO, de 2002, que, embora não o afirme expressamente, caracteriza a diversidade cultural como “patrimônio” e fonte, entre outros, de crescimento econômico, além de definir bens e serviços culturais como “mercadorias”, embora distintas das demais. De certa forma, esse tema também está relacionado à ideia de contato ou partilha, que pode ser ampliada para a esfera da diversidade cultural e da interculturalidade. Considerandose que o valor de um bem depende do mercado e de relações muitas vezes complexas de oferta e demanda. É nesse contexto de interculturalidade, isto é, de contraste e contato que a ideia de cultura como bem dotado de valor em boa parte se assenta.

150

Análise dos marcadores identitários

A cultura como fator de identidade também é um tema central nas discussões sobre os nacionalismos, onde conceitos como nacionalismo cultural, identidade cultural e identidade nacional se confundem e sobrepõem. No contexto atual, de porosidade de fronteiras e intensa atividade migratória, parece ganhar cada vez mais relevância o recurso à cultura como fator de identidade e recurso de identificação. Considerando-se, agora, as ocorrências de culturalmente, verifica-se 4 (quatro) outras ocorrências em que a cultura surge como um modo de ser – “culturalmente interessante” (em PB03) e “culturalmente empinantes” (em PB25) – ou mais especificamente como um modo de ser português, como exemplificado a seguir:

 

Portugal é um país culturalmente aristocrata [DN10] Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês [DN10]

Por fim, uma última observação: a palavra cultura sempre aparece no singular, o que, de algum modo, acentua sua unidade, isto é, a ideia de inteireza. Mais ainda, parece refletir uma concepção essencialista da ideia de cultura, atribuindo ou reconhecendo uma certa homogeneidade em seu interior. Em resumo, as representações identitárias que se destacam na análise desse marcador estabelecem uma relação entre língua e cultura, ao mesmo tempo em que caracterizam uma alteração à língua (neste caso, a alteração ortográfica instituída pelo AO90) como risco ou ameaça à cultura. Também equiparam cultura a patrimônio, num cenário marcado pela competição entre culturas (interculturalidade) e pela utilização recorrente da cultura no processo de construção de identidades. Passando-se, agora, ao estudo dos marcadores de Identidade, foram analisadas nove ocorrências das onze identificadas – foram excluídas as incidências em que identidade era sinônimo de semelhança ou de autoria. Fazem parte desse grupo as categorias morfossintáticas identitário/as (22,2%) e identidade (77,8%), como referido no Quadro 5.13.

Vocábulo Identitário/as Identidade Total

Ocorrências (%) 2 (22,2%) 7 (77,8%) 9 (100%)

Quadro 5.13 – Identidade

151

Análise dos marcadores identitários

Houve significativo predomínio das referências à identidade, que representam 77,8% do total, em comparação com identitário e identitárias, com 22,2%. Considerando-se as ocorrências de identidade, em todas elas é construída alguma relação com a ideia de língua ou de ortografia. Ora se reconhece língua/ortografia como elementos determinantes na configuração da identidade de uma dada comunidade ou país, ora se nega. Do total de sete ocorrências analisadas, em quatro delas (57,1%) a relação que se constrói é entre identidade e ortografia; nas outras três (42,9%), por outro lado, constrói-se uma relação entre identidade e língua, como indicado no Quadro 5.14.

Relação Identidade/Ortografia Identidade/Língua Total

Nº 4 (57,1%) 3 (42,9%) 7

Quadro 5.14 – Identidade: língua x ortografia

Nas ocorrências em que se constrói uma relação entre língua e identidade, essa é afirmada em todos os três casos, ou seja, nunca é negada. Nas ocorrências em que se constrói a relação entre ortografia e identidade, essa é negada em 75% dos casos e afirmada nos restantes 25%, que, em números absolutos, correspondem a um único caso, como destacado no Quadro 5.15.

Relação Identidade/Ortografia Identidade/Língua Total

Negada 3 0 3

Afirmada 1 3 4

Nº 4 3 7

Quadro 5.15 – Relações de identidade

É importante destacar que as representações construídas em torno do conceito de língua não necessariamente excluem o conceito de ortografia. De todo modo, sempre que a escolha do autor recai sobre a referência à língua, a relação de interdependência entre esta e o conceito de cultura é afirmada. Já as representações construídas em torno do conceito de ortografia parecem assumir sentido mais restritivo, instituindo ou afirmando, em alguma medida, uma diferença ou distinção entre língua e ortografia. Em tais casos, a situação se

152

Análise dos marcadores identitários

inverte, ou seja, a relação de interdependência entre ortografia e cultura é predominantemente negada (em 75% dos casos, isto é, em três de quatro ocorrências). Considerando-se novamente o conjunto das ocorrências de identidade, a relação de interdependência entre identidade e língua/ortografia é afirmada em 57,1% dos casos, negada em 42,9%, ou seja, mesmo que não se faça distinção entre as referências à língua e à ortografia, ainda assim prevalecem as representações que estabelecem relação de interdependência com o conceito de identidade. Nas ocorrências de identitário e identitárias, as palavras modificadas são respectivamente valor e marcas – “valor histórico, cultural e identitário”, em PB27, e “marcas identitárias”, em DN06 (já citado nas páginas 138 e 145). Em ambos os casos, no entanto, a relação entre língua/ortografia e identidade é afirmada, como exemplificado:



Sob a égide da utópica unificação linguística o AO90 mutila e desfigura a ortografia da L.P e, juntamente, todo o valor histórico, cultural e identitário que cada variante encerra. [PB27]

Para esta análise, importa observar sobretudo que em nenhum momento a relação entre a língua, propriamente dita, e a noção de identidade é negada. Pode-se pôr em causa a sua exclusividade ou propriedade, isto é, a afirmação de que a uma dada língua corresponde uma nação, mas não o seu valor como elemento identitário. Em resumo, as representações identitárias reunidas e analisadas neste grupo remetem predominantemente para a associação entre língua e identidade, em geral, para afirmá-la. Entretanto, nos casos em que língua e ortografia são representados a partir da diferença, a relação entre identidade e ortografia é mais frequentemente negada. Contrastando os marcadores Cultura e Identidade, verifica-se que a língua é utilizada como elemento relevante marcadamente nas representações de identidade, sendo as representações de cultura muito mais variadas. A perspectiva patrimonial só se aplica à ideia de cultura, embora seja possível estabeler uma relação entre língua e cultura, língua e identidade e, desse modo, entre cultura e identidade. É ainda importante destacar que, assim como as ocorrências de cultura, as de identidade estão sempre no singular – não há exceções. De certa forma, parece haver o entendimento corrente de unidade, isto é, a ideia de um todo ou de completude: uma cultura e/ou uma identidade. Essa percepção, mais uma vez, revela, de certo modo, uma perspectiva essencialista que ainda parece marcar muitos dos discursos sobre as identidades – e também sobre as culturas. 153

Análise dos marcadores identitários

Matriz

Nos marcadores de Matriz, foram analisadas nove ocorrências. Em quase todas (88,9%), a palavra matriz remete para a ideia de origem, realçando relações de dependência entre línguas. A única exceção parece ser a representação construída em torno da associação de matriz com identidade e cultura. Exemplo desse último caso é a citação abaixo:



Nós [portugueses] temos uma identidade cultural com quase um milénio, e não é por mudarem algumas regras ortográficas que essa matriz se dilui [SL01]

Embora a interpretação acima pareça ser a mais razoável, também podemos construir uma interpretação concorrente, que implicaria entender que a expressão “essa matriz” referese a “regras ortográficas”, que, por sua vez, remeteriam para a ideia de língua. Nesse caso, a palavra matriz estaria mais uma vez ligada ao contexto da língua e teríamos que todas as nove ocorrências estariam ligadas a esse universo, sem exceção. As referências à matriz, em resumo, remetem para uma associação com o contexto da língua em oito ocorrências e para o contexto de identidade e cultura em um único caso, como indicado no Quadro 5.16.

Contexto Língua Identidade e Cultura Total

Nº 8 (88,9%) 1 (11,1%) 9

Quadro 5.16 – Matriz

Retomando o grupo de ocorrências em que matriz é associada ao contexto da língua, quatro delas (50%) consistem em citações de um editorial do Jornal de Angola, publicado em 9 de fevereiro de 2012, intitulado “Património em risco”. Numa dessas citações (em PB06), o latim figura explicitamente como matriz da língua portuguesa. Nas outras três, idênticas, a palavra matriz parece remeter, não mais para o latim, mas sim para o português europeu:



Se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes de mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras. [DN15, EX03, PB06]

154

Análise dos marcadores identitários

A interpretação acima baseia-se no fato de que, em suas três ocorrências, a citação analisada é precedida por outra – uma vez integralmente, duas vezes apenas o trecho que aparece abaixo em destaque – do mesmo editorial:



Ninguém mais do que os jornalistas gostava que a Língua Portuguesa não tivesse acentos ou consoantes mudas. O nosso trabalho ficava muito facilitado se pudéssemos construir a mensagem informativa com base no português falado ou pronunciado. Mas se alguma vez isso acontecer, estamos a destruir essa preciosidade que herdámos inteira e sem mácula [PB06]

Na passagem acima, a referência às consoantes mudas e à ideia de herança parecem remeter ao português europeu, que é então caracterizado como sendo uma “preciosidade” e como uma língua “interia e sem mácula”, num contexto em que o AO é representado como ameaça ou risco. De modo geral, ao longo do editorial do Jornal de Angola, os significados de matriz parecem oscilar entre o Latim e o português europeu, sendo, em alguns casos, difícil discernir qual deles está em causa. Prossenguindo-se com a análise dos diferentes significados atribuídos à matriz, esta ainda remete para o português europeu em outras duas ocorrências:

 

em Portugal e nos outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia [PB13] no universo que usa a língua portuguesa como matriz (dela fazendo derivar riquíssimas variantes) [PB24]

Em uma outra ocorrência, a matriz não mais parece ser exclusivamente o português europeu, mas sim a língua portuguesa em toda a sua diversidade:



Idioma que, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes [EX04]

Por fim, numa última ocorrência a matriz passa a ser a Inglaterra, num contexto de comparação entre a “matriz inglesa” e a “variante americana” (em PB24), como resumido no Quadro 5.17. De modo geral, parece subsistir a ideia de matriz como algo valorado positivamente, como já discutido no início deste capítulo. A matriz como origem deve ser preservada e respeitada. A relação entre a matriz e suas variantes traduz, em alguma medida, uma relação de poder em que matriz é o pólo mais forte. A ideia de pureza e integridade atribuída à matriz concorre para essa construção de significado.

155

Análise dos marcadores identitários

Referência Português europeu Língua portuguesa Latim Língua inglesa (Inglaterra) Total

Ocorrências (%) 5 (62,5%) 1 (12,5%) 1(12,5%) 1(12,5%) 8 (100%)

Quadro 5.17 – Representações de matriz

Por fim, vale ainda destacar que, se na maioria das representações de língua como matriz, esta é apresentada como matriz de outras línguas, há um único caso em que ela é apontada como matriz dos povos que a falam, embora a distinção entre o português europeu como matriz e os demais como variantes ainda esteja presente. Em resumo, as representações identitárias identificadas nesse grupo remetem para a ideia da língua como matriz, quer de outros povos, quer de outras línguas, prevalecendo a identificação de Portugal como matriz da língua portuguesa.

Consolidação da análise

As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Pátria frequentemente se valem da relação com a língua para, em seguida, negá-la. Não importa aqui, no entanto, contabilizar quantas ocorrências afirmam e quantas negam tal relação – uma vez que, no contexto do debate sobre o AO90, tais declarações se confundem com as diferentes estratégias de argumentação a favor ou contra –, mas sim destacar a tensão estabelecida no âmago da relação pátria/língua. As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Nação, ao contrário, não se destacam por estabelecerem relação com a noção de língua. Na maioria das vezes, a palavra nação remete para um país específico. Considerando-se a totalidade das ocorrências do grupo, com o predomínio dos registros de nação como modificador – ou seja, com o uso de nacional/is – sua esfera de ação é ampliada especialmente para o campo político-institucional e, a seguir, para os campos cultural e espacial. As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Soberania giram em torno da ideia de perda, risco ou ameaça à autonomia estatal, mas também ampliam seu espaço de ação para a esfera da cultura. Partindo-se do pressuposto de que a noção de soberania estatal açambarca a de soberania cultural, pode-se estender a ideia de perda, risco 156

Análise dos marcadores identitários

ou ameaça da primeira para a segunda. Tal cenário remete para o debate sobre um suposto “imperialismo cultural” – que seria uma espécie de sucedâneo dos impérios do passado, ou seja, uma nova forma de exploração e expropriação. As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Povo estabelecem relação com a noção de língua a partir de três perspectivas: a língua como elemento constituinte ou formador dos povos, a língua como manifestação ou expressão do modo viver e pensar ou a língua como bem, recurso ou propriedade dos povos. Em geral, o povo é representado em situação de passividade, no pólo mais fraco de uma relação, como atores secundários de sua própria história.

Grupo Pátria

Representações Estabelecem relação direta entre pátria e língua para, a seguir, negá-la.

Nação

Salvo exceções, não estabelecem relação direta entre nação e língua. Alcançam variados domínios da vida em sociedade, com detaque para o âmbito político-institucional.

Soberania

Não estabelecem relação direta entre soberania e língua. Remetem para o contexto de perda ou enfraquecimento.

Povo

Estabelecem relação direta entre povo e língua. Representam o povo em posição de subalternidade ou passividade.

Cultura

Estabelecem relação direta entre cultura e língua, caracterizada pela interdependência. Equiparam cultura a bem ou patrimônio. Acentuam o papel da cultura na construção de identidades.

Identidade

Estabelecem relação direta entre identidade e língua, em geral para afirmá-la.

Matriz

Estabelecem relação direta entre matriz e língua. Quadro 5.18 – Marcadores identitários: quadro-resumo

As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Cultura estabelecem relação com a língua, em geral, de interdependência. Nesse sentido, alterações à língua implicariam alteração à cultura – em outras palavras, uma eventual situação de risco ou ameaça à língua é considerada também um risco ou uma ameaça à cultura. Também são recorrentes as representações em que se entende a cultura como um bem, ao qual se atribui um dado valor, inclusive econômico. Nesse contexto, também se verifica a referência a 157

Análise dos marcadores identitários

cenários marcados pelo contato (interculturalidade) e competição entre culturas, assim como pela utilização recorrente da cultura no processo de construção de identidades. As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Identidade remetem predominantemente para a associação com a língua. Na maioria das vezes, essa relação é de afirmação, ou seja, a uma dada língua corresponde uma certa identidade ou, ainda, reconhece-se à língua um papel decisivo – ou, ao menos, bastante importante – no processo de construção dessas identidades. As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Matriz, na maioria das vezes, atribuem às línguas esse papel. Prevalecem as referências à Língua Portuguesa e, mais especificamente, o português europeu. As línguas são representadas como matriz de outras línguas ou mesmo de povos.

Síntese

Neste capítulo, procurou-se identificar e analisar as diferentes representações identitárias construídas a partir da articulação de determinados elementos – identificados como marcadores identitários –, selecionados em função de sua frequência ao longo do corpus e da importância a eles atribuída pelas teorias sobre os nacionalismos na Europa. Os grupos de palavras analisados foram intitulados de Pátria, Nação, Soberania, Povo, Cultura, Identidade e Matriz. Primeiro foram contabilizadas as diversas ocorrências desses elementos para a seguir, serem analisadas em seu contexto de uso, procurando-se destacar as situações em que a língua era também mobilizada na construção de discursos e representação de identidade nacional. Por fim, procurou-se reunir os principais resultados da análise num quadro-resumo, que encerra essa etapa da reflexão.

158

Capítulo 6 Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal Portugal numa perspectiva comparada: relações de simetria e assimetria Análise das relações comparativas simétricas Análise das relações comparativas assimétricas Consolidação da análise

Para se refletir sobre os processos de construção das identidades nacionais, interessa analisar as diferentes relações estabelecidas entre países, ou melhor, entre diferentes entidades nacionais e/ou supranacionais. Aproximação e afastamento, identificação e diferenciação, manifestação de força ou de fragilidade, afirmação de vantagem ou desvantagem são algumas das estratégias adotadas na construção de um eu nacional e de um ou vários outros estrangeiros. A perspectiva de análise desenvolvida neste capítulo centra-se no processo acima referido. Primeiro busca-se identificar a presença de outros países ao longo do corpus num contexto de contato e/ou comparação com Portugal. Tais relações são identificadas como simétricas ou assimétricas em função de estabelecerem, respectivamente, posição de igualdade (nivelamento ou equilíbrio de forças) ou diferença (desnivelamento ou desequilíbrio de forças) entre Portugal e as demais entidades nacionais ou supranacionais. A seguir, passa-se à análise de tais relações. As simétricas são classificadas como convergentes ou divergentes, segundo a direção do movimento a elas atribuídos nos diferentes contextos em que surgem: aproximação (convergência, portanto) ou afastamento (divergência). Nas assimétricas, por sua vez, busca-se identificar qual é a posição assumida por ou atribuída a Portugal no campo do embate de forças entre as diversas entidades nacionais ou supracionais referidas – se o pólo forte ou o pólo fraco. Conclui-se este capítulo com a consolidação da análise das relações simétricas e assimétricas mapeadas no corpus. Os discursos de aproximação ou afastamento, por via da análise das relações de simetria, são contrastados com os discursos construídos em torno de relações de força, aqui concretizados, na maioria das vezes, na afirmação de posições de vantagem ou desvantagem. No final, elabora-se um quadro-resumo com os principais resultados da análise realizada nesta etapa da pesquisa.

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

O objetivo deste capítulo é identificar e analisar os diferentes discursos de construção do eu nacional por via da comparação ou contraste com a ideia de um ou vários outros estrangeiros. Busca-se, em outras palavras, analisar o mecanismo de construção de identidade e diferença que é posto em movimento no processo de construção das identidades em geral e das identidades nacionais especificamente.

Portugal numa perspectiva comparada: relações de simetria e assimetria

O ponto de partida da presente análise consiste na identificação das situações – um total de oitenta e quatro – em que Portugal é representado numa relação de comparação e/ou contato com outros países. Com o intuito de facilitar a identificação de tais situações ao longo do corpus, manteve-se a notação inicial, que consistiu na atribuição de um código composto por duas letras e dois algarismos a cada artigo, como já indicado na página 120. No entanto, como é possível ocorrer mais de uma situação de comparação num mesmo artigo, optou-se pelo acréscimo de um algarismo ao código inicial, dele separado por um hifen. Retomando-se a análise das situações de comparação, é importante esclarecer que, com o objetivo de identificá-las ao longo do corpus, foram consideradas tanto as situações em que Portugal é efetivamente nomeado, como aquelas em que sua presença pode ser facilmente inferida, sendo o mesmo critério aplicado aos demais países, como exemplificado abaixo:

  

Do lado de cá do Atlântico [CM01-2] Africanos e asiáticos… portugueses e brasileiros [CM02-1] (…) é do mais alto interesse nacional que… toda a comunidade que se exprime oficialmente em português [SL01-3]

A análise que se segue é realizada em duas etapas: na primeira, procura-se identificar qual é a posição assumida por ou atribuída a Portugal face aos outros países (simétrica ou assimétrica); na segunda, busca-se caracterizar essas relações (em convergente ou divergente, no caso das relações simétricas, ou em posição de vantagem ou desvantagem, no caso das relações assimétricas). Quando a relação de comparação entre Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais indica, portanto, paridade de posições, ela é classificada como simétrica. 162

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Quando, no entanto, essa relação é marcada pela disparidade de posições – seja pela valorização ou desvalorização de uma das partes ou pela simultânea valorização de uma das partes e desvalorização da outra – ela é classificada como assimétrica. Uma primeira análise das situações de comparação identificadas levou ao desdobramento dos oitenta e quatro casos iniciais em noventa e quatro relações de comparação. A razão desse desdobramento foi a constatação de que nove das situações identificadas foram construídas a partir de duas ou três relações de comparação simultâneas ou interdependentes, como, a seguir, exemplificado:



Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90 vem consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e outra para o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades ortográficas dos restantes países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma, ou a outra - a menos que surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor... [PB20-1]

Neste exemplo, o autor constrói, num primeiro momento, uma situação de paridade entre Portugal e Brasil, embora marcada pela diferença, para, a seguir, construir uma relação de disparidade, onde Portugal (assim como o Brasil) ocupa o pólo da força e/ou vantagem face aos demais países da CPLP. Verifica-se, portanto, duas relações de comparação entretecidas, o que leva à classificação da passagem acima na categoria de situação de comparação complexa. Em resumo, as situações de comparação constituídas por uma única relação comparativa foram classificadas como simples, as demais foram classificadas como complexas. Do mesmo modo, as relações comparativas que constituem situações de comparação complexas foram classificadas, cada uma delas, como relação comparativa complexa, enquanto as demais relações comparativas foram classificados como simples, como indicado no Quadro 6.1. Para facilitar a identificação dessas relações comparativas complexas no corpus, optou-se pelo acréscimo das letras A e B ao código já apresentado acima. Portanto, considerando-se essa última citação (PB20-1), a relação comparativa estabelecida entre Portugal e Brasil é identificada como PB20-1A, enquanto a relação comparativa estabelecida entre Portugal e os “restantes” países da CPLP é identificada como PB20-1B. (Para uma visão geral do quadro de notações adotado nesta etapa da pesquisa, consulte os apêndices C e D.)

163

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Houve, portanto, um predomínio das situações de comparação simples, que responderam por 89,3% do total de situações. Do mesmo modo, e em consequência disso, verificou-se também o predomínio das relações comparativas simples, que responderam por 79,8% do total, contra 20,2% de relações comparativas complexas.

Tipo Simples Complexas Total

Situação de comparação 75 (89,3%) 9 (10,7%) 84 (100%)

Relação comparativa 75 (79,8%) 19 (20,2%) 94 (100%)

Quadro 6.1 – Situações de comparação e relações comparativas simples ou complexas

Concluída essa primeira etapa, passou-se à análise das relações comparativas, que contabilizaram um total de noventa e quatro, como já referido. Ao final dessa nova classificação, verificou-se o ligeiro predomínio das relações de assimetria (51,1%) face às de simetria (48,9%), como explicitado no Quadro 6.2.

Relações de Assimetria Simetria Total

Quantificação (%) 48 (51,1%) 46 (48,9%) 94 (100%)

Quadro 6.2 – Relações simétricas ou assimétricas

Em outras palavras, em pouco mais da metade das relações de comparação identificadas, registrou-se uma diferença de posição entre Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais. Essas diferenças de posição implicam desequilíbrio de forças entre Portugal e os demais intervenientes, sem, contudo, ser possível afirmar nesse momento quais partes foram representadas nos pólos da força/vantagem. Um exemplo de relação comparativa simétrica, na qual Portugal é representado pela Academia das Ciências de Lisboa e o Brasil – o interveniente em causa – é representado pela Academia Brasileira de Letras, é a passagem abaixo citada. Nesta referência, a simetria se consubstancia na formação de um acordo, valorado como positivo para ambas as partes:

164

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal



(…) depois de cem anos de divergências ortográficas (…) e depois de várias tentativas goradas de acordos envolvendo a Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de Lisboa (…) foi finalmente encontrado um texto comum que, podendo ter lacunas, é um acordo internacional e um acordo é, em si mesmo, um facto que encerra convergência, que é positivo e que importa, portanto, enfatizar. [DN13-1]

Em sentido contrário, o extrato seguinte exemplifica uma relação comparativa assimétrica na qual Portugal ocupa o pólo fraco enquanto Angola e Moçambique ocupam o pólo forte. Nesta referência, a assimetria se concretiza na atribuição de uma desvantagem a Portugal – ou seja, na imposição do AO aos portugueses – e, simultaneamente, na situação de vantagem reconhecida a Angola e a Moçambique, por não terem ratificado o AO, como segue:



O colunista Rui Tavares decidiu adoptar, na sua crónica de 6 de Fevereiro, um tom pretensamente jocoso para criticar a decisão do novo presidente do CCB, Vasco Graça Moura, de não aplicar o chamado “acordo ortográfico” imposto aos portugueses, apesar da forte mobilização que se registou no país contra ele e do facto de dois dos maiores países de língua oficial portuguesa, Angola e Moçambique, não terem ratificado o respectivo tratado. Fez mal. Quis ser engraçado, mas não teve piada. [PB05-1]

Considerando-se as entidades nacionais e supranacionas que tomam parte nas relações de comparação envolvendo Portugal, o Brasil se destaca como o interveniente mais frequente, surgindo em 83% do total, seja de forma isolada, isto é, como único país envolvido, seja ao lado de outros países ou entidade, como indicado no Quadro 6.3.

