o paradoxo na historia do poder punitivo moderno

July 23, 2017 | Autor: J. Da Silva Leal | Categoria: Criminologia, História Do Direito, Controle Social, Criminologia Crítica, História Da Criminologia
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O paradoxo na história do poder punitivo moderno: entre a pretensão sistematizadora e a manifestação usurpadora e totalitária The paradox in the history of modern power punitive: between the systematizing pretension and the expression totalitarian usurper Jackson da Silva Leal*

Resumo: Analisa-se a questão da subtração do conflito por parte do Estado na modernidade burguesa ocidental. Assim, busca-se entender como se deu esse processo histórico de construção e, sobretudo, legitimação do Estado como grande guardião da ordem e principal ofendido nos casos de conflito e transgressão das regras estabelecidas pelo próprio paradigma de governabilidade liberal. Para isso se analisa contribuições específicas ao processo de construção deste paradigma societário e, em especial, a problemática da resolução de conflitos e do ius puniendi do Estado, como John Locke e Cesare Beccaria que, entre distanciamentos e aproximações, permitiram que fosse se estruturando o que se conhece contemporaneamente por Estado moderno burguês e punitivo. Frisa-se o esforço em tentar não atribuir significados à história, de forma arbitrária *

Abstract: In this paper we analyze the issue of subtraction of the conflict by the state in modern Western bourgeois. Thus, we seek to understand how was this historical process and, above all, legitimacy of the state as guardian of order and large main victim in cases of conflict and transgression of the rules established by the paradigm of liberal governance. For this we analyze specific contributions that are dear to the construction of this corporate paradigm and in particular the issue of conflict resolution and the ius puniendi the state, such as John Locke and Cesare Beccaria between distances and approaches that have enabled with that was being structured what is known contemporaneously by modern bourgeois state and punitive. Stresses up the effort in trying not to assign meanings the story so arbitrary and in light of contemporary modernity, but rather to

Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel); advogado inscrito na OAB/RS; mestre em Política Social (UCPel); doutorando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bolsista pesquisador CNPq; pesquisa na área de Sociedade, Sistema de Justiça e Controle Social, na perspectiva da Criminologia Crítica. Membro do projeto Universidade Sem Muros (UsM-UFSC); professor de Direitos Humanos na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). E-mail: [email protected]

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e à luz da modernidade contemporânea, mas sim, analisar a contemporaneidade e suas estruturas materiais e simbólicas, a partir da herança e dos ensinamentos permitidos com o estudo histórico. O presente trabalho se constrói a partir de análise eminentemente bibliográfica, buscando-se agregar, com o arcabouço teórico-empírico da criminologia crítica, com uma abordagem adensada do processo histórico em relação às questões que influenciam na conformação das instituições de poder punitivo, na perspectiva de compreender, desvelar e desconstruí-las.

analyze the contemporary structures and their symbolic and material from the legacy and teachings allowed to historical study. This paper builds on analysis eminently literature, seeking to add, with the theoretical and empirical critique of criminology, with a dense approach of the historical process regarding issues that influence in shaping the institutions punitive power in perspective understand, deconstruct and reveal them.

Palavras-chave: poder de punir; modernidade burguesa; criminologia crítica; confiscação do conflito;

Keywords: power to punish; bourgeois modernity, critical criminology; confiscation of the conflict;

Introdução O presente trabalho propõe-se analisar a questão moderna do monopólio da violência legitimada pelo Direito, o que se denomina de ius puniendi; sendo, sobretudo esta a forma que o Estado moderno se utiliza para resolver os conflitos, em oposição a uma suposta guerra de todos contra todos (vingança privada) e, também, estandardizando o discurso humanitário em face da suposta brutalidade do antigo regime – ao menos esses são os argumentos legitimantes. Entretanto, a partir do momento em que se centraliza, no Estado, o que é um resultado das instituições e dessa construção sócio-histórica moderna, as estruturas de governabilidade, e incluso a resolução dos conflitos a partir da ideia de punição/pena é que se verifica uma total subtração do conflito por parte do Estado, que passa a ser o grande ofendido em sua potestade, apresentando-se a infração mais como uma ofensa ao paradigma de organização social baseada na legalidade, do que propriamente uma preocupação com o todo social, e com a comunidade politicamente organizada. A essa questão, em específico, é que se dá atenção no presente trabalho.

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Em termos de organização do trabalho, no primeiro ponto se analisa o processo de formação do sistema penal como se o conhece atualmente. E isso passa por uma abordagem do contexto sociopolítico-jurídico, ao final do antigo regime e princípio da modernidade quando da difusão inicial da filosofia liberal positivista e como vinha se constituindo e corroendo o antigo regime, implodindo-o por dentro. Constituindo um rompimento (liberal-positivista) e uma total mudança societal, o que tem efeitos diretos na questão criminal e na resolução de conflitos, que são totalmente expropriados dos direta e indiretamente envolvidos (ofensor-ofendido-comunidade). Muda também totalmente de foco, passando de uma ideia de justiça (composição/restauração) para uma ideia de disciplina que se fazia necessária ao novo paradigma de sociabilidade marcadamente classista (uma classe em processo de hegemonização). E, como esse processo passa por um discurso estratégico de deslegitimação e desqualificação da estrutura anterior, qualificandoa como brutal e desumana, arvorando-se em um discurso humanizante pela técnica (igualitarista). No segundo ponto, analisa-se de forma mais detida essa questão do monopólio da violência e da transmutação da resolução de conflitos e as dinâmicas punitivas e disciplinadoras de uma massa de indivíduos que precisavam ser reeducados para a vida da fábrica (e depois da indústria) e da produção capitalista, incorporando não apenas a ideologia do trabalho, mas também a nova hierarquia social e a condição subalternizante atribuída/reservada a certos grupos/classes de indivíduos e a naturalidade (artificial) dessa estrutura. Um importante apontamento, e na linha proposta por Paolo Grossi (2010), não se pretende analisar o passado ou a história à luz da experiência presente acumulada, o que seria uma verdadeira arbitrariedade e uma atribuição leviana de significados, mas, sim, compreender as estruturas presentes à luz ou, a partir das experiências, dos ensinamentos e da herança histórica. Assim, este trabalho se constrói como abordagem eminentemente bibliográfica: partir de uma interface entre a criminologia e a história do direito, mas especificamente trabalhando-se com história do direito, em especial a filosofia liberal constituidora da modernidade e, principalmente, no que influência da estrutura de poder punitivo; leitura de alguns e especiais clássicos que orientam essa filosofia, como Cesare Beccaria (1764 [tradução e edição 2013]), como pai do direito penal MÉTIS: história & cultura – LEAL, Jackson da Silva

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moderno, e John Locke e a filosofia liberal clássica; e, orientado por contribuições de historiadores como Antonio Manuel Hespanha (2009; 1993) e Paolo Grossi (2009; 10); ainda, a partir do acúmulo teórico proporcionado pela Criminologia Crítica e sua leitura do sistema penal burguês, classista e sexista, em especial Dario Melossi e Massimo Pavarini (2006), Georg Rusche e Otto Kirchheimer (2004) e a história da estrutura punitiva moderno-burguês.

