O papel sócio-político da mulher nos finais da Idade Média: vida cortesã, matrimónio e ligações familiares

June 15, 2017 | Autor: J. Gonçalves de F... | Categoria: Gender Studies, Late Medieval Royal Courts
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Publicado em: Os instrumentos de igualdade de oportunidades em Portugal, (João Casqueira org.), Porto: Edições UFP, 2004, pp. 13-23. O papel sociopolítico da mulher nos finais da Idade Média: vida cortesã, matrimónio e ligações familiares Judite Antonieta Gonçalves de Freitas* A apresentação deste texto leva-nos, por imperativos científicos, a proceder a duas advertências iniciais. A primeira vem de encontro ao crescente interesse manifestado pelo estudo do «universo» feminino. Na verdade, e a despeito do reduzido domínio até hoje tido pela mulher ao longo da história, considerámos que a figura feminina se veio a constituir nos últimos anos como um objecto de estudo muito especializado, que podemos devidamente aquilatar pela multiplicidade de artigos e estudos trazidos a lume, em variadíssimos campos temáticos e disciplinares, numa publicação de extenso remate bibliográfico elaborada por Maria Regina Tavares da Silva, intitulada “A Mulher - Bibliografia Portuguesa Anotada (15181998), editada pela Cosmos, em 1999, e que reúne cerca de mil e setecentos (1700) títulos. A segunda (e não menos importante) observação que convém fazer antes de iniciarmos a nossa exposição é a que se reporta à definição do objecto em estudo. Trata-se aqui de salientar a função da mulher no seio e nas suas relações com o homem da Corte medieval de Trezentos e de Quatrocentos e do papel que, uma maioria das vezes, a opõe ao domínio dos homens em quase todos os campos; até porque acerca da mulher não nobre ignoramos quase tudo. Deste modo, a vida das mulheres das grandes casas senhoriais e da Corte é o que nos interessa. Em paralelo, interessa-nos igualmente saber o que pensavam os cavaleiros das mulheres do seu próprio sangue, que condição lhes atribuíam, que vida levavam as «damas»1 que haviam desposado um senhor e as donzelas criadas numa etiqueta minuciosa, que dimensões podiam atingir os bens patrimoniais femininos e que espaço de autonomia e poder lhes proporcionavam. Estas são algumas das questões que tentaremos trazer para a luz do dia procedendo a uma apreciação do estado actual dos conhecimentos,

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Doutora (1999) e Agregada (2007) em História pelo Departamento de História e Estudos Políticos e Relações Internacionais da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2007). Professora Catedrática da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UFP (2010). 1 «Dama» vem do latim domina, feminino de dominus, ou seja senhor, é a esposa, logo a mãe (sobre o assunto vd. DUBY, Georges (1998), “A mulher, o amor e o cavaleiro”, in Amor e Sexualidade no Ocidente, intr. de Georges DUBY, Lisboa, Terramar, p. 235).

2 tendo por base a comparação de dados lançados em diversos estudos e a investigação pessoal por nós empreendida. Constitui opinião unanime entre todos os estudiosos do período medieval que a sociedade medieva era uma sociedade fortemente marcada pelo homem. As mulheres surgem em variados tipos de fontes da época (livros de linhagens, crónicas, nobiliários, escritos literários, contos satíricos, etc) como “fantasmas masculinos”2. Dito de outro modo, no essencial é pelo traço masculino que nos surgem os retratos da mulher deste período, e aquele atém-se às formas convencionais, “quase nada resta de escrita feminina”3. A documentação medieval é androcêntrica. É muito difícil segundo Georges DUBY (1996), “(...) descobrir a fisionomia própria dessas damas nas raríssimas efígies, de que só as das mais poderosas chegaram até nós. Igualmente raros são os objectos que tiveram nas mãos e que podemos tocar(...) Ter uma imagem dos homens, até dos mais célebres já é difícil. (...) E então as mulheres, de quem se falou muito menos?”4. Com o findar da Idade Média, a partir do século XIII, a produção escrita aumenta e com ela o número de escritos de produção feminina provenientes dos estratos mais elevados. No que respeita a produção documental oficial o domínio permanece, obviamente, masculino. Quer do ponto de vista cultural quer social a mulher mantém-se num plano secundário. Documentalmente, e no que diz respeito ao assunto abordado, a evocação da mulher ocorre pelo parentesco com elementos da corte, da alta nobreza ou da nobreza de serviço. Há, por outro lado, que considerar a existência de várias silhuetas femininas e a distinguir devidamente os seus traços particulares: as filhas, as mães, as esposas, as rainhas, as santas, as «feministas»5, as mulheres de mais baixa condição (covilheiras, mancebas e amas), as mulheres menos virtuosas a que os textos medievos dão a elucidativa designação de barregãs ou a explícita menção de “mulheres que fazem por seus corpos” (que tiram dinheiro de seus corpos)6... enfim uma grande distinção de estatutos e funções que reflecte uma não menos vasta realidade do elenco feminino da corte7. Mas não nos iludamos, é pelo lugar 2 OPTIZ, Claudia, (1993), “O quotidiano da mulher no final da Idade Média”, in Georges DUBY e Michelle PERROT. História das Mulheres. Idade Média, dir. de Christiane KLAPISCH-ZUBER, Christiane, vol. II, Porto: Afrontamento, p. 353. 3 As damas do século XII. 1. Heloísa, Leonor, Isolda e outras, Lisboa, Teorema, p. 8. 4 Idem, p. 6. 5 Sobre o movimento feminino na Idade Média Final cf. Georges DUBY e Michelle PERROT (1993). História das Mulheres. A Idade Média. ed. cit., pp. 422-429. 6 Cumpriam uma função elementar na ordem social cortesã. 7 Sobre o universo cortesão feminino em Portugal nos finais da Idade Média, ver por todos GOMES, Rita Costa (1995). A Corte dos Reis de Portugal no final da Idade Média. Lisboa, Difel.

