O património cemiterial da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

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O PATRIMÓNIO CEMITERIAL DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA

ANDRÉ MARTINS DA SILVA

NOVEMBRO DE 2016

O PATRIMÓNIO CEMITERIAL DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA por

André Martins da Silva*

Separata de Cadernos Culturais – Lumiar - Olivais - Telheiras, 2ª Série N.º 9, editado pelo Centro Cultural Eça de Queiroz sob direcção de Fernando Andrade Lemos e José António Silva. Novembro de 2016

SILVA, André Martins da – O património cemiterial da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Cadernos Culturais - Telheiras/Lumiar/Olivais. ISBN 978-989-8180-12-4. 2ª Série Nº 9 (Novembro 2016), p.206-222

* – Técnico Superior do Serviço de Públicos e Desenvolvimento Cultural da Direcção da Cultura da Santa

Casa da Misericórdia de Lisboa. Guia-Intérprete e Historiador de Arte.

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Introdução Como é sobejamente sabido, a intervenção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa abrange actualmente responsabilidades tão diversificadas como a saúde, a acção social, o jogo ou a cultura, herdadas ao longo de mais de meio milénio de História e norteadas por um mesmo fio condutor: o bem comum. Entre elas, o notável trabalho que a Instituição desenvolve em prol da salvaguarda do património cemiterial português é porventura a menos conhecida. Com efeito, a Misericórdia de Lisboa é actualmente responsável pela preservação de um total de 1283 sepulcros espalhados por todo o país – ilhas incluídas – concentrados de uma forma esmagadora na cidade de Lisboa, onde a Instituição tem à sua guarda, só nos cemitérios do Alto de São João e dos Prazeres, um total de 641 e 537 túmulos, respectivamente. Trata-se, pois, de um dos mais importantes conjuntos do género no país e, numa altura em que a atenção para as questões do património cemiterial é cada vez maior – não só por parte da historiografia mas também por parte do público – urge estudá-lo. Entre os túmulos ao cuidado da Instituição, sobressaem obras-primas da arquitectura cemiterial portuguesa, como o Jazigo dos Benfeitores da Misericórdia de Lisboa, traçado por Adães Bermudes, ou as últimas moradas de figuras incontornáveis da nossa cultura, tais como Columbano Bordalo Pinheiro ou o Dr. Leite de Vasconcelos. Aquando da fundação da Confraria de Nossa Senhora da Misericórdia, a 15 de Agosto de 1498 – por vontade de D. Leonor de Lencastre, viúva de D. João II e irmã do monarca reinante, D. Manuel – a jovem Instituição adoptou as catorze Obras de Misericórdia como ponto central da sua actuação, divididas em dois grupos de sete obras espirituais, mais sete corporais1. 1 A saber, na sua versão actualizada para o português de hoje - Obras de Misericórdia corporais: remir os cativos e

Entre elas, são de destacar – para o tema em estudo – “Enterrar os mortos” e “Rogar a Deus por vivos e defuntos”, Obras de Misericórdia corporal e espiritual, respectivamente. Por outro lado, as restantes obras corporais, como “Dar de comer a quem tem fome”, “Dar de beber a quem tem sede”, “Visitar os doentes”, “Vestir os nus”, etc., revelam o trabalho de proximidade que a Instituição mantinha com potenciais defuntos, numa época em que a taxa de mortalidade entre a população desfavorecida era particularmente alta. A morte chegaria, então, trazendo a necessidade do devido apoio espiritual e da posterior sepultura do corpo, com o respectivo ritual Católico, que a Instituição assegurava. Com o advento da arquitectura cemiterial – na sequência da criação dos cemitérios civis, decretada pelo governo da Monarquia Constitucional em 1835 – a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa passou a aceitar a doação de túmulos. Os beneméritos contemplavam a Instituição com doações testamentárias e, em contrapartida, exigiam a manutenção do bom estado das suas moradas de descanso eterno, a ser assegurada com o devido cuidado e respeito. Diz uma deliberação de Mesa de 1920, que anuiu à aceitação de um sepulcro, que a Instituição deveria “provêr à conservação e reparação do seu jazigo (…), mantendoo em irrepreensivel estado de aceio (sic)”2.

visitar os presos, curar e assistir os doentes, vestir os nus, dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, dar pousada aos peregrinos, sepultar os mortos; Obras de Misericórdia espirituais: ensinar os simples, dar bom conselho, corrigir com caridade os que erram, consolar os que sofrem, perdoar os que nos ofendem, sofrer as injúrias com paciência, rezar a Deus pelos vivos e pelos mortos. In: www.scml.pt 2 Livro das Deliberações (…) n.22, fól. 91

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“Enterrar os mortos” – uma obra Misericórdia na História da Santa Casa

de

Durante o século seguinte à sua fundação, a actuação da Misericórdia junto dos que partiam derivava essencialmente do acompanhamento e enterro dos condenados à morte, missão decorrente de uma outra Obra de Misericórdia, “Remir cativos e presos visitar”. A esta acrescentava-se, ainda, a responsabilidade de assegurar o enterro dos confrades, dando cumprimento às vontades por estes manifestadas em vida, designadamente no que respeitava ao local de sepultura pretendido3. Há que sublinhar que, à época, tal cuidado estava indelevelmente adstrito à crença religiosa – assim como, a bem dizer, toda a intervenção de cariz caritativo – e, naturalmente, tal actuação não se realizava sem o devido acompanhamento eclesiástico, que assegurava que o crente falecia e era sepultado na fé cristã. Quando a causa da defunção o permitia, era necessário que o finado partisse na chamada Boa Morte – que pressupunha o cumprimento dos sacramentos da penitência, comunhão e extrema-unção –, à qual se sucedia o enterramento com a adequada liturgia. Para além dos dois minoritários casos anteriormente referidos, a Misericórdia de Lisboa – como confraria de leigos que era – não tinha, pois, permissão para assegurar enterramentos, encargo que recaía sobre o clero regular e secular. Ainda em 1498, por Carta Régia dada a 2 de Novembro, a Misericórdia de Lisboa é autorizada a tirar da forca os condenados à morte e, no Dia de Todos-os-Santos, proceder ao respectivo sepultamento no cemitério da Instituição4. Neste dia, a Confraria juntar-se-ia em procissão, com a finalidade de se deslocar até ao Campo de Santa Bárbara5, onde se situava uma das forcas da cidade, para recolher as ossadas dos executados e lhes dar sepultura. Como a procissão tinha carácter anual, os restos mortais ficariam guardados num altar contíguo, referido no Compromisso de 1516 como o “altar da forca”, certamente dotado de um carneiro6 onde se depositariam os cadáveres. Na procissão que os recolhia participava não só a Misericórdia como também o clero regular7.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo – A Misericórdia de Lisboa - Quinhentos Anos de História, p.575 4 RIBEIRO, Victor – A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, p.322 5 Na actual zona dos Anjos. 6 Uma cripta. 7 SERRÃO, Joaquim Veríssimo – op. cit., p.608 3