Intervenientes Brasil Outros países (excluído o Brasil) Total

Quantificação (%) 78 (83%) 16 (17%)

94 (100%)

Quadro 6.3 – Brasil como interveniente frequente no total de relações de comparação

Concluída essa primeira fase de classificação das relações comparativas construídas em torno de Portugal e de outras entidades nacionais ou supranacionais, passa-se à análise das relações comparativas de simetria.

165

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Análise das relações comparativas simétricas

Entre as relações de simetria, o interveniente mais frequente é o Brasil, que surge em quarenta e duas de um total de quarenta e seis ocorrências, ou seja, em 93,4% das relações assim classificadas. Nas quatro ocorrências em o que o Brasil não é mencionado, a comparação se dá entre Portugal, Inglaterra e França (DN10-1); entre Portugal e Angola (SL02-4); entre Portugal, Angola e Moçambique (PB03-2A) e, por fim, entre Portugal e outros países lusófonos, excluído o Brasil (EX05-1A). Nesses dois últimos casos, vale a ressalva de que se trata de situações de comparação complexas das quais o Brasil também participa, figurando na relação complementar a essas (PB03-2B e EX05-1B, respectivamente). A situação de comparação estabelecida entre Portugal, Inglaterra e França é a única, entre as simétricas, que não envolve países que não têm o português como língua oficial, como destacado no Quadro 6.4:

Intervenientes Brasil entre outros Angola e Moçambique apenas Angola apenas Países lusófonos (excluído o Brasil) Inglaterra e França Total

Quantificação (%) 42 (91,3%) 1 (2,2%) 1 (2,2%) 1 (2,2%) 1 (2,2%) 46 (~100%)

Quadro 6.4 – Intervenientes que figuram nas relações de simetria

Considerando-se, agora, somente as relações de simetria em que o Brasil figura como uma das entidades nacionais ou supranacionais contrastadas com Portugal, em vinte e seis delas, ele é o único interveniente, correspondendo a 61,9% do total. Nas demais dezesseis relações assim identificadas, ou seja, em 38,1% do total, o Brasil divide as atenções com outros países de língua portuguesa, como ilustrado no Quadro 6.5:

Intervenientes Brasil apenas Brasil e outros países de língua portuguesa Total

Quantificação (%) 26 (61,9%) 16 (38,1%) 42 (100%)

Quadro 6.5 – Brasil como interveniente frequente nas relações de simetria

166

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Da leitura do quadro acima se depreende, portanto, que, em todas as situações em que o Brasil é identificado como um dos intervenientes na relação comparativa simétrica, mas não o único, ele partilha sua posição com outros países de língua portuguesa, sem exceções. Num único caso, o Brasil é citado ao lado de Moçambique (DN02-1) e, em outro, ao lado de Angola e Moçambique (SL02-1). Nas demais ocorrências, no entanto, o Brasil surge entre vários outros países de língua portuguesa, ou seja, entre os demais países lusófonos. Considerando-se, agora, o total de dezesseis ocorrências em que o Brasil é referido ao lado de outros países lusófonos, interessa observar como variam as referências ao Brasil e aos demais países de língua oficial portuguesa, ou seja, de que forma tais referências são construídas. Em seis casos, ou seja, em 37,5% do total, as referências ao Brasil são construídas de forma explícita. Nos dez restantes, que representam 62,5%, sua presença é inferida, como detalhado no Quadro 6.6:

Tipo de referência

Explícita

Implícita

Detalhamento Brasil Angola e Moçambique Brasil e África lusófona Brasil, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné e Timor Brasil e outros países lusófonos Brasileiros Salvador Aqueles que aprenderam a falar a partir da matriz europeia Outros povos (falantes de português) Países de Língua Portuguesa Países lusófonos / família lusófona Lusofonia (português africano, americano e asiático)

Total

Nº 1 1 3

Parcial

6 (37,5%)

1 2 1 1 1

10 (62,5%)

1 3 1 16 (100%)

Quadro 6.6 – Estratégias de representação do Brasil quando um dos intervenientes, ao lado de outros países de língua portuguesa: referências explícitas e implícitas

Verifica-se, portanto, o predomínio das referências implícitas ao Brasil no contexto das relações comparativas simétricas que envolvem este e outros países, contrapondo-os a Portugal. Nos casos em que o Brasil é o único interveniente, em dez ocorrências, ou seja, em 38,5% do total, a menção ao país é concretizada na referência explícita ao Brasil; nas

167

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

demais dezesseis, ou seja, nos restantes 61,5% dos casos, de forma implícita, como indicado no Quadro 6.7. Comparando-se os quadros 6.6 e 6.7, pode-se perceber que não houve diferença significativa entre as referências explícitas e implícitas ao Brasil nos casos em que este surge como único interveniente e nos casos em que surge como um dos intervenientes: 38,5% contra 37,5%, para as referências explícitas, e 61,5% contra 62,5%, para as referências implícitas, respectivamente.

Tipo de referência Explícita

Implícita

Detalhamento



Brasil Brasileiros Público brasileiro Ortografia brasileira Academia Brasileira de Letras Luso-brasileiro Discípulos de Malaca & Bechara Dos dois lados do Atlântico Duas ortografias

Total

10 (38,5%) 9 1 1 1 1 1 1 1

16 (61,5%)

26 (100%)

Quadro 6.7 – Estratégias de representação do Brasil quando único interveniente: referências explícitas e implícitas

Nas relações em que o Brasil surge como único interveniente, sendo representado de forma implícita, tais representações são concretizadas via referência aos cidadãos brasileiros (56,25%), via utilização de brasileiro/a como modificador de público, ortografia e academia de letras (18,75%) ou, ainda via utilização de expressões que remetem simultaneamente para Portugal e para o Brasil (25%), como registrado no Quadro 6.8. É interessante observar que, do total de referências implícitas ao Brasil, nas relações em que este figura como único interveniente, em um quarto delas são utilizadas expressões que associam Portugal e Brasil. Veja-se, abaixo, um exemplo de relação comparativa simétrica em que o Brasil encontra-se representado pelo modificador “brasileiro” na expressão “neocolonialismo luso-brasileiro”:



O significado profundo desta coisa traduz provavelmente a confissão envergonhada, por parte do neocolonialismo luso-brasileiro, de que o AO não dispõe absolutamente nada para a grafia de vocábulos das línguas nativas que tenham sido incorporados no português. [DN14-1, destaques acrescentados]

168

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

A expressão “neocolonialismo luso-brasileiro” coloca Portugal e Brasil em paridade (lado a lado), ao mesmo tempo em que subverte a relação histórica metrópolecolônia que caracterizou a relação entre ambos os países num período histórico específico. Na passagem acima, no entanto, num contexto em que o passado colonial se transforma em mácula e a figura do poder colonial carrega sentido negativo, o Brasil é alçado a parceiro de Portugal – agora, juntos, subjugam os demais.

Representação Brasileiros Público, ortografia ou ortografia brasileira Luso-brasileiro (*), Discípulos de Malaca & Bechara, Dos dois lados do Atlântico, Duas ortografias Total

Classificação Referências aos cidadãos brasileiros Referência a brasileiro/a como modificador Associação entre Portugal e Brasil

Nº 9 (56,25%) 3 (18,75%)

4 (25%) 16 (100%)

(*) Neste caso, ‘brasileiro’ também é utilizado como modificador, permitindo, assim, ser classificado no item anterior. Preferiu-se, no entanto, destacar as estratégias de associação entre Portugal e Brasil.

Quadro 6.8 – Classificação das representações implícitas do Brasil quando único interveniente

Uma vez analisadas as relações comparativas simétricas como um todo, passa-se à classificação das mesmas em função do critério convergência/divergência. As relações de simetria remetem para uma situação de paridade de forças e/ou de posição no discurso, ou seja, para o campo da equivalência, que pode se dar tanto pela convergência – perspectiva positiva, de aproximação e igualdade – como pela divergência – perspectiva negativa, de afastamento e diferença. Em outras palavras, uma vez estabelecida a equiparação de posições, as entidades representadas são caracterizadas por algo que têm em comum – e que, portanto, aproxima – ou por algo que as diferencia – e que, portanto, afasta. Considerando-se as relações comparativas simétricas marcadas pela convergência, esta, em geral, concretiza-se nos discursos de afirmação e valorização do português como língua comum, isto é, de partilha entre diferentes países e povos e, portanto, dotada de um potencial de aproximação. Ainda nesse sentido, a perspectiva da obtenção de um acordo em torno de sua ortografia também é avaliada de forma positiva. Apenas como exemplo, seguem citações de algumas das relações que foram assim classificadas:

169

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

 



Não quero uma língua para me distinguir do Brasil. Prefiro uma que me aproxime. E quem diz Brasil, que tem 200 milhões de falantes, diz naturalmente Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Timor. [EX04-3] (…) depois de cem anos de divergências ortográficas (desde o acordo de 1911 que não foi extensivo ao Brasil) e depois de várias tentativas goradas de acordos envolvendo a Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de Lisboa (…) foi finalmente encontrado um texto comum que, podendo ter lacunas, é um acordo internacional e um acordo é, em si mesmo, um facto que encerra convergência, que é positivo e que importa, portanto, enfatizar. [DN13-1] O nosso grande património é termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com Moçambique… tudo o que pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é decisivo para nós. [SL02-1]

No que diz respeito às relações comparativas simétricas marcadas pela divergência, por outro lado, esta, em geral, é representada pela valorização de uma perspectiva individualista, em que se desvaloriza a ideia de aproximação entre os diferentes países de língua portuguesa e sua suposta mais-valia, mas também, e principalmente, em sentido contrário: valoriza-se a partilha de uma língua comum, mas na perspectiva da diferença. Nesse caso, é a diferença, ou seja, a diversidade da língua partilhada que ganha destaque e valor, sendo o acordo ortográfico, no seu papel de unificação das diferentes grafias da língua, identificado como ameaça. Apenas como exemplo, seguem algumas passagens que foram assim classificadas:

  

Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e, não fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. [DN02-1] (…) a “lusofonia” não vale pela unidade mas pela diversidade, pelo facto de haver um português europeu, africano, americano e asiático. [EX01-3] A grande família lusófona precisa, isso sim, de reconhecer-se na alegria criativa da diferença, não de ficar frustrada com rasuras injustificadas e arbitrárias. [PB13-2]

Considerando-se, agora, a frequência dos discursos de convergência, assim como os de divergência, no contexto das relações comparativas simétricas, verificou-se que em vinte e dois de um total de quarenta e seis, a perspectiva adotada foi a primeira, ou seja a da convergência. Nas demais vinte e quatro, prevaleceu a perspectiva da divergência, como sintetizado no Quadro 6.9. Houve, portanto, um ligeiro predomínio das relações comparativas divergentes, que representaram 52,2% do total, contra 47,8% classificadas como relações comparativas convergentes. Notou-se, no entanto, uma diferença significativa entre os vinte e seis casos em que o Brasil aparece como único interveniente – 61,5% foram classificadas como divergentes (dezesseis de um total de vinte e seis casos) e 38,5% como convergentes (dez 170

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

de um total de vinte e seis casos) – e aqueles dezesseis casos em que aparece ao lado de outros países lusófonos – 56,25% convergentes, 43,75% divergentes, como indicado no Quadro 6.10.

Tipo de relação simétrica Convergência Divergência Total

Convergência 22 (47,8%) 24 (52,2%) 46 (100%)

Quadro 6.9 – Relações simétricas: convergentes e divergentes

Intervenientes Brasil Brasil e outros países lusófonos Angola Angola e Moçambique Países lusófonos (Brasil excluído) Inglaterra e França

Convergência 10 (38,5%) 9 (59,25%) 1 (100%) 0 1 (100%) 1 (100%)

Divergência 16 (61,5%) 7 (43,75%) 0 1 (100%) 0

Totais 26 (100%) 16 (100%) 1 (100%) 1 (100%) 1 (100%) 1 (100%)

Quadro 6.10 – Relações simétricas convergentes e divergentes: Brasil e outros intervenientes

Nas relações de comparação simétricas em que o Brasil é o único interveniente, prevalece a divergência, ou seja, o movimento de afastamento e/ou de instituição de uma diferença entre o país e Portugal. Refletindo-se sobre tal resultado no âmbito do acordo ortográfico, este parece confirmar a percepção de que Portugal e Brasil ocupam pólos opostos ou, ao menos, distintos, mesmo que em igualdade de forças. Por outro lado, nas relações simétricas em que o Brasil surge ao lado de outros intervenientes, todos eles falantes do português, prevalece a convergência, isto é, o movimento de aproximação e/ou instituição de semelhanças entre tais países e Portugal. No contexto do debate sobre o AO, tal dado parece remeter, por exemplo, para representações contruídas em torno da ideia de cultura partilhada associada à língua comum, à lusofonia, entre outras. Por fim, nas restantes quatro situações em que o Brasil não figura como interveniente, três delas foram classificadas como convergentes (75%) e uma como divergente (25%). Em três delas, as relações que são construídas envolvem outros países de língua portuguesa: Angola, Moçambique e outros países lusófonos, excluído o Brasil. Na única situação em que a relação de comparação, classificada como convergente, é estabelecida entre Portugal e países que não têm o português como língua, Inglaterra e 171

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

França são trazidos ao debate. Em relação à Inglaterra, afirma-se a aliança política com Portugal; em relação à França, afirma-se uma identificação cultural, como exposto abaixo:



Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês [DN10-1]

É bem verdade que tais identificações são construídas em torno de uma polaridade, evidenciada pelo recurso ao vocábulo “apesar”, mas esta não nega o conteúdo afirmativo das relações de comparação acima identificadas, até porque em toda a relação de igualdade há sempre uma relação de diferença pressuposta. Em outras palavras, os conceitos de igualdade e diferença são interdependentes, embora a escolha que se faça – ao se adotar a perspectiva de uma ou de outra na análise – implique significados distintos. Concluída a classificação das relações comparativas simétricas em relações convergentes ou divergentes, resta ainda avaliar o papel da língua na construção das identidades nesse contexto. Com exceção da relação em que Inglaterra e França aparecem como intervenientes, nas demais, o acordo ortográfico ou a perspectiva mais específica da língua estão presentes. Dizendo de outra forma, em todas as construções que envolveram a participação de países de língua protuguesa, o AO e/ou a língua ocuparam posição de destaque nessas discussões. Nos casos em que o Brasil é o único interveniente, predominam as referências construídas com foco no acordo mais especificamente. Nos demais casos, o conceito de língua parece disputar as atenções com o acordo propriamente dito. Nessas construções, a língua surge, em geral, como fator de identidade, como um bem ou patrimônio ou, ainda, como manifestação de cultura. É interessante também observar que tais argumentos são, muitas vezes, entrelaçados a ponto de não ser possível individualizá-los. Além disso, muitos desses argumentos são apropriados tanto por autores contrários como por autores que defendem o acordo. No exemplo abaixo, pode-se comparar a perspectiva da língua como fator de identidade e cultura e também como recurso de construção da diferença. O autor se vale da referência à língua para construir uma certa identidade nacional portuguesa, associada com a formação e o desenvolvimento do indivíduo (“na língua em que cresci”) e, indiretamente, com a ideia de cultura, mas também, simultaneamente, para marcar a diferença com outros perfis nacionais (“não sou brasileiro nem moçambicano”). Essa comparação também remete, em alguma medida, para uma perspectiva de posse ou patrimônio aqui traduzida pela indiferença do autor – na condição de português – em relação à língua falada por 172

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

brasileiros e moçambicanos, associada à afirmação categórica de que sua língua é a língua portuguesa, sem deixar espaço para a partilha ou para a aproximação com outros países que também tem o português como língua nacional, como referido a seguir:



Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e, não fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. À revelia da proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a minha língua é. [DN02-1]

Na argumentação em torno da ideia de língua como patrimônio, pode-se realçar a perspectiva da partilha de uma língua comum como fator de identificação e aproximação entre os diferentes países de língua portuguesa, num contexto de mútuo benefício, e, com isso, defender-se a aprovação do acordo. No entanto, a partir do mesmo argumento, podese construir uma relação em sentido contrário, ou seja, pode-se destacar a noção de língua como patrimônio, identidade e cultura, mas, nesse contexto, atribuir valor, não àquilo que há de comum, mas, sim, às diferenças que caracterizam os distintos modos de falar e escrever a língua nos diferentes países, isto é, valorizar a diversidade. Nesse cenário, o acordo representaria uma ameaça a essa diversidade e, portanto, não deveria ser adotado. Essas duas perspectivas são, respectivamente, exemplificadas nos seguintes extratos:

 

O nosso grande património é termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com Moçambique… tudo o que pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é decisivo para nós. [SL02-1] A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força. Eu vou continuar a escrever como antigamente. A diversidade de vocabulário escrito e falado no Brasil, Angola, Portugal, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e noutros são uma riqueza cultural. [PB07-1]

Especificamente nas discussões em torno do acordo ortográfico propriamente dito, a questão acima é retomada: o AO, em sua pretensão de unificação de grafias, é criticado em contextos que, em geral, realçam as diferenças que subsistem ou mesmo que afloram após o acordo, assim como a impossibilidade de superar as diferenças intrínsecas a cada país por meio da língua, ou melhor, da unificação da grafia. Em sentido inverso, mas visando ao mesmo objetivo, ou seja, à não adoção do acordo, são desenvolvidos argumentos que caracterizam o AO, mais uma vez em sua pretensão unificadora, como uma ameaça à riqueza cultural concretizada na diversidade. Entre os autores favoráveis ao

173

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

AO, por outro lado, privilegia-se a ideia de acordo e o potencial positivo da unificação. São exemplos dessas linhas de argumentação as citações que seguem:





Além disso, é muito de estranhar que, no ano em que o Brasil se apresenta em Portugal e Portugal se apresenta no Brasil com tanta pompa e circunstância, nenhum dos países interessados tenha feito qualquer reparo à maneira como a grafia do português, que se pretende oficial e oficiosamente seja agora adoptada em Portugal, consagra uma série de enormidades que não estão, nem podem estar, a ser aplicadas no Brasil e que aumentam a desconformidade com a maneira como a língua se escreve de um lado e do outro. [DN17-3] O que vale aqui é o princípio. É termos permanentemente na cabeça a ideia de que todos ganham se em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em S. Tomé, em Cabo Verde, na Guiné e em Timor se escrever do mesmo modo. [SL02-5]

Análise das relações comparativas assimétricas

Completada essa primeira etapa, passa-se à análise das relações comparativas assimétricas, num total de quarenta e oito, que representam 51,1% do total das relações de comparação, como já destacado no Quadro 6.2. Nessa categoria, foram classificadas as relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais nas quais os diferentes intervenientes assumem posições desiguais, sendo possível identificar um pólo forte e outro fraco, ou seja, uma posição de vantagem e uma posição de desvantagem, como já referido. Assim como nas relações comparativas simétricas, aqui também se verifica a incidência do Brasil como principal interveniente. Nessas relações comparativas assimétricas, o país surge em trinta e seis ocorrências, o que representa 75% do total, como registrado no Quadro 6.11:

Intervenientes Brasil Outros Total

Quantificação (%) 36 (75%) 12 (25%) 48 (100%)

Quadro 6.11 – Relações assimétricas: intervenientes

Considerando-se apenas os casos em que o Brasil figura como interveniente, em trinta e três deles, ou seja, em 89,2% do total, ele aparece sozinho, como registrado no Quadro 6.12. O Brasil é, portanto, e isoladamente, o principal interveniente nas 174

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

representações que estabelecem algum tipo de contraste ou comparação, marcada pela desigualdade, entre Portugal e outras entidades de cariz nacional ou supranacional.

Brasil Como único interveniente Como um dos intervenientes Total

Quantificação (%) 33 (91,7%) 3 (8,3%) 36 (100%)

Quadro 6.12 – Relações assimétricas: o Brasil como interveniente

Há, portanto, apenas três situações em que o Brasil não é o único interveniente, surgindo ao lado de Angola (PB06-5) ou dos demais países de língua portuguesa, nas referências a “espaço lusófono” (PB20-2B) e “outros países lusófonos” (PB26-3). Considerando-se, agora, os restantes doze casos em que o Brasil não surge entre os intervenientes, as relações comparativas assimétricas são estabelecidas entre Portugal e outros países de língua portuguesa predominantemente – em nove ocorrências, o que representa, portanto, 75% do total. Os únicos países não falantes do português que figuram nessas relações comparativas são a Espanha e a Inglaterra, como evidenciado no Quadro 6.13:

Intervenientes Países de língua portuguesa Outros Total

Detalhamento Angola Angola e Moçambique África, africanos Africanos e asiáticos Restantes países da CPLP (exceto Brasil) Espanha, Inglaterra

Quantificação 1 2 4 1 1

9 (75%)

3 (25%) 12 (100%)

Quadro 6.13 – Relações assimétricas: outros intervenientes

Uma vez analisadas as relações comparativas assimétricas como um todo, passa-se à classificação das mesmas em função das posições assumidas por ou atribuídas a Portugal, no âmbito das relações de força que elas delimitam e a partir das quais são construídas. Nessas relações assimétricas, predominam as ocorrências em que Portugal ocupa o pólo fraco, isto é, o da desvantagem ou da perda. Tais situações verificam-se em trinta e nove do total de quarenta e oito relações de comparação analisadas, representando 81,25% das ocorrências, como indicado no Quadro 6.14. 175

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Pólo Pólo Forte Pólo Fraco Total

Portugal 9 (18,75%) 39 (81,25%) 48 (100%)

Quadro 6.14 – Relações assimétricas: forças e fraquezas

Nas nove ocorrências em que se dá o inverso, ou seja, nos 18,75% dos casos em que Portugal ocupa o pólo da força, os intervenientes mais frequentes são os países africanos de língua portuguesa (PALOP), com sete ocorrências de um total de nove, o que representa 77,8% dos casos. Em três das ocorrências, que representam 42,9%, os PALOP são os únicos intervenientes, enquanto nas demais quatro, que representam 57,1%, surgem ao lado de outros países ou entidades, como registrado no Quadro 6.15.

Intervenientes Únicos intervenientes PALOP Entre outros intervenientes

Detalhamento África Africanos Angola, Moçambique, Guiné / países africanos de língua portuguesa Africanos e asiáticos Espaço lusófono (excluído o Brasil) Países lusófonos Restantes países da CPLP (excluído o Brasil)

Quantificação

3 (42,9%)

7 (77,8%) 4 (57,1%)

Outros 2 (22,2%) Total 9 (100%) Quadro 6.15 – Portugal no pólo forte: os PALOP como principais intervenientes

A seguir, em segundo lugar, surge Timor, com quatro ocorrências de um total de nove, o que representa 44,4% dos casos – embora nenhuma explícita nem individual. Depois, aparecem o Brasil, com duas ocorrências (22,2%) e, por fim, a Espanha, com apenas uma (11,1%), como se depreende do Quadro 6.16. Retomando-se a relação das entidades nacionais e supranacionais que intervêm nas relações comparativas assimétricas e, analisando, em cada uma delas que pólo ocupam nessa relação, tem-se o Quadro 6.17.

176

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

País

Detalhamento

Como único interveniente

Entre outros intervenientes

Ocorrências

0

4

4 (44,4%)

1

1

2 (22,2%)

1

0

1 (11,1%)

Africanos e asiáticos Espaço lusófono Timor Países lusófonos Restantes países da CPLP (excluído o Brasil) Aqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou Brasil melhor, com a melodia da voz Países lusófonos Espanha Espanhola

Quadro 6.16 – Portugal no pólo forte: Timor, Brasil e Espanha intervenientes

Intervenientes Brasil Brasil e Angola Angola Angola e Moçambique Países africanos de língua portuguesa Africanos e asiáticos Restantes países da CPLP (exceto Brasil) Espaço lusófono, outros países lusófonos Espanha Inglaterra Total

Pólo Forte/ Vantagem 32 1 1 2 1

Pólo Fraco/ Desvantagem 1

1 1 39

Total

3 1 1 2 1 9

48

Quadro 6.17 – Relações assimétricas: quadro geral

Analisando as relações de assimetria em que Portugal é posicionado no pólo fraco, ou seja, em desvantagem, temos, mais uma vez, o Brasil como interlocutor recorrente, figurando em trinta e três de um total de trinta e nove casos, ou seja, em 84,6% do total, como referido no Quadro 6.18. Com uma única exceção em que o Brasil surge ao lado de Angola, nos demais casos ele aparece como único interveniente. Angola, por sua vez, figura em cinco relações (12,8%), sendo o único interveniente em uma delas. Moçambique aparece em três casos, mas sempre acompanhado de Angola ou dos demais países africanos de língua portuguesa. Os únicos que não pertencem ao grupo de países de língua portuguesa a figurarem como intervenientes numa relação comparativa assimétrica em que Portugal ocupa o pólo fraco são a Espanha e a Inglaterra, como já mencionado.