3 conferido às damas pelo poder masculino que podemos dar conta do sistema de valores que caracteriza as relações entre homens e mulheres na sociedade tardo-medieva. Cada uma das figuras femininas mencionadas detém uma esfera de actuação e território próprios, encontrando-se ligadas entre si por obrigações e por uma ordem hierárquica mais ou menos rígida. Não obstante tudo isto, numa maioria dos espaços da corte mantinha-se interdita a sua presença, noutros elas eram apenas toleradas, outros ainda pode dizer-se que eram-lhes particularmente votados (o cuidado das crianças, a alimentação e as funções de assegurar convenientemente a reprodução e a educação dos filhos). Por conseguinte, mulheres e homens distinguem-se nos meios de elite, ou mais elevados social e politicamente, de acordo com o sistema de classificação das divisões sociais vigente na altura8. Recuemos no tempo. No século XII, a casa senhorial nobre e aristocrática constituía o quadro firme de todas as relações sociais e os homens que a dirigiam tinham o dever de procriar, de tomar esposa, e de a engravidar. O agregado era constituído e repartiam-se os seus membros por três graus sobrepostos: o das crianças no nível inferior, obedientes, servis, com o pai para as dominar, a mãe a seu lado e, muitas vezes os irmãos e irmãs se não fossem casados. Com o advento do século XIII, desenvolve-se o modelo de família nuclear e do casamento por consentimento mútuo. A liberdade do consensus individual é defendida pela Igreja desde o século XII, mas só conhece um período de expansão a partir do século seguinte9. As casas senhoriais passam a ter um único leito conjugal proporcionado pela sedimentação teológica e eclesial da relação monogâmica de onde emerge o actual «modelo conjugal cristão»10. No século XIII, os membros da aristocracia entram na prática imposta pela Igreja a todos os leigos: a disciplina do matrimónio cristão11. Porém, a adopção do modelo de casamento monogâmico, que repousa na doutrina consensualista, só pode ser devidamente compreendida à luz da evolução económica, social e política dos finais da Idade Média. Até ao século XI, a aristocracia procurava proteger as bases do seu património estreitando os laços. Este estreitamento permite que as linhagens conservem um apertado controlo sobre o enlace dos filhos para evitar a separação e o

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GOMES, Rita Costa. ob. cit., p. 62. Em paralelo, emerge no Midi francês, entre a mais alta aristocracia o amor cortês, uma exaltação espiritual e carnal das relações homem–mulher. Sobre o assunto ver por todos o artigo de SOLÉ, Jacques (1998), “Os trovadores e o amor paixão”, in Amor e Sexualidade no Ocidente, ed. cit., pp. 105-113. 10 DUBY, Georges (1996). As damas do século XII. 2.A lembrança das antepassadas. Lisboa, Teorema, pp. 11-13. 11 Sobre o casamento cristão e a sua expansão no Ocidente até aos nossos dias ver por todos Jean-Claude BOLOGNE, Jean-Claude (1999). História do Casamento no Ocidente. Lisboa, Temas & Debates e SOT, Michel (1998), “A génese do casamento cristão”, in Amor e Sexualidade no Ocidente, ed. cit., pp. 209-221. 9