1 Resgate teórico-contextual, e político ideológico liberal e o poder punitivo classista Propõe-se a difícil tarefa de tentar reconstituir o mapa cognitivo e a estrutura material e simbólica que transformaram o sistema penal na instituição pretensa e falaciosamente resolutora de conflitos, e também a prisão como pena universal e generalizada. Assim, neste primeiro ponto, analisa-se o contexto sociopolítico-jurídico e ideológico de matriz liberal que, discursivamente, se preconiza como racionalista e empirista, pautado por um humanismo utilitarista, a fim de legitimar sua construção e estruturação institucional e política, em oposição frontal ao paradigma societal e organizativo do antigo regime, que passa-se a qualificar como brutal e desumano. Inicia-se, em uma perspectiva periodizada, com a baixa Idade Média, que, a partir de Antonio Manuel Hespanha (1993), se pode dividir em dois momentos, como o próprio autor aponta – a Idade Média pluralista e a Idade Média centralizadora/unificadora e seu poder punitivo exacerbado. Esse período em que Hespanha (1993) chama de Idade Média pluralista e que ajuda a desmitificar a ideia de guerra de todos contra todos, em que se funda a concepção de governabilidade centrada na figura do Estado, e se produz a legitimação e necessidade do poder punitivo de caráter público e monopolista da violência. Nesta linha, verifica-se que a inexistência de uma estrutura centralizada de governabilidade se dava pela construção sociopolíticacultural e jurídico-plural pautada pela ramificação de poder e orientada pela ideia de comunidade. Assim, a resolução de conflitos se pautava por esse ideário da recomposição social, e não pela manutenção ou restauração de poder. Não se fazendo comprovável, para além dos discursos retóricos liberais, o apontamento da guerra de todos contra 188

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todos e as acusações de brutalidade ou incivilidade – ideia que se vincula, eminentemente, à estrutura societária liberal. Sobre a dinâmica das penas, no antigo regime, Rusche e Kirchheimer escrevem: Os diferentes sistemas penais e suas variações estão intimamente relacionados às fases do desenvolvimento econômico. Na Alta Idade Média não havia muito espaço para um sistema de punição estatal. Tanto a lei do feudo quanto a pena pecuniária (penance) constituíam essencialmente um direito que regulava as relações entre os iguais em status e em bens. Pressupunham a existência de terra suficiente para atender ao crescimento constante da população sem baixar o nível de vida. (2004, p. 23).

Período que se estende até o século XVI, quando se iniciam os esforços de reconfiguração do antigo regime (em sério processo de desgaste), acredita-se que a partir de um processo de corrosão orquestrada a partir da dentro pela nascente filosofia liberal e sua classe. Assim, complementa Antonio Manuel Hespanha: Do ponto de vista dos sistemas regulativos e de resolução de conflitos, esta extensão às periferias do paradigma legalista não se deixa, no entanto, descrever como um processo de harmônico progresso de uma situação de anomia, em que as relações sociais seriam dominadas pelo caos e pelo abuso, para uma outra de primado do direito. Na verdade, e como já vimos, o mundo periférico era um mundo regulado, embora por tecnologias disciplinares totalmente diferentes da lei, correspondentes às condições sociais aí vigentes. A imposição do direito oficial, escrito e legislativo, significou, assim, uma estratégia de dissolução da ordem periférica e a sua substituição por mecanismos disciplinares cujas condições de eficiência ano estavam aí verificados. Em contrapartida, os mecanismos tradicionais de regulação e de composição deixam de poder ser invocados perante os órgãos do Estado. (HESPANHA, 1993, p. 19). Nessa nova configuração, a que Hespanha denomina de Idade Média centralizadora/unificadora, que, paralelamente, constituía todo um aparato cultural, ideológico, político e social, como a produção do ensino, do ideário do trabalho, da centralização do controle social e da Justiça,

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dos controles de polícia – focalizando o monopólio do poder, do direito e da política em mãos do Estado no projeto de governabilidade liberal. Essa construção social se dá a partir do discurso do jusnaturalismo, que se propõe a subverter a ideia do teocentrismo; substituir a instituição religiosa e colocar a figura do homem como centro do processo histórico, tendo na figura do Estado a instituição centralizadora do novo projeto de governabilidade. O projeto jusnaturalista era pautado por um discurso que se sustentava em questões como a centralidade do Estado (na figura da monarquia e do rei), não obstante buscasse romper com a deificação religiosa, que ainda mantinha os privilégios e a divisão social por estamentos, os quais separavam e naturalizavam (artificiosamente) a organização social. Com a centralização estatal começa a ser necessária uma série de outras instituições conexas e interdependentes, que proporcionam a sustentabilidade deste paradigma de sociabilidade, como a escola (o ensino e as universidades); a família, como importante instância de ideologização; o direito, que passa a ser organizado em torno da instituição legal, e resumido a aplicação e interpretação desta – o que Michel Miaille (2005) chama de redução do direito à instância judicial. E, também, na centralização estatal do poder de punir e do monopólio da violência, surgem as instâncias policiais e a dinâmica da punição que preconiza mais a restauração do poder do monarca e do status de poder central, do que a estrutura social; quando, então, a resolução de conflitos – que se faz totalmente expropriados dos direta e indiretamente envolvidos no conflito – passa a infligir sofrimento e torna as penas um espetáculo com função de exemplaridade. O jusnaturalismo cumpriu importante função nesse processo histórico, na esteira proposta por Michel Miaille (2005) de (a) ocultação que diz respeito, em um primeiro ponto, (i) aos privilégios estamentais existentes no antigo regime, contra os quais a burguesia se insurge, exaltando a libertação desses (privilégios), que se faziam amarras para o crescimento e que faziam dos estamentos privilegiados parasitas alimentados (luxuosamente) pela burguesia produtora, industriosa e em ascensão de poder; e em um segundo ponto (ii) esconder a passagem de uma estrutura organizada em estamentos baseados em um poder supra-humano de orientação declaradamente religiosa, para passar a um discurso naturalizante e universalista (com pretensões de igualdade e liberdade), mas que, na realidade, não informa a quem beneficia (a 190

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ascendente burguesia como classe no poder). Como resume Miaille (2005, p. 273) sobre a nova estrutura de governabilidade que sai exclusivamente, mas tem como o epicentro e formatação mais acabada na Revolução Francesa, “é o direito do homem egoísta, da sociedade burguesa fechada sobre seus interesses. Esquecendo os homens concretos, ele limita-se a proclamar princípios que não tem, excepto para a burguesia, qualquer espécie de realidade”. Estrutura jurídica da qual resulta a institucionalidade de controle social, que se propõe neutra pela tecnicidade (generalidade e abstração), e que redunda em total distanciamento da realidade social desigual e opressora – legitimandose e naturalizando-a. E, ainda, como (b) arma de combate que se refere ao discurso jusnaturalista, como sendo a articulação que visava subverter a ordem estamental do antigo regime (de privilégios), no qual a burguesia não se encontrava contemplada e que, através de uma estratégia naturalista que se propunha como captação de uma realidade dada (os supostos direitos naturais), contrapunha a ontologia de uma ordem definida pelos mitos-deuses, mas que, no fundo, segundo Miaille (2005), não passava da projeção de um novo paradigma de sociabilidade marcadamente classista e operacionalizado por argumentos (liberdade e igualdade), sobretudo de matiz ideológico e utilitários à pauta liberal, na construção de sua nova ordem burguesa capitalista. Paolo Grossi analisa esse processo de transformação societal, da irrupção da sociedade burguesa, ainda que se tenha constituído por dentro, corroendo a antiga estrutura e que na passagem do medievalismo para a modernidade, através do discurso jusnaturalista, produz o nascimento do indivíduo atomizado e sujeito burguês individualista: Para essa acepção de individualista, Grossi escreve: a nova visão antropológica que emerge já de um modo claro nas grandes disputas teológico-filosóficas do tardo século XIII e das primeiras décadas do século XIV representa a tentativa de isolar o mundo e sobre o mundo um indivíduo que encontrou a força (ou assim ao menos presume) de se libertar de antigas prisões; sujeito presunçoso, que quer encontrar somente no interior de si mesmo o modelo interpretador da realidade cósmica e social. (GROSSI, 2010, p. 60).