O destino dos malogrados defuntos era o cemitério da Misericórdia de Lisboa, situado na zona da Calçada de Sant’Ana8, perto da Igreja da Pena9, e denominado por Cemitério de Sant’Ana ou dos Padecentes. Sabemos, documentalmente, que esta necrópole foi usada praticamente até ao fim dos enterramentos nas igrejas, decretado, em 1844, pelo governo liberal. A mesma Carta Régia de 1498 concede à Misericórdia autorização para levantar uma forca levadiça na Ribeira de Lisboa, cujos condenados seriam, neste caso, levados de imediato para o mesmo cemitério10, após o macabro espetáculo público que eram as execuções da época, habitualmente precedido por uma procissão, conduzida pela Instituição, que acompanhava o condenado do cárcere ao patíbulo. Nestas procissões eram levadas as chamadas Bandeiras dos Condenados, das quais o Museu de São Roque preserva ainda dois exemplares da segunda metade do século XVIII, em exposição permanente. Trata-se de pendões processionais com representações dos condenados, utilizados aquando das execuções e no cortejo do Dia de Todos-os-Santos. A lúgubre cerimónia incluía sermões correspondentes à ocasião, pois sabemos que a 1 de Novembro de 1682 o conhecido Padre Rafael Bluteau pregou, na Igreja da Misericórdia de Lisboa, o “Sermaõ ao recolher da procissaõ com que a irmandade da misericordia vay buscar ao Campo de Santa Barbara os ossos das pessoas, que padeceraõ por justiça”11. 8 RIBEIRO, Victor – op. cit., p.106. Ribeiro refere o “cemiterio privativo da Santa Casa, que era sito na calçada de Sant’Anna, todo murado, e se denominava o Cemiterio da Graça ou dos Padecentes”. É, no entanto, possível que a SCML tenha tido dois (ou mais) cemitérios em Lisboa ao seu cuidado, uma vez que documentação do início do século XIX transcrita por Paula André refere o cemitério da Graça e o de Sant’Ana como dois espaços distintos. Vd. ANDRÉ, Paula – Modos de pensar e construir os cemitérios públicos oitocentistas em Lisboa: o caso do Cemitério dos Prazeres, p.82. É ao da Graça que se refere um documento de 1560, transcrito por Victor Ribeiro, que formaliza uma permuta entre a SCML e Manuel de Almeida, Fidalgo da Casa d’El Rei, na qual se trocou o chão deste cemitério por um outro chão situado próximo, extramuros, “o qual chão que lhe deo he tão grande que sobeja para enterramentos dos presos e pobres da cidade”. RIBEIRO, Victor – op. cit., p.106 9 “No cemiterio da Santa Casa, junto á egreja da Pena, se faziam por anno mais de 729 enterramentos, de pessoas pobres falecidas.” s.d., in Livro IX de Decretos, aviso e ordens, fól.17 citado por RIBEIRO, Victor – op. cit., p.526 10 RIBEIRO, Victor – op. cit., p.322 11 SYLVA, Joseph Antonio da – Sermoens panegyricos e doutrinaes que em diversas festividades, e assumptos pregou o reverendissimo padre D. Rafael Bluteau, p.280

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Fig. 1 – Bandeira dos Condenados; autor desconhecido, segunda metade do século XVIII; óleo sobre tela. Museu de São Roque inv. Pin 186. © Cintra e Castro Caldas / SCML

Os que eram condenados à fogueira ou ao esquartejamento recebiam tratamento semelhante, esclarecendo o Compromisso de 1500 que “e asy mesmo se tera esta maneira acerca dos justiçados esquartejados cujos coartos som postos as portas da cydade. e asy dos membros daquelles em que se faz justiça e estam no pelourinho ou em outras quaes quer partes a que depois de fecta justiça yram os ditos oficieaes com mays devaçam que puderem pollos ditos membros e os tiraram e trazeram a emterrar no cemiterio da comfraria. E se alguus padecerem per justiça queimados o dito provedor mamdara huu homem a custa da dita comfraria o dia a tarde em que padecer ver se ficou por queymar algua osada e achandoa trallaha a emterrar em luguar sagrado pera que nom fique aos cães”12. É possível depreender, pois, que a Coroa – que não se responsabilizava pelas necessidades dos presos, que cabiam ao clero e às confrarias – confiou à Misericórdia de Lisboa a tarefa de confortar, 12 Compromisso Primitivo da Misericórdia de Lisboa. In SERRÃO, Joaquim Veríssimo – op. cit., p.583

acompanhar e enterrar os condenados à morte, numa fase ainda muito inicial da História da Instituição. Tal facto é aferível através do Compromisso mais recuado que se conhece, passado à escrita em 1500, que, segundo Joaquim Veríssimo Serrão, terá sido o primeiro compromisso redigido, dois anos volvidos sobre o ano fundacional, numa altura em que haveria já experiência suficiente para formalizar o modus operandi da Instituição. Socorrendo-nos do mesmo autor, “o Compromisso pode definir-se como a constituição das Misericórdias, a magna charta da sua vida institucional. Nesse diploma fixavam-se os objectivos gerais e específicos da sua fundação”13. O referido manuscrito, copiado do da Misericórdia de Lisboa (infelizmente desaparecido) para a Misericórdia de Coimbra, está guardado na famosa Biblioteca da centenária Universidade e estipula que é obrigatória a reunião dos irmãos em três dias do ano: no Dia de Nossa Senhora da Visitação14, na Quinta-feira Santa e no Dia de Todosos-Santos, justamente para dar cumprimento a esta incumbência. Os seguintes compromissos – aprovados pouco tempo depois, em 1502 e 1516 – revelam uma formulação muito semelhante ao de 1500. De uma maneira geral, a atenção dada aos mortos prendia-se essencialmente com esta responsabilidade, estando o tratamento previsto devidamente passado à escrita. A Instituição assegurava que o “padecente” se poderia confessar e comungar pela última vez, celebrando, para tal, missa num local onde o condenado pudesse assistir. Confortava-o, exultava ao arrependimento dos seus pecados e trazia-lhe a última refeição, “de maneira que o dito padecente ate o luguar do padecer vaa provido do spirituall e temporall”15.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo – op. cit., p.32 A importância do Dia da Visitação, antigamente celebrado a 2 de Julho, prende-se com o facto de a tradição Católica entender o momento da visita da Virgem Maria a Santa Isabel, que se encontrava grávida de São João Baptista, como a primeira ocasião em que se exerceu uma Obra de Misericórdia. Vd. Evangelho de São Lucas: 1,39-56. Actualmente a Igreja Católica celebra a Visitação no dia 31 de Maio, tendo-se alterado a data devido à incongruência que existia no Calendário Litúrgico em se celebrar a Visitação numa data posterior à do nascimento de São João Baptista (24 de Junho). 15 Compromisso Primitivo da Misericórdia de Lisboa. In SERRÃO, Joaquim Veríssimo – op. cit., p.582 13 14