4 desmembramento dos domínios senhoriais. Conforme refere Jean-Claude BOLOGNE, no sistema feudal, “para evitar a divisão infinita de terras, verifica-se frequentemente que o casamento solene é reservado ao primogénito, enquanto os outros filhos, se não entram nas ordens eclesiásticas, ficam limitados a formas menos nobres ou menos duradouras de uniões.”12. Com o dealbar do século XIII acabaram as limitações apertadas ao casamento, designadamente em relação aos filhos segundos que podiam casar livremente. Isto só é possível com a afirmação das grandes formações políticas que acabam por garantir aos nobres os seus privilégios e prerrogativas senhoriais. Daí a aristocracia ter vindo a adoptar, sem grandes reservas, as directrizes da Igreja que impunha o casamento como disciplina moral e social13. Basta dizer que é por esta altura (primeiro quartel do século XIII) que se realiza o IV Concílio de Latrão (1215) decorrendo daí os impedimentos de parentesco biológico até ao 4º grau e de parentesco espiritual14. Na sociedade medieva ninguém põe em dúvida que a sujeição do feminino ao masculino seja um facto da natureza, de acordo com a ordem do mundo. Só existe um campo em que alguns espíritos veem a igualdade – é o amor do casal. A Igreja, no século XIII, proclama no matrimónio a igualdade entre homem e mulher, mas só no que respeita ao acto conjugal. Pedro Abelardo dizia que o domínio masculino cessa no acto conjugal, em que homem e mulher detém igual poder sobre o corpo do outro15. Mas o que merece ser realçado, é que a mulher, no amor, era realmente igual ao homem: ela, tal como o homem, tinha direito ao prazer, não era nem um objecto, nem um instrumento, mas uma parceira. O aparecimento do modelo de casamento único e indissolúvel proporciona uma valorização social do estado civil da mulher casada. Em todo o caso permanecem ainda muitos mentores eclesiásticos e civis que manifestam um maior apreço pelo registo de S. Paulo na Epístola aos Efésios, V, 23-23, em que diz o seguinte: “Do mesmo modo que a Igreja está sujeita a Cristo, assim, também as mulheres fiquem em tudo sujeitas aos seus maridos”. A exaltação do poder masculino no casamento constitui um dos dados fundamentais das relações sociais homem-mulher na sociedade medieva. O homem era, em pleno direito, senhor absoluto da sua esposa. Nesta sociedade a liberdade de escolha do parceiro não pode ser vista como um critério para aferir da maior ou menor coibição feminina. Trata-se evidentemente de um

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BOLOGNE, Jean-Claude (1999). ob. cit. p. 95. Até ao século XII, o casamento não consta da lista dos sacramentos, ao lado do baptismo, da eucaristia e da penitência. Do século XI ao XIII, o matrimónio inscreve-se na lista dos sete sacramentos da fé católica (BOLOGNE, Jean-Claude (1999). ob. cit., pp. 123-130). 14 Para uma visão mais pormenorizada do assunto cf. por todos SOT, Michel (1998), “A génese do casamento cristão”, in Amor e Sexualidade no Ocidente, ed. cit., pp. 218-219 e LE GOFF, Jacques (1998), “A rejeição do prazer”, in Amor e Sexualidade no Ocidente, ed. cit., pp. 191-207. 15 DUBY, Georges (1998), “A mulher, o amor e o cavaleiro”, in ob. cit., pp. 237-238. 13

5 modo de organização familiar diferente do nosso e com valores específicos que se traduzia por uma reduzida liberdade de todos os menores de idade de ambos os sexos, e da mulher em especial. Por seu lado, a maioria dos casamentos eram pós-pubertários na Idade Média.