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A partir de John Locke (1978), verifica-se que ele diferencia o estado de natureza da sociedade civil e política, pela constituição de uma organização oficializada e centralizada e erigida (operacionalizada), a partir da imprescindível instituição da lei,1 como centro do Direito e tendo no Poder Judiciário, a estrutura institucional nuclear. Esta incumbida da resolução de conflitos e da proteção, mormente da propriedade como o próprio autor refere, sendo esse direito (de propriedade) um direito não inato, mas natural, em que o desenvolvimento se faz como obrigação divina para a organização e o aprimoramento social e comunitário. Na mesma linha, se faz relevante a ideia de Locke, relativa à propriedade privada, que se constitui a partir da ideia de trabalho humano, que altera a coisa em estado natural, melhorando-a, e a partir de então o agente modificante alcança o direito de propriedade sobre a coisa (e também sobre a terra) que, segundo o autor, sem as modificações e os aprimoramentos, não proporcionam o bem-estar a que estão aptas e oferecidas em quantidade abundante na natureza. E ainda, a função de produzir e evoluir se constituiria como uma obrigação divina, imposta pela dádiva da vida e da abundância natural (em estado bruto) proporcionada pela divindade. Acrescenta-se, ainda, que na proposta de Locke (1978), a propriedade também encontra fundamento, na medida em que os bens existem em quantidade e abundância, que não seria prejuízo para qualquer outro indivíduo que, com a mesma diligência e aplicação, não conseguiria. E assim, a propriedade da terra, da mesma forma, que se encontram passível de frutificação para qualquer homem que assim desejasse e trabalhasse para tanto. Se fazendo como um discurso profundamente retórico, e quase como nefelibata, distante da realidade, de expropriações e pilhagens por parte dos grandes produtores e proprietários de terras e de homens (escravos), que eram feitos máquinas bípedes de produção burguesa extenuante. John Locke fala sobre a sociedade política: Os que estão unidos em um corpo, tendo lei comum estabelecida e judicatura – para a qual apelar – com autoridade para decidir controvérsias e punir os ofensores, estão em sociedade civil um com os outros; mas os que não tem essa apelação em comum, quero dizer, sobre a Terra, ainda se encontram no estado de natureza, sendo cada

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um, onde não há outro, juiz para si e executor, e que constitui, conforme mostrei anteriormente, o estado perfeito de natureza. E por essa maneira a comunidade consegue, por meio de um poder julgador, estabelecer que castigo cabe às varias transgressões quando cometidas entre os membros dessa sociedade – que é o poder de fazer leis –, bem como possui o poder de castigar qualquer dano praticado contra qualquer dos membros por alguém que não pertence a ela – que é o poder de guerra e de paz –, e tudo isso para preservação da propriedade de todos os membros dessa sociedade, tanto quanto possível. (LOCKE, 1978, p. 67).

Assim, se estrutura também a concepção de igualdade de Locke, na qual, todos os indivíduos seriam iguais, sendo resultado da aplicação de cada um o sucesso individual, e o insucesso ocasionado pelo vício, pela preguiça, pela ociosidade. Nesta linha, tendo-se o sistema penal como o grande protetor da propriedade e esta como sendo o resultado do trabalho e do potencial humano transformador. Diante disso, dos anseios de igualdade, em uma sociedade em que a desigualdade é resultado de patologias individuais, que devem ser definidos como crime, e assim combatidos seus autores. Escreve Cesare Beccaria: Impossível evitar todas as desordens, no universal combate das paixões humanas. Crescem elas na proporção geométrica da população e do entrelaçamento dos interesses particulares, que não é possível dirigirem geometricamente para a utilidade publica [...] por esse motivo, a necessidade de ampliar as penas vai sempre aumentando. [...] Essa força semelhante a da gravidade, que nos impele ao bem-estar, só se refreia, na medida dos obstáculos que lhe são levantados. Os efeitos desta força são a confusa serie de ações humanas. Se estas de chocam e se ferem, umas com as outras, as penas, a que eu chamaria de obstáculos políticos, impedem-lhe o efeito nocivo sem destruir a força motriz, que é a própria sensibilidade inseparável do homem. E o legislador como hábil arquiteto, cujo oficio e opor-se às diretrizes ruinosas da gravidade e pedir a colaboração das que contribuem para a firmeza do edifício. (BECCARIA, 2013, p. 42).

Assiste-se à elevação do patrimônio e da propriedade privada (esta é a categoria conceitual-chave para compreender o nascimento da

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modernidade), como grande bem a ser tutelado e protegido pela novíssima construção institucional (organizada), definida como sistema penal e sua muito próxima relação entre o delito que se manifesta como ação (delituosa) e como condição (de ser miserável) e, também como, faz a relação entre classe e a governabilidade burguesa em torno do patrimônio como estrutura material e simbólica fundante. Na mesma linha escreve Domênico Losurdo, em síntese precisa reportando-se a John Locke: Repetidamente o Segundo Tratado faz referencia ao índio selvagem (wild Indian), que ronda ameaçador e letal nas florestas da América ou nas florestas virgens e incultos campos da América [...] Além do trabalho e da propriedade privada, os índios ignoravam também o dinheiro: de modo que eles resultam não apenas alheios à civilização, mas também não associados ao resto da humanidade. Pelo seu próprio comportamento, tornam-se objeto de uma condenação que não deriva só dos homens: sem duvida, Deus prescreve o trabalho e a propriedade privada, não pode certamente querer o mundo por ele criado permaneça para sempre informe e inculto (LOSURDO, 2006, p. 36).

Pode-se inferir que a instituição da nova estrutura do sistema penal volta-se menos para a resolução de conflitos (como o discurso gostaria de fazer crer), a partir de uma pretensão humanizadora e garantidora, e mais sobre a manutenção das relações de poder, e em defesa do sistema e da sua estrutura jurídico-política e socioeconômica. Verifica-se que os sentidos primordiais atribuídos proposta do sistema penal como maquina de resolução de conflitos como forma preponderante e como pretensa empreitada humanizadora são ocultados, e pode ser apontados como - monopolização do poder de punir e gerir a pobreza e a desigualdade; produzir utilitariamente um processo de docilização da mão de obra de que tanto se necessitava; e, inculcar a ideologia do trabalho sob a ótica da sociabilidade e governabilidade burguês capitalista. Assim escreve John Locke, sobre a lei da assistência: A solução mais eficaz que somos capazes de conceber para isso [...] que sejam construídas escolas a operarias em cada paroquia, às quais os filhos de todos esse que pedem auxilio à paroquia, acima de três e abaixo de catorze anos de idade, enquanto viverem em casa com os pais e não sejam tampouco empregados para seu sustento pela pensão do 194

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supervisor de pobres, serão obrigados a frequentar. Será assim que a mãe se desembaraçará de grande parte do incomodo de cuidar deles e prover-lhes a subsistência em casa, tendo então mais liberdade para trabalhar; as crianças serão mantidas numa ordem muito melhor, receberão melhor subsistência e desde a infância se habituarão a trabalhar, coisa de extrema importância para torna-las ajuizadas e industriosas por toda a vida. (Locke, 2007, p. 236).