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Em 1593, a Misericórdia recebeu permissão para enterrar os mortos16, por alvará do vice-rei, o Arquiduque Alberto da Áustria17. Até então – como vimos – esta actuação estava circunscrita aos membros da Confraria e aos condenados à morte. A Instituição recebeu, ainda, o privilégio de usar tumbas, igualmente concedido às confrarias do Loreto (dos italianos), de S. Bartolomeu e de S. Gião (dos alemães)18. Se os compromissos anteriormente citados abordavam “enterrar os mortos” dentro de um âmbito mais vasto, decorrente da actuação da Confraria junto dos “padecentes” e dos próprios confrades, cerca de um século depois surge o Compromisso de 1618, que inclui já um capítulo inteiro intitulado “Do modo com que se hão de fazer os enterramentos” (XXXV)19. O mesmo capítulo é aberto esclarecendo que “Como o enterramento dos mortos, é uma das principaes obras da Misericordia que pertencem a esta Casa, trabalhará o Provedor, e mais Irmãos da Mesa, que se faça com decencia, e christandade, e com respeito ás pessoas que fallecerem”. A documentação indicia, portanto, que apenas 25 anos depois de a Misericórdia receber autorização para o fazer, o enterramento dos mortos tornou-se numa das suas principais áreas de actuação, ao ponto de se notar uma alteração bastante significativa no texto do Compromisso que a aborda. Pode-se depreender, por isso, que o número de solicitações para enterramentos terá aumentado significativamente, tendo justificado uma formalização do respectivo modo de actuação, e, quiçá, esta incumbência terá sido confiada à Misericórdia em resposta a uma necessidade já notória em 1593. O Compromisso de 1618 estipula que “haverá tres tumbas20 na Casa da Misericordia, com tres bandeiras, e sufficiente numero de tocheiros. Uma servirá de enterrar aos pobres, e pessoas ordinarias. A segunda Neste ano, a mesma permissão foi igualmente concedida a outras Misericórdias no reino e nas províncias ultramarinas. 17 ARAÚJO, Maria Marta Lobo de – Rituais fúnebres nas Misericórdias portuguesas de setecentos, p.7 18 RIBEIRO, Victor – op. cit., p.328 19 O Compromisso da Misericórdia de 1618; apud SERRÃO, Joaquim Veríssimo – op. cit., p.664 20 Vale a pena salientar que, apesar de hoje uma tumba ser uma sepultura no solo, fixa, à época entendia-se por tumba “hum ataùde descuberto, ou com arcos por cima, cubertos de hum panno negro, como o que os Galhudos, ou os Irmãos da Misericordia levão às costas, quando vão buscar, ou enterrar defuntos.” In BLUTEAU, Raphael – Vocabulario portuguez e latino, p.324 16

servirá de enterrar a pessoas de maior qualidade. A terceira de enterrar os Irmãos, e mais pessoas que houverem de ser acompanhadas da Irmandade”21. O enterramento de pobres era assegurado gratuitamente e incluía a disponibilização da respectiva tumba e demais parafernália fúnebre. Já o sepultamento de nobres era feito mediante uma esmola, de valor variável. A Misericórdia assegurava, ainda, o Ofício dos Defuntos e um cortejo que acompanharia o funeral. O documento referido define como é que se deveria processar todo o ritual, incluindo que “no remate [do cortejo] irá o Provedor com sua vara, e detraz delle a tumba levada por seis Irmãos da Mesa”22. Este cerimonial é também ilustrado no Ceptro do Provedor da Santa Casa, datável de finais do século XVI ou inícios do século XVII, que se encontra em exposição permanente no Museu de São Roque. Apresenta quatro das responsabilidades da Instituição, incluindo dar sepultura aos mortos.

Fig. 2 – Ceptro do Provedor da SCML (pormenor); autor desconhecido, finais do século XVI / inícios do XVII; prata repuxada e cinzelada. Museu de São Roque inv. Or 624. © Cintra e Castro Caldas / SCML

Como exemplo e a título de curiosidade, é interessante saber que, aquando do fim da Dinastia Filipina, em 1640, a Misericórdia de Lisboa – em cumprimento do seu dever de “Sepultar os mortos” – levantou o cadáver d’O Defenestrado, Miguel de Vasconcelos, para lhe dar sepultura condigna. No século anterior, tinha, também, acolhido das ossadas de D. Afonso de Albuquerque, mandadas vir da Índia pelo seu filho, D. Brás de Albuquerque.

21 O Compromisso da Misericórdia de 1618; apud SERRÃO, Joaquim Veríssimo – op. cit., p.664 22 SERRÃO, Joaquim Veríssimo – op. cit., p.665

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Vizinho da Santa Casa – então instalada na actual Igreja da Conceição Velha, na Rua da Alfândega – D. Brás de Albuquerque morava na famosa Casa dos Bicos. A Misericórdia recebeu as ossadas de seu pai, em 1566, tendo sido pouco depois trasladadas para o Convento da Graça, para a sepultura familiar, localizada na respectiva Sala do Capítulo23. Acompanhou, ainda, as exéquias de vários príncipes e reis, nas quais habitualmente ocupava um papel central, dentro da organização das precedências que ditavam o cerimonial áulico, prática que se encontra devidamente documentada. São exemplos as exéquias de D. Teodósio (†1653), filho de D. João IV e herdeiro do trono, ou de D. Pedro II (†1706), entre outros. Com o século XIX, a intervenção da Misericórdia junto dos mortos conheceu alterações bastante significativas, impostas por razões de vária ordem, na sua essência derivadas da conjuntura da época. A actuação junto dos condenados conheceu o seu fim, em primeiro lugar com a obrigatoriedade de entregar os cadáveres dos executados à Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, para fins científicos, e, mais tarde, com o fim da pena de morte em Portugal, em 1867, com D. Luís I, abolição na qual Portugal foi pioneiro perante o resto do mundo, como é sabido. O tratamento dos restantes falecidos conheceu, também, alterações bastante significativas, devido à criação dos cemitérios civis e à proibição dos sepultamentos nas igrejas, em 1835 e 1844, respectivamente. O fim dos enterramentos nas igrejas e surgimento dos cemitérios foi o resultado de um lento e paulatino processo que se desenvolveu na Europa a partir do século XVIII. O crescimento demográfico verificado um pouco por todo o continente vai levar a uma sobrecarga dos templos e respectivos adros, que, sendo muitos de origem medieval, não tinham capacidade para responder a este aumento, nem havia possibilidade de os ampliar devido à malha edificada que cercava igrejas e conventos. Por outro lado, e pese embora o facto de se tratar de um sistema de pensamento ao nível das elites, a cultura do Iluminismo trouxe argumentos de cariz científico e higienista para o debate sobre a forma

como se deveriam tratar dos mortos, em resposta a um problema de saúde pública que, até às primeiras décadas do século XIX, se foi complexificando cada vez mais.