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princípio da patrilocalidade (prática de casamentos concluídos em criança) mantinha-se como usual no final da Idade Média. Regra geral, a prometida era enviada para casa dos sogros em criança, quando atingisse a idade núbil entre os 12 e os 15 anos estaria pronta a casar. A baixa idade do casamento, reduzia imenso as possibilidades das raparigas imporem a sua vontade. Das fontes infere-se que uma idade superior a 15 anos conferia maior poder negocial à jovem noiva ou esposa16. Em todo o caso as possibilidades de escolha do parceiro parecem ter sido sempre maiores para as mulheres de mais baixa condição social comparativamente às de mais elevado estatuto social. As nobres jovens eram prometidas em casamento, nada ou quase nada podendo fazer para fugirem ao alheio traçar do seu próprio destino17. Não obstante tudo isto, convém não esquecer que o estatuto das mulheres nos finais de Trezentos e na era Quatrocentista caracteriza-se, tal como o dos homens, por uma infinidade de regras, direitos particulares e privilégios. Havia uma manifesta inferioridade jurídica da mulher traduzível na tutela, uma maioria das vezes exercida, pelo sexo masculino sobre o feminino18. Do ponto de vista legislativo, a mulher detinha limitada capacidade jurídica, muito embora esta dependesse do estatuto social. Para todos os efeitos, as mulheres eram submetidas a normas jurídicas e sociais avaliadas de modo diferente dos elementos masculinos. A título de exemplo, se a moral social e o direito da altura condenavam as mulheres adúlteras com pena de morte, os homens casados escapavam impunes uma larga maioria das vezes. As prescrições legislativas, designadamente as Ordenações Afonsinas (1446), regulamentam em vários títulos uma série de situações comuns na época e que nos esclarecem acerca da desigualdade jurídica mulher/homem, a saber: os fidalgos que cometessem adultério com mulher casada perdem os bens, senhorios e rendas, caso não fossem comprovadamente fidalgos incorriam em pena de morte19. Porém se os primeiros (os fidalgos) cometessem crime de adultério com uma mulher de outro homem de semelhante condição incorriam em pena de morte. De acordo com a lei geral, todas as 16

Ver por todos OPTIZ, Claudia (1993) ”O quotidiano da mulher no final da Idade Média”, in ob. cit., p. 365. 17 Vd. o caso da Infanta D. Leonor de Aragão, filha de D. Duarte e irmã de D. Afonso V, prometida a Frederico III da Alemanha. 18 Os direitos gentílicos excluíam a mulher de acontecimentos públicos. 19 “Do que dorme com molher casada per sua vontade”(Ordenações Afonsinas, L. V, tít. VII, reimpr. da ed. de 1792, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 32-35).

6 mulheres, independentemente do seu estatuto, que cometessem uma infidelidade tinham como penalização a morte20. Lembremos, em paralelo, as largas centenas de cartas de perdão que nos chegaram através da leitura e compulsa de documentos da Chancelaria régia onde encontrámos homens que raptam mulheres, que dormem com elas em segredo, quer sejam casados ou não; do mesmo modo encontrámos mulheres que «tropeçam» em procedimentos moral e socialmente reprováveis: que enganam os maridos, servindo-se dos serviços de alcoviteiras e amigas, outras que tentam desembaraçar-se deles mandando-os molestar ou assassinar por terem abusado delas. A sequência do delito, quando provado perante os juizes, era o degredo para uma praça no Norte de África, a prisão ou a morte. Os acusados solicitavam perdão, procuravam a mercê e a magnanimidade do monarca, supremo dos juizes terrenos, que umas vezes reverte o degredo outras tantas exulta os culpados. A virtude feminina na alta nobreza era constantemente vigiada, não raras vezes as suas filhas passavam os tempos que antecediam o matrimónio no convento, para melhor garantir a salvaguarda das eventuais propensões à satisfação de naturais apetites. As classes de menor notoriedade e de mais baixa condição social eram bastante mais permissivas, mas facilmente confundiam relações fora do casamento com luxúria ou até mesmo com prostituição. Mas não se pense que as mulheres renunciaram, apesar das constantes ameaças e dos riscos que corriam, às relações extraconjugais, designadamente com clérigos, seus confessores ou outros homens de nobre condição. Em paralelo, podemos dizer que, só nos reinados de D. Duarte e de

D. Afonso

V21, chegaram à corte 532 pedidos de legitimação de filhos de clérigos seculares, uma maioria das vezes, e regulares com mulheres solteiras22, mantendo-se a média no reinado de D. João II23. Neste século e no seguinte (século XVI), a pena de morte por afogamento ameaça as mães solteiras. Depois de tudo o que já foi dito, as mulheres, tinham que obedecer, sobretudo as de mais elevada estirpe social, a estratégias matrimoniais de família. Os casamentos 20