A pobreza passa a ser vista como um delito2 no novo paradigma de sociabilidade que se institui a partir da filosofia (pseudo) humanitária liberal e, ainda, que nela se encontram planos para cada um dos indivíduos que fazem parte dessa estrutura social, desde a criança – principalmente quando resultado da união de dois pobres infratores da ordem burguesa –, a mulher e o homem. A respeito da gestão dos miseráveis/transgressores centralizada no Estado e, através do poder punitivo em meio a um discurso legitimante de matiz garantidora positiva e técnica, e ainda a partir de um discurso/ estratégia contextualizado com a nova ordem burguesa e que necessitava de corpos dóceis e aptos ou pelo menos submissos à ideia de trabalho, Cesare Beccaria propunha: Quem procura enriquecer a custa alheia deve ser privado dos próprios bens, mas como habitualmente esse é o delito da miséria e do desespero, o delito daquela parte infeliz de homens a quem o direito de propriedade (direito terrível e talvez desnecessário) não deixou senão uma existência de privações; mas como as penas pecuniárias aumentam o numero dos réus mais do que o numero dos delitos, pois que, ao atirar o pão dos criminosos, acabam tirando-o também dos inocentes, a pena mais oportuna será então a única forma de escravidão que se pode chamar justa, ou seja, a escravidão temporária dos trabalhos e da pessoa a serviço da sociedade comum, para ressarci-la, com a própria e total dependência do injusto despotismo exercido sobre o pacto social. (BECCARIA, 2013, p. 83).

Essa questão, que engloba em uma mesma discussão a retirada do conflito da comunidade e dos próprios envolvidos direta e indiretamente, sob o discurso da brutalidade e desregulamentação causadora da insegurança, se processa a organização de uma estrutura utilitária para o

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novo projeto de governabilidade e sociabilidade e que entrelaça a assistência social e o poder punitivo, no qual a miserabilidade é um delito e do qual apenas o sujeito individualizado é responsável, naturalizando a estrutura social burguesa-capitalista, o que é objeto de análise mais detida no próximo ponto.

2 Da sistematização decodificadora e pretensamente humanitária à usurpação do conflito e controle dos indesejáveis Neste ponto a análise se centra especificamente na questão da subtração do conflito a partir do discurso da humanização pela técnica e como isso se traduz e processa como uma dinâmica de controle centralizado estatal de uma massa de indivíduos indesejáveis, que são objeto de um processo de disciplinamento para o novo paradigma de governabilidade voltada ao mercado capitalista, no qual eles só faziam parte, quiçá, como mão de obra barata. Nesta estrutura, como o discurso humanizante tinha de ser desqualificador das estruturas materiais e simbólicas de resolução de conflitos do modelo predecessor, e, ainda, como o tecnicismocientificista, ao qual é resumido o direito (direito penal e política criminal-assistencial), orientados pela generalidade e abstração (seletivas), é funcional a esse processo de distanciamento dos indivíduos e produz legitimação para o próprio sistema que se propõe neutro. Nesse sentido, escreve Cesare Beccaria como grande organizador da ideologia penal moderno-burguesa: Eis o dogma político em que os povos deveriam acreditar e que os supremos magistrados deveriam apregoar coma incorruptível proteção das leis, dogma sagrado sem o qual não pode haver sociedade legitima, certa recompensa pelo sacrifício, por parte dos homens, daquela ação universal sobre todas as coisas, que é comum a cada ser sensível e limitada apenas pela própria força. (BECCARIA, 2013, p. 48).

E, assim, como a máquina de assistência-controle social, monopolizadora de conflitos – que eram resultados da própria estrutura social –, eram transformados em contingência patológica individualizada. Trabalha-se em uma perspectiva de que a constituição de uma maquinaria de controle-assistência social se fazia como resultado do 196

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contexto histórico em que estão inseridos, e assim orientados por esta dinâmica que os animava e justificava – como afirma Miaille (2005), decorrem e servem ao modo de produção da vida social e material da sociedade burguesa. Para tanto, traz-se alguns elementos que demonstram a falácia do discurso desenvolvimentista, de humanização e civilização da resolução de conflitos, que se apresentam materialmente como dinâmicas punitivas comprometidas com seu tempo e com a classe a qual essas dinâmicas serviam e davam suporte de sustentabilidade material e simbólica ao longo da história moderna. Assim, apresenta-se o paradoxo das dinâmicas punitivas modernas, entre as tantas incongruências que apresenta, mas que, para efeito deste trabalho, se analisa a partir dos seguintes elementos: (a) os indivíduos sobre os quais se projeta – a desigual distribuição dos bens negativos da pena; (b) a quantificação do sofrimento humano; (c) (de)formação corpo e espírito na nova estrutura social; (d) incapacidade técnico-mecânica do direito reduzido e a sua funcionalidade legitimante-naturalizante. O primeiro elemento de análise, os indivíduos sobre os quais se projeta o sistema penal, trata da desigual distribuição dos bens negativos (BARATTA, 2011), que são os processos de criminalização primária (tipificação) e secundária (punição), tendo em vista que o sistema penal, em sua acepção moderna, dirige-se, mormente, sobre determinados tipos de indivíduos e classes e tutela especialmente certos tipos de crimes (patrimônio). Como se verificou acima, passa-se de uma preocupação com a organização comunitária ofendida por uma transgressão, à tutela de um bom funcionamento do sistema e estrutura social, que elege e dá primazia ao funcionamento do mercado e, no qual, a ofensa ao direito de propriedade ocupa a maior preocupação e merece a enfática resposta/repressão. Nesta linha, como os bens positivos do sistema de sociabilidade capitalista são desigualmente distribuídos, e de acordo com as características (eleitas como positivas) para distribuição, tais como: produtor, industrioso, honrado, proprietário, homem, branco; também os efeitos da lei penal são distribuídos de forma desigual, sendo portanto, uma distribuição desigual de bens negativos, e que se distribui, de acordo com os valores antagonistas do ethos burguês; como Vera Regina Pereira de Andrade formula, “a criminalidade é o exato oposto dos bens positivos (do privilegio). E, como tal, é submetida a mecanismos de distribuição análogos, porem em sentido inverso à distribuição destes”. (ANDRADE, 2003, p. 278). MÉTIS: história & cultura – LEAL, Jackson da Silva

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Indivíduos esses que eram definidos como anormais, quando, em realidade, eram constitutivos de uma classe, que não compôs a construção do dogmático contrato social e do paradigma de sociabilidade liberal, retoricamente igualitário, e utilitariamente (pseudo)humanitário. Assim, não poderia ser melhor descrito, do que por um dos entusiastas dessa concepção. Os homens escravos são mais voluptuosos, mais libertinos e mais cruéis do que os homens livres. Estes meditam sobre as ciências e sobre os interesses da nação, veem os grandes objetos, e os imitam, mas naqueles, satisfeitos com o dia presente, procuram, no tumulto da libertinagem, uma distração para o aniquilamento em que se encontram. Afeitos à incerteza em tudo, o êxito dos seus crimes torna-se-lhes problemático, favorecendo a paixão que os determina. Se a incerteza das leis incide sobre uma noção indolente pelo clima, mantem e aumenta a indolência e a estupidez. (BECCARIA, 2013, p. 137).