177

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

País Brasil Angola Moçambique Espanha Inglaterra

Como único interveniente 32 1 0 1 1

Entre outros intervenientes 1 4 3 0 0

Ocorrências 33 (84,6%) 5 (12,8%) 3 (7,7%) 1 (2,6%) 1 (2,6%)

Quadro 6.18 – Portugal no pólo fraco: principais intervenientes

Na relação de comparação que envolve a Espanha, o desequilíbrio das posições ocupadas, com prejuízo para Portugal, é construído em torno de uma suposta indiferença espanhola em relação ao país vizinho, que, em alguma medida, traduz-se numa percepção de irrelevância ou na desvalorização do papel de Portugal, como abaixo exemplificado:



Quando falo com colegas, amigos ou familiares sobre o AO da Língua Portuguesa, eles ficam admirados. Não percebem e dizem que eles nunca permitiriam uma coisa dessas aqui. Não percebem e embora a maioria se esteja nas tintas (infelizmente, os espanhóis não ligam muito às notícias vindas de Portugal, embora ache que a tendência começa a mudar) quase sempre me perguntam: “E então, os portugueses não estão a fazer nada para evitar isso? Fosse aqui e eu…” Mas não é aqui, é aí . [PB29]

A relação de comparação estabelecida com a Inglaterra, por sua vez, é marcada pela ironia. Nela, atribui-se à Inglaterra uma habilidade no desempenho de uma atividade específica – neste caso, a jardinagem – que, segundo o autor, Portugal não partilha. Nesse quesito, a Inglaterra seria mais capaz que Portugal, ocupando, assim, o pólo da força/vantagem face a ele. As construções de comparação com Angola e Moçambique nas quais tais países surgem no pólo forte da relação são marcadas, de modo geral, pela avaliação positiva do comportamento de ambos no que se refere à não adoção da grafia definida pelo AO em função do fato de ambos os países não terem, à época da publicação dos artigos, ratificado o acordo. Estariam, portanto, em posição de vantagem, pois manteriam a correção da grafia das palavras. Tal correção decorre do fato de Angola e Moçambique seguirem escrevendo de acordo com as regras ortográficas em vigor antes do acordo, mantendo assim a ortografia antiga, seguindo o modelo do português europeu. Considerando-se, agora, apenas as representações de assimetria em que o Brasil ocupa, sozinho, o pólo da força, verifica-se que as estratégias adotadas são bastante diversas: num momento, promove-se a valorização do Brasil, noutro, desvaloriza-se Portugal, como exemplificado abaixo. Em alguns casos, ainda, tais estratégias são 178

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

combinadas. De todo modo, o objetivo é sempre o mesmo, posicionar Portugal no pólo fraco da relação.



Por outro lado, o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma questão política assaz bizarra. E a questão política actualmente resume-se a isto: estão a ser aplicadas não uma, mas três grafias da língua portuguesa. A correcta, em países como Angola e Moçambique, a brasileira (no Brasil) e a pateta (em Portugal e não se sabe em que outras paragens). [DN17-2]

Aprofundando essa análise, pode-se separar os argumentos utilizados nas estratégias de valorização ou desvalorização de Portugal e do Brasil em quatro grupos em função do conteúdo dos argumentos dos quais se valem: (i) argumentos de cedência de Portugal face ao Brasil, (ii) argumentos de maior força econômica do Brasil em relação a Portugal, (iii) argumentos de proteção do português europeu e correção da língua e (iv) argumentos de valorização e/ou aprovação de um comportamento ou imagem. É bem verdade que os argumentos acima mencionados surgem, com frequência, entrelaçados e sobrepostos, como se pode facilmente notar nos exemplos que serão dados a seguir – questão já tratada em oportunidades anteriores. Por esse motivo, é importante ressaltar que a segmentação aqui proposta visa apenas facilitar a análise dos dados e não estabelecer critérios rígidos de classificação ou categorização. Os argumentos de cedência (i) giram em torno da ideia de que o AO implicaria uma concessão de Portugal em relação ao Brasil, uma espécie de abdicação de poder ou mesmo de submissão: o acordo estaria mais inclinado para o Brasil, isto é, configuraria um indevido alinhamento do português de Portugal pelo português do Brasil. Também figuram nesse conjunto os argumentos que consistem em demonstração de força: o acordo foi impingido, os portugueses foram obrigados. São exemplos de tais argumentos os seguintes extratos:

 



Descaracterização da língua, submissão ao brasilês, com tudo se argumenta, até com o "matriotismo" obstinado do "foi assim que me ensinou a minha santa professora da escola primária" [DN03-1, destaques acrescentados] Tavares apresenta-se como arauto do alinhamento da ortografia do Português europeu pela do Português do Brasil, mas não adianta um único argumento a favor do “acordo”. Mistura alhos com bugalhos e agita todos os episódios da crónica política recente para “gozar” com as justificadas dúvidas de Graça Moura e dezenas de milhares de outros portugueses (e alguns brasileiros) que conseguiram bloquear a primeira tentativa de nos impingir o dito “acordo”. [PB05-2, destaques acrescentados] Do que gosto no novo Acordo Ortográfico, tão inclinado para o Brasil, é do seu lado português, como eu: um bocado feito em cima do joelho. [PB11-1, destaques acrescentados]

179

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Os argumentos de força econômica (ii) destacam a superioridade numérica brasileira em número de falantes e também em tamanho de mercado, assim como a sua posição econômica no cenário internacional. Fala-se em internacionalização do português do Brasil e da sua força no mercado editorial, como, por exemplo, no mercado das traduções de manuais técnicos. São exemplos de tais argumentos os seguintes extratos:

 

Porque é que os decisores políticos adoptaram um comportamento parolo, adequando, como dizem, a língua portuguesa escrita à língua portuguesa falada, quando a nação mais populosa não o fez da mesma maneira (…)? [PB03-1, destaques acrescentados] A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as traduções brasileiras em Portugal. [PB31-2, destaques acrescentados]

Os argumentos de proteção e correção da língua (iii) muitas vezes caracterizam o AO90 como ameaça ao português europeu, ao seu futuro e à sua aprendizagem. Apresentam as alterações ortográficas como erro e desrespeito a regras etimológicas, assumindo, de forma explícita ou velada, que a versão correta do português é aquela praticada em Portugal antes do acordo. Nessas representações, a assimetria de posições é, às vezes, construída por meio da crítica da ratificação do acordo por parte de Portugal, como exemplificado abaixo:



E o certo é que, se as coisas continuarem assim, dentro de uma geração ninguém conseguirá pronunciar correctamente a língua portuguesa tal como ela é falada deste lado do Atlântico. [DN17-1]

Em outros momentos, ao contrário, afirma-se situação de vantagem para o Brasil pelo fato de, após o AO90, a grafia de uma certa palavra ter-se mantido fiel à versão europeia, enquanto, simultaneamente, ter sido modificada em Portugal em função das diferenças de pronúncia, como ilustra o exemplo a seguir:



(…) palavras que todos escreviam da mesma maneira, tantas, passam a escrever-se, por imposição do AO, de modo diferente em Portugal, mantendo no Brasil grafia certa: recepção, percepção, confecção, ruptura, cacto, etc. [PB34-3, destaques acrescentados]

Também a contabilização do número de alterações demandadas pelo acordo no Brasil e em Portugal é objeto de comparação, em geral para afirmar, mais uma vez, vantagem para o primeiro. O quadro geral, portanto, é de que o Brasil estaria em vantagem

180

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

por contar simultaneamente com um maior número de exceções e um menor número de alterações no âmbito de aplicação do AO90, como já mencionado anteriormente. Os argumentos de valorização e/ou aprovação de um comportamento ou imagem (iv), em geral, valorizam o comportamento brasileiro e/ou criticam o comportamento português em questões relacionadas à língua, além de atribuir imagem negativa a Portugal. São exemplos de tais argumentos os seguintes extratos:

 

Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema “güe” na palavra “bilingüe” quando o trema foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)? [PB05-5, destaques acrescentados] Já os brasileiros continuarão a olhar para Portugal como um país mais deprimente do que aquilo que sempre foi: nos jornais, nos hotéis, nos organismos públicos, o país da omnipresente e sempiterna receção, perdão, rêcêssão. [PB30-1, destaques acrescentados]

Passa-se, agora, à análise dos nove casos em que Portugal ocupa o pólo da força numa relação assimétrica. Como já referido nos Quadros 6.13 e 6.14, os países africanos de língua portuguesa (PALOP) são os intervenientes mais frequentes, seguidos de Timor, Brasil e Espanha. Nas relações envolvendo os países africanos, a posição de vantagem atribuída a Portugal é construída a partir da ideia de que o AO representaria os interesses de Portugal – e também do Brasil – com total desconsideração pelos PALOP. Nesse contexto, tais países seriam considerados como irrelevantes, ou mesmo incapazes, no debate sobre o AO, controlado por Portugal e Brasil. Tais relações são, de modo geral, marcadas por um suposto protagonismo português na definição dos termos do acordo ortográfico face aos demais países de língua portuguesa, excetuado o Brasil. Vale ainda ressaltar que essas relações são construídas sempre na perspectiva da crítica, isto é, caracterizando essa manifestação de força como indevida, constituindo-se, assim, em mais uma estratégia de resistência ao AO. Timor, por sua vez, figura sempre ao lado dos PALOP e dos países lusófonos como um todo, nunca sendo nomeado expressamente, como indicado no Quadro 6.14. Sendo assim, todas as observações feitas acima para os PALOP também se aplicam a esse país. Mais uma vez, a posição de força/vantagem atribuída a Portugal é construída via afirmação da irrelevância e fraqueza de Timor, em função de seu papel secundário – ou mesmo da quase total ausência de participação – no debate sobre o acordo ortográfico. Em relação ao Brasil, o país é posicionado no pólo fraco da relação de comparação em duas ocasiões: em DN07-1, onde surge como único interveniente, e em PB26-3, onde 181

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

sua presença é inferida a partir da referência aos demais países lusófonos. Ambos os casos serão analisados a seguir; este é o primeiro deles:



É que se querem abdicar de certa grafia para mostrar superioridade de ex-potência colonial e facilitar a vida (a escrita) àqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor, com a melodia da voz, façam-no para exportação, mas conservem também no meio intelectual a forma antiga. [DN07-1, destaques acrescentados]

Na referência acima, Portugal surge imbuído de uma certa superioridade, apesar do tom irônico, associado ao seu passado histórico de país colonial. Essa mesma demonstração de força pode ser derivada da expressão “querer abdicar”, que remete para o cenário em que Portugal detém o poder, embora decida “abdicar” dele por sua própria vontade, ou seja, por seu próprio “querer”. A posição de força para Portugal também é construída a partir da desvalorização do seu oponente. Aqui, embora este não seja expressamente indicado, a identificação do Brasil como “(a)queles que só sabem escrever de acordo com o som ou com a melodia da voz”, nesse contexto, é significativamente forte. O Brasil também se faz presente na referência a Portugal como ex-potência colonial, a qual, a contrario sensu, traz para a discussão as ex-colônias portuguesas, entre elas o Brasil. Ainda assim, trata-se de uma construção complexa e com uma boa dose de ambiguidade, pois também carrega a perspectiva da perda. Em PB26-3, por sua vez, a posição de vantagem portuguesa é construída a partir da ideia de imposição da ortografia europeia aos demais países lusófonos. Essa hipótese é elaborada de forma a ressaltar sua inverossimilhança, numa estratégia de combate à acusação de que os opositores ao AO se consideram “donos da língua”. De acordo com o autor, tal argumentação só seria sustentável se o acordo ortográfico representasse a imposição da ortografia europeia aos demais, como mencionado. Isso significa dizer que, embora nessa relação Portugal ocupe o pólo da força/vantagem, ela é construída como falsa. Por fim, naquele único caso em que a Espanha (PB29-1) surge como interveniente, figurando no pólo mais fraco, essa desvantagem é construída a partir da ideia de ilegitimidade, assumida pela autora, para participar do debate sobre o AO. Essa ilegitimidade se fundamenta no fato de a autora ser espanhola, e não portuguesa, como já anteriormente referido. Portanto, nessa condição, sua intervenção teria de ser justificada sob o risco de ser considerada uma intromissão indevida num debate que supostamente não

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Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

lhe diz respeito. Em outras palavras, no debate sobre o AO, em relação aos espanhóis, os portugueses são os interlocutores privilegiados. Excluídos os dois casos em que o Brasil figura entre os intervenientes (DN07-1 e PB26-3) numa relação assimétrica em que Portugal ocupa o pólo da força/vantagem e o caso em que a Espanha participa (PB29-1), nos demais casos – ou seja, em seis de nove comparações (66,7%) – Portugal não está sozinho, partilhando a posição de vantagem com o Brasil. Isso ocorre porque tais relações de assimetria ora analisadas fazem parte de situações comparativas complexas, compostas por diferentes relações entrelaçadas, ou seja, situações em que, muitas vezes, relações de comparação simétricas e assimétricas convivem entre si. Embora, neste momento, o foco desta análise incida exclusivamente sobre as relações assimétricas nas quais Portugal ocupa o pólo da força/vantagem, a informação acima parece relevante para uma reflexão mais apurada. Portanto, fica aqui a ressalva de que seis das nove relações de comparação ora analisadas são precedidas ou entrelaçadas por outras relações de simetria entre Portugal e Brasil, como exemplificado abaixo:



Em 1990, ilustres detentores de uma certa Ortografia da Língua Portuguesa babaram-se de prazer e glória ao verem no papel o ‘Novo Acordo’. Africanos e asiáticos falantes e escrevedores da Língua, conhecidos por ‘falarem à preto’ foram obrigados a ver passar o comboio ortográfico de portugueses e brasileiros. [CM02-1, destaques acrescentados]

Há, aqui, um duplo rebaixamento da posição de “africanos e asiáticos”. Primeiro, explícito, pois são obrigados a alguma coisa, ou seja, submetidos à força. Depois, implícito na limitação do seu modo de falar a uma certa cor da pele, “raça” ou etnia e também na sua classificação como “escrevedores” da língua, e não simplesmente “os que escrevem”, por exemplo. Essa sucessão de generalizações – “africanos e asiáticos” que falam “à preto” – associada à presunção de verdade partilhada – “conhecidos por” falarem assim – evidenciam e reforçam uma visão preconcebida e distorcida do outro. Nesse mesmo sentido, vale referir a citação abaixo:



Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90 vem consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e outra para o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades ortográficas dos restantes países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma, ou a outra - a menos que surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor... (PB20-1B, destaques acrescentados)

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Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

No extrato acima, após a construção de uma relação comparativa simétrica entre Portugal e Brasil, passa-se para uma segunda relação, dessa vez assimétrica, entre Portugal (e Brasil) e demais países de língua portuguesa (Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor). A assimetria de posições é evidenciada pela expressão “singular menoscabo” e pela obrigatoriedade expressa em “terão de aderir”. Esse último caso é também exemplo de situações de comparação complexas em que primeiro se desenha uma relação de paridade ou equivalência entre Portugal e Brasil para, a seguir, estabelecer relação de força face aos demais países de língua portuguesa. Para concluir a análise das relações comparativas assimétricas, importa ainda analisar três outros extratos – identificados como DN09-1, DN17-4 e PB33-1 – que parecem ter sido construídos de forma a dificultar ou mascarar a identificação das relações de força que estabelecem. Em todos eles, embora Portugal seja posicionado no pólo fraco da relação, persiste a ideia velada de uma certa superioridade portuguesa em relação aos seus pares, como referido abaixo:



Diga-se apenas que nem mesmo o Brasil aceita a carnavalização da grafia que está a ser praticada em Portugal! [DN09-1, destaques acrescentados]

Embora essa construção posicione o Brasil no pólo de força face a Portugal, ela traduz uma visão de mundo compatível com a ideia de superioridade portuguesa. Essa interpretação baseia-se no uso da expressão “nem mesmo o Brasil”, que traduz surpresa, isto é, contrariedade de expectativas. Os critérios de aceitação brasileiros seriam – ou deviam ser, era esperado que fossem – mais baixos do que os dos portugueses. O uso da expressão “carnavalização” também contribui para essa identificação, pois, embora possa assumir diferentes significados, não deixa de invocar o Carnaval – festa popular fortemente associada à imagem pública do Brasil – que ainda poderia remeter para uma espécie de licenciosidade, um ambiente onde tudo é possível e nada deve ser levado a sério. Passando-se à análise do extrato seguinte, é a vez de Angola e Moçambique se juntarem ao Brasil como intervenientes, conforme a seguinte citação:



Talvez tenhamos de esperar que se realize um ano de Angola em Portugal e de Portugal em Angola para o problema merecer atenção. E então não será de estranhar que tenhamos de agradecer aos angolanos um rigor na grafia da nossa língua de que, por cá, nós portugueses já não somos capazes. [DN17-4, destaques acrescentados]

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Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Nessa construção de assimetria, embora Angola seja posicionada no pólo da força, pois surge como protetora da língua, mais capaz do que Portugal na realização dessa tarefa, novamente está implícita a ideia de superioridade portuguesa. Ela transparece na expressão “não será de estranhar”, que, embora pela negação, pressupõe haver uma contrariedade de expectativas, e pelo reforço do papel de Portugal como detentor da correção da língua. Esta última afirmação decorre de se classificar a grafia do português em Angola e Moçambique como sendo a “correta” – à medida que preserva a grafia portuguesa pré-acordo – e, simultaneamente, de negar essa condição à grafia brasileira. Finalmente, no último extrato a ser analisado, o Brasil retorna à posição de único interveniente, como se depreende da seguinte citação:



Torna-se igualmente caricato que se faça rasura da etimologia e ela permaneça refém da fala e de formas de articulação volúveis. E constatar que no Brasil será preservada alguma morfologia etimológica torna a questão ainda mais absurda (lá, dir-se-á “concepção”, “recepção”, etc., coisa esquecida por cá). (PB33-1, destaques acrescentados)

No exemplo acima, constrói-se uma relação de assimetria, marcada pela vantagem do Brasil. No entanto, a expressão “ainda mais absurda” parece fazer transparecer uma relação de forças diferente. Embora o absurdo da situação possa estar relacionado com o fato de haver diferenças, é possível interpretar esse aumento de intensidade “ainda mais” como associado ao fato de ser o Brasil a preservar “alguma morfologia etimológica”, quando tal papel deveria ser atribuído a Portugal. Essa interpretação é compatível com a ideia de Portugal como matriz e do português europeu como sendo o mais correto e, portanto, o padrão a ser seguido.

Consolidação da análise

Na análise das posições de força assumidas pelos ou atribuídas aos diferentes países em situações de contato e comparação, verificou-se o ligeiro predomínio das relações de assimetria (51,1%), ou seja, de situações em que são estabelecidas forças diferentes entre os diversos interlocutores. Portugal, na grande maioria das vezes, ocupa o pólo fraco dessas relações. Embora diferentes países tomem parte nessas caracterizações, especialmente aqueles envolvidos na discussão do tratado internacional sobre o acordo ortográfico, o 185

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Brasil se destaca como interveniente recorrente. Tal insistência é compatível com o contexto de análise dos artigos sobre o AO: afinal, embora seja razoável esperar que a língua portuguesa assuma contornos específicos em cada um dos países que a falam, em geral são identificadas duas versões majoritárias entre os quatro países que reúnem o maior número de falantes do Português – a versão brasileira (praticada no Brasil) e a versão europeia (praticada em Portugal, Angola e Moçambique). Nesse sentido, parece haver uma polarização maior entre Portugal e Brasil, que decorre, pelo menos em parte, das maiores diferenças registradas entre o português falado num e noutro país. Soma-se a isso o fato de Angola e Moçambique, à época da publicação dos artigos, ainda não terem ratificado o AO, como já mencionado. Essa análise corrobora, em alguma medida, a prevalência da ideia de que o AO90 seria mais benéfico para o Brasil do que para Portugal, partilhada por boa parte dos autores que se opõem ao acordo – os quais respondem, em conjunto, por 77,8% do total de sessenta e três artigos analisados. Nas situações de simetria, ou seja, de equivalência de forças, houve um certo equilíbrio entre as estratégias de construção de movimentos de divergência e convergência, com relativa vantagem para a primeira – 52,2% contra 47,8% respectivamente. Mais uma vez, o Brasil é o interveniente mais frequente, figurando em 91,3% das relações de simetria – porcentagem superior, portanto, àquela verificada nas relações assimétricas, em que o Brasil participa de 75% do total. Deixando de lado a distinção entre relações comparativas simétricas e assimétricas e considerando-se, assim, o total de noventa e quatro relações identificadas, o Brasil aparece entre os intervenientes em 83% delas, ou seja, em setenta e oito do total de casos, como indicado no Quadro 6.3. Na perspectiva da construção das identidades nacionais, a valorização das diferenças entre países – em simultâneo ao apagamento das mesmas no interior do espaço nacional – configura um dos mecanismos mais básicos desse processo. No contexto específico do AO90, porém, a aplicação dessa perspectiva identitária parece instituir uma dualidade: por um lado, quer-se valorizar a identidade da língua, isto é, a noção de partilha de algo comum entre os diferentes países de Língua Portuguesa, por outro, as diferenças também precisam ser trazidas à tona – e valorizadas – num cenário em que um grupo de países interage e negocia. Além disso, no contexto de contato e negociação entre Estados nacionais, não parece possível nem exequível manter-se o caráter nacional fora do debate. No entanto, tal 186

Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

carácter, ao mesmo tempo em que atua como um importante elemento de valorização da diversidade, também fomenta conflitos, os quais, a rigor, devem ser resolvidos num contexto de paridade de forças, como requer o ambiente democrático. Conclui-se, desse modo, a análise das relações de comparação estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais no âmbito do debate sobre o acordo ortográfico. Os principais resultados encontrados foram sintetizados no Quadro 6.19 e serão retomados no capítulo seguinte, em que toda análise de dados realizada nesta segunda parte da presente pesquisa será contrastada com o desenvolvimento teórico elaborado na primeira parte.

Relações Simétricas

Principais resultados ∙Ligeiramente menos frequentes (48,9%) do que as relações assimétricas ∙Brasil como interveniente frequente (91,3%) ∙Quando o Brasil é o único interveniente, prevalece a divergência (61,5%) ∙ Quando o Brasil é um dos intervenientes, prevalece a convergência (59,25%) ∙Quando o Brasil não figura entre os intervenientes, prevalece a convergência (75%) Assimétricas ∙Ligeiramente mais frequentes (51, 1%) do que as relações simétricas ∙Brasil como interveniente frequente (75%) ∙Portugal ocupa, predominantemente, o pólo fraco da relação de comparação (81,25%) ∙Em 66,7% dos casos em que Portugal ocupa o pólo da força, divide essa posição com o Brasil ∙AO como cedência de Portugal face ao Brasil ∙Maior força econômica do Brasil em relação a Portugal ∙AO como ameaça/risco ao português europeu ∙Português europeu como o mais correto Quadro 6.19 – Relações de simetria e assimetria: quadro-resumo

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Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Síntese

Uma vez identificada a perspectiva de análise desenvolvida neste capítulo – o estudo comparativo das posições ocupadas por Portugal em relação a outros países e entidades nacionais e supranacionais –, passou-se à classificação de tais situações em simples ou complexas. As relações identificadas foram separadas em duas categorias: uma indicativa da paridade de forças entre os intervenientes – relações simétricas – e a outra indicativa de um déficit ou de uma diferença de forças – relações assimétricas. As relações simétricas foram ainda analisadas em função dos movimentos de aproximação e afastamento construídos entre os intervenientes, sendo classificadas como convergentes e divergentes respectivamente. Nas relações assimétricas, foram identificados os países que ocupavam quer o pólo forte quer o pólo fraco. Considerando-se Portugal como o país de referência, tais relações foram classificadas como de força/vantagem quando Portugal ocupava tal posição e como de fraqueza/desvantagem quando tal não ocorria. Por fim, os principais resultados foram sintetizados num quadro-resumo.