O surgimento dos cemitérios civis e dos jazigos Apesar de a efectiva resposta a este problema só se ter materializado a partir do encerrar da Guerra Civil a favor dos Liberais – com a criação dos cemitérios civis – houve, todavia, alertas e iniciativas décadas antes que nos sinalizam uma concretização enormemente vagarosa. Séculos e séculos de um vincado apego a uma mesma prática sepulcral, juntamente com uma conjuntura difícil (pós-1755, Guerra Peninsular e Guerras Liberais) e um status quo interessado em extrair vantagens do sepultamento dos mortos ditaram esta lentidão. Em 1756, o conhecido médico português Ribeiro Sanches alerta para o risco de saúde pública, no seu Tratado da conservação da saúde dos povos, onde não tem reservas em afirmar que “nenhum lugar dentro da cidade necessita tanta ventilação como o ar das Igrejas. (…) Nenhum lugar público contém maior quantidade de exalações e de vapores podres”. Denuncia, ainda, que “o proveito que tiram dele [dos sepultamentos] as fábricas das Igrejas tem sido a causa de [se] perseverar ainda com bastante frequência”24. Um factor percussor que fez mexer as autoridades foi uma inspecção ao já referido Cemitério de Sant’Ana, em 1787, cujos três médicos inspectores relataram que “descobriram os mesmos acidentes de exalações podres e cadavéricas que não podem deixar de ser ofensivas (...) por onde se deve inferir que se em lugar descoberto é tão perigosa semelhante prática, quanto não será perigosa a sua concentração abusiva e profana nos templos”25. Este caso despoletou toda uma série de inspecções a locais de enterro, que concluíram que em praticamente todos os casos analisados se verificava uma situação semelhante, provocada pelo número excessivo de enterramentos, pela insuficiente profundidade das covas e por os corpos serem depositados sem caixão e sem cal26. Não se trata de

SANCHES, Ribeiro – Tratado da conservação da saúde dos povos, cap. XV 25 Citado por ANDRÉ, Paula – op. cit., p.78 26 ANDRÉ, Paula – op. cit., p.74 e segs 24

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RIBEIRO, Victor – op. cit., p.74

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uma situação exclusivamente portuguesa, pois já em 1764, Voltaire, no seu Dictionnaire philosophique, falava nos “abominables cimetières” que rodeavam as igrejas francesas, como o caso do Cemitério dos Santos Inocentes, a principal necrópole de Paris durante cerca de 800 anos. O filósofo considerava-o “um vasto recinto consagrado à peste. Os pobres que frequentemente morrem de doenças contagiosas são lá enterrados desordenadamente, onde os cães às vezes lhes vão roer os ossos. Exala um odor denso, cadavérico e infecto. É pestilento sob o calor do Verão”27. Ainda em 1800, foi construído um cemitério na zona do Campo de Ourique, da autoria de Francisco Xavier Fabri, usado, entre outros sepultamentos, para pobres vindos da Santa Casa28. No entanto, a efectiva resolução do problema só chegaria com o terminar das Guerras Liberais e vitória da Monarquia Constitucional, em 1834. Sob pressão de um grave problema de saúde pública, o Liberalismo trará uma fundamentação alicerçada em razões higienistas e científicas, à luz da política vigente, cuja laicização passará também a ser aplicada ao tratamento dos mortos, factores que – em situação de urgência agravada pela epidemia de cólera de 1833 – levarão o Governo a decretar, em 1835, a criação de cemitérios sob administração municipal para todas as povoações do reino e, em 1844, a proibir os enterros dentro dos espaços religiosos29. Em total ruptura com séculos de tradição, a Igreja perde o monopólio da morte e põe-se termo a uma prática antiquíssima, o que, nas zonas rurais – simultaneamente as mais conservadoras e as menos afectadas pelos problemas descritos – levará a uma fortíssima contestação popular, como é o caso da conhecida Revolta da Maria da Fonte, em 1846.

Em francês no original: “C’est un vaste enclos consacré à la peste; les pauvres qui meurent très-souvent de maladies contagieuses, y sont enterrés pêle-mêle; les chiens y viennent quelquefois ronger leurs ossemens; une vapeur épaisse, cadavéreuse, infectée, s’en exhale; elle est pestilentielles dans les chaleurs de l’été“. In VOLTAIRE – Dictionnaire philosophique, p.429. Tradução do autor. 28 ANDRÉ, Paula – op. cit., p.81 29 Saliente-se que do decreto da proibição ao efectivo cumprimento da mesma houve uma enorme distância cronológica, só sendo aplicada em certas zonas depois de várias décadas volvidas. A título de exemplo, é sabido que ainda se faziam sepultamentos no adro de S. João das Lampas de Sintra no início do século XX. 27

À época, Lisboa contava com aproximadamente 130 pequenas necrópoles30, integradas na malha urbana, e passou a dispor de dois grandes centros de sepultamento nos arrabaldes, um ocidental e outro oriental: os cemitérios dos Prazeres e do Alto de São João, respectivamente, que permitiram responder às necessidades sepulcrais de toda a capital.

A Misericórdia na sequência da criação dos cemitérios civis e do surgimento dos jazigos Estas alterações que tanto marcaram a sociedade civil – e que, em última análise, deram origem à forma como actualmente encaramos e lidamos com a morte – mudaram completamente a actuação que a Misericórdia tinha mantido desde o século XV junto dos que partiam. Foi criado o serviço funerário, para acompanhar os enterros dos pobres. Este serviço estava adstrito à Igreja de São Roque e, para transporte dos finados, foi adquirido um esquife puxado por uma parelha, conduzido por quatro homens e um sacerdote31. Nos livros de deliberações de Mesa32, entre finais do século XIX e início do XX, são frequentes decisões a favor da aquisição de gado para o puxar, sabendo-se inclusivamente que a cocheira onde se guardavam os animais ficava no Convento de São Pedro de Alcântara. Já a salvaguarda dos jazigos, surgiu – aparentemente – como resultado directo de uma das principais fontes de manutenção da Instituição: as doações, heranças e legados. Ao que conseguimos apurar nas breves pesquisas que antecederam a redação deste artigo – a confirmar ou refutar posteriormente com ulteriores investigações – não terá havido uma decisão concreta que apontasse os objectivos da Santa Casa no sentido da protecção do património cemiterial português, alinhada com as Obras de Misericórdia “Enterrar os mortos” e “Rogar a Deus por vivos e defuntos”. Foi possível deduzir, porém, que se trata de uma responsabilidade surgida algures no último quartel do século XIX, isto é, poucas décadas depois do nascimento dos próprios jazigos dentro dos novos espaços cemiteriais. Houve, pois, uma entrada significativa de doações e legados entre finais de oitocentos e inícios de novecentos – correspondendo, grosso modo,

ANDRÉ, Paula – op. cit., p.68 RIBEIRO, Victor – op. cit., p.141 32 Conselho de Administração da SCML. 30 31

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ao mandato do Provedor António Augusto Pereira de Miranda (1887-1922) – cujos beneméritos viam na garantia da manutenção dos seus túmulos uma justa contrapartida pelas posses que deixavam à Instituição. Como é sabido, entre finais do século XIX e inícios do XX, Portugal atravessa uma crise social e política de contornos bastante atribulados, marcada pela ditadura de João Franco, pelo ultimato inglês, pelo regicídio, pela queda da monarquia e subsequente implantação da república – com a enorme instabilidade política que daí adveio, sendo avassaladora a frequência com que os governos republicanos caíam – seguindo-se a participação portuguesa na 1.ª Guerra Mundial e a instauração da ditadura militar, em 1928 – e tudo isto com uma crise económica em plano de fundo. Este difícil contexto gerou um aumento significativo das doações, na forma de dinheiro, imóveis, rendas e obrigações33, cuja entrega era fomentada pela precariedade da situação económica, pela instabilidade e incerteza política, assim como pela volubilidade do Estado e das decisões que tomava. Quem tinha recursos económicos acima da média poderia, assim, empregar os seus pertences no apoio aos desamparados pela situação do país, assegurando simultaneamente que os mesmos não teriam um destino desastroso alheio às suas vontades, ditado pela força de alguma decisão política justificada pela gravidade da conjuntura. A Misericórdia garantiria, pois, a correcta aplicação dos bens a favor dos mais necessitados. Depreendemos que muitos doadores terão visto aqui uma oportunidade para assegurar o bom estado dos seus túmulos, ao invés de incorrerem no risco de degradação, provocada pelo passar dos tempos, pela dispersão das responsabilidades de preservação devido a sucessivas partilhas hereditárias e, em última análise, pelo eventual esquecimento ou incapacidade económica dos herdeiros para manter o bom estado dos mausoléus, certificando-se, também, que o encargo da manutenção não se tornaria um fardo para os seus descendentes. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pela sua antiguidade e credibilidade, trazia (e continua a trazer) a