Neste sentido, verifica-se que o sistema volta-se contra esses indivíduos, que são, assim como a burguesia, uma classe nova que se fazia antagonista no novo paradigma de sociabilidade, assim como ela própria era no antigo regime, em relação aos estamentos nobres, e como esse tratamento pautado pela igualdade e liberdade, tão difundidos retoricamente, não alcançam esses indivíduos que careciam dos pressupostos básicos da pertença ao mundo burguês, a humanidade e civilidade – o ethos burguês do proprietário – carecendo, assim, de intervenção forçada do sistema que oferece o cárcere, e o trabalho forçado como processo de ensinamento da disciplina protestante e da filosofia liberal. Sendo o período de tempo de subtração da liberdade a potencial porta de entrada no contrato social moderno-burguês, como escreve Losurdo: “graças a este gigantesco universo concentrado, onde chega-se a ser internado sem ter cometido crime algum e sem ter controle algum da magistratura, será possível operar o milagre da transformação em dinheiro daquele material descartado. (LOSURDO, 2006, p. 86). Escrevem Rusche e Kirchheimer sobre o píblico-alvo: A força de trabalho que o Estado podia controlar melhor era composta por pessoas que exercitam profissões ilegais, como mendigos e prostitutas, e tantas outras pessoas que estavam sujeitas à sua supervisão e dependiam de sua assistência por lei e por tradição, como viúvas, 198

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loucos e órfãos. A história da política pública para mendigos e pobres somente pode ser compreendida se relacionamos a caridade com o direito penal. (2004, p. 58).

A partir de então, e por necessidade de uma justificativa legitimante, surge o ideário da ressocialização, da reeducação, que, em realidade, é o processo de convencimento, pela imposição da sujeição, da condição de subalternidade do indivíduo forçadamente integrado ao novo mundo ocidental regulado pelo contrato burguês. “Esta espiritualidade nova de ordem e de repressão, [...] devia ser ensinada e inculcada desde a infância, mais particularmente na infância”. (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 53). Complementam Dario Melossi e Massimo Pavarini, sobre o ideário da recuperação, ressocialização que se faz, sobretudo, utilitária para o funcionamento e a manutenção da nova estrutura social: Os pobres, os jovens, as mulheres prostitutas enchem, no século XVII, as casa de correção. São eles as categorias sociais que devem ser educadas ou reeducadas na laboriosa vida burguesa, nos bons costumes. Eles não devem aprender, mas sim ser convencidos. Desde o inicio, é indispensável ao sistema capitalista substituir a velha ideologia religiosa por novos valores, por novos instrumentos de submissão. A espada não pode ser usada contra as multidões e o temor de que uma nova solidariedade, uma nova comunhão surja para romper com o isolamento das classes subalternas é já, desde o início, uma realidade concreta (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 55).

Outro ponto é a quantificação do sofrimento humano. Demonstra-se a instituição do sistema penal em sua relação gregária com a caridade estatal no processo de usurpação do conflito e na manutenção da estrutura social, que é a passagem da resposta à infração como ofensa a comunidade. Passa-se a uma ideia de fato, definida como crime, que é a manifestação de uma afronta ao poder Estatal (como império-monopólio do direito e da política – restritos à lei e à participação classista). Este ato de insubordinação passa a ser respondido no corpo (não meramente físico) mas social, que esse indivíduo infrator representa; e esta corporificação do inimigo se presta a representar os valores burgueses que devem ser introjetados. MÉTIS: história & cultura – LEAL, Jackson da Silva

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Em um período (mormente do século XVIII em diante) em que a liberdade e o capital eram os bens maiores exaltados (e tutelados) pelo Estado burguês, e quando o tempo livre, assim como todas as coisas eram quantificadas pelo novo mercado capitalista, a pena passa a ser quantificada em tempo de privação e, sobretudo, em tempo de trabalho forçado. Retirando desses pobres desgraçados indivíduos, pois, destituídos dos meios de produção e expropriados da propriedade privada, cuja única propriedade que possuem é a força de trabalho a que podiam (não totalmente livre) colocar no mercado. A essência da pena é constituída, também no que diz respeito à relação de trabalho, pela privação da liberdade, entendida sobretudo como privação da liberdade de poder contratar-se: o detido está sujeito a um monopólio da oferta de trabalho, condição que torna a utilização da força de trabalho carcerária conveniente para o contratante [...] o conceito de trabalho representa a ligação necessária entre o conteúdo da instituição e a sua forma legal. O calculo, a medida de pena em termos de valor-trabalho por unidade de tempo só se torna possível quando a pena é preenchida com esse significado, quando se trabalha ou quando se adestra para o trabalho (trabalho assalariado, trabalho capitalista). (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 72, 91).

Nesse sentido, em que o discurso da segurança jurídica proporcionado e operacionalizado pela técnica jurídica acabaria com a incerteza e o arbítrio das penas, e que conformaria e encerraria a culpa nessa medida de tempo, dando assim um parâmetro (genérico e abstrato) para a resposta ao crime, e a resolução de conflitos – que passam de um conflito intracomunitário, para um conflito com o próprio Estado, que é erigido no grande e principal atingido em seu Império. Nessa esteira ainda, verifica-se a funcionalidade dessa transformação, tendo em vista a necessidade de inculcação de uma ideologia (docilização e aceitação) e, ainda, de aproveitamento desse material humano que é descartado da estrutura social e reutilizado através da potencialização e eficientização das estruturas punitivo-caritativas, como extrativas de maisvalia, não somente econômica, mas também simbólica. Sobre as mudanças relativas ao sistema penal, que acompanharam as mudanças do paradigma de sociabilidade, na passagem do antigo regime e do feudalismo para a modernidade capitalista e seu discurso

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desenvolvimentista-humanista e caritativo-punitivo, Georg Rusche e Otto Kirchheimer escrevem: A essência da casa de correção era uma combinação de princípios das casas de assistência aos pobres (poorhouse), oficinas de trabalho (workhouse) e instituições penais. Seu objetivo principal era transformar a força de trabalho dos indesejáveis, tornando-a socialmente útil. Através do trabalho forçado dentro da instituição, os prisioneiros adquiriam hábitos industriosos e, ao mesmo tempo, receberiam um treinamento profissional. Uma vez em liberdade, esperava-se, eles procurariam o mercado de trabalho voluntariamente. (2004, p. 69).