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Capítulo 7 Reflexão final A perspectiva dos marcadores identitários A perspectiva das relações de comparação Repercussões e desdobramentos

O recurso à língua como fator de identidade consistiu numa estratégia recorrente ao longo do século XIX, especialmente a partir de sua segunda metade, na construção das identidades nacionais na Europa. No entanto, neste início de século XXI, marcado pelos processos de globalização e por profundas transformações do tecido social, no contexto da modernidade tardia, resta saber se a relação entre língua e identidade nacional permanece – e, se permanece, em que termos. Neste capítulo, retoma-se os resultados da análise do corpus, desenvolvida na segunda parte da pesquisa, especialmente nos dois capítulos anteriores, para, numa perspectiva comparada e interessada, reavaliá-los a luz do enquadramento teórico-metodológico elaborado na primeira parte. As teorias sobre os nacionalismos e sobre as identidades são assim mobilizadas para dar sentido a – ou, ao contrário, para pôr em causa – os discursos e representações identificados no exame dos artigos de opinião sobre o acordo ortográfico. Como ponto de partida, traz-se novamente ao debate o conjunto de temas que informam os chamados marcadores identitários, ou seja, elementos utilizados de modo recorrente no processo de construção das identidades nacionais. Pátria, nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz foram os conceitos assim identificados e que agora retornam ao centro do debate sobre a relação entre língua e identidade nacional na Europa. A seguir, retoma-se a análise das diferentes posições assumidas por e construídas para Portugal nas situações de contato e contraste com outras entidades nacionais ou supranacionais, realizada no capítulo seis. Procura-se, agora, constituir uma visão de conjunto, que dê conta das perspectivas teóricas e das análises práticas e que revele os diferentes discursos elaborados em torno da ideia de língua e identidade. Por fim, concluída a análise comparada do recorte teórico-metodológico adotado e dos resultados do estudo de caso, passa-se às reflexões finais sobre o tema central desta investigação, ou seja, sobre o papel simbólico da língua na construção discursiva das identidades nacionais. Esse esforço final implica a tentativa de se recontextualizar os

Reflexão final

discursos sobre língua e identidade num dado contexto espaço-temporal – a Europa deste início de século – e de se refletir sobre possíveis ou potenciais repercussões e desdobramentos. O objetivo deste capítulo é sistematizar as reflexões e análises realizadas no decorrer desta pesquisa, de modo a reunir e identificar as principais representações construídas em torno da ideia de língua e de identidade nacional. Procura-se, assim, promover uma espécie de mapeamento que – espera-se – possa contribuir para uma reflexão crítica e uma melhor compreensão do tema.

A perspectiva dos marcadores identitários

Os primeiros elementos identificados como pertencentes à categoria de marcadores identitários analisados neste estudo foram pátria e nação. Partindo-se do conceito de pátria, em geral, os discursos construídos em torno dele estabelecem uma relação direta com a ideia de língua. Na maior parte dos casos, entretanto, nega-se a interdependência entre um e outro, ou seja, a associação entre língua e pátria é invocada para, logo a seguir, ser negada ou contestada. Considerando-se o viés argumentativo dos artigos de opinião, a insistência nesses discursos de associação parece indicar a existência de uma crença ou, ao menos, de uma expectativa partilhada de que a língua é indicadora ou reveladora da existência de uma pátria a ela relacionada. Numa associação ainda mais elementar, tem-se a língua como constituidora da ideia de pátria e definidora dos seus limites. Se tal não fosse verdade, não seria razoável recorrer a esses discursos com tanta frequência apenas para negá-los. Por outro lado, essa negação carrega em si mesma um indicativo ou uma tentativa de mudança; afinal, reconhecese a força do discurso, mas persiste a estratégia de resistência ou desafio a ele. Assim como pátria, o conceito de nação também foi considerado nesta análise. Embora ambos os termos, em determinados contextos, possam assumir significados bastante próximos, parece interessante tentar delinear aqui possíveis diferenças entre eles. No contexto da pátria, temos os cidadãos; no contexto da nação, temos o povo. Com tal associação pretende-se reconhecer a existência de um acentuado viés político e de organização social associado à ideia de pátria, onde a perspectiva da participação ou pertença é regulada por lei e opcional, isto é, resulta de uma escolha, embora condicionada. Por outro lado, em relação à 192

Reflexão final

nação (em sentido estrito, excluindo-se, portanto, o conceito de Estado-Nação), a referência a povo implica a noção de pertença, que decorre do nascimento, da ideia de etnia e origem e que, por tal motivo, já não trata de questões de escolha ou opção, mas, sim, de predeterminação. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, no contexto da pátria, a língua nacional confunde-se com a noção de língua oficial; no contexto da nação, a língua nacional confundese com a noção de língua materna. Mantém-se, assim, as mesmas distinções: pátria como espaço marcado pela organização política e social, pela perspectiva da escolha e, sobretudo, pela regulação da lei, e nação como espaço marcado pelas raízes, pelas relações familiares e afetivas, pela predeterminação. Se o esforço, acima esboçado, de caracterização e distinção entre pátria e nação fizer algum sentido, pode-se pensar o conceito de pátria como estando interligado à ideia de mobilização social e de ação política – talvez, por isso, tenha se verificado uma apropriação mais direta do conceito de pátria (“minha pátria”, “nossa pátria”) do que de nação. Além disso, na discussão sobre o acordo ortográfico, onde predominam artigos de oposição ao mesmo, prevalece a incitação à ação: os opositores incitam à ação de resistência, à mobilização de todos os descontentes com o acordo – haja vista a proposta da ILC-AO, Iniciativa Legislativa de Cidadãos, contra a entrada em vigor do Acordo Ortográfico. Por esse motivo, mais uma vez, a relação de associação direta entre língua e pátria parece mais interessante do que com nação. Nesse mesmo sentido e no que diz respeito à nação, em geral, a relação com a língua não predomina, embora haja, excepcionalmente, algumas afirmações bastante fortes de associação entre nação e língua, como referido no capítulo cinco. Parece haver também um maior grau de abstração associado à nação em comparação com pátria, o que implicaria um campo de significação maior para a primeira. Um indicativo dessa amplitude é a condição do modificador nacional/is, cuja utilização é bastante alargada, o que explica, em boa parte, sua frequência e a diversidade de associações (classificadas, nesta análise, em três campos distintos: político-institucional, cultural e espacial, com predomínio do primeiro). De qualquer modo, esse exercício de distinção entre pátria e nação serve apenas como estratégia de reflexão, uma vez que, no âmbito deste trabalho, não se pode estabelecer com clareza as linhas divisórias entre um e outro conceito. Retomando a perspectiva histórica do desenvolvimento dos nacionalismos na Europa, especialmente o século XIX, destaca-se, agora, o processo concomitante e interdependente de desenvolvimento das chamadas línguas nacionais e de definição das fronteiras, que parece 193

Reflexão final

alcançar alguma estabilidade – embora precária e relativa – na segunda metade do século XX, após as duas grandes guerras. Esse é também o período de construção e afirmação das culturas nacionais, que conduzem, na chegada do novo milênio, a uma comunidade europeia de países com línguas e fronteiras definidas. Mas, no exato momento em que essa fixidez e essa estabilidade parecem se tornar realidade, elas começam a se desmoronar; afinal, o mundo segue em movimento. Agora são as novas tecnologias de comunicação, os novos recursos de mobilidade, as novas relações de força, as novas interdependências, os novos aliados e inimigos, novos valores e princípios e uma nova organização geopolítica que emergem a partir dos diferentes processos de globalização, no contexto desta modernidade tardia. As fronteiras nacionais são postas em causa e transformadas, especialmente no âmbito da União Europeia, assim como a noção de pureza e homogeneidade das línguas nacionais e a valorização das línguas-padrão em detrimento de quaisquer outras. Num cenário de mobilidade que se traduz, entre as várias formas possíveis, em acirramento dos movimentos migratórios e de multiplicação das situações de contato e contaminação entre línguas, novas políticas e novas teorias são desenvolvidas, muitas delas a favor da pluralidade e da diversidade. Nesse mesmo cenário, mas agora resgatando-se a associação entre língua e nação, que se fez marcadamente presente nos nacionalismos europeus, alcança-se a perspectiva do direito: o direito à língua confunde-se com o direito à nação. O recurso à língua como fator de identidade e estratégia de homogeneização, que tanto beneficiaram o processo de construção das nações, agora, se mantido, transforma-se em ameaça à integridade nacional, uma vez que, no interior do território da nação, a diversidade linguística, sempre presente, ganha notoriedade. Consequentemente, num contexto marcado pela diversidade e pluralidade de línguas convivendo num mesmo espaço nacional, o conceito de uma língua, uma nação precisa ser revisto e transformado, o que implica a necessidade de tranformação da própria ideia de língua nacional como sendo a língua materna de um determinado povo. Os discursos de associação entre pátria, nação e língua começam a mudar – mas mudar leva tempo e há sempre resistência. Os resultados do estudo de caso – com seus discursos de afirmação e resistência à associação entre língua e pátria, por exemplo – parecem apontar nessa direção. Outro tema que também se relaciona com os conceitos de pátria e nação e que foi aqui analisado foi soberania. O conceito de soberania, tão caro aos discursos de afirmação dos chamados Estados-Nação, tem sido rediscutido à luz do atual cenário social, político e 194

Reflexão final

econômico, caracterizado por uma crescente interdependência entre os Estados, associada aos processos de globalização. Em geral, não há representações que estabeleçam relação direta entre soberania e língua; ela surge, por outro lado, associada à ideia de Estado ou governo, num contexto que remete para perda ou enfraquecimento do poder estatal. Tais construções corroboram os discursos atuais sobre a perda de soberania dos Estados no cenário internacional, e não só, face a interdependência política, econômica e social associada à globalização, como acima apontado. Como ponto de partida, podemos entender soberania como sendo o poder de um país de decidir o seu próprio destino, pelo menos teoricamente, sem intervenções externas ou condicionamentos. É o livre arbítrio aplicado ao Estado-Nação. Na prática, no entanto, sempre houve condicionamentos de natureza diversa – sejam eles diretos ou indiretos, explícitos ou não. Nas sociedades ocidentais atuais, marcadas por uma intensa mobilidade, pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação e pela crescente interdependência entre Estados, entre outros fatores, tais condicionamentos assumiram proporções de grande vulto a ponto, talvez, de pôrem em causa a ideia de soberania em seus contornos originais. Ainda no que diz respeito ao conceito de soberania, parece relevante fazer aqui uma distinção entre duas perspectivas distintas. Por um lado, pode-se pensar a soberania no contexto de perda ou enfraquecimento do poder ou da capacidade de um país decidir sobre um certo tema por ter delegado tal poder, de forma voluntária e consciente, para os órgãos de decisão colegiada da união europeia. Por outro, pode-se pensar a soberania no contexto de perda ou enfraquecimento, porque um país, mesmo mantendo seu poder ou sua capacidade de decidir, já não pode controlar ou conter a aplicação e/ou os resultados dessa decisão em função de fatores externos a ele, mais uma vez associados aos processos de globalização e ao desenvolvimento de novas tecnologias. A questão da soberania perpassa a discussão do próprio projeto europeu, assim como suas possibilidades de organização interna e sua imagem ou identidade no campo internacional. Na condição de união entre países soberanos e distintos, é preciso definir de quanto dessa soberania cada país deve abdicar a favor da unidade e como fazê-lo. Ainda hoje, essa discussão vem sendo travada. No caso de Portugal, a pertença a uma entidade supracional, como a União Europeia, parece tornar ainda mais evidente esse embate de forças marcado pelos discursos de ameaça à ou perda de soberania. Giddens (2014: 11), ao refletir sobre tais questões, ou seja, sobre os discursos de perigo ou ameaça de perda de soberania, no âmbito da UE, alerta para o fato, difícil de 195

Reflexão final

contestar, de que não se pode falar em perda daquilo que já não se tem: “Não se pode entregar aquilo que já está perdido. É escasso o poder que as nações detêm individualmente na cena mundial”. No contexto desta pesquisa, no entanto, não parece fazer sentido aprofundar essa discussão. A rigor, o que importa ressaltar é que o AO90 representa um acordo entre diferentes países, concretizado na forma de um tratado internacional, o que necessariamente implica um jogo de forças e negociação de interesses entre países, remetendo para a questão da soberania. O fato de o tema da soberania vir à tona no âmbito de um acordo internacional sobre ortografia parece, ainda, reforçar, por si só, a imbricação entre língua, nação e identidade nacional, mesmo que de forma indireta. Uma vez que o que interessa aqui é pensar, como sempre, o papel simbólico da língua em sua relação com as identidades nacionais, a perspectiva da perda da soberania ajuda a construir um cenário caracterizado pelo perigo e pela ameaça, que agora pairam também sobre o conceito de língua, trazendo a discussão sobre o AO para o campo da política e da afirmação nacional. Por fim, a referência, embora única, à soberania cultural concorre para explicitar essa relação com a língua, desdobrando-se na associação entre língua e cultura e, por sua vez, entre cultura e identidade, temas que serão analisados mais à frente. Aqui, a relação que interessa é aquela estabelecida entre soberania e identidade nacional, tendo a cultura como elo. Nesse sentido, a ideia de soberania se estende para outros campos além da política, em outras palavras, um país soberano deve assim o ser em todas as suas esferas de atuação. Do mesmo modo que soberania, outro tema considerado na identificação dos marcadores identitários foi o conceito de povo. Na análise das referências a povo, interessa destacar principalmente os discursos de associação com a língua. Nessas representações, a língua surge como elemento constituidor do povo ou revelador de uma certa etnia/origem. A língua é também associada a um particular modo de viver e pensar, retomando a perspectiva da língua como condicionadora de uma visão de mundo na esteira do pensamento de Wittgenstein ou de Sappir e Whorf, como referido no capítulo três, ou da própria linguística sistêmico-funcional, no seu princípio de que as línguas são estruturadas pelo uso e pelas necessidades dos seus falantes. Nesse contexto, parece haver uma espécie de fusão dos conceitos de povo, língua e identidade, criando-se um amálgama onde já não é possível separar cada um desses elementos com facilidade. Ampliando-se o conceito de identidade individual para o de identidade nacional, a nação passa a figurar nessas relações, onde povo, língua e identidade conduzem ao reconhecimento de uma nação, com tudo o mais que isso implica. 196

Reflexão final

A perspectiva patrimonial também é revelada em discursos que identificam o povo como sendo o legítimo proprietário da língua e da nação e, portanto, aquele que detém direitos sobre ela e sobre o seu destino. É bem verdade que as representações construídas em torno de povo revelam relações de poder em que este ocupa, na maioria das vezes, o pólo mais fraco. No entanto, tal situação não impede nem afeta o reconhecimento de que cabe a esse mesmo povo o direito à língua/nação – afirmação que consiste, inclusive, num dos fundamentos do discurso democrático. Em resumo, retomando-se a relação entre povo, língua e identidade, os discursos e representações construídos em torno dela envolvem questões de controlo, poder e interdependência, num contexto em que, embora se atribua ao povo um conjunto de direitos sobre a língua e a nação, tais direitos lhe são usurpados, ou seja, o povo, em permanente situação de fraqueza ou debilidade, não pode, não sabe ou não é capaz de exercer os seus direitos. Partindo-se, outra vez, da perspectiva das teorias dos nacionalismos, pode-se pensar as representações de povo face à importância atribuída à mobilização das massas nos movimentos nacionalistas, para a qual concorre a criação e multiplicação dos símbolos nacionais. Nesse contexto, a língua, como símbolo da nação, ganha destaque e importância, sendo tal associação utilizada como recurso de sensibilização para o caráter identitário das discussões sobre o AO90. Não se trata, portanto, de discutir apenas questões de ortografia, mas sim de proteger uma certa identidade nacional. A ideia de um povo fragilizado, sem vontade ou iniciativa, que alimenta boa parte das representações construídas em torno dele, é, em alguma medida, consistente com a ainda recente experiência ditatorial portuguesa e compatível com as reflexões e os cenários delineados a partir de Gil (2008), Lourenço (1988) ou Sousa Santos (2001), discutidos no capítulo quatro. Nesse sentido, os dados obtidos a partir do estudo de caso parecem confirmar tais posições. Vale também referir que, à luz dos atuais desenvolvimentos dos meios de comunicação e das transformações sociais que são tanto origem como consequência dos mesmos, essas relações de força são afetadas. Novas formas de manifestação e expressão são colocadas à disposição das pessoas em geral – ou seja, do povo – num movimento que ainda não se sabe se conduzirá a mudanças efetivas. De qualquer modo, o cenário desenhado a partir do estudo de caso parece datado de alguma forma. No entanto, a partir dos dados obtidos neste momento, não se pode especular mais do que isso.

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Reflexão final

Passando-se à análise do conceito de cultura, como regra geral, persiste a associação entre esta e a língua, que é, em geral, afirmada ou mesmo dada como certa logo à partida. Língua e cultura são assim posicionadas numa relação direta, caracterizada pela interdependência. Essa perspectiva parece condizer com as atuais teorias que exploram as funções e capacidades da língua para além da comunicação ou da função comunicativa. Os conceitos de língua e cultura são, assim, entretecidos a partir da ideia de que a língua carrega em si mesma valores, princípios, visões de mundo, pensamentos e sentimentos – em outras palavras, a língua implicaria um modo de ser e estar no mundo. Nesse sentido, pode-se dizer que a língua carrega cultura – produz e é produzida por uma cultura, ou seja, é, simultaneamente, criadora dessa cultura e sua criatura. Levando-se em conta a afirmação acima, não surpreende o fato de, muitas vezes, identidade e cultura serem utilizadas como sinônimos. Com a ampliação do conceito de cultura – que encontra na definição da UNESCO, citada no primeiro capítulo, um bom exemplo – e sua valorização, ela passa a ser um recurso frequente e cada vez mais relevante no processo de construção de identidades. Além disso, essa abertura ou ampliação do conceito de cultura também promove um maior grau de abstração, alargando seu campo de significação e uso. Desse modo, atribui-se à ideia de cultura maior elasticidade e flexibilidade, permitindo que ela seja utilizada em contextos bastante diversos, com significados distintos. A cultura torna-se assim uma espécie de vale-tudo, sendo mobilizada em discursos de natureza social, política, econômica, etc., como exemplificam as expressões cultura econômica, cultura política, soberania cultural, cultura literária, cultura nacional entre tantas outras. Nesse contexto de associação entre língua e cultura, uma eventual alteração da língua provocaria uma alteração da cultura a ela relacionada, sendo tal mudança, em geral, identificada como ameaça ou perigo. Levando-se em conta o contexto do AO, há várias perspectivas a analisar aqui. Em geral, para os autores que se opõem ao acordo, a alteração ortográfica prevista por ele implica alteração à língua e, portanto, configura ameaça à cultura nacional. Para os que são favoráveis, no entanto, tal alteração, sendo meramente ortográfica, não afetaria a língua propriamente dita e, muito menos, a cultura a ela associada. Há, ainda, uma terceira via de argumentação que é construída a partir de representações onde se afirma o caráter evolutivo da língua e sua constante transformação, sem que tais mudanças sejam caracterizadas como negativas ou como uma ameaça. Afastamse, assim, ou relegam a um segundo plano, a questão da associação entre ortografia e língua e,

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consequentemente, a perspectiva de alteração da língua – assim como os supostos riscos e perigos associados a ela – em decorrência da implementação do acordo ortográfico. Se a associação entre língua e cultura é, regra geral, afirmada, não parece haver o mesmo grau de concordância em relação à natureza dessa relação. A questão que permanece aberta é, partindo-se da afirmação de que uma língua implica uma certa cultura, o que se pode afirmar no contexto em que essa mesma língua é adotada por países diferentes, ou seja, em contextos culturais ou nacionais distintos? De certa forma, o que se quer entender é se, e em que medida, partilhar uma língua implica partilhar uma cultura. Tais questões estão estreitamente relacionadas com a perspectiva da dispersão das línguas característica do passado colonial europeu e são o ponto de partida de conceitos como lusofonia. No entanto, como esta pesquisa tem seu foco no contexto europeu, importa analisar esses temas unicamente na perspectiva de Portugal. Em torno dessas questões, encontram-se representações concorrentes, que importa destacar. Por um lado, há discursos que associam o português à cultura portuguesa e explicitamente ignoram ou afirmam a irrelevância dos demais contextos. Trata-se de uma visão que procura singularizar a relação entre língua e cultura, resolvendo a questão ao delimitar seu campo espacial de ação unicamente a Portugal – portanto, não mais no contexto internacional no qual opera o AO. Por outro lado, há discursos construídos em sentido oposto, nos quais se afirma a multiplicidade e a diversidade da relação entre língua e cultura. Nesse sentido, ganham destaque e valor as diversas culturas que têm na língua portuguesa um ponto de contato, assim como a variedade dos modos de apropriação da língua característicos de cada cultura ou país que faz do português sua língua. Focando-se na relação entre cultura e identidade nacional, em muitas das representações construídas a partir da ideia de cultura, eventuais alterações a ela são identificadas como risco, incitando ações de proteção e defesa dessa cultura, como já mencionado acima. A noção que subjaz a esse entendimento é a percepção da cultura como algo estanque, imóvel, bem definido e delimitado, como algo herdado do passado e dos antepassados e que precisa ser preservado em sua integridade e pureza. Essa cultura é, assim, fonte e matriz da identidade atual partilhada por um povo e digna de proteção. A caracterização acima assenta, em geral, numa visão essencialista de cultura, que entende o contato como contaminação e a mudança como perda ou deterioração. Trata-se de uma cultura não apenas singularizada, mas também no singular, que não dá espaço para a alteridade, não acomoda diferenças e não contempla a negociação. De certo modo, essa é a 199

Reflexão final

visão de cultura que se destaca – ideia reforçada pelo uso da palavra cultura sempre no singular. Assim como verificado na análise da relação entre povo e língua, a associação entre cultura e língua também contempla a perspectiva patrimonial. Em tais discursos, a língua é representada como um patrimônio ou bem cultural, muitas vezes dotado de valor econômico. Em geral, verifica-se uma certa materialização dos conceitos de língua e cultura, em contraste com a abstração que caracteriza tantos outros discursos, como estratégia de atribuição de valor. No contexto acima, quando a diversidade é realçada em tais construções, invariavelmente surge como recurso de agregação de valor. É interessante observar também a grande maleabilidade do argumento da diversidade, que se presta igualmente aos opositores e aos defensores do acordo, como já referido no capítulo quatro. Em comum, todos afirmam seu valor e, consequentemente, a importância e a relevância de se preservar tal diversidade. Por fim, a relação entre língua e cultura também é utilizada como um valioso recurso de construção das identidades nacionais, por todos os motivos já indicados acima. Mas, neste momento, é a perspectiva da identidade, nas representações em que esta é explicitamente nomeada, que interessa investigar e, mais especificamente, o papel simbólico desempenhado pela língua nesse contexto. Sobre o conceito de identidade, o primeiro ponto a destacar é que este surge fortemente associado à ideia de língua. De modo geral, é em função dela que ele é articulado. Se a cultura, como esperado, dada a amplitude de significados que incorpora, alcança maior variedade de temas e contextos, entre os quais os da língua, o conceito de identidade é quase que univocamente associado à língua no âmbito dos artigos de opinião sobre o AO. Os discursos construídos em torno da ideia de identidade estabelecem relação direta entre esta e a língua, em geral para afirmá-la. Entretanto, assim como na análise das representações de cultura, verifica-se aqui uma tentativa de distinção entre língua e ortografia. Em geral, quando tal distinção é feita, busca-se negar a relação entre identidade e ortografia, ao contrário do que se verifica com a relação entre identidade e língua. Como recurso de construção de identidades nacionais, a língua figura em posição de relevo, constituindo por si só um fator de identidade. A língua é, assim, produtora, isto é, geradora de identidades. Apenas como exemplo, considere-se a expressão língua materna, que muitas vezes é utilizada como sinônimo da língua nacional em contextos onde a ideia de homogeneidade e partilha de uma mesma origem ou etnia é reforçada no interior de uma comunidade nacional – ou que se pretende nacional. 200