33 SERRÃO, Joaquim Veríssimo – op. cit., p.459 / CARDOSO, Rogério Seabra et all – Provedores da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa desde 1851, p.109

resposta a esta necessidade, garantindo a manutenção dos túmulos dos beneméritos, ad aeternum. A documentação coeva comprova, com efeito, que as doações neste período eram frequentes, tendo ou não a contrapartida da preservação de jazigos. A mais antiga doação de um túmulo que conseguimos localizar encontra-se no Livro 18 de Actas de Sessões da Meza, está datada de 11 de Dezembro de 1897 e diz respeito à aceitação do jazigo número 2461 do Cemitério do Alto de São João34. Sem dúvida alguma que houve doações anteriores, porque uma entrada do mesmo livro, escrita no ano seguinte, refere que a quantidade de jazigos era já grande o suficiente para que a Mesa entendesse que se justificava a fixação de uma quantia única de 45.000 reis anuais para a limpeza de todos os jazigos, tanto os pertencentes no momento como os que fossem recebidos no futuro35. Até então era atribuído um valor único por jazigo, sendo exemplo a mesma doação anteriormente referida. Pouco depois da sua aceitação, uma outra deliberação de Mesa decidiu a favor da limpeza anual do mesmo jazigo, importada em 6.000 reis36. O anterior Livro de Actas da Meza 1874-75 é completamente omisso no que respeita a aceitações de jazigos ou encargos com a sua manutenção, o que permite colocar o nascimento da colecção da SCML algures entre 1875 e 1897. No entanto, a definição de datas exactas poderá não ser assim tão simples, isto porque há várias deliberações desta época que registam a resolução de assuntos vários por parte da Mesa, sem se explicitar exactamente de que assuntos se tratam. Por outro lado, algumas deliberações referem a aceitação de encargos testamentários, sem se sinalizar concretamente quais são. É, portanto, possível que se tenham verificado aceitações de jazigos sem tal ter sido passado à escrita em deliberação de Mesa. Se assim for, localizar a altura concreta em que nasceu esta colecção de arte cemiterial poderá ser mais difícil do que o previsto aquando do início deste estudo e pressuporá a análise de outra documentação que não somente as deliberações de Mesa. Importa aqui citar por extenso uma significativa deliberação, que nos informa da dimensão do

Livro das actas (…) n.18, fól. 250f Livro das actas (…) n.18, fól. 263f 36 Livro das actas (…) n.18, fól. 261f 34 35

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conjunto há cerca de um século atrás. A 6 de Junho de 1912 é dito que “sendo já hoje em numero de 36 os jazigos nos dois cemiterios oriental e ocidental, cuja conservação e limpeza está a cargo da Misericordia, resolve a Administração que o atual encarregado tome a seu cargo o serviço no cemiterio oriental com o vencimento mensal de cinco mil reis e que se abone até á quantia mensal de nove mil reis para as despezas com a limpeza dos jazigos no cemitério ocidental”37. Como facilmente se depreende, a importância desta deliberação encontra-se no facto de quantificar em 36 o número de jazigos que a Instituição mantinha em 1912, sendo Provedor António Augusto Pereira de Miranda, cujo mandato é marcado por um aumento importante das doações, como vimos anteriormente. É interessante saber que este mesmo provedor legou em testamento dois jazigos à Misericórdia, por certo confiante nos bons cuidados garantidos pela Instituição que tinha dirigido. O seu legado testamentário foi recebido em 1922, acarretando a conservação dos jazigos 2317 e 2997 do Cemitério do Alto de São João38. Dentro deste sistema de doação e preservação que se vai paulatinamente constituindo, a norma era a entrega de um jazigo em conjunto com uma contrapartida que assegurasse as despesas de encargo. Há, porém, alguns casos que fogem à regra. Entre eles são os casos de doações não aceites, ou por a quantia doada não ser suficiente para as despesas39, ou por o jazigo se situar fora de Lisboa. Quer isto dizer que à época a Santa Casa não aceitava jazigos fora da capital, ao contrário do que sucede actualmente. Um outro interessante caso de excepção é o de um testamento que não doou um jazigo à SCML, mas exigiu sim que a Instituição o fizesse construir a suas expensas no Cemitério do Alto de São João. O encargo foi aceite e em 1913 foram apresentadas três propostas, por Cristiano Teixeira da Silva, Luís Filipe da Silva e José Duarte, tendo-se optado pela deste último40. Era frequente que os testadores impusessem condições ao uso futuro dos jazigos, estipulando, designadamente, quem é que teria direito de receber sepultura nos mesmos. É exemplo uma doação de 1923, na qual, como contrapartida pelos bens legados à Misericórdia, foi garantida a preservação do jazigo e que

só seriam tumuladas no local mais três pessoas indicadas pelo benemérito41. Naturalmente, a Misericórdia empregava um conjunto de responsáveis pela manutenção dos jazigos, estando documentadas intervenções de recuperação em vários anos, como por exemplo 1911, 1912 ou 1923. Em 1922 a sua remuneração foi aumentada, após pedido feito pelos próprios42, numa altura em que se verificam aumentos análogos a outros trabalhadores, como por exemplo às lavadeiras, canteiros, carpinteiros e encadernadores de talões da lotaria. Ao longo da primeira metade do século XX as entregas de jazigos à Instituição cresceram consideravelmente, levando a um aumento significativo da colecção. A própria atenção dada pelas deliberações às exigências dos testadores, enunciando-as devidamente, é sintoma da importância que estes legados tinham para a SCML na altura. No tempo do Provedor Dr. José da Silva Ramos (1926-39) esta doação constituía o mais numeroso tipo de legados, caracterizado por montantes relativamente reduzidos com a contrapartida do encargo da manutenção43. Em meados do século XX a maior parte das doações recebidas são também relativas a jazigos, com montantes pouco elevados que visavam essencialmente a conservação dos mesmos44, num período em que a entrega de sepulcros à Misericórdia era prática comum. Esta secular área de intervenção da Santa Casa, de um indubitável cariz histórico, ditou a incorporação de alguns jazigos que, pela sua importância, se destacam, que abordaremos seguidamente.