“As molher casada, que se sayo de casa de seu marido para fazer adultério” e “Do que matou sua molher polla achar em adulterio” (Ordenações Afonsinas, L. V, tits., XII e XVIII, ed. cit., pp. 44-45 e 54-57). 21 Na primeira metade do reinado (1439-1460). 22 Sobre o instituto da legitimação cf. por todos os estudos específicos de TEIXEIRA, Sónia Maria de Sousa Amorim (1996). A vida privada entre Douro e Tejo: Estudo das legitimações (1433-1521). dissertação de mestrado, policop., Porto, FLUP e TEIXEIRA, Carla Maria de Sousa Amorim (1996). Moralidade e costumes na Sociedade de Além-Douro: 1433-1521. dissert. de mestrado, policop., Porto, FLUP. Nestes trabalhos é precisamente realçado o número de cartas de legitimação de filhos de clérigos. 23 Ver por todos MOTA, Eugénia Pereira da (1989). Do “Africano ao Príncipe Perfeito (1480-1483). Caminhos da burocracia régia. 2 vols., dissert. de mestrado, policop., Porto, FLUP.

7 combinados eram frequentes e estavam ligados fundamentalmente à satisfação dos interesses masculinos, dominantes na sociedade de então. Algumas mulheres tentaram enfrentar as regras sociais impostas usando da astúcia e ajuda divina quando solicitavam a anulação eclesiástica do casamento e se colocavam sob a protecção de um convento ou faziam voto de castidade. Constituindo um bom exemplo o caso das irmãs de S. Francisco de Assis (Clara e Inês) que fugiram de casa dos pais e foram procurar abrigo junto do irmão e dos seus parceiros que viviam em condições muito pouco favoráveis. Clara, “Uma rapariga nobre de Assis, inflamada pelos sermões do Santo, fugiu da casa familiar com uma amiga, na noite de Ramos, e refugiou-se na Porciúncula, onde Francisco lhe cortou o cabelo e a vestiu com uma camisa de burel semelhante à sua (...) aí se junta uma irmã mais nova de clara, Inês, (...) mais tarde serão chamadas «clarissas»”24. Nos séculos XIV e XV, as rainhas, personagens centrais do mundo feminino de então, e as mulheres nobres, assumem um relevante papel sócio-político. Entre nós, as casas das rainhas detém uma organização financeira própria desde inícios do século XIV. Tal circunstância conferia-lhes, por certo, maior autonomia em relação aos membros do seu séquito e ao respectivo património. Muitos ofícios de serviço das rainhas eram desempenhados por homens da corte ou oficiais régios que estariam também às suas ordens. Muitas das mulheres que rodeavam as rainhas e pertenciam ao gineceu cortesão eram oriundas de famílias enraizadas na corte. Por meados do século XV, o número de mulheres magnates da nobreza que recebem dote e tenças avultadas em casamento da parte do monarca D. Afonso V é bastante significativo25, o que para além de lhes garantir sustento permitia-lhes auferir de maior autonomia de gestão e exercício de poder sobre todos os seus dependentes. O papel político-diplomático do matrimónio é evidente e surge, não raras vezes, entre príncipes como um instrumento de normalização das relações entre reinos, vejam-se os casos sempre peculiares das rainhas: D. Beatriz de Castela, D. Leonor Teles, D. Filipa de Lencaster e D. Leonor de Aragão. O matrimónio unia partidos e casas reais pelo vínculo político e de sangue. Constituía em primeiro lugar um acto político. Mas as casas das rainhas, desde que se constituíam, eram espaços privilegiados para o estabelecimento de redes clientelares. A prosopografia do gineceu e da casa das rainhas 24

LE GOFF, Jacques (2001). S. Francisco de Assis. Lisboa: Círculo de Leitores, p. 47. MORENO, Humberto Baquero (1990), “Contestação e oposição da nobreza portuguesa ao poder político nos finais da Idade Média” in Exilados, marginais e contestários na sociedade portuguesa medieval. Lisboa: Presença, pp. 13-25 e do mesmo autor (1979). A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e significado histórico. 2 vols., Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade. 25