Reflexão final

A relação de filiação mobilizada pela referência à figura da mãe é bastante ilustrativa das relações que se deseja invocar – não só de origem física, biológica e, portanto, natural, como também afetiva. A língua, nesse sentido, é percebida como um elemento ou símbolo de reconhecimento individual e coletivo, numa reafirmação do seu papel na construção de identidades. Língua e identidade, associadas, contribuem para a percepção e partilha do sentimento de pertença a uma dada comunidade ou grupo. Novamente, assim como para cultura, também na relação entre língua e identidade verifica-se uma tensão entre o singular e o plural, o individual e o coletivo. Na perspectiva singular, uma identidade é associada a uma língua; na perspectiva plural, uma língua é associada a várias identidades – e o inverso também poderia ser explorado, ou seja, a construção de uma identidade singular a partir da pluralidade de línguas, mas essa hipótese não é aqui aventada. Também a língua como recurso de construção de uma identidade singular – a minha identidade – ou de uma identidade coletiva – a nossa identidade – é articulada ao longo da argumentação em torno do AO. De modo geral, no entanto, o que mais uma vez se afirma é uma visão essencialista das identidades, que se faz presente na noção de risco associada a eventuais transformações desse conteúdo identitário ocasionadas por mudanças à língua ou, mais precisamente, à ortografia. Assim como no caso de cultura, também as referências à identidade aparecem sempre no singular. Retomando-se, em parte, os temas desenvolvidos no primeiro capítulo em torno do conceito de modernidade tardia e da caracterização dos tempos atuais como sendo marcados pela fragmentação e pelo fim das grandes narrativas com pretensão de universalidade, interessa pensar sobre os valores e possíveis significados das perspectivas essencialistas associadas, nesse contexto, especialmente à ideia de cultura e de identidade. Talvez, nesse sentido, o apego aos essencialismos seja uma reação, uma tentativa de se identificar pontos de apoio – supostamente fixos, imóveis e estáveis – em meio a tantas transformações e mudanças, ou seja, uma estratégia de enfrentamento do medo da mudança ou uma forma de resistência e, ao mesmo tempo, parte desse processo gradual que não pode ser contido ou imobilizado e que segue um ritmo próprio. As representações marcadas pelo viés essencialista parecem reproduzir versões e imagens cristalizadas do passado, sem que seja possível, no entanto, afirmar de forma categórica se os seus autores defendem conscientemente tais perspectivas ou se repetem fórmulas concebidas num contexto já bastante distinto daquele no qual são aplicadas. Em outras palavras, não é possível dizer se o recurso à essência representa uma estratégia 201

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consciente de construção do presente ou o resgate de referências agora descontextualizadas, isto é, resquícios de uma época que chega ao fim – e o mesmo se pode dizer dos nacionalismos, tema que será abordado logo mais. O certo é que parece haver um embate de forças entre discursos concorrentes, independentemente da posição dos respectivos autores sobre o AO. Em resumo, não se pode afirmar que os essencialismos sejam algo do passado e que estejam condenados a serem superados ou substituídos por versões menos rígidas, isto é, por conceitos com campos de significação mais amplos e maleáveis e, portanto, com maior potencial de adaptação nas sociedades modernas, marcadas pela percepção de um movimento constante, aceleração contínua e incremento e valorização da diversidade. Mas é possível, no entanto, identificar em tais discursos semelhanças e continuidades com esse passado – resta saber se isso faz parte do processo de mudança ou se é um fim em si mesmo. Por fim, o último tema tratado sob a perspectiva dos marcadores identitários foi o conceito de matriz, em relação ao qual verifica-se o predomínio das associações com a ideia de língua. Nesse contexto, as representações construídas em torno de matriz identificam, na maioria das vezes, a língua como sendo o elemento que primordialmente exerce tal função e, portanto, como recurso privilegiado no processo de construção de identidades. Partindo-se da relação estabelecida acima, pode-se pensar em perspectivas diversas para as representações de matriz: matriz como origem, isto é, como ponto de partida, como elemento a partir do qual outro se origina; matriz como molde ou modelo, isto é, como forma ou estrutura utilizada para se reproduzir o objeto original ou produzir cópias dele; ou matriz como controlo, isto é, como sede, como centro definidor dos fluxos de poder, controlo e organização, como já brevemente referido no capítulo cinco. Tais perspectivas parecem condizer com a ideia de língua como fator de identidade, estendendo-se essa mesma analogia: identidade como origem, ou seja, como etnia, raiz, história, memória; identidade como modelo, ou seja, como prescrição de um modo de ser e agir, pensar ou mesmo sentir; identidade como controlo de acesso e exercício de poder, ou seja, como pertença a um certo grupo, como estratégia de definição de critérios de inclusão/exclusão, isto é, de definição de barreiras e linhas divisórias entre um eu e um outro. A atribuição da função de matriz à língua, no contexto específico da língua portuguesa e de Portugal, parece ser, em alguma medida, devedora do passado colonial, no qual se deu a expansão da língua portuguesa: de Portugal para os países colonizados. Do mesmo modo, está também associada a determinadas ideologias linguísticas, e não só, que entendem a pureza como valor e a hibridez ou mestiçagem como desvalor. Nessa perspectiva, existe uma língua202

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matriz a partir da qual variações são derivadas, num processo que implica perda do valor original de pureza, autenticidade, correção e rigor, distinguindo entre matriz (centro) e variantes (periferia), por exemplo. Adotando-se, no entanto, concepções alternativas ao conceito matriz/variantes, podese entender as línguas como em permanente processo de transformação e mudança, motivadas por outros contatos, vivências e contextos histórico-sociais. Nessa perspectiva, perde sentido a tentativa de se definir claramente um ponto de partida e um ponto de chegada no processo de evolução contínua das línguas, assim como de se estipular um ideal de pureza e correção a ser seguido. Apenas como exemplo, vale a pena retomar o seguinte excerto da citação já referida no capítulo seis: “em Portugal e nos outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia” (em PB13-1). A opção pela locução verbal “aprender a falar”, independentemente da intenção pretendida pelo autor do artigo, permite a construção de significados distintos: transfigura o contexto colonial de imposição da língua portuguesa aos países colonizados ao evocar o campo da educação e do aprendizado; parece pressupor uma certa incapacidade de fala anterior ao contato com a língua portuguesa, promovendo, de certo modo, o apagamento das línguas nativas; e, ainda, estabelece uma relação implícita de poder onde Portugal assume o papel de quem ensina, ou seja, é identificado como o detentor de um saber/poder. Essa interpretação – uma entre tantas possíveis – é, de certa forma, coerente com uma específica imagem do colonizador, construída por e para Portugal, que parece ainda vigorar na atualidade, apesar dos discursos em sentido contrário: a do bom colonizador empenhado numa suposta missão civilizadora. Embora o conceito de matriz não configure um elemento recorrente nos discursos sobre os nacionalismos na Europa – muito possivelmente em função da associação de tal conceito com o contexto colonial e, mais especificamente, com a relação entre colonizador e colonizados, extrapolando, portanto, o espaço europeu –, as representações construídas em torno de matriz e sua associação com a língua são compatíveis com as teorias sobre os nacionalismos. A noção de língua como símbolo e matriz de identidade e cultura, destacada no âmbito desta análise, é um bom exemplo disso.

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A perspectiva das relações de comparação

De modo geral, o recurso à comparação e ao contraste entre países é característico dos processos de construção das identidades nacionais, como indicam as teorias analisadas nos primeiros capítulos deste estudo – o contato com o outro e o esforço de se estabelecer e afirmar diferenças entre países caracteriza os mecanismos de construção de um eu e de um outro, tantas vezes referido. Nesse processo, como regra, as diferenças entre os diversos grupos são realçadas, enquanto as diferenças internas ao grupo são sublimadas. Identificação e diferenciação são, assim, movimentos distintos de um mesmo processo. Nele, os valores atribuídos à identidade e à diferença podem variar em função das representações que se pretende construir ou realçar: a diferença pode ser valorada como positiva ou negativa, por exemplo, em função do contexto e das intenções de quem institui o discurso, esboçando um jogo de forças que nem sempre se revela claramente. No campo da argumentação, e especificamente em relação aos artigos de opinião aqui analisados, a construção de identidade e diferença entre países distintos e a atribuição de valor positivo ou negativo às mesmas configuram estratégias de persuasão e convencimento. Por meio delas, são estabelecidas relações, muitas vezes complexas e quase sempre voláteis, de forças e fraquezas, alianças e antagonismos. Nesse sentido, não são raras as situações em que as diferentes possibilidades de significação inerentes a certos discursos revelam equilíbrios de força distintos. Em tais casos, o que, à primeira vista, parece indicar uma posição de fragilidade para Portugal, numa outra leitura revela certa presunção de superioridade. Aliás, tal presunção, em certos momentos, figura como elemento de construção da fragilidade inicialmente identificada, como já analisado ao final do capítulo seis, nos comentários sobre DN09-1, DN17-4 e PB33-1. Nas situações de comparação estabelecidas entre Portugal e outros países, o Brasil se destaca como o interveniente mais frequente. Essa situação parece refletir a crença de que Portugal e Brasil representam dois lados antagônicos no âmbito da discussão sobre o acordo ortográfico, que seria, afinal, o resultado da vontade de ambos, com pouca ou nenhuma participação dos demais países envolvidos. Em outras palavras, os tomadores de decisão, no que diz respeito ao AO, seriam, portanto, Portugal e Brasil. Seguindo o raciocínio acima, o predomínio das relações de assimeria traduzem a disparidade de posições entre Portugal e Brasil, sendo o Brasil representado, quase sempre, como detentor de vantagens. O acordo ortográfico supostamente seria mais benéfico para o

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Brasil do que para Portugal, pois implicaria uma aproximação indevida entre o português europeu e o português falado e escrito no Brasil. A versão europeia da língua sairia descaracterizada desse acordo ao sofrer um número maior de alterações ou, pelo menos, de alterações mais significativas, em comparação com o Brasil. Considerando-se o fato de que, em boa parte dos artigos analisados (77,5%), os posicionamentos assumidos são contrários ao AO, a maior frequência das relações comparativas assimétricas, onde Portugal ocupa o pólo fraco, não parece surpreender. Tal conclusão decorre de a caracterização explicitada acima ser adotada preferencialmente pelos autores que resistem ao acordo. Talvez por esse mesmo motivo, os cenários de ameaça, risco e perigo, associados à língua portuguesa (especificamente ao português europeu) e às identidades e culturas, sejam recorrentes. Também nos casos em que Portugal ocupa o pólo da força, as representações acima são mantidas. Em seis dos nove casos verificados, Portugal não aparece sozinho, mas sim divide sua posição com o Brasil, como já discutido no capítulo anterior. Portanto, também nesses casos, embora Portugal ocupe o pólo forte da relação de comparação, não consegue se sobrepor ao Brasil, que, de modo geral, surge como o principal oponente de Portugal no contexto do AO. Retomando-se os principais argumentos mobilizados na construção de relações comparativas assimétricas entre Portugal e o Brasil, temos: argumentos de cedência de Portugal face ao Brasil, argumentos de maior força econômica do Brasil em relação a Portugal, argumentos de proteção do português europeu e correção da língua e argumentos de valorização e/ou aprovação de um comportamento ou imagem. Os dois primeiros argumentos reforçam a caracterização de vantagem para o Brasil e desvantagem para Portugal, apontando para o suposto favorecimento do Brasil no âmbito do AO. O terceiro argumento, ao contrário, coloca Portugal em posição de vantagem, embora cercado por ameaças e perigo. Essa vantagem é configurada como superioridade ao se atribuir ao Português europeu a primazia da correção da língua, que agora se vê ameaçada pelo AO. Por fim, o quarto argumento critica a posição de Portugal, por ter ratificado o acordo, e simultaneamente valoriza as posições de Angola e Moçambique, especialmente, por ainda não o terem feito. Nas relações simétricas, houve um relativo equilíbrio entre convergência (47,8%) e divergência (52,2%), com ligeira vantagem para a segunda. Mais uma vez, o Brasil figura como o principal interveniente. Também outros países de língua portuguesa são chamados ao

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debate e apenas excepcionalmente países que não têm o português como língua oficial são identificados – neste caso, especificamente a Inglaterra e a França. A incidência do Brasil como interveniente nas relações de simetria (91,3%) é significativamente superior à verificada nas relações de assimetria (75%). No entanto, deve-se levar em conta que algumas das relações de assimetria são construídas lado a lado com relações de simetria que envolvem o Brasil ou mesmo no âmbito de situações comparativas complexas nas quais o Brasil muitas vezes figura. Isso significa dizer que, mesmo estando ausente de 25% das relações de assimetria, ainda assim se faz presente em parte delas quando se olha para a situação comparativa como um todo. Considerando-se apenas a relação entre Portugal e o Brasil nas relações simétricas, é interessante destacar a diferença das estratégias adotadas quando o Brasil figura como único interveniente ou como um dos intervenientes, como já referido no capítulo anterior. No primeiro caso, prevalece a divergência, ou seja, Portugal e Brasil são representados em paridade de forças, porém com destaque para aquilo que os difere e distingue. No segundo caso, ao contrário, prevalece a convergência, ou seja, destaca-se agora o que Portugal e o Brasil têm em comum, mas dessa vez no âmbito da interação e concorrência com os demais intervenientes envolvidos na relação de comparação. Mais uma vez, os dados confirmam a análise anterior, que indica a polaridade de posições assumidas ou atribuídas entre Portugal e o Brasil, por um lado, e, por outro, a igualdade de forças e posições entre diferentes entidades nacionais e supranacionais que remetem para o ambiente democrático e para os discursos de valorização da lusofonia, isto é daquilo que une e aproxima os diferentes países de língua portuguesa. A questão da polaridade também é reforçada pelo fato de prevalecer a convergência nos casos em que as relações de comparação simétricas são estabelecidas entre Portugal e outros intervenientes, excetuado o Brasil. Mas também parece relevante o fato de essa convergência, no cenário em que o Brasil surge ao lado de outros países e entidades, tirar o foco da relação Brasil e Portugal. Em outras palavras, embora se estabeleça, em tais casos, uma relação simétrica convergente entre Portugal e Brasil, essa é diluída pela multiplicação dos intervenientes ou mesmo pelo recurso a representações em que o Brasil surge de forma implícita, como nas expressões “países lusófonos” (PB26-04) ou “países onde a língua oficial é o português” (SL02-2), por exemplo.

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Repercussões e Desdobramentos

Os argumentos de natureza identitária articulados nos artigos de opinião sobre o acordo ortográfico e identificados nesta pesquisa permitem, à partida, uma associação entre língua e identidade. Em alguns casos, essa associação é estabelecida de forma direta – destacam-se, aqui, as representações que envolvem os conceitos de cultura e identidade –, enquanto, em outros, a associação é indireta. De modo geral, não parece haver dúvidas de que existe uma relação entre língua e identidade, aqui entendidas em sua amplitude. A língua figura em diversas representações como recurso de construção, afirmação, visibilidade, comprovação e valorização de uma certa identidade nacional, fruída de modo individual ou coletivo. Mas será que se trata dos mesmos discursos do século XIX? Mesmo que se conclua pela afirmação das semelhanças entre os discursos que relacionam língua e identidade nacional no passsado e hoje, não parece razoável afirmar que não houve mudança, uma vez que os conceitos de língua e identidade foram, por sua parte, transformados. Nesse sentido, por mais que a associação se mantenha, seu potencial de significação é, necessariamente, alterado. Essa alteração se faz presente, entre outras situações, na concorrência entre os discursos resgatados do passado e os discursos da modernidade, ambos trazidos à arena de debates no contexto atual. A perspectiva da língua como símbolo de identidade é um bom exemplo de discurso resgatado do passado que ainda se mantém atual e, a princípio, parece mesmo inabalável. O que muda é a percepção das identidades, que cada vez mais, apresentam-se no plural, sendo representadas como múltiplas ou fragmentadas, num contexto de concorrência e competição. O mesmo se dá com o conceito de língua, que também ganha flexibilidade e se multiplica em língua materna, língua nacional, língua culta, norma padrão, língua minoritária, língua franca, segunda língua, etc. O que parece resultar disso? Se a associação entre língua e uma certa identidade permanece, essa “certa identidade” é que parece perder, em parte, sua força ao ter de concorrer com uma série de outras identidades que podem ou não se sobrepor a ela em contextos diversos. Mais ainda, de qual língua se trata? A partir de Castells (2007), em sua reflexão sobre o poder da identidade, se construir e atribuir valor a certas representações de identidade implica exercício de poder e se o poder, na atualidade, é o poder da comunicação, este parece adquirir novas formas e inspirar novos

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problemas. O foco do debate parece se deslocar de questões de redistribuição de poder para questões de fluidez e mobilidade nesta sociedade em rede. Em certa medida, os discursos configuram quadros de referência, isto é, enquadramentos, e assim estruturam pensamentos e modos de pensar de tal forma que, mesmo quando tais discursos passam a ser excluídos ou recusados (ou quando o contexto ao qual tal discurso está imbricado deixa de existir) esse enquadramento, como referência, ainda persiste. É preciso tempo para a transformação, mas esse tempo passa em velocidades diferentes. Vivemos vários tempos ao mesmo tempo, em simultâneo – e o mesmo pode ser dito em relação ao espaço, como bem exemplificam Krzyzanowski e Galasinska:

(…) although long-rejected as a political system, communism still persists as a dominant intellectual ideology evidenced in these personal accounts. Thus, it is argued that, despite being eradicated in the public domain, communism still provides the ideological framework within which the private/semi-private discourses of new realities are constructed. (Krzyzanowski e Galasinska, 2009: 16).

Se é verdade que ainda repetimos os discursos de afirmação nacional do século XIX, também é verdade que há muitos outros discursos que concorrem com eles: alguns em contestação, outros em relativização. Cada vez mais, esses discursos tornam-se plurais, até porque, nas sociedades de hoje, sobretudo nas democráticas, mais vozes se fazem ouvir, em parte em função da multiplicação do acesso à educação e do desenvolvimento de novos meios e formas de comunicação. Em resumo, apesar da declaração do seu fim, a ideia de nação e as fidelidades que ela desperta ainda parecem muito presentes, mesmo neste cenário de acentuada e abrangente transformação. Tampouco se pode esquecer que as nações, como ainda as conhecemos, foram construídas ao longo de mais de dois séculos – não parece razoável, portanto, esperar que desapareçam em três ou quatro décadas. Ao refletir sobre as nações e os nacionalismos neste início de século, Castells (2007: 32) afasta a sentença de morte decretada para afirmar que a globalização, longe de levar os Estados-Nação à morte, promove o seu ressurgimento. É bem verdade que já não se trata mais dos antigos Estados-Nação, nascidos na era Moderna – estes, sim, entraram em crise –, mas de uma nova forma de Estado: o Estado em rede. As nações de hoje, embora não detenham o mesmo poder que detinham nos moldes do passado, seguem exercendo influência (idem: 357).

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O Estado em rede, ainda segundo Castells (2007: XXI), seria caracterizado por fazer parte e atuar numa abrangente rede de interações com outros Estados, governos, instituições, entidades e organizações em diversos âmbitos: locais, internacionais, regionais, globais. Nesse contexto, a sociedade civil, organizada local e globalmente, também desempenharia papel relevante, assumindo posições distintas no embate de forças que marca o tecido social: ora atuando em parceria ora em resistência às posições assumidas e defendidas pelo Estado. Nesse contexto, o Estado regressa à cena global assumindo novas formas de organização, de produção e exercício de poder e, também, novos princípios e estratégias de legitimação (Castells, 2007: 358). No que diz respeito aos nacionalismos, portanto, não se trata de apregoar o seu fim – afinal, não é necessário ou mandatório que acabe –, mas sim de estabelecer e/ou reconhecer, em alguma medida, novas relações de forças, que parecem ainda não se ter estabilizado. Aceita a premissa de que o conceito de nação, longe de se ter exaurido, segue vivo, embora em transformação, parece razoável assumir que a própria noção de identidade nacional – seu possível conteúdo, mas também seu prestígio e relevância – é também transformada. No campo das identidades nacionais, instaura-se uma concorrência maior de identidades e identificações, onde diferentes elementos são mobilizados e/ou descartados ao longo de processos de construção de identidades cada vez mais complexos, instáveis e temporários, mas, nem por isso, menos intensos. Essa mesma situação se verifica no contexto do nacionalismo linguístico, por exemplo, num cenário em que línguas se multiplicam e já não podem ser contidas em espaços físicos pré-determinados, como o dos antigos territórios nacionais, com suas fronteiras e controlos rígidos. O poder das redes globais e, especialmente, da mídia global, que demanda o desenvolvimento e a circulação de uma língua comum, representa um desafio para as identidades singulares, como defende Castells (2007), e o mesmo parece se dar com as identidades nacionais. A língua, cada vez mais, aproxima-se do conceito de cultura, assumindo o papel de expressão da mesma e atuando, muitas vezes, como o “reduto do significado identificável”, nas palavras do autor (idem: 65). Habermas (2004: 80), ao refletir sobre os nacionalismos hoje e, mais especificamente, sobre as tensões e transformações da relação entre Estados no âmbito da União Europeia, também destaca a perda da estabilidade das identidades coletivas, que, ainda segundo o autor, ocorre juntamente com a perda de capacidade de ação dos Estados, pressionados por uma sociedade mundial cada vez mais dirigida por parâmetros econômicos. 209

Reflexão final

Em resumo, nesse cenário de transformações acirradas e rápidas, a língua segue representando um porto seguro, isto é, uma referência cultural importante e um excelente substrato para a construção das identidades. Mas, por outro lado, perde parte de sua primazia ao passar a atuar num ambiente de forte concorrência com outros elementos de identificação – e, de forma significativa, com outras línguas. A associação entre uma língua e uma nação parece perder sua rigidez com a valorização, não mais de uma única língua, mas sim de um repertório linguístico, que representa – e também propicia – um espaço ampliado de atuação e interação nas sociedades de hoje.

Síntese

Neste capítulo, resgatou-se os principais conceitos teóricos apresentados e discutidos na primeira parte desta pesquisa para, em função deles, refletir sobre os dados obtidos na análise realizada na segunda parte. Em primeiro lugar, foram discutidos os temas identificados no âmbito dos marcadores identitários: pátria, nação, povo, soberania, cultura, identidade e matriz. A seguir, passou-se à reflexão sobre as relações de simetria ou assimetria estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais e/ou supranacionais. Por fim, num esforço final de sistematização da análise, procurou-se identificar algumas das principais representações construídas em torno da ideia de língua, em sua perspectiva simbólica, e de identidade nacional na Europa de hoje.

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Conclusão

Os conflitos e tensões que marcaram esses últimos anos envolvendo Ucrânia, Crimeia e Rússia, a crise dos refugiados sírios e a polêmica em torno da construção de novos muros na Europa, a entrada em cena do autoproclamado estado islâmico e, mais recentemente, as disputas entre Rússia e Turquia parecem indicar que as nações e os nacionalismos continuam em voga nesse início de século XXI e que ainda são capazes de mobilizar e inspirar pessoas e jusitificar ações e decisões, se não drásticas, no mínimo, polêmicas. No âmbito desta pesquisa, procurou-se refletir sobre os nacionalismos na Europa de hoje, mas numa perspectiva bastante estrita: a do papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais, com foco num caso particular – o de Portugal – e num contexto específico – o da discussão em torno do acordo ortográfico de 1990, concretizado num tratado internacional assinado pelos diferentes países de Língua Portuguesa. Como ponto de partida, foram trazidas à discussão algumas das atuais teorias sobre as identidades em geral e as identidades nacionais em particular, especialmente no âmbito da modernidade tardia, com todas as transformações a ela associadas. Entre outros temas, procurou-se destacar os contrastes entre visões essencialistas e não essencialistas das identidades, aqui entendidas como resultantes de processos, incessantes e sempre inacabados, de construção. A seguir, buscou-se identificar o papel da língua na construção das identidades nacionais no contexto das teorias do nacionalismo ou, mais especificamente, no campo do nacionalismo linguístico. Deu-se destaque ao potencial simbólico da língua nesse processo. A relação entre língua e cultura também foi explorada. Por fim, o contexto europeu do multilinguismo foi resgatado num esforço de reflexão sobre a possibilidade de construção de identidade no cenário de multiplicidade de línguas. Para concluir essa primeira parte da pesquisa, foram expostos os fundamentos teóricometodológicos que serviram de base e justificativa para a análise de dados. O conceito de

Conclusão

discurso, na acepção do Foucault, atuou como uma importante diretriz para se delinear a via da construção discursiva, adotada neste trabalho. A análise crítica do discurso foi apresentada e discutida em linhas gerais, uma vez ser essa a perspectiva que rege este estudo, na abordagem da linguística sistêmico-funcional. Uma vez delimitado o campo teórico e esclarecida a metodologia, passou-se à análise de dados, que dá início à segunda parte deste trabalho. Uma breve contextualização da história de Portugal e alguma reflexão sobre a situação atual serviram de introdução. A seguir, a escolha do corpus – artigos de opinião sobre o AO90 publicados nos jornais portugueses – foi explicitada e justificada. Os principais argumentos mobilizados foram identificados e mapeados e as perspectivas de análise escolhidas foram indicadas. A seguir, passou-se à análise propriamente dita, com a identificação e análise dos marcadores identitários. Pátria, nação, povo, soberania, cultura, identidade e matriz foram os temas explorados. A segunda etapa da pesquisa concentrou-se na identificação das diferentes posições assumidas por ou atribuídas a Portugal no contato com outras entidades nacionais ou supranacionais. No final, promoveu-se uma reflexão sobre o caráter identitário da argumentação em torno do AO90 em Portugal a partir da contraposição da parte teórica e da parte analítica desenvolvidas até aqui. O objetivo dessa sistematização final foi explorar algumas das perspectivas e possibilidades da língua, em seu viés simbólico, na construção dos nacionalismos europeus hoje e na construção de uma certa identidade europeia. Entre os resultados mais determinantes, destacam-se a persistência da associação entre língua e identidade (onde a perspectiva da cultura desempenha papel relevante e onde parecem ainda persistir e resistir certas visões essencialistas), mas num contexto marcado pela multiplicação de discursos concorrentes que indicam, de certo modo, um forte potencial de mudança e transformação. Tambem as relações de poder, entrelaçadas com a ideia de posse, propriedade e correção da língua, concretizam-se em estratégias de inclusão e exclusão, aproximação e afastamento, construção de posições de força e fraqueza ou, ainda, na caracterização de cenários de risco e ameaça. Em resumo, o papel simbólico da língua como recurso de construção de identidades nacionais permanece, mas não se mantém inalterado; pelo contrário, pressionado e contestado por discursos concorrentes e por visões não essencialistas da relação entre língua e identidade, esse papel se transforma para se adaptar às novas realidades, marcadas pela multiplicação das identidades, que, em geral, perdem gradualmente sua rigidez e fixidez, e pela multiplicação das línguas, agora engajadas em novas relações de poder e prestígio. 214

Conclusão

Nesse contexto, o projeto europeu, com sua aposta no multilinguismo e seu esforço de construção de uma ou várias identidades para a Europa, parece representar uma espécie de posto privilegiado de observação – privilegiado não por ocupar uma posição de relevo ou singular importância, mas sim por ter oficialmente assumido e colocado em prática o multilinguismo – como política e como princípio – na construção de um organismo que se pretende, de algum modo, supranacional. Partilhando a posição de Wodak (Wodak et al, 1999: 9), em seu esforço por lançar alguma luz sobre o caráter dogmático e essencialista do conceito de nação, que dificulta ou até mesmo impede a coexistência – em paridade e igualdade – entre pessoas de origens, religiões e línguas diferentes, neste estudo procurou-se destacar o caráter dogmático e essencialista das identidades nacionais, em especial no que diz respeito ao recurso à lingua em seu processo de construção.