E, ainda, como o controle da nova classe trabalhadora, que era forçada ao trabalho e à produção, senão pela via (semi) livre aos mais baixos salários e na mais extenuante carga-horária e sem direito à organização por melhores condições de trabalho, visto como contrário a paz burguesa e era severamente reprimida. Ou ainda, pela via do trabalho forçado nas workhouses e das penas de confinamento, o que forçava os indivíduos a trabalharem pelos mais baixos salários, forçando ainda, o preço da mão de obra (semi) livre, controlando o mercado e mantendo a lucratividade a partir de mais-valia pura, visto que os indivíduos não podiam escolher entre trabalhar (se submeter), não trabalhar (mendigar) ou exercer outra atividade – que se fazia deveras difícil, dada a monopolização das oportunidades restritas a produção fabril, monopolizadas por um reduzido numero de proprietários empregadores. A questão do controle social e sua relação com o controle/produção de mão de obra se faz de imensa importância para compreender o funcionamento e a instituição/transformação do poder punitivo na modernidade. Verifica-se que se pode dividir esse processo de construção do sistema penal, a (de)formação corpo e espírito na nova estrutura social – a sua versão moderna como instituição-máquina burguesa –, em dois momentos. Em um primeiro momento, (1) de extração de mais-valia, que compreende o final do antigo regime com as penas nas galés e a deportação, que foram de fundamental importância para o processo de colonização das terras incivilizadas, levando o labor e a industriosa ideologia ocidental burguesa; e, no seu processo de transição para a modernidade, se estendendo até a revolução industrial, que a partir do MÉTIS: história & cultura – LEAL, Jackson da Silva

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discurso jusnaturalista exaltava os valores do trabalho – forçado para os indivíduos não integrados à filosofia liberal –, e marcado por um período de escassez de mão de obra, no qual o controle social, ou a politica social (poorlaws) e a filantropia/caridade estatal (exercida através das workhouses) cumpriram importante papel, alargando esse exército da nova classe operária que nascia, desprovida dos meios de produção e alienado dos produtos produzidos (dos quais não tinha acesso). Nessa linha, escrevem Melossi e Pavarini: Durante todo o século XVII e boa parte do XVIII, um dos problemas mais graves enfrentados pelo capital foi o da escassez de força de trabalho, com o perigo continuamente subjacente do possível aumento do nível de salários. O problema não se apresenta, contudo, com a mesma gravidade dos primeiros anos do século XVII, quer porque já estava começando a ocorrer um certo incremento demográfico, quer porque já estavam o processo de expulsão e de apropriação dos estratos camponeses estavam em pleno andamento. Não obstante, é significativa a insistência com que se pede o uso do trabalho forçado. O modo de produção capitalista necessita de um longo período de tempo para terminar de destruir aquela capacidade residual de resistência do proletariado, que tinha origem no velho modo de produção. (2006, p. 61).

Em um segundo momento, (2) como simbólico-docilizadora, quando, no período de ouro do capitalismo, a partir da Revolução Industrial passou a serem necessários menos corpos para o trabalho, e mais espíritos dóceis para obedecer, se adequar a lógica e aceitar a sua condição dentro dessa estrutura social capitalista desigual. Assim, a pena como medida de tempo de privação da liberdade, e como introjeção da disciplina da nova ordem social sintetizada nos códigos e nas normas de direito, ou como denomina Melossi e Pavarini (2006) o proletário como produto da máquina carcerária. Em resumo, trata-se de uma extração de mais-valia, que não se faz meramente como produto econômico (financeiro-pecuniário), mas sim em um sentido econômico mais alargado, que insere a economia da pena e da estrutura social em uma análise mais abrangente e que permitem contextualizar as dinâmicas punitivas como sendo o veículo de dominação e subordinação da grande maioria ao sistema que se propõe como livre e igual, enquanto mantém o povo na condição de classe 202

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oprimida – ainda que de forma juridicamente oficial-legítima (legitimidade em uma acepção reduzida e restrita à legalidade-oficialidade estatal burguesa). A mais-valia assume um caráter de produção de sentidos macrossociológicos, material e simbólicos que preconizam a manutenção da estrutura social burguesa, desigualdade e opressão, operacionalizadas de dentro (e por dentro) do próprio sistema, que tem epicentro na instituição do Estado moderno de caráter eminentemente classista: Essas instituições se caracterizam por estar destinadas, pelo Estado da sociedade burguesa, à gestão dos diversos momentos da formação, produção e reprodução do proletariado de fábrica. Elas representam um dos instrumentos essenciais da politica social do Estado, politica que tem como meta garantir ao capital uma força de trabalho que – por atitudes morais, saúde física, capacidade intelectual, conformidade às regras, hábito à disciplina e à obediência etc. –, possa facilmente se adaptar ao regime de vida na fabrica em seu conjunto e produzir, assim, a quota máxima de mais-valia passível de ser extraída em determinadas circunstancias. (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 73).

Por último, traz-se a análise da estrutura institucional que permitiu/ contribuiu com todo esse processo, que, para além de ser um projeto eminentemente político, passa pela operacionalidade jurídica como ferramenta legitimante, por isso se inclui na análise a incapacidade técnicomecânica do direito reduzido e a sua funcionalidade legitimantenaturalizante. Neste sentido, é a partir do Poder Judiciário, como instituição especialista no fazer Justiça e a constituição dela como uma estrutura de símbolos e rituais de/para a aplicação da lei que contribui (constitui/é constituído) sobremaneira com esse processo, na medida em que foi a partir da ideia de Direito resumido à aplicação da lei, como sendo a manifestação da segurança jurídica a aplicação da lei por uma entidade neutra, alheia às partes (e aos interesses em disputa) que se chegaria a uma determinação desinteressada e uma aplicação asséptica (pura) do Direito Estatal. Essa ideia a que se faz questão de se contrapor, como em tudo na historicidade moderna, às dinâmicas do antigo regime, que se pautava, intimamente, por decisões jurídico-politicas, que tinham imensa relação com o poder central da monarquia e da religião – e, portanto, não seriam neutras (impuras). MÉTIS: história & cultura – LEAL, Jackson da Silva

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Nesta linha é que a magistratura no direito estatal moderno deve se reduzir à técnica jurídica – o que Michel Miaille denomina de instância judicial (2005), e a racionalidade formal como forma de produção de uma segurança jurídica nas relações conflituais que se erigiria sobre o julgamento neutro, e, assim, justo. Assim, analisando a questão da centralização e do processo de tecnicização do poder disciplinador, Antônio Manuel Hespanha escreve: Também neste plano, a punição da violência publica completa a garantia da nova ordem pública Estatal, fundada, não já sobre a proteção – nomeadamente contra actos de força – dos equilíbrios sociais espontâneos, as sobre a existência e impacto social de um aparelho burocrático e administrativo encarregado da disciplina da sociedade, agora civil. (Hespanha, 1993, p. 349).

Operacionalmente, essa estrutura institucional, se arvora em construção jurídico-sociais que se fazem dogmas, a fim de inserir elementos políticos (despolitizados) na técnica jurídica, e assim, privilegiar interesses da classe detentora do poder, elementos conceituais, que Domenico Losurdo (2006) chama de inteiro de características singulares, referindo-se à concepções como bem comum; interesse público, bem da nação, salvação do povo, preservação da totalidade e se acrescentaria segurança pública; que, em realidade, permitem a inserção, nessa dinâmica de juridicidade que se pauta pela racionalidade técnicomecânico, dos elementos políticos de interesse da classe dominante – a burguesia e suas necessidades de controle. Domenico Losurdo propõe: O que aqui esta sendo tão apaixonadamente invocado é um inteiro que exige o sacrifício não momentâneo mas permanente da grande maioria da população, cuja condição é tanto mais trágica pelo fato de que aparece muito remota qualquer perspectiva de melhora. [...] o capital de felicidade humana é fortemente acrescido pela presença de pobres obrigados a oferecer os trabalhos mais pesados e mais penosos. Os pobres merecem plenamente a própria sorte por serem gestadores e vagabundos, mas para a sociedade seria um desastre se porventura eles chegassem a se emendar [...] todos menos idiotas, sabem que as classes inferiores devem ser mantidas pobres, diversamente deixam de ser produtivas. (LOSURDO, 2006, p. 101-102).