Livro das Deliberações (…) n.22, fól. 525 Livro das Deliberações (…) n.22, fól. 492 43 CARDOSO, Rogério Seabra et all – Provedores da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa desde 1851, p.144 44 CARDOSO, Rogério Seabra et all – op. cit., p.239 41

Livro das Deliberações (…) n.21, fól. 75f 38 Livro das Deliberações (…) n.22, fól. 438 39 Livro das Deliberações (…) n.22, fól. 600 40 Livro das Deliberações (…) n.21, fól. 108v 37

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O Jazigo dos Benfeitores da Misericórdia de Lisboa

Fig. 3 – Jazigo dos Benfeitores da Santa Casa; Adães Bermudes, 1903-1909. Cemitério do Alto do São João, Lisboa. © Cintra e Castro Caldas / SCML

O Jazigo dos Benfeitores constitui não só a obraprima do conjunto de património cemiterial afecto à Instituição, mas também – a bem dizer – uma obraprima da arte cemiterial portuguesa no seu todo. Destaca-se, no panorama da arquitectura funerária portuguesa de oitocentos e novecentos, pela sua monumentalidade, profusão decorativa e qualidade plástica, figurando dentro do grupo das principais obras concretizadas no género. Situado à entrada do Cemitério do Alto de São João, em frente ao Jazigo Valmor, o Jazigo dos Benfeitores avulta, também, pela sua dimensão e localização. Como já sabemos, o período do Provedor António Augusto Pereira de Miranda é marcado por um incremento bastante significativo no número de doações, incluindo muitas delas jazigos. Este aumento terá certamente contribuído para a decisão do Provedor no sentido de mandar erguer um mausoléu, tanto pela vontade de homenagear os beneméritos como pela própria existência de uma pequena colecção de sepulcros que se vinha materializando e aumentando, à

qual se acrescentaria mais um, de encomenda institucional. Paralelamente, há a salientar que o tempo de Pereira de Miranda foi um mandato de grande importância patrimonial para a História da Misericórdia de Lisboa. Foi nesta altura que se criou o Museu do Thesouro da Capela de São João Baptista, destinado a expor a ímpar colecção de arte italiana ainda in situ no agora Museu de São Roque, bem como a actual Sala de Extracções da Lotaria Nacional. Foi, também, com este Provedor que se aceitou o Sanatório de Sant’Ana (actual Hospital Ortopédico), projectado por Rosendo Carvalheira e legado à SCML pela fundadora D. Claudina Chamiço. Pereira de Miranda não se contentou com um comum jazigo de reduzida dimensão, feito por encomenda a uma oficina de canteiros, seguindo uma proposta de catálogo, como era comum à época e como os milhares que encontramos hoje nos cemitérios portugueses. Pretendeu-se, sim, não somente um jazigo mas, acima de tudo, um monumento, que se impõe a quem entra no Alto de São João, em homenagem perpétua à memória dos beneméritos da Santa Casa. As diligências para dar cumprimento a esta vontade encetaram-se em 1903, quando a SCML obteve gratuitamente o terreno por parte da Câmara Municipal de Lisboa e quando o projecto é entregue ao cuidado de Adães Bermudes. Trata-se do mesmo arquitecto responsável pelas obras na Sala e no Museu anteriormente referidos – iniciadas em 1901 e 1903, respectivamente – o que certamente contribuiu para que a incumbência lhe fosse confiada. A 30 de Setembro de 1904 a Mesa é informada da conclusão do projecto e do orçamento. É autorizado o arranque da obra e a despesa da verba de 8.941.000 reis, da qual se excluiu os valores referentes às despesas de estudo, fiscalização e administração dos trabalhos, que ficaram a cargo de Bermudes45. No ano seguinte, a 16 de Janeiro, aprova-se o pagamento de 404.728 reis ao arquitecto, pelo projecto, orçamento, memória descritiva e caderno de encargos46. Ainda em 1905, é autorizada a trasladação da esposa de um benemérito para o jazigo municipal, onde ficou a aguardar a conclusão do Jazigo dos Benfeitores47.

Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 14f Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 30f 47 Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 50f 45 46

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Às 14h do dia 11 de Abril de 1906 teve lugar a cerimónia de lançamento da primeira pedra, que contou com a presença dos vogais da Administração, do Reverendo Padre Tesoureiro e do director dos expostos, entre outros dirigentes48. Chegado e passado o prazo inicialmente previsto para a conclusão dos trabalhos – Fevereiro de 1908 – a SCML decide, então, pressionar o arquitecto. Uma deliberação de Mesa de 2 de Setembro de 1908 informa, com algum grau de indignação por parte da Administração, não só que a construção se encontrava “muito longe do seu termo”, mas também que estava já “esgotada a verba que o architecto julgou necessária para completo acabamento da obra”49. A Mesa pediu esclarecimentos a Bermudes várias vezes, que ao responder alertou para a necessidade de mais financiamento e mais tempo. Foi atribuído um valor suplementar e a Administração, inconformada com a situação, decide reter uma percentagem do mesmo até à conclusão do jazigo, por não ser “possivel confiar nos calculos e orçamentos do referido architecto”50. Protelou-se, também, o prazo de término da obra para 5 de Fevereiro do ano seguinte51. Em 21 de Janeiro de 1909 é exposto à Mesa que os trabalhos se aproximam do final e que serão concluídos dentro deste prazo52. Como tal, autorizam-se as despesas necessárias à execução dos vitrais e dos metais, designadamente dos enfeites em metal e do portão. Todavia, impõe-se um novo prolongamento e, no dia anterior ao prazo acordado, Bermudes pede mais 20 dias, “justificando este pedido na circunstancia de não poder ter havido trabalho em 25 dias santificados por assim o determinar o regulamento dos cemiterios, e ainda em que por rigoroso inverno (sic) não poude fazer-se trabalho durante alguns dias”53. Pela segunda vez, adia-se o prazo previsto para a conclusão da obra, desta feita para 25 de Fevereiro de 1909. A 11 de Março a Misericórdia é finalmente informada da conclusão do jazigo. Depreende-se que terão ficado esclarecidos os atritos entre a Administração e Bermudes – motivados por derrapagens orçamentais e incumprimentos do prazo – pois decide-se a favor de Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 88v Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 199f 50 Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 199v 51 Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 215f 52 Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 213f 53 Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 215f 48 49

uma encomenda adicional ao arquitecto, para a concepção de um altar para o mausoléu, destinado à celebração dos ofícios pelos defuntos. Para o mesmo altar, foram retirados um crucifixo e dois castiçais da igreja do Convento de São Pedro de Alcântara54. A 20 de Março foi assinado o auto de entrega do Jazigo dos Benfeitores à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa55 e a 12 de Junho teve lugar a cerimónia de inauguração, com a trasladação de três benfeitores e celebração de missa no mausoléu56. Finalmente, foi encomendada uma vedação e assentaram-se lápides no carneiro57. Ao longo deste processo foram vários os artistas que estiveram envolvidos, para além de Adães Bermudes. João Machado esculpiu o relevo de Nossa Senhora da Misericórdia, localizado sobre a entrada do sepulcro, no qual a Virgem do Manto protege anjos segurando alfaias litúrgicas. Vários escultores saídos da sua oficina e ligados à Escola Livre das Artes do Desenho tomaram a seu cargo os restantes trabalhos de cantaria, sob direcção de António Joaquim Ferreira. Cláudio Martins executou os vitrais com o brasão da Santa Casa, António Santos a porta em ferro e João da Cruz os trabalhos de alvenaria58.

Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 219v e 220f Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 220f 56 Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 228f 57 Livro das Deliberações (…) n.20, fól. 228f 58 ANACLETO, Regina – O Neomanuelino ou a Reinvenção da Arquitectura dos Descobrimentos, p.225 54 55

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Fig. 4 – Nossa Senhora da Misericórdia (Jazigo dos Benfeitores); João Machado, 1906-1909. © Cintra e Castro Caldas / SCML

Fig. 5 – Vitral com o brasão da Santa Casa (Jazigo dos Benfeitores); Cláudio Martins, 1906-1909. © Cintra e Castro Caldas / SCML

O periódico O Occidente esclarece-nos que “o architecto adoptou o estylo Manoelino, que se usava em Portugal por occassião da fundação das Misericordias. Esse estylo é empregado na sua primeira phase, que se não é a mais caracteristicamente nacional, é sem duvida a mais logica, correcta e pura sob o ponto de vista architectonico”59. No âmbito dos revivalismos que 59

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Jazigo dos Benfeitores da Misericórdia. O Occidente,

surgem em Portugal com o Romantismo, o neomanuelino é o gosto neomedieval que assume um papel de maior relevo, precisamente devido à razão explicitada na citação anterior: era um gosto com um teor patriótico. Conforme observa Regina Anacleto, “intimamente relacionada com a problemática do romantismo desenvolveu-se na Europa, durante o século XIX, a concepção de nacionalismo. Dentro deste contexto surgiram, em Portugal, propostas de teor patriótico relacionadas com a ratificação da nossa identidade cultural”60. Como se pode observar, todo o conjunto é envolvido por elementos da decoração revivalista inspirada na gramática manuelina, como cordas, esferas armilares, cruzes de Cristo e efígies, associados pela cultura de oitocentos à empresa das descobertas, ainda que o Mausoléu dos Benfeitores seja do início de novecentos. Pese embora a sua datação, há a reter que se trata de uma obra de arte plenamente imbuída do espírito do século XIX. A arte neomanuelina reportava, pois, ao momento áureo por excelência do passado pátrio: o da gesta dos Descobrimentos e da Expansão Marítima. Por essa razão, já tinha sido a opção estética tomada para outros túmulos de personagens de grande importância histórica e cultural, designadamente Vasco da Gama, Luís de Camões ou Alexandre Herculano. Dada a antiguidade da Misericórdia de Lisboa e o facto de a sua fundação ser coeva da arte manuelina, foi igualmente a opção tomada neste caso. Note-se que um jazigo é construído não só para perpetuar uma memória do passado, mas também para transmitir uma imagem concreta a quem o contemplará no futuro. Em grande medida, um jazigo é construído também para os vivos. Neste caso, a estética neomanuelina remete para memória histórica da Misericórdia de Lisboa enquanto instituição fundada num período áureo da História de Portugal, dignificando não só a memória dos seus benfeitores – dos que estão sepultados no jazigo e dos que não o estão – como também – e sobretudo – a memória da Instituição. É, em suma, um jazigo para os benfeitores mas também um monumento à memória da própria Santa Casa. É um jazigo-monumento.

60 ANACLETO, Regina – Arquitectura neomedieval portuguesa, p.8

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Fig. 6 – Projecto para o Jazigo dos Benfeitores da Santa Casa; Adães Bermudes. In O Occidente, 1905.

É interessante notar que, por razões que não conseguimos apurar, houve várias alterações ao projecto inicial de Bermudes, discerníveis através da comparação do mesmo com o jazigo construído. Apesar de a obra ter sido dada por concluída em 1909, o mais certo é nunca o ter sido completamente. Note-se que, no projecto publicado no periódico O Occidente61, estão previstas esculturas para as mísulas que se vêem nas pilastras, como aliás seria de esperar. Este periódico, citando A Construcção Moderna, informa que “nos contrafortes da frente e dos lados correm columnellos com medalhões, formando peanhas a diversos grupos que representam as «obras de misericordia», abrigando-se em nichos recobertos de baldaquinos”62. Com efeito, é um programa iconográfico expectável nesta peça. Apesar de constarem os baldaquinos que as deveriam coroar, as peças escultóricas não existem, estando vazio o espaço a elas destinado. No mesmo projecto é visível que a cabeceira, de cinco panos, deveria ter uma janela por pano, ao passo que o jazigo propriamente dito apenas apresenta três janelas. Uma outra alteração, da maior importância, prendese com a própria função do jazigo. A mesma fonte diznos que “o projecto do Sr. Adães Bermudes, compõe-se

de uma capella destinada aos exercicios religiosos e de uma crypta ou carneiro podendo conter cerca de 40 sarcophagos”63, capacidade que é visível no mesmo projecto. Observando o interior do jazigo é possível constatar que tem espaço não para 40, mas sim para 15 sarcófagos, o que revela uma diminuição bastante significativa na capacidade do jazigo e consequentemente daquela que é a sua função primordial. As razões para este incumprimento não são conhecidas, não tendo sido possível esclarecê-las nas breves pesquisas que antecederam a redação deste artigo, mas esta drástica diminuição poderá eventualmente apontar no sentido do carácter essencialmente monumental deste mausoléu. São sobejamente conhecidos casos de jazigos com dimensões muito menores e capacidade maior e, ao que parece, a principal preocupação com esta peça não terá sido a sua lotação, mas sim o grande aparato do conjunto escultórico-arquitectónico. Para a sua concepção, Bermudes ter-se-á guiado pela mesma traça aplicada num outro jazigo, situado em Coimbra, no Cemitério da Conchada. Falamos do Jazigo dos Condes do Ameal64, de gosto neogótico, 63

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Jazigo dos Benfeitores da Misericórdia. O Occidente, Jazigo dos Benfeitores da Misericórdia. O Occidente,

Jazigo dos Benfeitores da Misericórdia. O Occidente,

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64 Aproveitamos para expressar o nosso mais reconhecido agradecimento à fotógrafa Gisela Monteiro, por nos ter disponibilizado a fotografia do referido jazigo, que em

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traçado em 1893 pelo escultor Costa Mota Tio ou por Silva Pinto, de acordo com Regina Anacleto65.

Com afinidades tão claras entre ambos os sepulcros, saltam à vista duas hipóteses: ou Bermudes foi beber directamente ao traçado deste jazigo, feito 10 anos antes, ou ambos os mausoléus seguem uma mesma fonte de inspiração, eventualmente a imagem de algum jazigo num recueil que à altura se encontrasse em circulação. Enfim, o Jazigo dos Benfeitores é a principal obra de arte cemiterial que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem a responsabilidade de ter à sua guarda, importância acrescida do facto de, dentro da vasta colecção da Instituição, ser um caso excepcional de encomenda própria. Cumpre funções funerárias mas é sobretudo uma obra de carácter monumental, destinada a “bem honrar a memoria d’aquelles que a contemplam com seus legados em beneficio dos pobres”66.