8 atesta a existência de um grande número de servidores masculinos e femininos no respectivo séquito26. Alguns dos servidores das rainhas de Quatrocentos eram homens grados da «sociedade política» de então. De entre os servidores da rainha D. Isabel, mulher de D. Afonso V, contam-se D. Fernando de Meneses, seu Mordomo-mor e o Dr. Vasco Fernandes de Lucena, seu Ouvidor, homem com destacada carreira na diplomacia, na burocracia e na política Quatrocentistas. Quanto às damas da nobreza e da corte também elas detinham autoridade e poder sobre os seus criados, dependentes e pobres. Poucos ofícios régios estavam reservados ao desempenho feminino, quer na Câmara (covilheiras), ucharia e mantearia. Para além destes, somente as barregãs e as mancebas solteiras «que fazem por seus corpos» detém número certo e actividades regulamentadas27. As mais recentes pesquisas prosopográficas, o estabelecimento de linhagens e de genealogias da oficialidade régia revelam por meio da possibilidade de reconstituição das trajectórias familiares o importante papel da mulher nas alianças estratégicas entre famílias de oficiais do desembargo e estratos superiores da nobreza, no contexto geral de uma maior mobilidade social tardo-medieva28. Alguns dos mais importantes dignitários da oficialidade régia podiam “trazer mulher e toda a casa na corte” de acordo com listagem manuelina de 1498, casos do Mordomo-mor, Escrivão da puridade, Vedores e Escrivães da Fazenda, Desembargadores, e outros29. Um rasteio efectuado a partir dos ficheiros prosopográficos dos oficiais superiores do desembargo de D. Duarte30 e de D. Afonso V31, fez-nos chegar à seguinte constatação, em 25 oficiais recenseados, 9 são casados com mulheres ligadas à casa régia ou à corte, 6 são casados com mulheres pertencentes a famílias da alta nobreza, 4 são casados com mulheres que mantém laços familiares próximos de outros oficiais, 2 casados com mulheres familiares de altos dignitários da igreja e somente quatro com famílias de menor 26

GOMES, Rita Costa (1995). ob. cit., pp. 46 e ss. “Que nom traga alguum homem barregaã na Corte”, “Das barregaãs dos clerigos”, “Dos barregueiros casados”, “Dos refiaaes, que teem mancebas na mancebia pubrica pollas defenderem, e averem dellas o que ganham no pecado de mancebia” e “Das barregaãs, que fogem aaquelles, com que vivem” (Ordenações Afonsinas, L. V, títs. VIII, XIX, XX, XXII e XXIV, pp. 36, 58-71, 72-84, 86-88 e 93-94). 28 Veja-se o caso da «nobreza de serviço». Cf. por todos, FREITAS, Judite Antonieta Gonçalves de (2001). «Teemos por bem e mandamos». A Burocracia Régia e os seus oficiais em meados de Quatrocentos (1439-1460). vol. I, Cascais: Patrimonia, pp. 187-191 e 313-316. 29 Cf. GOMES, Rita Costa (1995). ob. cit., p. 60. 30 FREITAS, Judite Antonieta Gonçalves de (1996). A Burocracia do «Eloquente» (1433-1438). Os textos, as normas, as gentes, Cascais: Patrimonia, pp. 165-216. 31 FREITAS, Judite Antonieta Gonçalves de (2001). «Teemos por bem e mandamos»..., Cascais: Patrimonia. Vejase sobretudo o II volume relativo ao catálogo prosopográfico dos redactores, os pontos – Família e Inserção Social. 27

9 notoriedade. Ou seja, ao nível da oficialidade régia superior a mulher assumia um lugar preponderante como factor de enraizamento cortesão e de aproximação familiar entre «pares». Para os oficiais que casam com mulheres descendentes da alta nobreza tudo nos leva a pensar tratar-se, no caso das mulheres, de elementos provenientes de mais alto escalão que os seus parceiros, o que poderia traduzir-se num instrumento eficaz, e por vezes essencial, a uma mais rápida e convincente elevação social do cônjuge. É caso para dizer, usando uma frase idiomática e conhecida, ‘por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher...’ mesmo em tempos medievos! Quanto às mulheres dos oficiais régios que seriámos a partir dos catálogos prosopográficos, levantam-se uma série de questões que intentámos ver resolvidas numa próxima oportunidade, mas para as quais desde já pretendemos chamar a atenção: Que lugar ocupavam na hierarquia familiar e na corte? Que homens tiveram por servidores? De que rendimentos e benesses usufruíam? Terminemos, a análise e caracterização da sociedade cortesã medieva que acabamos de fazer salienta a oposição e o «encontro» entre o mundo feminino e o masculino, mesmo no que toca ao pessoal servidor de um e outro nível sócio-político de actuação. Frente à posição de poder quase absoluto do homem e do marido no casamento, as mulheres, de mais elevada estirpe, garantiam um certo desafogo e autoridade sobre uma série de homens que delas se encontravam dependentes e que as serviam, e continuavam a representar um importante papel nas manobras matrimoniais da família. A partir do casamento, da maturidade e/ou com o aproximar da velhice acabavam por adquirir um peso social acrescido, bem como uma maior influência e ‘participação’ políticas.

Porto, 12 de Abril de 2002.

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