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É interessante trazer a contribuição da Thierry Pech e Fredéric Gros (2001) em conjunção analítica que orientam a presente análise e construção teórica sobre a juridicidade estatal centralizadora moderna, que tem sua operacioalidade como resultado de três dinâmicas paralelas: o (i) pacto humanitário - a partir do qual se propõe construir uma estrutura material e simbólica que preconize os direitos humanos e o respeito a integridade (física e psíquica) humana – ou, em uma acepção Beccariana – a maior felicidade com o menor sofrimento – basta saber para quem se dirige essa felicidade, e à custa do sofrimento de quem (não parece ser uma pergunta que necessite ser respondida). Ainda o (ii) consenso processual, ou o que se poderia dizer a encampação jurídica do tecnicismo procedimental e formalista ou da mecânica operacional, buscando a neutralidade e imparcialidade – o descompromisso pela substância - ou seja, em uma orientação Lockeana – é a construção desta estrutura neutra e imparcial (terceira no conflito) que tiraria a humanidade do Estado de Natureza, e permitiria a inauguração da sociedade civil e politica. E, por último, o apelo ao (iii) ethos do desempenho, quando os discursos anteriores se confrontam com a necessidade de segurança, que se resume/transmuta em atuação policial e judiciária científica e eficiente e ainda com a mudança de indivíduos – ou, em uma orientação autenticamente Benthamiana3, fazer com que esses indivíduos e esses processos, revertam em alguma coisa de positiva para a sociedade, justificando-se com argumentos (pseudo) científicos a necessidade política – envolta em sua capa de pretensão humanitária – de mão de obra escravizadamente livre; e ainda, resumindo os indivíduos àquela nuance característica que interessa ao sistema e que justifica/legitima a sua intervenção. Assim contribui Antonio Manuel Hespanha, sobre o reducionismo proporcionado pelas dinâmicas técnico-mecânicas de operacionalização da justiça estatal liberal: Os sentidos implícitos desta sistemática – assim como a compreensão do direito penal que ela inculcava – não devem ser ignorados. Aparentemente, ela levava a eufemizar as dimensões extra-judiciárias do problema penal, arrumando-o entre as questões puramente técnicas do processo. As relações da questão penal com valores políticos – como as da defesa do Estado e da ordem publica, a dos

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interesses em jogo –, eminentes no critério romano de ordenação, tendem a ser obliteradas, tornando-se objetos dificilmente arrumáveis no seio do discurso penal. Por outro lado, esta arrumação processualista das questões penais contribui para valorizar os aspectos intra-individuais – os conflitos de interesses privados – das questões criminais. (HESPANHA, 1993, p. 333).

Transforma-se os indivíduos considerados criminosos (cujo maior crime é a própria existência e condição social de classe) em monstros, inimigos, que precisam ser exorcizados, purificados, e ainda, que precisam devolver a nação a eterna gratidão por sua humanidade e esforços dispensados com a educação e trabalho. Nesta linha, a resolução de conflitos e a restauração do tecido comunitário deixa de ser a pauta da institucionalidade imbuída/ detentora do monopólio da força ou do ius puniendi, passando, então, de uma instituição de justiça para uma instituição disciplinar, projetandose uma nova organização social: No plano das ideias-guia da acção política, à justiça substitui-se a disciplina. A coroa vai pretender constituir-se em centro único do poder e da ordenação social, esvaziando os centros políticos periféricos e pondo, com isto, fim à constituição politica da monarquia pluralista [...] todo este programa político – a que aqui cabe apenas fazer uma referencia genérica – tem consequências na politica penal, agora posta diretamente ao serviço destes intentos disciplinadores da monarquia. Se, antes, a punição real cumpria uma função quase exclusivamente simbólica, agora ela passa a desempenhar um papel normativo prático. Ao punir, pretende-se, de facto, controlar os comportamentos, dirigir, instituir uma ordem social e castigar as violações a esta ordem. Para isto, o direito penal da coroa tem que se converter num instrumento efectivo, funcionando eficazmente e sendo, por isso, crível e temido (HESPANHA, 1993, p. 321).

A partir da estandardização do discurso humanista e da adoção de um humanitarismo-garantista e de uma processualidade técnico mecânica, produz-se o que Thierry Pech chama da utopia carceral, ou, a busca da neutralização da pena que se apresenta como a (potencial) porta de entrada para o contrato e para a cidadania liberal – dentro dos limites (aceitos) da subalternidade e de sua condição na estrutura social. 206

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Neste intento de compreender e desvelar essa operacionalidade punitiva – que se faz a partir da pretensa racionalidade utilitárioregulatória moderna – que não se dá apenas no plano macro e superestrutural da epistemologia, mas que se procedimentaliza de forma muito concreta a partir das agências estatais centralizadoras, é interessante trazer Antoine Garapon 4 (1997) que contribui imensamente para compreender o Poder Judiciário5 que é uma figura central nesta estrutura e como instituição historicamente determinada em um projeto de engenharia social e de um paradigma de sociabilidade opressora. Que tem nesta instituição a figura do árbitro dos antagonismos sociais, mantendo-os em níveis calculáveis, por uma dinâmica de cálculo atuarial de riscos sociais e, sobretudo, sistêmicos, em uma clara perspectiva de eficiência tecnológica – visando a manutenção ordeira do status quo. O autor resgata o processo histórico e também uma análise teórica acerca das simbolizações, estruturas conceituais com que trabalha e as quais sustentam o Poder Judiciário como figura centralizada e estatizada responsável por uma suposta resolução de conflitos de forma científica (mecânica) e pretensamente neutra. Antoine Garapon resume nos seguintes termos: O acusado é então esmagado pelo cerimonial concebido para o manter ao abrigo da justiça popular e a festa transforma-se numa ordem para matar simbólica, visto que a paixão popular é demasiado forte e o temperamento dos juízes demasiado débil. Nesse caso, dir-se-ia, do que é que estamos a espera para pôr fim a esses ritos tão perigosos! A verdade é que as emendas tentadas, quer se tratasse da justiça informal ou da intrusão dos meios de comunicação social, mostraram ser mais nocivas do que o próprio soneto. (GARAPON, 1997, p. 20).