215

Apêndices

Apêndice A

Artigos de opinião sobre o Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa de 1990

Código Jornal DN01 Diário de Notícias DN02 Diário de Notícias DN03

Diário de Notícias

DN04 DN05

Diário de Notícias Diário de Notícias

DN06

Diário de Notícias

DN07 DN08 DN09 DN10 DN11 DN12 DN13 DN14 DN15 DN16 DN17 EX01 EX02 EX03 EX04

Diário de Notícias Diário de Notícias Diário de Notícias Diário de Notícias Diário de Notícias Diário de Notícias Diário de Notícias Diário de Notícias Diário de Notícias Diário de Notícias Diário de Notícias Expresso Expresso Expresso Expresso

Título Em defesa dos espetadores A grande loja irregular / "Adeus, português" (Des)Acordo Ortográfico separa os "marquisards" dos "vende-pátrias"? O Acordo Ortográfico é inconstitucional? Intimação ao Professor Malaca O chamado 'novo acordo ortográfico': um descaso político e jurídico A língua e a sua escrita Vocês sabem o que é o 'modus operandi'? Questões do Estado de Direito Aristocracia ortográfica O caso Krugman A opção Afirmar o português no mundo A suspensão O Acordo Ortográfico: inútil e prejudicial Bloco de notas O Acordo, outra vez Antiga Ortografia O cantinho de Vasco Graça Moura A coerência, a coragem e a dignidade O Acordo 20 anos depois

Autor Ferreira Fernandes Alberto Gonçalves

Data 02.01.12 08.01.12

Posição AFAVOR CONTRA

Oscar Mascarenhas

21.01.12

AFAVOR

Jorge Bacelar Gouveia Vasco Graça Moura José de Faria Costa e Francisco Ferreira de Almeida Mário Bacelar Begonha Ferreira Fernandes Vasco Graça Moura João Cesar das Neves Alberto Gonçalves Vasco Graça Moura Acácio Pinto Vasco Graça Moura Anselmo Borges Joel Neto Vasco Graça Moura Pedro Mexia Daniel Oliveira Miguel Sousa Tavares Henrique Monteiro

08.02.12 08.02.12

AFAVOR CONTRA

13.02.12

CONTRA

15.02.12 20.02.12 22.02.12 27.02.12 04.03.12 07.03.12 19.03.12 11.04.12 14.04.12 10.07.12 21.11.12 10.01.12 06.02.12 11.02.12 22.02.12

CONTRA ND CONTRA ND CONTRA CONTRA AFAVOR CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA ND CONTRA AFAVOR

Apêndice A Código Jornal EX05 Expresso EX06 Expresso SL01

Sol

SL02 SL03 CM01 CM02 PB01 PB02 PB03 PB04 PB05 PB06 PB07 PB08 PB09 PB10 PB11 PB12 PB13 PB14 PB15 PB16 PB17 PB18 PB19

Sol Sol Correio da Manhã Correio da Manhã Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público

Título O impossível acordo Acordo ortográfico e bocejo… Não é aceitável dar-se ordem para desrespeitar o Acordo Ortográfico Acordo ortographico O pior ataque à língua portuguesa Paradoxo ortográfico E as crianças, senhores? Velho do Restelo', e com muito orgulho! Onde para o acento? Um acto político de empobrecimento cultural Grande Vasco Consoantes mudas ou colunistas surdos? Uma lança de África (Des)acordo ortográfico O AO90 está em vigor? Onde? Dermatologia e resistência silenciosa Eterno desacordo Cor-de-rosa laranja Pois é: antes fosse mentira A desmontagem do 'facto consumado' abril com caixa baixa Os nomes dos meses: Abril na CPLP A acta do cidadão É agora que nos vamos ver livres da receção? Aventuras herbáceas e erros de podar A persistência do caos ortográfico

Autor António Guerreiro José Alberto Quaresma

Data 01.03.12 05.04.12

Posição CONTRA CONTRA

Pedro Santana Lopes

13.02.12

AFAVOR

José António Saraiva José Cabrita Saraiva Rui Pereira Victor Bandarra Octávio dos Santos Nuno Pacheco Luís Lobo Miguel Esteves Cardoso Manuel Villaverde Cabral Nuno Pacheco Joaquim Jorge Paulo Jorge Assunção Franciso Miguel Valada Pedro Lomba Rui Cardoso Martins Nuno Pacheco Teresa Cadete Nuno Pacheco Franciso Miguel Valada Mendes Bota Nuno Pacheco Nuno Pacheco Franciso Miguel Valada

20.02.12 20.11.12 26.01.12 19.02.12 15.01.12 23.01.12 03.02.12 06.02.12 10.02.12 14.02.12 22.02.12 26.02.12 29.02.12 01.03.12 04.03.12 01.04.12 08.04.12 22.04.12 30.04.12 03.05.12 13.05.12 03.06.12 26.06.12

AFAVOR AFAVOR ND CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA ND ND CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA

Apêndice A Código Jornal PB20

Público

PB21 PB22 PB23 PB24 PB25 PB26 PB27 PB28 PB29 PB30 PB31 PB32 PB33 PB34 PB35

Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público Público

Título Carta Aberta aos Governos de Angola e de Moçambique Ortografia no verão Malefícios do ensino do Português Um pouco mais de rigor, sff Eurofonia' e lusofonia, a mesma farsa A razão das raízes Esquisso do acordista Evolução artificial imposta por decreto O petróleo desta nossa relação Sou espanhola e sou contra o AO90 A recepção da recessão O Acordo Ortográfico e a tradução para português Contra fatos: os argumentos Foi você que pediu o acordo ortográfico? Alegria breve ou a língua de Pandora Processo Retro-ortográfico Sem curso

Autor

Data

Posição

António de Macedo

16.07.12

CONTRA

Hermínio Castro Maria do Carmo Vieira Franciso Miguel Valada Nuno Pacheco Rui Miguel Ventura Duarte António Fernando Nabais Pedro Afonso Nuno Pacheco Rocío Ramos Rui Miguel Duarte Paula Blank Franciso Miguel Valada Jacinto Pascoal Nuno Pacheco Octávio dos Santos

05.08.12 08.08.12 11.08.12 12.08.12 17.08.12 18.08.12 23.08.12 02.09.12 07.09.12 29.09.12 28.10.12 13.11.12 10.12.12 16.12.12 26.12.12

CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA

Apêndice B

Análise dos Marcadores Identitários Quadro Geral – Total de ocorrências por grupo:

Matriz

9

Identidade

9

Povo

20

Cultura

43

Soberania

5

Nação

21

Pátria

13 0

10

20

30

40

50

Apêndice B

Grupo Pátria Palavras pesquisadas: Pátria/s - Patriotismo - Patriotística/s - Patriota/s - Patriótico/a/s

Nº 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Clipping

Recorte escândalos fátuos com que a pátria sazonalmente se entretém. Eu também me confesso e proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a minha língua é. que se escrevia no século xix. a língua mudou e a pátria, obviamente, não acabou. o meu nome de família es não cabem neste espaço. portugal continua a mesma pátria, apesar de já não se escrever como no tempo do de s seria uma coisa a bem do prestígio da expressão pátria, da sua unidade essencial, de uma política comum, orma como aprendemos a escrever e a falar a nossa pátria “pessoana”. As sondagens à opinião pública parece (Des)Acordo Ortográfico separa os "maquisards" dos "vende-pátrias"? "maquisards" da ortografia, oposto aos desavergonhados "vende-pátrias" que aceitam submissamente o império h', porque assim lhes ensinaram - e não eram mais patriotas que eu, nem eu mais do que eles...". Remata a lei , diz a leitora, "a ortografia nada tem a ver com patriotismo (...): a minha mãe sempre escreveu mãe com 'i'; o ncesismo. Também tenho direito ao meu quinhão de "patriotismo" e sempre aproveito para homenagear o primeiro do sta questão está entrelaçada com conceções quase "patriotísticas", permita-se-me esta "desfiguração": parece exist

Relação Pátria x Língua Estabelece Não Estabelece Afirma Nega 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1

Apêndice B A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força . Eu vou continuar a escrever como antigamente.

13

Relação Pátria x Língua Não estabelece relação Afirmativa Negativa

Estabelece relação

3 8

Total

2

3



2

11

2

13

11 13

Grupo Pátria – Total de ocorrências:

Patriótico

1

Patriotísticas

1

Patriotismo

2

Patriotas

1

Pátria/s

8 0

2

4

1

6

8

10

8

Apêndice B

Grupo Nação Palavras pesquisadas: Nação/ões - Nacional/is - Nacionalmente



Clipping

1 2 3 4 5 6 Nº 7 8 9 10 11 12

Clipping

Recorte ítico e jurídico Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e econ ados, mas é a língua que caracteriza e define uma Nação. A democracia moderna baseia-se na representaçã s meses em 1976 não habilita ninguém a conduzir a nação através de uma coluna no New York Times. É verdad uesa escrita à língua portuguesa falada, quando a nação mais populosa não o fez da mesma maneira e quando al tem tantas excepções no Brasil, precisamente a nação com mais falantes de português. A fraca implantaç Portuguesa" ou qualquer outra - e indigna de uma nação do Velho Continente a alteração leviana de algo t

Sentido-Significado

Recorte ou três evidências, a saber: 1) a classe política nacional é, salvo escassas excepções, um entreposto de maç tuições ou indivíduos não aderir a uma legislação nacional se esta não lhes agrada? Eu posso não aderir ao I s que tomam o novo Acordo como atentado à cultura nacional esquecem que a nossa escrita não é a de Gil Vicen al é um país culturalmente aristocrata. A atitude nacional típica é de confiança em elites, especialistas, l de acautelar as implicações no sistema educativo nacional. O AO continua a ser avaliado, para que “no caso essa coisa sem nome em todos os sectores da vida nacional, em especial no escolar. Também é possível que o

Classificação

Abstrato Abstrato Portugal Brasil Brasil Portugal

Político-Institucional Político-Institucional Cultural Cultural Político-Institucional Político-Institucional

Apêndice B stil. acordo ortográfico é do mais alto interesse nacional não tenho qualquer hesitação em afirmar que é do hesitação em afirmar que é do mais alto interesse nacional que este acordo seja assumido por toda a comunida nte oportunidade de vincar o sentido do interesse nacional e de demonstrar a sua solidariedade com o governo to de passar a haver "no interior do mesmo espaço nacional duas grafias, conforme a oscilação da pronúncia. ransformação tão profunda e fundamental de âmbito nacional? Não fui eu, de certeza, nem a generalidade dos p xcelente para ocultar as verdadeiras dificuldades nacionais. O caso Krugman A cada dia, nos vários cantos da internacional e muito menos nas ordens jurídicas nacionais… Agora ficou claro que este entendimento é pacífi e a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente ultimamente, esta arte. Os mais ousados artistas nacionais, aliás, até a fazem de venda nos olhos, como nos

13 14 15 16 17 18 19 20 21

Grupo Nação – Total de ocorrências:

15

Nacional/is

Nação

6

0

5

10

15

20

Espacial Político-Institucional Político-Institucional Espacial Espacial Político-Institucional Político-Institucional Político-Institucional Cultural

Apêndice B

Grupo Soberania Palavras pesquisadas: Soberania/s - Soberano/a/s



Clipping

1

DN06

2

PB03

3

PB03

4

PB33

5

PB35

Recorte rídico Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e económicos de inte a defesa de que a decisão tomada pelos órgãos de soberania, mais do que científica, socialmente relevante ou onómico que prevalece e, mais uma vez, a perda de soberania que sobressai. O que pode justificar que a impos dos monopólios editoriais, sem jogos sinuosos de soberania ou de limitação de actuação. É essencial não se j ão alteráveis e revogáveis - e a independência, a soberania - cultural e não só - dos países africanos de lín

Caracterização Contexto de risco ou perda Contexto político Contexto de risco ou perda Contexto de risco ou perda Contexto cultural

Apêndice B

Grupo Povo Palavras pesquisadas: Povo/s - Popular/es - Popularmente



Clipping

1

DN07

2

DN07

3

DN08

4

DN10

5

DN10

6

DN10

7

PB03

8

PB07

9

PB11

10

PB25

11

PB26

12

DN06

Recorte , linguagem conceptual e a lógica abstracta. Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independ a do novo acordo ortográfico, feito nas costas do povo, ou pelo menos de todos os letrados do País, já q vem oficial miliciano subiu ao Unimog, cercado de povo, e falou como sabia, oco: "Vocês sabem o que é o elite progressista do partido. Ambas consideram o povo incapaz, necessitando de orientação. O próprio po vo incapaz, necessitando de orientação. O próprio povo está de acordo, ansiando por chefes salvadores ou scrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser negociada por academias e imposta por lei só das nos últimos seis anos no direito de impor, ao Povo que as elegeu, regras que dois terços dos portugu da uma língua por decreto, contra a vontade de um povo e contra a maioria de pareceres técnico-científic is universais da luz e dos prismas, explicados ao povo na base da amizade… “suponho que o meu amigo já v isto, das idiossincrasias e mundividência de cada povo falante de uma das muitas línguas desta grande fa contra um século democrático em que a língua é do povo. Não será estranho, amanhã, encontrar o acordista atimento das mais lídimas marcas identitárias dos povos, a língua constitui, sem dúvida, um dos últimos r

Tipo de relação Agência Atribuição Agência Agência Agência Atribuição Endereçamento Atribuição Endereçamento Atribuição Atribuição Atribuição

Apêndice B

13

DN06

14

EX04

15

PB25

16

PB29



Clipping

o as grafias consideradas adequadas para todos os povos da lusofonia, torne finalmente exequível o clausu também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes. Cedemos? Não sei, nem me i as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e as escrevem pensam. As línguas e a uas devem evoluir ao ritmo do uso que lhes dão os povos que as utilizam para a sua comunicação e nunca se Recorte

Endereçamento Atribuição Agência Agência Caracterização

17

PB06

istiu a via erudita e a via popular. Do ‘português tabeliónico’ aos nossos dias, milh

Contexto do saber: popular x erudito

18

PB33

omo rutura (ruptura)/rotura (formado este por via popular)? Ora, se tudo isto é em nome de um vocabulário o

Contexto do saber: popular x erudito

21

DN10

iniciativa, na liberdade e no vigor das dinâmicas populares. A França, pelo contrário, afirmando- Contexto do agente: se democráti o povo

PB01

missão a sua vida instruir, “iluminar” as massas populares ignorantes; por outro lado, a esmagadora maioria

22

Grupo Povo – Total de ocorrências:

Popular/es

4

Povo/s

16

0

5

10

15

20

Contexto do agente: o povo

Apêndice B

Grupo Cultura Palavras pesquisadas: Cultura/s - Cultural/is - Culturalmente



Clipping

1

DN04

2

DN07

3

DN07

4

DN10

5

DN10

6

DN10

12

PB03

13

PB03

14

PB07

19

PB25

20

PB25

Recorte ao iniciar funções no CCB - indiscutível homem de cultura que sempre admirei - teve o mérito inesperado de tracta. Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independente das fronteiras ocasionais dos Estad o intelectual a forma antiga. Descaracterizar a cultura através da "linguagem" escrita que passa a ser di lados. Os que tomam o novo Acordo como atentado à cultura nacional esquecem que a nossa escrita não é a de anifestação de um dos traços mais fortes da nossa cultura. Não seríamos portugueses se não gastássemos temp dura a nobreza e a Câmara dos Lordes, mas com uma cultura de abertura e fair play, apostada na iniciativa, esponsáveis políticos que desistiram de afirmar a cultura portuguesa fora de portas. Veja-se o miserável pa er um dos veículos mais importantes da difusão da cultura e da língua portuguesa. E porque não há justifica r de identidade e de valor cultural inequívoco. A cultura não pode nem deve ser colonizada. A história ensi gica”. A etimologia é configuradora de memória e cultura. Línguas que mantêm na escrita a memória etimológ e famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e as escrevem pe

Cultura Modifica ou é Especificação modificada SIM

Modifica

SIM

Modifica

NÃO

Nomeia

SIM

Modificada

SIM

Modificada

SIM

Modificada

SIM

Modificada

NÃO

Nomeia

NÃO

Nomeia

NÃO

Nomeia

NÃO

Nomeia

Apêndice B

21

PB29

22

PB29



Clipping

23 24 25 27 28 29 30 31 33 34 35 36 37

ora com o fim de aprofundar o meu conhecimento da cultura portuguesa, se visito cada dia o site do PÚBLICO al, determinei que o Português faz parte da minha cultura e até da minha vida e que sim, tenho alguma coisa Recorte ientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações, sejam interno aprendizagem. Além dos avultados custos sociais e culturais, o AO90 acarreta também consideráveis custos econ elações diplomáticas, equitativamente económicas, culturais, norteadas pela rectidão, essas sim, são prioritá razão da liberdade de opinião e da sua autonomia cultural. E será a nova ortografia inconstitucional por a ho, de quase nove séculos -património histórico e cultural. Surpreendentemente, contudo, não é apenas a di ou acusando os líderes de todo o mal. A atitude cultural nem sempre coincide com a estrutura social. A Ing ido nas nossas cartas e recados nasce de um traço cultural básico. Foi a mesma atitude estatizante que nos t uma plenamente a grave responsabilidade política, cultural e social, correspondente a uma escolha dessa natu lização absurda da Língua num contexto de voragem cultural global. Mas, se neste caso estou convicto de que o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma questão política assaz bizarra. E irmãos para as respectivas esferas de influência cultural. estadistas e governantes de formação e ideologia r em polémicas estéreis. nós temos uma identidade cultural com quase um milénio, e não é por mudarem algumas assa mão-cheia de milhões na origem dessa epopeia cultural. cavaco silva tem aqui uma excelente oportunidade

SIM

Modificada

SIM

Modificada Cultural/is Classificação Patrimônio Patrimônio Contato/Partilha Contato/Partilha Patrimônio Identidade Identidade Campo Contato/Partilha Campo Contato/Partilha Identidade Contato/Partilha

Apêndice B

38 39 42 43 45 46 47 48 50 51 52 53 54 Nº

Clipping

55

DN10

56

DN10

e política e económica, sem verdadeiro fundamento cultural. Os legisladores impuseram aos falantes uma “orto onética mas que se liga a uma memória histórica e cultural. Quando aprendemos a ler, fixamos a forma gráfica ão de expressões de cariz ideológico a um assunto cultural pode-se e deve-se recordar o que o «secretário-ge mento cultural Um acto político de empobrecimento cultural A imposição do novo Acordo Ortográfico (AO), à ma ceite. A diversidade numa língua é uma mais-valia cultural, todos os países lusófonos se entenderam na lingu a portuguesa é um factor de identidade e de valor cultural inequívoco. A cultura não pode nem deve ser colon rde, S. Tomé e Príncipe e noutros são uma riqueza cultural. Para muitos portugueses que vão iniciar a escola da a argumentação exposta nos planos linguístico, cultural e jurídico, já se tornou público e notório que ni pura perda de tempo” a contextualização histórico-cultural de um autor, inclusive com a indicação do lugar o fia da L.P e, juntamente, todo o valor histórico, cultural e identitário que cada variante encerra. Admitind promover a língua mirandesa, enquanto património cultural, instrumento de comunicação e de reforço de ident mas, pelo contrário, enriquece o nosso património cultural. Quando falo com colegas, amigos ou familiares so s e revogáveis - e a independência, a soberania - cultural e não só - dos países africanos de língua oficial Recorte a origem da crise económica. Portugal é um país culturalmente aristocrata. A atitude nacional típica é de confi gal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês. A ideia espantosa de a escrita, manifest

Campo Identidade Campo Patrimônio Patrimônio Patrimônio Patrimônio Campo Identidade Patrimônio Patrimônio Patrimônio Contato/Partilha Culturalmente Modo de ser/estar Modo de ser/estar

Apêndice B

57

PB03

58

PB25

mais do que científica, socialmente relevante ou culturalmente interessante, é meramente política. É o interesse iedades mais cultas e pensantes? Ou linguística e culturalmente empinantes? E cuja escrita se reduza a um troglod

Grupo Cultura – Total de ocorrências:

Culturalmente

4

Cultural/is

26

Cultura

13

0

5

10

15

20

25

30

Modo de ser/estar Modo de ser/estar

Apêndice B

Grupo Identidade Palavras pesquisadas: Identidade/s - Identitário/a/s Relaciona Identidade com... Estabelece relação com (Afirma/Nega) Nº 3 4 5 6 7 10 11 Nº 12 13

Clipping

Recorte Língua Ortografia se envolver em polémicas estéreis. nós temos uma identidade cultural com quase um milénio, e não é por mudare NEGA a da palavra optimus. A palavra sem o p perderá a identidade. Alguns enxofram-se e dizem que lhes matamos o po NEGA , pharmacia ou phleugma também terão perdido essa identidade (para filosofia, farmácia e fleuma)? Ora, o facto NEGA , sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes. Cedemos? N AFIRMA rdo é um erro, a língua portuguesa é um factor de identidade e de valor cultural inequívoco. A cultura não pod AFIRMA tural, instrumento de comunicação e de reforço de identidade da terra de Miranda”, reconhecendo-se ainda “o di AFIRMA tinente a alteração leviana de algo tão básico na identidade, na estrutura, na actividade de um país como o é AFIRMA Clipping Recorte Classificação e, juntamente, todo o valor histórico, cultural e identitário que cada variante encerra. Admitindo Modificador PB27 uma pluralid entemente, de esbatimento das mais lídimas marcas identitárias dos povos, a língua constitui, Modificador DN06 sem dúvida, um dos

Apêndice B Grupo Identidade – Total de ocorrências:

Identitário/as

2

Identidade

7

0

1

2

3

4

5

6

7

8

Apêndice B

Grupo Matriz Palavras pesquisadas: Matriz

Nº 1 2 3 4 5 6 7 8 9

Clipping Recorte o na ONU, devemos, antes de mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil DN15 comércio das pal por mudarem algumas regras ortográficas que essa matriz se dilui. temos de estar orgulhosos SL01 por falarmos o na ONU, devemos, antes de mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil EX03 comércio das pal dioma que, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de EX04 outras latitude somos falantes de uma língua que tem o Latim como matriz. Mas mesmo na origem existiu a via PB06 erudita e a vi o na ONU, devemos, antes do mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil PB06 comércio das pal outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia, existisse uma Academia das PB13 Letras digna o que pyjamas” ou “pajamas, pyjamas = pijamas”. A matriz inglesa e a variante americana PB24 válidas, na escrit ste, no universo que usa a língua portuguesa como matriz (dela fazendo derivar riquíssimas PB24 variantes), é a