Interessante notar como o sistema de resolução de conflitos, ou diga-se mesmo de punição, utilizado no antigo regime (mais apropriadamente como castigo ou expiação) a que se atribui uma suposta brutalidade ou desumanidade encontrava-se intimamente vinculado ao seu paradigma societal e como decorrente (quase) lógico da sua estrutura material e simbólica medieval; e que, a construção do sistema monista tecnicista e centralizado na figura do Estado e seu monopólio da força física e do poder de punir, que se apregoa como sendo o resultado da racionalidade e pretensamente neutra, se verifica a íntima vinculação ao

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paradigma de sociabilidade e governabilidade do qual é resultado – a positividade burguesa – do modus vivendi ocidental moderno a defesa de seus interesses e a perpetuação de sua hegemonia de poder. Portanto, um sistema penal resultado do modo de produção da vida material (MIAILLE, 2005) que se alterou no decorrer da própria história (mantendo-se, estruturalmente, da mesma forma), para, quando necessitava de máquinas bípedes de trabalho no mar (embarcações) e, além-mar nas colônias em seu processo de colonialismo que não seria realizado sem a pena da deportação, do degredo e das galés, foi o que permitiu efetivamente a colonização e os indivíduos expulsos e escravizados que levaram a ideologia liberal. Ainda, quando internamente necessitou de mão de obra, encontrando elementos justificadores da sua intervenção, impulsionando a sua dinâmica societal até chegar a industrialização. Já na fase posterior a industrialização, quando não mais se fazia tão necessário a mão de obra, ao menos não um exercito tão numeroso, estrutura-se o controle social mais como dinâmica simbólica reafirmadora e internalizadora da ideologia liberal e do contrato social; sempre em uma relação gregária, simbólica e procedimental, com as políticas de assistência social, na construção de indivíduos, primeiramente hábeis e voltados para o trabalho, e depois, como mentes dóceis afeitas a sua condição de subalternidade no novo paradigma de sociabilidade e governabilidade que se constrói como naturalizado.

Considerações finais Em sede de considerações finais, e não que as questões encerrem as possíveis análises que se faz possível do processo histórico de construção da prisão como forma de punição privilegiada e generalizada e todo seu aparato técnico institucional e ideológico, mas que ficam no limite do fôlego e objetivos do presente trabalho. Primeiramente, trazer o alerta de Antônio Manuel Hespanha (1993), sobre esse processo histórico, que não se deu de forma evolutiva, e tampouco pacífica; mas sim permeada por constante tensão, e que sequer contem marcos estanques de princípios e encerramentos de períodos, de hegemonias e poderes que se criam e se esfacelam. Marcos que foram criações científicas e principalmente com fins didáticos; são, em realidade, processos históricos que se permeiam, se entrecruzam, interinfluenciam-se. Assim, o processo de transição de poder e de toda a mudança na estrutura societária contou com grande resistência das 208

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estruturas estamentais do antigo regime, também, com o poder ascendente e principalmente econômico da burguesia, e com a grande massa de servos e posteriormente proletários, que em significativa medida, foram utilizados como marcha de manobra pelas estratégias e cooptados pelo sedutor discurso liberal da igualdade e liberdade. Nesta linha que se propõe neste trabalho uma postura críticoreflexiva, um esforço teórico e, sobretudo desvelador dos paradoxos proporcionados pela filosofia liberal e a sua dinâmica de operacionalização. Paradoxos que se manifestam quando a filosofia liberal e seu projeto societário – calcado no discurso da liberdade – se constitui como produtora da liberdade de uns poucos (burguesia – homem, branco e proprietário), à custa da privação a liberdade de muitos que sequer tinham a possibilidade de ser (liberdade negativa), sem a intervenção do Estado regulador, quiçá de fazer e participar senão pela via da condição passiva do objeto de intervenção, e escravização da maioria que utilitariamente, e servindo ao todo com características singulares (LOSURDO, 2006) era submetida ao trabalho forçado para o bem da nação e interesse público. Assim como também, a igualdade, outro estandarte da luta contra o antigo regime, e na qual a grande massa pensava estar incluída, e depositava suas esperanças de libertação, e através da qual, foi definida como incivilizada, anormal, preguiçosa, orgiástica, irracional, e por essa via justificada toda sorte (ou azar) de ações institucionais para docilizar, controlar e reeducar esse contingente de seres ignorantes, cujo único amparo se constituía na figura do Estado e sua caridade-punitiva. Discurso de igualdade, que somente serviu para desqualificar os privilégios estamentais, nos quais a burguesia não pertencia, e constituir os próprios privilégios, assentados na propriedade como requisito fundamental e passar a projetar uma nova naturalidade (artificial) que legitimava a posse de uns seres por outros. Por último, a contrariedade liberal em relação a uma suposta brutalidade do antigo regime no tratamento dos infratores, que se manifesta na substituição de uma alegação de arbítrio decisório e subjetivista pelo império da lei e do encerramento da resolução de conflitos no tecnicismo cientificista, operacionalizado por um Poder Judiciário eminentemente classista que resume os indivíduos considerados infratores na condição de criminoso como única dimensão (ao menos a MÉTIS: história & cultura – LEAL, Jackson da Silva

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que importa para o funcionamento e legitimação do sistema e sua atuação) deste, transformado em objeto de intervenção normalizadora. Ao fim e ao cabo, essas considerações se prestam a reafirmar um entendimento do paradigma de sociabilidade e governabilidade liberal como um projeto de dominação, no qual o bem supremo é capital e a propriedade privada e no entorno dos quais giram todas as instituições materiais e simbólicas, desde o discurso humanitário e da segurança jurídica até o Estado e o Poder judiciário, que, servem nada mais, que para a manutenção da estrutura social, marcada pela desigualdade e opressão, que se fazem naturalizadas, ontologizadas. Subverte-se, assim, concepções de comunidade e solidariedade pela de produtividade, competitividade e eficiência, produzindo-se (pretensões) de autossuficiências e individualismos que permitem a negação do outro, a construção de inimigos públicos; o que para os desforços de neutralização, aniquilação e extermínio, são menos que um passo a mais no processo evolutivo. Sobre essas bases epistêmicas – materiais e simbólicas – pensa-se estar assentada a dinâmica da resolução de conflitos na modernidade burguesa, e sua estrutura de desigualdade, permeada de perversos antagonismos e, assim, se perpetua o ciclo vicioso e violento da vingança oficializada.

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Notas 1

Nesta linha também aponta Beccaria: “eis o dogma político em que os povos deveriam acreditar e que os supremos magistrados deveriam apregoar com a incorruptível proteção das leis, dogma sagrado sem o qual não pode haver sociedade legitima, certa recompensa pelo sacrifício, por parte dos homens, daquela ação universal sobre todas as coisas, que é comum a cada ser sensível e limitada pela própria força”. (Beccaria, 2013, p. 48).

contemporaneamente ainda existentes – analisando especificamente questões como: o espaço judiciário; o tempo judiciário; a toga; os actores; o gesto; o discurso; o ritual; o drama da Justiça; a encenação do conflito [...] propondo, verdadeiramente, um desvelamento da identidade, do legado, e também, do comprometimento de classe que marcam indelevelmente a atuação do Poder Judiciário.

2 Autor que não foi especificamente tratado no presente trabalho, e que necessitaria de um espaço próprio para aprofundamento de suas contribuições, posturas e consequências para o pensamento criminológico, e as estruturas institucionais de controle social a partir do utilitarismo.

4

3

Antoine Garapon na obra Bem Julgar: Ensaio sobre o ritual judiciário (1997) promove efetivamente uma dissecação desta instituição, revelando suas entranhas operacionais, e, sobretudo o seu processo histórico de constituição e que se revelam em diversas questões

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Não obstante os esforços liberais para se oporem ao antigo regime – vê-se na conformação do Poder Judiciário, que seus membros eram indicados, e permaneciam submissos ao Rei (HESPANHA, 1993; 2005); enquanto que na modernidade, sob o comando burguês, verifica-se que somente membros da burguesia – doutos, letrados, racionais, intelectual, humanistas – ocupavam, não só os cargos da magistratura, como também de todos os altos cargos públicos; verificando-se que a direção social está submissa apenas a outra classe de indivíduos, mas que a logica, continua a mesma

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