Contexto

Representações

Língua

Português europeu

Identidade

Identidade cultural

Língua

Português europeu

Língua

Língua Portuguesa

Língua

Latim

Língua

Português europeu

Língua

Português europeu

Língua

Inglês britânico

Língua

Português europeu

Apêndice C

Situações de Comparação e Relações Comparativas

Sigla AN BR CV ES GU MO PL PT ST TI

Quadro Geral

Nº Clipping 1 CM01-1 2 CM01-2 CM021A 3 CM021B 4 DN02-1 5 DN03-1 6 7 8 9 10 11

País Angola Brasil Cabo Verde Espanha Guiné Moçambique Países Lusófonos Portugal São Tomé e Príncipe Timor

Portugal (país de referência) PT do lado de cá do Atlântico

Intervenientes BR e qualquer outro PL público brasileiro

Relação Simetria Simetria

Tipo Convergente Divergente

portugueses

africanos e asiáticos

Assimetria

Vantagem

portugueses

brasileiros

Simetria

Convergente

(sou) português Tenho assistido

brasileiros e moçambicanos brasilês aqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor, com a melodia da voz BR britânica, francês Academia Brasileira de Letras (luso-)brasileiro (do outro lado do Atlântico)

DN07-1

ex-potência colonial

DN09-1 DN10-1 DN13-1 DN14-1 DN17-1

PT PT Academia das Ciências de Lisboa luso(-brasileiro) deste lado do Atlântico

Simetria Divergente Assimetria Desvantagem Assimetria

Vantagem

Assimetria Simetria Simetria Simetria Assimetria

Desvantagem Convergente Convergente Convergente Desvantagem

Apêndice C Nº Clipping DN172A 12 DN172B 13 DN17-3 14 DN17-4 15 SL01-1 16 SL01-2 17 SL01-3 18 SL02-1 19 SL02-2 20 SL02-3 21 SL02-4 22 SL02-5 23 SL03-1 24 EX01-1 25 EX01-2 26 EX01-3 27 EX01-4 EX01-5A 28 EX01-5B 29 EX04-1 30 EX04-2 31 EX04-3 EX05-1A 32 EX05-1B 33 EX06-1

Portugal (país de referência)

Intervenientes

Relação

Tipo

PT

AN e MO

Assimetria Desvantagem

PT

BR

Assimetria Desvantagem

PT PT PT entre os que já o fizeram (ratificaram o AO) interesse nacional nosso portugueses PT nosso PT PT PT português lusofonia/português europeu portugueses português iluministas ("sábios"=defensores do AO? OU portugueses defensores do AO?) português Cedemos? (Portugal) Não quero (eu, português) PT PT vamos/leitores irmãos

BR AN BR BR BR BR, AN, MO países onde a língua oficial é o português BR AN BR, AN, MO, ST, CV GU, TI BR BR brasileiro lusofonia/português africano, americano e asiático brasileiros brasileiro

Assimetria Assimetria Assimetria Simetria Simetria Simetria Simetria Assimetria Simetria Simetria Assimetria Assimetria Simetria Simetria Simetria Simetria

Desvantagem Desvantagem Desvantagem Divergente Convergente Convergente Convergente Desvantagem Convergente Convergente Desvantagem Desvantagem Divergente Divergente Divergente Divergente

África

Assimetria

Vantagem

outros povos e outras latitudes Cedemos? (para o Brasil) BR, AN, MO, GU, CV, ST, TI noutros países lusófonos BR BR

Simetria Assimetria Simetria Simetria Assimetria Assimetria

Convergente Desvantagem Convergente Convergente Desvantagem Desvantagem

Apêndice C Nº Clipping 34 PB03-1 PB03-2A 35 PB03-2B 36 PB05-1 37 PB05-2 38 PB05-3 39 PB05-4 40 PB05-5 41 PB05-6 42 PB05-7 43 PB06-1 44 PB06-2 PB06-3A 45 PB06-3B PB06-3C 46 PB06-4 47 PB06-5 48 PB07-1 49 PB10-1 50 PB10-2 51 PB10-3 52 PB11-1 53 54 55 56 57

Portugal (país de referência) decisores políticos PT PT portugueses Português europeu portugueses portugueses PT portugueses, pqno retângulo de cá "lançador" Alentejo discípulos de Malaca (portuqueses) Discípulos de Malaca (&Bechara) Discípulos de Malaca (&Bechara) a (ortografia) portuguesa você PT PT nós (portugueses) PT lado português

PB13-1

PT

PB13-2 PB17-1 PB17-2 PB17-3

família lusófona PT portugueses PT

Intervenientes BR AN e MO BR AN, MO Português do Brasil brasileiros ortografia brasileira BR brasileiros BR África AN, angolanos, Salvador da Baía, Inhambane, CPLP discípulos de Bechara (brasileiros) africanos brasileiro ortografia brasileira, cada um dos países angolanos, brasileiros BR, AN, CV, ST e outros BR brasileiros BR e África lusófona BR outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia família lusófona brasileiros brasileiros brasileiros

Relação Assimetria Simetria Assimetria Assimetria Assimetria Simetria Assimetria Assimetria Simetria Assimetria Assimetria Simetria Simetria Assimetria Assimetria Simetria Assimetria Simetria Simetria Simetria Simetria Assimetria

Tipo Desvantagem Divergente Desvantagem Desvantagem Desvantagem Convergente Desvantagem Desvantagem Convergente Desvantagem Desvantagem Divergente Convergente Vantagem Desvantagem Divergente Desvantagem Divergente Divergente Divergente Divergente Desvantagem

Simetria

Convergente

Simetria Divergente Assimetria Desvantagem Simetria Convergente Assimetria Desvantagem

Apêndice C Nº Clipping 58 PB17-4 59 PB18-1 PB20-1A 60 PB20-1B PB20-2A 61 PB20-2B 62 PB20-3

Portugal (país de referência) dos dois lados do Atlântico Portugal PT PT (e Brasil) PT PT (e Brasil) PT

Intervenientes dos dois lados do Atlântico ingleses BR Restantes países CPLP BR espaço lusófono BR

63 PB21-1

alentejanos

timorenses, brasileiros, moçambicanos, caboverdianos, minhotos, guineenses, são-tomenses, açorianos, angolanos, etc.

Simetria

Divergente

curvados, passemos fecham-se, dificultam-se, nós (portugueses) PT português europeu país lusófono ortografia europeia países lusófonos edição portuguesa portugueses PT PT PT distribuidores portugueses versão Pt-Pt se faça, por cá (em PT) PT todos os países de língua oficial portuguesa PT

brasileiros BR BR BR país lusófono outros países lusófonos países lusófonos mercado brasileiro espanhola espanhóis brasileiros BR traduções brasileiras BR BR (lá) brasileiro BR BR

Assimetria Assimetria Simetria Assimetria Simetria Assimetria Simetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Simetria Assimetria Assimetria Assimetria Simetria Assimetria Assimetria

Desvantagem Desvantagem Convergente Desvantagem Convergente Vantagem Convergente Desvantagem Vantagem Desvantagem Desvantagem Divergente Desvantagem Desvantagem Desvantagem Convergente Desvantagem Desvantagem

64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 78 77 78 79 80 81

PB22-1 PB22-2 PB25-1 PB26-1 PB26-2 PB26-3 PB26-4 PB27-1 PB29-1 PB29-2 PB30-1 PB31-1 PB31-2 PB31-3 PB33-1 PB34-1 PB34-2 PB34-3

Relação Tipo Simetria Divergente Assimetria Desvantagem Simetria Divergente Assimetria Vantagem Simetria Divergente Assimetria Vantagem Simetria Divergente

Apêndice C Nº Clipping 82 PB34-4 83 PB34-5 PB35-1A 84 PB35-1B

Portugal (país de referência) por cá PT duas ortografias (PT e BR) duas ortografias (PT e BR)

Intervenientes Relação BR Simetria BR Simetria duas ortografias (BR e PT) Simetria países africanos de língua oficial portuguesa / AN, MO, Assimetria GU

Tipo Divergente Divergente Divergente Vantagem

Apêndice C

Relações Comparativas Simétricas Quadro Geral Nº 10 9 21 17 66 1 18 31 22 79 3 38 41 56 8 45 32 53 29 68 70 19 35

Clipping DN14-1 DN13-1 SL02-4 SL01-3 PB25-1 CM01-1 SL02-1 EX04-3 SL02-5 PB34-1 CM02-1B PB05-3 PB05-6 PB17-2 DN10-1 PB06-3A EX05-1A PB13-1 EX04-1 PB26-2 PB26-4 SL02-2 PB03-2A

Intervenientes (luso-)brasileiro Academia Brasileira de Letras AN BR BR BR e qualquer outro PL BR, AN, MO BR, AN, MO, GU, CV, ST, TI BR, AN, MO, ST, CV GU, TI brasileiro brasileiros brasileiros brasileiros brasileiros britânica, francês discípulos de Bechara (brasileiros) noutros países lusófonos outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia outros povos e outras latitudes país lusófono países lusófonos países onde a língua oficial é o português AN e MO

Relação Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria

Tipo Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Convergente Divergente

Apêndice C Nº 44 16 49 60 61 62 75 82 83 51 48 25 28 27 50 4 58 84 54 26 46 2

Clipping PB06-2 SL01-2 PB10-1 PB20-1A PB20-2A PB20-3 PB31-1 PB34-4 PB34-5 PB10-3 PB07-1 EX01-2 EX01-5A EX01-4 PB10-2 DN02-1 PB17-4 PB35-1A PB13-2 EX01-3 PB06-4 CM01-2

63 PB21-1

Intervenientes AN, angolanos, Salvador da Baía, Inhambane, CPLP BR BR BR BR BR BR BR BR BR e África lusófona BR, AN, CV, ST e outros brasileiro brasileiro brasileiros brasileiros brasileiros e moçambicanos dos dois lados do Atlântico duas ortografias (BR e PT) família lusófona lusofonia/português africano, americano e asiático ortografia brasileira, cada um dos países público brasileiro timorenses, brasileiros, moçambicanos, cabo-verdianos, minhotos, guineenses, são-tomenses, açorianos, angolanos, etc.

Relação Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria Simetria

Tipo Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente Divergente

Simetria

Divergente

Apêndice C

Relações Comparativas Assimétricas Quadro Geral Nº 30 11 43 14 12 36 47 7 12 13 15 20 23 24 32 33 34 35 40 42 52 65 67

Clipping EX04-2 DN17-1 PB06-1 DN17-4 DN17-2A PB05-1 PB06-5 DN09-1 DN17-2B DN17-3 SL01-1 SL02-3 SL03-1 EX01-1 EX05-1B EX06-1 PB03-1 PB03-2B PB05-5 PB05-7 PB11-1 PB22-2 PB26-1

Intervenientes (Cedemos?) (do outro lado do Atlântico) África AN AN e MO AN, MO angolanos, brasileiros BR BR BR BR BR BR BR BR BR BR BR BR BR BR BR BR

Relação Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria

Tipo Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem

Apêndice C Nº 77 80 81 78 45 55 57 64 74 5 73 59 71 39 37 78 28 45 3

Clipping PB31-3 PB34-2 PB34-3 PB33-1 PB06-3C PB17-1 PB17-3 PB22-1 PB30-1 DN03-1 PB29-2 PB18-1 PB27-1 PB05-4 PB05-2 PB31-2 EX01-5B PB06-3B CM02-1A

6 DN07-1 61 72 69 84 60

PB20-2B PB29-1 PB26-3 PB35-1B PB20-1B

Intervenientes BR BR BR BR (lá) brasileiro brasileiros brasileiros brasileiros brasileiros brasilês espanhóis ingleses mercado brasileiro ortografia brasileira Português do Brasil traduções brasileiras África africanos africanos e asiáticos aqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor, com a melodia da voz espaço lusófono espanhola outros países lusófonos países africanos de língua oficial portuguesa / AN, MO, GU Restantes países CPLP (excluído BR)

Relação Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria

Tipo Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Desvantagem Vantagem Vantagem Vantagem

Assimetria

Vantagem

Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria Assimetria

Vantagem Vantagem Vantagem Vantagem Vantagem

Apêndice D

Situações de comparação construídas entre Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais CM01-1 Do acordo ortográfico de 1990 (não tão novo como isso), pode dizer-se uma coisa que vale para a generalidade das pessoas: é pior do que o pintam os seus pais e amigos, mas melhor do que querem fazer crer os seus inimigos jurados. Para o bem e para o mal, o acordo não irá alterar o modo de falar e escrever português em Portugal, no Brasil ou em qualquer outro país lusófono. Todos sabemos que as especificidades do uso de uma língua excedem largamente a grafia. CM01-2 Estou certo de que o público brasileiro continuará a preferir, em geral, obras e textos escritos em português do Brasil, bem como tradutores e intérpretes que usem esse português na construção frásica, na escolha de vocábulos e, claro está, na pronúncia. Do lado de cá do Atlântico acontecerá, seguramente, o inverso. Nada disso retira uma certa utilidade à unificação da grafia, sobretudo para as editoras e em documentos oficiais. Mas essa unificação é imperfeita, visto que o acordo admite que muitas palavras se escrevam de duas maneiras diferentes. CM02-1 Em 1990, ilustres detentores de uma certa Ortografia da Língua Portuguesa babaram-se de prazer e glória ao verem no papel o ‘Novo Acordo’. Africanos e asiáticos falantes e escrevedores da Língua, conhecidos por ‘falarem à preto’ foram obrigados a ver passar o comboio ortográfico de portugueses e brasileiros. Depois, pediram-lhes batatinhas para rubricarem o dito. Acordo que se preze deve levar assinaturas de todos. DN02-1 Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e, não fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. À revelia da proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a minha língua é. Obs.: Embora a relação de comparação acima tenha sido construída de forma simétrica (divergente), considerando-se o contexto mais geral de discussão do AO, a ideia de assimetria também se faz presente, uma vez que o autor representa o acordo como uma forma de privação da sua língua e, portanto, como uma desvantagem.

DN03-1 Tenho assistido - sem grande vibração, diga-se - à troca de acaloradas, mais ou menos profundas sobre a questão Descaracterização da língua, submissão ao brasilês, com tudo "matriotismo" obstinado do "foi assim que me ensinou a minha primária".

opiniões, mais ou menos do Acordo Ortográfico. se argumenta, até com o santa professora da escola

Obs.: Embora não haja menção expressa, Portugal é trazido à representação a partir de duas inferências: pela expressão “tenho assistido”, que, de certa forma, remete para o caso português e para Portugal, uma vez que o autor deste artigo ocupa o cargo de “provedor do leitor” no jornal português Diário de Notícias, e pela expressão “submissão ao brasilês”, que invoca a parte que supostamente se submete (neste caso, Portugal).

249

Apêndice D

DN07-1 É que se querem abdicar de certa grafia para mostrar superioridade de ex-potência colonial e facilitar a vida (a escrita) àqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor, com a melodia da voz, façam-no para exportação, mas conservem também no meio intelectual a forma antiga. Obs.: Embora não haja menção expressa a Portugal, este é representado pela expressão “ex-potência colonial”. O Brasil, por sua vez, é trazido à representação acima por meio da referência implícita aos brasileiros, contida na expressão “aqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor, com a melodia da voz”.

DN09-01 De resto, há muitas outras questões que têm sido levantadas, mas que as mesmas individualidades se dispensam de considerar, mostrando uma suficiência assaz discutível em relação a assuntos que não estudaram e de que, pelos vistos, percebem pouco. Não as abordaremos para já, mas elas não perdem pela demora. Diga-se apenas que nem mesmo o Brasil aceita a carnavalização da grafia que está a ser praticada em Portugal! DN10-01 A atitude cultural nem sempre coincide com a estrutura social. A Inglaterra é uma sociedade aristocrata, onde perdura a nobreza e a Câmara dos Lordes, mas com uma cultura de abertura e fair play, apostada na iniciativa, na liberdade e no vigor das dinâmicas populares. A França, pelo contrário, afirmando-se democrática e abominando tirania e desigualdade, prefere planeamento e regras impostas de cima, desconfia visceralmente de liberais e movimentos espontâneos e confia em intelectuais e especialistas. Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês. A ideia espantosa de a escrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser negociada por academias e imposta por lei só poderia surgir num país de atitude aristocrata, hoje como na Primeira República. A simples concepção de um Estado intrometido nas nossas cartas e recados nasce de um traço cultural básico. Foi a mesma atitude estatizante que nos trouxe à emergência financeira. DN13-1 Em quarto lugar gostaria de dizer que depois de cem anos de divergências ortográficas (desde o acordo de 1911 que não foi extensivo ao Brasil) e depois de várias tentativas goradas de acordos envolvendo a Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de Lisboa (1931, 1943, 1945, 1971/ /1973, 1975 e 1986) foi finalmente encontrado um texto comum que, podendo ter lacunas, é um acordo internacional e um acordo é, em si mesmo, um facto que encerra convergência, que é positivo e que importa, portanto, enfatizar. DN14-1 O significado profundo desta coisa traduz provavelmente a confissão envergonhada, por parte do neocolonialismo luso-brasileiro, de que o AO não dispõe absolutamente nada para a grafia de vocábulos das línguas nativas que tenham sido incorporados no português. Se é este o sentido útil desse ponto, isto significa o reconhecimento, por todos os governos, de que, também por esta razão, o AO não pode ser aplicado enquanto não for alterado! DN17-1 Os partidos políticos com assento parlamentar têm vindo a pactuar, sem excepção, com esse estado de coisas. Ninguém lucra absolutamente nada com ele. Mas tudo isso redundaria apenas num simples exercício de humor de gosto discutível, se não se traduzisse numa violência quotidiana contra a língua. E o certo é que, se as coisas continuarem assim, dentro 250

Apêndice D

de uma geração ninguém conseguirá pronunciar correctamente a língua portuguesa tal como ela é falada deste lado do Atlântico. Obs.: Embora o Brasil não tenha sido expressamente referido, sua participação na construção desta relação comparativa é inferida pela expressão “desde lado do Atlântico”, que pressupõe o “lado de lá” ou o “outro lado” do Atlântico (nesse caso, o Brasil).

DN17-2 Por outro lado, o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma questão política assaz bizarra. E a questão política actualmente resume-se a isto: estão a ser aplicadas não uma, mas três grafias da língua portuguesa. A correcta, em países como Angola e Moçambique, a brasileira (no Brasil) e a pateta (em Portugal e não se sabe em que outras paragens). DN17-3 Alem disso, é muito de estranhar que, no ano em que o Brasil se apresenta em Portugal e Portugal se apresenta no Brasil com tanta pompa e circunstância, nenhum dos países interessados tenha feito qualquer reparo à maneira como a grafia do português, que se pretende oficial e oficiosamente seja agora adoptada em Portugal, consagra uma série de enormidades que não estão, nem podem estar, a ser aplicadas no Brasil e que aumentam a desconformidade com a maneira como a língua se escreve de um lado e do outro. DN17-4 Talvez tenhamos de esperar que se realize um ano de Angola em Portugal e de Portugal em Angola para o problema merecer atenção. E então não será de estranhar que tenhamos de agradecer aos angolanos um rigor na grafia da nossa língua de que, por cá, nós portugueses já não somos capazes. SL01-1 A este propósito, Cavaco silva foi peremptório: em seu entender, o acordo ortográfico era essencial para que, no século XXI, o português falado em Portugal não ficasse com um estatuto equivalente ao do Latim. Cavaco Silva fez-me notar que, nos leitorados das universidades um pouco por todo o mundo, nas traduções em organizações internacionais e em várias outras instâncias, era cada vez mais utilizado o português conforme escrito e falado no Brasil. SL01-2 Nem todos os estados-membros da CPLP ratificaram ainda o acordo? Pois não. Mas entre os que já o fizeram encontra-se o país que se previa viesse a ter mais resistências: exactamente o Brasil. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação na condição de um dos países que já ratificaram o acordo.

SL01-3 Fiz, tempos depois, uma visita oficial ao Brasil, e falei no congresso e na academia brasileira de letras. E recordo-me bem de como o ambiente era reservado ou até hostil. Não tenho qualquer hesitação em afirmar que é do mais alto interesse nacional que este acordo seja assumido por toda a comunidade que se exprime oficialmente em português. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio da expressão “interesse nacional”, que, nesse contexto, remete para o interesse de Portugal.

251

Apêndice D

SL02-1 - a oposição ao acordo ortográfico é um enorme disparate. O nosso grande património é termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com Moçambique… Tudo o que pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é decisivo para nós. Perante isso, não tem qualquer interesse discutir chinesices, como a escrita desta ou daquela palavra. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome possessivo “nosso” na expressão “nosso grande património”, que, nesse contexto, remete para o patrimônio de Portugal.

SL02-2 É óbvio que não entrarei em discussões técnicas sobre este assunto com Vasco Graça Moura ou qualquer outro especialista. Eles saberão certamente muito mais do que eu. Só que a questão essencial não é essa. O essencial não é discutir o resultado – é admitir que são úteis todos os esforços que se façam no sentido de os países onde a língua oficial é o português aproximarem as suas grafias. E são especialmente importantes para nós, portugueses. SL02-3 Portugal tem 10 milhões de habitantes – mas o Brasil tem 200 milhões. Só por arrogância ou por capricho se pode defender que devemos ficar ad aeternum agarrados às nossas regras. SL02-4 O nosso papel deverá, mesmo, ser o oposto: levar os países que ainda não adoptaram o acordo, como Angola, a fazê-lo rapidamente. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome possessivo “nosso” na expressão “nosso papel”, que, nesse contexto, remete para o papel de Portugal.

SL02-5 O que vale aqui é o princípio. É termos permanentemente na cabeça a ideia de que todos ganham se em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em S. Tomé, em Cabo Verde, na Guiné e em Timor se escrever do mesmo modo. SL03-1 Goste-se ou não se goste dele, há que admitir que, se o acordo existe, é precisamente porque alguém se preocupou com estas questões e tentou delinear uma estratégia para a língua. Num momento em que o português adoptado a nível internacional era mais o do Brasil do que aquele que se falava a escrevia em Portugal, impunha-se a tomada de medidas. A solução encontrada foi aproximar os dois ramos da língua. EX01-1 Os legisladores impuseram aos falantes uma “ortografia unificada”, que, dizem, garante a “expansão da língua” e o seu “prestígio internacional”. Mas a expansão da língua passa por uma política da língua, que Portugal, por exemplo, não tem tido, ocupados que estamos em fechar leitorados no estrangeiro, em aplicar uma abominável terminologia linguística nas escolas, em publicar um lamentável Dicionário da Academia, em expulsar Camilo dos currículos enquanto o substituímos por diálogos das novelas. Quanto ao prestígio internacional, lamento informar que foi o sucesso económico, e não a “língua de Camões”, que transformou o Brasil numa potência. EX01-2 Um brasileiro continuará a falar uma língua muitíssimo diferente do português de Portugal, diferente em termos de léxico, de sintaxe, de fonética. Um português, com um exemplar do

252

Apêndice D

Acordo debaixo do braço, bem pode perorar em Iraguaçu, que alguém lhe continuará a perguntar “oi?”, pois não percebeu metade. EX01-3 E isso não tem problema algum, a “lusofonia” não vale pela unidade mas pela diversidade, pelo facto de haver um português europeu, africano, americano e asiático. Obs.: Na relação de comparação acima, os diferentes países de língua oficial portuguesa, entre os quais Portugal, são chamados a participar por meio das referências ao português, em sua diversidade.

EX01-4 E ninguém é dono da língua: nem os brasileiros por serem mais, nem os portugueses por andarem cá há mais tempo, muito menos uns académicos pascácios que dicionarizaram “bué” e “guterrismo”.

EX01-5 É significativo que o próprio “acordo” reconheça o fracasso do projecto de “unificação a língua”. Dadas as flagrantes diferenças entre o português e o brasileiro, os sábios são obrigados a admitir a existência de duplas grafias, uma cá, outra lá [África, para estes iluministas, é paisagem]. Obs.: Na segunda parte da relação de comparação acima, em que África aparece como interveniente, Portugal se faz presente por meio da referência aos “iluministas” (também interligada aos “sábios” da primeira parte da relação), que remete para os defensores do acordo e, nesse contexto (jornais portugueses), mais especificamente aos defensores do acordo em Portugal.

EX04-1 Posto isto, o AO é importante porque aproxima da fonética uma série de palavras. E fá-lo, pela primeira vez, em função de um idioma que, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes. Obs.: Na relação acima, entende-se “outros povos” como uma referência aos demais países de língua portuguesa.

EX04-2 Cedemos? Não sei, nem me importa. Obs.: Nesta relação de comparação, entende-se que Portugal e Brasil são trazidos à discussão por meio da escolha de “Cedemos?” – quem cede, cede a alguém e, no presente contexto, as representações de cedências giram em torno de ambos os países, ou seja, Portugal, ao ratificar o AO, supostamente ‘cede’ ao Brasil.

EX04-3 Não quero uma língua para me distinguir do Brasil. Prefiro uma que me aproxime. E quem diz Brasil, que tem 200 milhões de falantes, diz naturalmente Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Timor. Obs.: Na relação acima, Portugal se faz presente por meio da manifestação do autor, na condição de representante português, evidenciada pelo flexão do verbo ‘querer’ na primeira pessoa do singular.

EX05-1 Mas como é que nós sabemos que há facultatividade, que podemos em alguns casos manter o c e o p que são mudos em Portugal e noutros países lusófonos? Sabendo qual é a "norma culta" no Brasil. Acontece que nós não sabemos nem temos meios de saber tal coisa. E acontece que aquilo que o AO chama "norma culta" da pronúncia não está definida em lado nenhum.

253

Apêndice D

EX06-1 O Brasil, um enorme e apetecível mercado editorial já se marimbou para o acordo ortográfico, assumindo sozinho o seu "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa". Lá vamos de ter de vender um livrito ou outro numa grafia bizarra acordada. Os leitores irmãos que se amanhem. Obs.: Embora não haja menção direta a Portugal, o país é trazido a esta representação por via de uma referência implícita aos portugueses, realizada por meio do verbo ir, flexionado na primeira pessoa do plural.

PB03-1 Porque é que os decisores políticos adoptaram um comportamento parolo, adequando, como dizem, a língua portuguesa escrita à língua portuguesa falada, quando a nação mais populosa não o fez da mesma maneira e quando a uniformização da escrita foi a razão mais invocada para que este acordo ortográfico se efectivasse, apesar de ter sido o Brasil o primeiro a denunciar a uniformização operada com a revisão de 1945? Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado a partir da expressão “decisores políticos”, que remete para os decisores políticos portugueses e, desse modo, para Portugal.

PB03-2 Uma língua é tão mais rica quanto maior for a diversidade que apresenta. Esta decisão ilegal dos políticos que assumem o poder desde 1990 é tanto mais incompreensível quando uma pretensa unidade linguística dos países de língua portuguesa é comprometida com a não adesão de Angola e Moçambique ou quando o que se transformou numa regra para Portugal tem tantas excepções no Brasil, precisamente a nação com mais falantes de português. PB05-1 O colunista Rui Tavares decidiu adoptar, na sua crónica de 6 de Fevereiro, um tom pretensamente jocoso para criticar a decisão do novo presidente do CCB, Vasco Graça Moura, de não aplicar o chamado “acordo ortográfico” imposto aos portugueses, apesar da forte mobilização que se registou no país contra ele e do facto de dois dos maiores países de língua oficial portuguesa, Angola e Moçambique, não terem ratificado o respectivo tratado. Fez mal. Quis ser engraçado, mas não teve piada. PB05-2 Tavares apresenta-se como arauto do alinhamento da ortografia do Português europeu pela do Português do Brasil, mas não adianta um único argumento a favor do “acordo”. PB05-3 Mistura alhos com bugalhos e agita todos os episódios da crónica política recente para “gozar” com as justificadas dúvidas de Graça Moura e dezenas de milhares de outros portugueses (e alguns brasileiros) que conseguiram bloquear a primeira tentativa de nos impingir o dito “acordo”. Obs.: Apesar da diferença quantitativa entre “dezenas de milhares” e “alguns”, entende-se que a representação de simetria acima faz-se pela convergência, pois é esse o movimento destacadado.

PB05-4 A cedência à ortografia brasileira talvez faça vender alguns dicionários mas será altamente prejudicial para a aprendizagem da língua pelas futuras gerações de Portugueses da Europa, que já não precisam de ser desajudados. As profundas alterações introduzidas pelo presente “acordo” na ortografia portuguesa não são equivalentes à substituição do “ph” de “pharmácia” por “f ”, pois esta alteração não afectou a fonética da palavra, como a supressão do “c” mudo afectará a pronúncia dos compostos do étimo “afecto” se este “acordo” for por diante.

254

Apêndice D

PB05-5 Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema “güe” na palavra “bilingüe” quando o trema foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)? PB05-6 O colunista devia saber que é muito feio tentar desvalorizar os argumentos alheios com piadas de mau gosto. Não foi à toa que a grande maioria dos linguístas portugueses e muitos brasileiros não cedeu a mal compreendidas motivações políticas na defesa da ortografia, da fonética e da etimologia do Português em que nos temos entendido, até agora, neste pequeno rectângulo do Sudoeste europeu. Obs.: Apesar da diferença quantitativa entre “a grande maioria” e “muitos”, entende-se que a representação de simetria acima faz-se pela convergência, pois é esse o movimento destacadado.

PB05-7 Tanto mais que, como é bem sabido, o Português falado e escrito no Brasil não vai parar a sua fortíssima dinâmica própria lá porque a classe política portuguesa assinou um “acordo” artificial que só prejudica a aprendizagem e o correcto domínio do Português de cá! PB06-1 Diz-se “meter uma lança em África” como sinónimo de vencer uma grande dificuldade. Pois bem: há dias, a lança virou-se, directamente de África, contra o “lançador”. Obs.: Nesta relação de comparação, os intervenientes em destaque são os países africanos de língua portuguesa – mais especificamente Angola, dado o contexto (referência a um dos editoriais do Jornal de Angola) – representados por “África” – e Portugal, aqui entendido como o “lançador”.

PB06-2 E a findar: “O português falado em Angola tem características específicas e varia de província para de província para província. Tem uma beleza única e uma riqueza inestimável para os angolanos mas também para todos os falantes. Tal como o português que é falado no Alentejo, em Salvador da Baía ou em Inhambane tem características únicas. Todos devemos preservar essas diferenças e dá-las a conhecer no espaço da CPLP. PB06-3 Ouviram, discípulos de Malaca & Bechara? Se lhes parece mal, por vir de africanos, então ouçam lá um brasileiro: “O acordo ortográfico é um aleijão. Linguisticamente malfeito, politicamente mal pensado, socialmente mal justificado e finalmente mal implementado. Foi conduzido, aqui no Brasil, de modo palaciano: a universidade não foi consultada, nem teve participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá da tarde na Academia Brasileira de Letras)”. Obs.: Nesta situação de comparação, Portugal e Brasil se fazem presentes, respectivamente, como “discípulos” de Malaca, personalidade portuguesa, e “discípulos” de Bechara, personalidade brasileira – ambos a favor do acordo. A perspectiva da assimetria é concretizada pela valorização da declaração de um brasileiro contra o acordo, que deveria ser ouvida pelos portugueses (não por todos os portugueses, só por aqueles que são favoráveis ao acordo, e não só pelos portugueses, também pelos brasileiros que o apóiam).

PB06-4 Mais: “A ortografia brasileira não será igual à portuguesa. Nem mesmo, agora, a ortografia em cada um dos países será unificada, pois a possibilidade de grafias duplas permite inclusive a construção de híbridos.”

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Apêndice D

PB06-5 Foi você que pediu um acordo ortográfico? Não? Então descubra quem o encomendou. Os angolanos e os brasileiros já sabem. Daí estas lanças, tão hábeis e certeiras. Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado a partir de uma interpelação (“você”), dirigida aos leitores do jornal; portanto, aos portugueses.

PB07-1 A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força. Eu vou continuar a escrever como antigamente. A diversidade de vocabulário escrito e falado no Brasil, Angola, Portugal, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e noutros são uma riqueza cultural. PB10-1 Pois em 1973 Ruy Castro chegou a Lisboa para trabalhar numa revista brasileira cá editada. No primeiro dia de trabalho houve um problema na casa de banho e ele pediu à secretária: “Isabel, chame o bombeiro para consertar a descarga da privada”. Isabel apenas percebeu o nome próprio e o “por favor”. Mas um colega do lado, brasileiroportuguês, já acostumado aos labirintos da língua entre Portugal e Brasil, traduziu o pedido: “Isabel, chame o canalizador para reparar o autoclismo da retrete”. E então sim, Isabel percebeu. PB10-2 Como foi que surgiram entre nós os vocábulos ‘autoclismo’ e ‘retrete’, enquanto os brasileiros escolheram os termos ‘bombeiro’ e ‘privada’? Eu sei que a troika não trata destas coisas. Etimologicamente, aprendo no Houiass, “autós” significa em grego “por si mesmo” e “klusmós” “acção de lavar”. Privada entrou mais tarde e sem este amparo clássico. É produto duma outra civilização. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome pessoal de primeira pessoa do plural “nós”, que, no contexto de um jornal português dirigido a leitores portugueses, remete para o país.

PB10-3 Nunca alinhei especialmente nas brigadas pró ou contra a unificação da ortografia. Por falta de competência não iria acrescentar nada ao debate. O que posso dizer é que nenhum acordo de escrita entre Brasil, Portugal e a África lusófona irá erradicar estas diferenças de vocabulário. E muitas outras existem, como toda a gente sabe. PB11-1 Do que gosto no novo Acordo Ortográfico, tão inclinado para o Brasil, é do seu lado português, como eu: um bocado feito em cima do joelho. Matou a paz da língua (e nisso está de acordo com o espírito económico e político do seu tempo, aspecto importante… espera, aspeto). PB13-1 E a esta [irmandade lusófona] bastaria que, em Portugal e nos outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia, existisse uma Academia das Letras digna desse nome (ou de uma equipa competente plurinacional) que elaborasse um léxico contemplando todas as variantes do português, em plena igualdade plural. Isto a montante de todos os remendos pontuais e casuísticos que se queira fazer ao que nasceu torto e tarde ou nunca poderá endireitar-se.

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Apêndice D

PB13-1 A grande família lusófona precisa, isso sim, de reconhecer-se na alegria criativa da diferença, não de ficar frustrada com rasuras injustificadas e arbitrárias. Obs.: Nesta comparação, todos os intervenientes são representados por uma só expressão “família lusófona”, que reúne Portugal e todo os demais países de língua portuguesa.

PB17-1 “Segundo o AO90, os Brasileiros podem continuar a escrever (como sempre escreveram pela reforma ortográfica brasileira de 1943), por exemplo: acepção, aspecto, conjectura, perspectiva, decepção, detectar, excepcional, tactear, retrospectiva, percepção, intersectar, concepção, imperceptível, respectivo, recepção, susceptível, táctico… Em Portugal, com o mesmo AO90, seremos obrigados a escrever: aceção, aspeto, conjetura, perspetiva, deceção, detetar, excecional, tatear, retrospetiva, perceção, intersetar, conceção, impercetível, respetivo, receção, suscetível, tático… Ora, a ideia não era uniformizar? Será que os Brasileiros não se vão rir quando virem, em escritos de Portugal, aberrações como deceção, recetivo, perceção…?” PB17-2 “No fundo eu estava perguntando, por outras palavras, o que é que lucrámos com isto, Portugueses e Brasileiros, perguntando também, implicitamente, se não seria mais simples deixar tudo na mesma — ao menos, já estávamos familiarizados com as igualizações e as desigualizações, em vez de termos de aprender outras novas sem nenhuma vantagem óbvia.” Obs.: Embora esta relação de comparação faça referência tanto aos pontos em comum (“igualizações”) como às diferenças (“desigualizações”) entre o português de portugueses e brasileiros, entende-se que nessa representação prevalece o esforço de aproximação, portanto, esta passagem foi classificada como simétrica convergente (o mesmo se dá em PB26-3).

PB17-3 Seguindo o raciocínio de António de Macedo, peguemos num, dois, três, quatro, uma dúzia de livros brasileiros recentes. Não é difícil ler, a par de ato ou fato (que cá se mantém facto, já agora, numa deliciosa “ortografia comum”), palavras como aspecto, perspectiva, caracterizou, facção, respectivamente, etc. Essas mesmas que o unificador acordo quer que, só em Portugal, se escrevam aspeto, perspetiva, caraterizou, fação (é verdade, fação!) e respetivamente. PB17-4 É isto um acordo para unificar a ortografia? Onde está o empregado que serviu o bife, hã? Não vêem que está mal passado? Não, não vêem. Vão “adotar” a coisa e não vêem. Mas comem-no, regalados, apesar do truque baixo do bife apenas virado na cozinha, sem ver outra vez a frigideira, para que todos se deliciem com a ilusão de uma ortografia unificada. Mas há vozes atentas, vejam lá, que percebem a impossibilidade de tais mudanças. Leiam-nas: “Há diferenças intransponíveis dos dois lados do Atlântico, as quais foram acentuadas pelo tempo.” Autor? João Malaca Casteleiro, o pai do aborto, perdão, do acordo ortográfico (pág. 6 do opúsculo Atual: o que vai mudar na grafia do português, ed. Texto, 2007). Obs.: Nesta relação, Portugal e Brasil são representados simultaneamente pela expressão “dos dois lados do Atlântico”.

PB18-1 O defeito deve ser da gesta marítima, mas a verdade é que Portugal decididamente não se dá bem com aventuras herbáceas. Os ingleses, sim. Jardinagem é com eles. Qualquer coisa onde se mencione garden ou grass tem de ser bem feita. Eles sabem e dão muita importância ao assunto. 257

Apêndice D

PB20-1 Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90 vem consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e outra para o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades ortográficas dos restantes países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma, ou a outra - a menos que surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor... PB20-2 Chamo a atenção para as semelhanças e diferenças: são de facto dois modelos bastante distintos do AO90, a pensar exclusivamente no Brasil e em Portugal, como se mais nada existisse no espaço lusófono. Dois modelos perfeitamente enquadrados: um delineado para o Brasil, outro delineado para Portugal. E já nem discuto nem repiso a falácia da tão apregoada "uniformização" ortográfica. PB20-3 Quando José Eduardo Agualusa (angolano) e Mia Couto (moçambicano) declaram a sua adesão ao AO90, será que sabem ao que é que estão a aderir? Ao modelo do AO90 para Portugal, ou ao modelo do AO90 para o Brasil? Obs.: Apesar das referências aos gentílicos “angolano” e “moçambicano”, estes não parecem trazer para a representação efetivamente Angola e Moçambique, mas sim duas personalidades de renome no campo da literatura de língua portuguesa.

PB21-1 Temos o irresistível argumento de aproximar a escrita da oralidade. Com pronúncias tão distintas como as dos alentejanos, timorenses, brasileiros, moçambicanos, caboverdianos, minhotos, guineenses, são-tomenses, açorianos, angolanos, etc., nada mais lógico senão dizer-lhes a todos que escrevam como pronunciam…? Quando estamos ao mesmo tempo a “unificar”, claro! Isto só como anedota. Será possível que haja quem ainda não tenha visto a contradição gritante deste disparate? PB22-1 Falta só que, curvados perante o número de falantes brasileiros e em nome da pretensa “unidade da língua”, passemos a usar “presidenta ou estudanta”, entre outras similares, obedecendo à lei n.º 12.605, de 3/4/2012, sobre o “Emprego obrigatório da flexão de género para nomear profissão”, recente inovação da “Presidenta” do Brasil. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do verbo “passar”, flexionado na primeira pessoa do plural, que, nesse contexto, remete para os portugueses e, portanto, para Portugal.

PB22-2 Em 2011, o Conselho de Ministros afirmou que o AO visava “reforçar o papel da língua portuguesa como língua de comunicação internacional”, mas, entretanto, fecham-se leitorados, dificultam-se as aulas de Português para os filhos dos emigrantes, continuando nós também a desconhecer o quanto tem custado e continua a custar este AO. O Brasil, entretanto, promove congressos com o objectivo de “discutir políticas linguísticas relacionadas à internacionalização do Português brasileiro”. E assim se fazem as cousas, diria Gil Vicente. Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio de diferentes estratégias: via representação do governo Português – concretizada na referência ao “Conselho de Ministros” e também nos verbos “fecham-se” e “dificultam-se”, que, embora configurem orações com sujeito indeterminado, remetem para situações de

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Apêndice D responsabilização do governo – e via menção aos portugueses – concretizada na utilização do pronome pessoa “nós”.

PB25-1 Dizem que é para facilitar… O Brasil fê-lo com as suas reformas. Portugal prepara-se para o mesmo. Mas produziu e produzirá sociedades mais cultas e pensantes? Ou linguística e culturalmente empinantes? E cuja escrita se reduza a um trogloditismo, à mera transcrição de grunhidos? Repudiamo-lo! PB26-1 A importância do Acordo, aliás, é defendida por se considerar que é a tábua de salvação da língua. Sem o Acordo, e, portanto, sem o peso do Brasil, o português europeu passaria a ser uma língua rapidamente extinta. PB26-2 O acordista sabe que o Acordo Ortográfico não trouxe acordo ortográfico, mas finge, ainda, ignorar que, para além da ortografia, não existem outras diferenças insanáveis, que só poderiam desaparecer se, para além de um acordo ortográfico, se realizassem, ainda, um acordo sintáctico, um acordo fonético e um acordo semântico. Nada disso impede o acordista de afirmar, por exemplo, que “qualquer livro editado em português possa ser impresso em qualquer país lusófono”. Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado pelos portugueses que defendem o acordo, referidos na expressão “acordista”, mas também na expressão “qualquer país lusófono” – embora, neste último caso, seja representado lado a lado com demais países de língua portuguesa.

PB26-3 É, ainda, vulgar, ouvir o acordista criticar os críticos do Acordo Ortográfico por se julgarem “donos da língua”. Tal crítica faria sentido se esses mesmos críticos defendessem a imposição da ortografia europeia a todos os outros países lusófonos. Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal é representado pela expressão “ortografia europeia”.

PB26-4 A língua pertence, evidentemente, a quem a usa, o que quer dizer que o português pertence a todos os países lusófonos e é, portanto, enriquecedor que esse facto provoque todo o género de aproximações e admita as inevitáveis diferenças, que podem ser fonéticas, semânticas ou ortográficas. Obs.: Embora esta relação de comparação faça referência tanto aos pontos em comum (“aproximações”) como às diferenças (“inevitáveis diferenças”) entre o português dos diferentes países lusófonos, entende-se que nessa representação prevalece o esforço de aproximação, portanto, esta passagem foi classificada como simétrica convergente (a exemplo da classificação de PB17-2).

PB27-1 Além dos avultados custos sociais e culturais, o AO90 acarreta também consideráveis custos económicos: substituição de milhões de livros, ferramentas informáticas, documentos, etc., que assim ficam obsoletos, e perda de posição das exportações de edição portuguesa para o mercado brasileiro. Este acordo foi forjado nas costas dos portugueses, à revelia dos seus interesses. PB29-1 Devo começar por dizer que duvidei na hora de enviar este texto. No fim de contas, sou espanhola e alguns portugueses poderiam levar a mal uma estrangeira vir cá opinar sobre aquilo que não lhe diz respeito. 259

Apêndice D Obs.: A relação de comparação acima caracteriza-se como assimétrica com vantagem para Portugal por atribuir aos portugueses o “direito” de opinar sobre o AO – em outras palavras, por privilegiar o papel dos portugueses (nacionais) em detrimento dos espanhóis (estrangeiros) nesse contexto.

PB29-2 Quando falo com colegas, amigos ou familiares sobre o AO da Língua Portuguesa, eles ficam admirados. Não percebem e dizem que eles nunca permitiriam uma coisa dessas aqui. Não percebem e embora a maioria se esteja nas tintas (infelizmente, os espanhóis não ligam muito às notícias vindas de Portugal, embora ache que a tendência começa a mudar) quase sempre me perguntam: “E então, os portugueses não estão a fazer nada para evitar isso? Fosse aqui e eu…” Mas não é aqui, é aí. PB30-1 Podem até ensinar às crianças de hoje que a receção se pronuncia como recéção. Dentro de uns 30 anos, se o AO vier a prevalecer, poderá esta pronúncia vingar, graças à frequente exposição à palavra (embora proferida com a vogal átona fechada, quando palavra isolada?). Já os brasileiros continuarão a olhar para Portugal como um país mais deprimente do que aquilo que sempre foi: nos jornais, nos hotéis, nos organismos públicos, o país da omnipresente e sempiterna receção, perdão, rêcêssão. PB31-1 Peço-vos que voltem a ler os exemplos apresentados. Não verão uma só instância de diferença ortográfica, o que prova a futilidade do esforço (inútil porque não o consegue) de uniformização ortográfica. A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu revi estão escritos assim e, provavelmente, no Brasil até são textos perfeitamente aceitáveis, não sei, nem discuto. Mas em Portugal não. PB31-2 A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as traduções brasileiras em Portugal. PB31-3 Os argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado que o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt-Br ou (2) temos que reduzir custos, por isso há que anular uma das versões em Português; o Brasil é um mercado maior, portanto eliminamos a versão Pt-Pt. Ponto final. PB33-1 Torna-se igualmente caricato que se faça rasura da etimologia e ela permaneça refém da fala e de formas de articulação volúveis. E constatar que no Brasil será preservada alguma morfologia etimológica torna a questão ainda mais absurda (lá, dir-se-á “concepção”, “recepção”, etc., coisa esquecida por cá). Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal é representado em contraposição ao Brasil nas referências a “lá” (Brasil) e “cá” (Portugal), mas sua presença também pode ser inferida pela construção verbal “se faça”, a partir da presunção de que é Portugal quem faz “rasura da etimologia” ao ratificar o AO.

PB34-1 Resulta [o adiamento da entrada em vigor do AO no Brasil] de uma pressão que vem de longe, como nos lembra o professor Ivo Manuel Barroso (que em Portugal entregou na Procuradoria uma queixa, fundamentada, para que Portugal se desvincule do AO90) e tem por base uma acção judicial intentada pelo professor brasileiro Ernani Pimentel.

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Apêndice D

PB34-2 Porquê? Porque o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), editado unilateralmente no Brasil em 2009 (o que é já de si um absurdo, porque o AO90 prometeu, sem nunca cumprir, um “vocabulário unificado” comum a todos os países de língua oficial portuguesa), contradiz o acordo de 90 em vários pontos. PB34-3 Felizes, com a perspectiva? Ainda não viram nada. Se o AO90 já é uma fraude, fingindo unidade onde foi criada confusão e divisão (palavras que todos escreviam da mesma maneira, tantas, passam a escrever-se, por imposição do AO, de modo diferente em Portugal, mantendo no Brasil grafia certa: recepção, percepção, confecção, ruptura, cacto, etc.), as propostas “simplificadoras” de Pimentel vão apimentar ainda mais o debate em torno da já tão massacrada grafia da língua portuguesa. PB34-4 Mas o que move Pimentel? O facto (que por cá se mantém com c, permanecendo “fato” no Brasil) de “70 por cento dos candidatos chumbarem por causa da língua portuguesa” nos exames brasileiros de acesso ao Superior. PB34-5 Pobre Brasil, pobre Portugal, pobre língua. Deixa de ser portuguesa, rica em variantes, para ser língua de Pandora, aberta não ao mundo mas todos os disparates caseiros. Quem a salva de tais tormentos? Quem “desacorda” de vez o seu futuro? PB35-1 Quem tem dúvidas pode dissipá-las ouvindo Fernando Cristóvão numa entrevista concedida em 2008, que esclarece o que pensam os "acordistas" sobre o processo legislativo num regime democrático - em que, supostamente, as leis não são dogmas nem mandamentos, e, logo, são alteráveis e revogáveis - e a independência, a soberania - cultural e não só - dos países africanos de língua oficial portuguesa: "(...) Porque é que Angola também não há de ter uma ortografia diferente? E porque é que Moçambique qualquer dia não...? E a Guiné, lá por ser pequenina, não há de ter uma ortografia? Onde é que nós vamos parar? (...) O acordo tem de se fazer porque nós temos duas ortografias, não podemos continuar assim, e a continuar assim qualquer dia temos cinco ou seis. Qual é a língua que resiste a tanta ortografia? [O Francês, que tem 15, e o Inglês, que tem 18!] (...) Confesso que, perante a urgência de haver uma ortografia unificada, eu não entendo como é que há tanta teimosia em querer emendar uma coisa que ainda por cima é uma lei. (...)" Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal se faz presente na expressão “duas ortografias”, que remete para a ortografia de Portugal e para a ortografia do Brasil, simultaneamente.

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Referências

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