O Jazigo Mantero

Fig. 7 – Jazigo dos Condes do Ameal; Costa Mota Tio ou Silva Pinto, 1893. Cemitério da Conchada, Coimbra. © Gisela Monteiro

Como se pode observar, ambos os jazigos apresentam uma estrutura triangular, coroada por um coruchéu decorado com cogulhos, de feição piramidal e dimensões generosas, que em ambos os casos acentua a verticalidade dos monumentos. Os coruchéus, nos dois casos, são rodeados por pináculos que, em escalonamento, vão diminuindo de tamanho à medida que se aproximam do solo. Ao centro, na zona correspondente à base do coruchéu, está uma platibanda. Os ângulos dos panos que constituem as paredes são reforçados por pilastras que, no caso das que delimitam o pano com a porta de acesso, apresentam mísulas e os respectivos baldaquinos que, curiosamente, no Jazigo dos Condes do Ameal também não apresentam escultura. muito contribui para ilustrar as similitudes entre ambas as obras. 65 ANACLETO, Regina – O Neomanuelino ou a Reinvenção da Arquitectura dos Descobrimentos, p.199

Fig. 8 – Jazigo Mantero; Nicola Bigaglia, 1905. Cemitério dos Prazeres, Lisboa. © Cintra e Castro Caldas / SCML

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Jazigo dos Benfeitores da Misericórdia. O Occidente,

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Da autoria do arquitecto Nicola Bigaglia, o Jazigo Mantero é uma obra de arte de grande qualidade, em gosto neobizantino. Foi construído em 1905, por vontade de Francisco Mantero y Belard, tendo sido confiado à SCML em 1975 pelo filho, Enrique Mantero Belard, em cumprimento da sua vontade testamentária, após ter falecido no ano anterior. Este benemérito legou 70% da sua vasta fortuna à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com a contrapartida de vários encargos, incluindo “conservar e tratar convenientemente o jazigo ou jazigos onde se encontrem sepultados minha mulher (…) e [onde] eu próprio venha a sê-lo”67. Ao todo, foram confiados à Instituição três jazigos, incluindo o Jazigo Verdades de Faria, pertencente à família da esposa, Gertrudes Eduarda Verdades de Faria, onde o benemérito acabou por preferir ser sepultado, para ficar junto da mulher. A Santa Casa assumiu, também, a Residência Faria Mantero – lar de terceira idade destinado a cidadãos de reconhecido valor cultural – após recusa da destinatária inicial, a Fundação Calouste Gulbenkian. De referir que o Jazigo Mantero está aos cuidados da SCML em regime de compropriedade, que apenas detém 20% do mesmo. Situado no Cemitério dos Prazeres, o Jazigo Mantero destaca-se dos que o rodeiam pela sua qualidade e pela imponência do volume pétreo de tons amarelados que constitui, marcando uma certa verticalidade. O acesso é feito por um portão aposto a uma pequena escadaria, delimitado por duas colunas. Originalmente, Bigaglia tinha previsto dois anjos para superfície murária constituída pelos dois panos que ladeiam estas colunas, agora nus. No esquerdo, são visíveis as marcas de três parafusos, quiçá colocados numa altura em que se pressupunha ainda cumprir este partido decorativo. O portão é sobrepujado por um tímpano em mosaico, apresentando o Cristo Pantokrator. Com efeito, a arte musiva não surge com frequência na arquitectura cemiterial, sendo de destacar o Jazigo Mantero não só pelo facto de a ter como também pela respectiva qualidade. Em linha com a arte de matriz bizantina, apresenta um plano de fundo dourado com Cristo glorificado ao centro. O peso dos dois remates em cada canto superior da frontaria contribui para acentuar a densidade mural do mausoléu e para a imponência geral do mesmo. O interior é constituído por dois pisos, como é habitual. O superior tem espaço para 8 caixões de corpo 67 Testamento de Enrique Mantero Belard, in GOMES, Ana – Enrique Mantero Belard, p.97 e segs

inteiro, 4 de cada lado, dispostos nos eixos centrais, mais 16 ossários individuais, 4 em cada canto. Apresenta um altar, também ele com mosaico, desenhando um crucifixo. O tecto, totalmente pintado a azul, é pontuado por estrelas douradas. No chão uma pequena laje amovível dá acesso à cripta. Esta dispõe de 24 gavetões para caixões, 12 de cada lado.

O Jazigo Pinto Leitão

Fig. 9 – Jazigo Pinto Leitão; Ricardo de Araújo Lobo, 1917. Cemitério dos Prazeres, Lisboa. © Cintra e Castro Caldas / SCML

O Jazigo Pinto Leitão foi encomendado em 1917 pela viúva de José Pinto Leitão, Lucie Pinto Leitão, para panteão familiar. Neste ano foi apresentado um primeiro projecto à Câmara Municipal de Lisboa, que meses depois foi preterido a favor de outro, da mão do arquitecto Ricardo de Araújo Lobo. Em 1921 a viúva propõe-se a doar o jazigo à SCML, conjuntamente com 3 contos para custear encargos de manutenção68. É um jazigo de capela, neoclássico. A frontaria evoca uma memória histórica clara: trata-se de um

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Livro das Deliberações (…) n.22, fól. 332

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pequeno templo da Antiguidade Clássica, com base, colunas, friso e frontão constituindo um pequeno pórtico. O frontão apresenta uma ampulheta alada, iconografia comum na arte cemiterial. A leitura é evidente e imediata: alude à brevidade da vida. Memento mori, tempus fugit, ou seja, lembra-te que hás-de morrer e o tempo voa! À volta do jazigo há mais elementos comuns na iconografia da morte, tais como fogaréus e véus drapeados. Apresenta uma estrutura incomum na maioria dos jazigos portugueses, com por exemplo a dos que o rodeiam no Cemitério dos Prazeres, onde se localiza. Enquanto que quase todos têm dois pisos – o térreo mais a cripta, ambos com gavetões para colocação de urnas – o Jazigo Pinto Leitão é desprovido de quaisquer gavetões no piso superior, estando as prateleiras destinadas aos caixões circunscritas à cripta, no piso inferior. O piso superior é uma capela constituída pelo espaço necessário à celebração da liturgia dos defuntos, incluindo um altar com um pequeno sacrário. O partido estilístico é de interesse. A arquitectura neoclássica começou a desenvolver-se a partir de meados do século XVIII, tendo, no XIX, sido um dos gostos com maior expressão nos cemitérios. Efectivamente, verifica-se uma permanência dos estilos historicistas na arte cemiterial, sobretudo neomedievais e neoclássicos, que basicamente se prolonga até aos nossos dias. Tal continuidade é devida a uma lógica de cariz retórico e metafórico, que se prende com a associação destes gostos à perpetuação de uma memória antiga e de grande dignidade histórica, e como tal de grande adequação ao que é por excelência um local de celebração da memória, como é o caso de um cemitério.

A Misericórdia de Lisboa e os jazigos hoje Actualmente, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é a responsável por 1283 jazigos, pertencentes à Instituição, a privados (mas sobre os quais a SCML tem a responsabilidade da manutenção), à Câmara Municipal de Lisboa, ao Estado ou ainda em regime de compropriedade. A Misericórdia continua a aceitar doações de jazigos, tendo recebido 4 desde 2010 a esta parte. É, também, a SCML, através da Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa, que assegura o sepultamento e os últimos respeitos àqueles que

morrem no anonimato, cujas famílias nunca chegam a reclamar os corpos. A entrega dos túmulos à Instituição é feita mediante a contrapartida de um valor pré-definido, variável consoante a dimensão do sepulcro, de maneira a assegurar a sustentabilidade deste sistema de preservação da arte cemiterial nacional, vinculado à dupla responsabilidade da conservação patrimonial e do zelo pela dignidade das últimas moradas daqueles que em vida contribuíram a favor da Instituição. Manter o funcionamento deste sistema é uma das missões do Departamento de Gestão Imobiliária e Património da SCML, que anualmente desenvolve acções de recuperação e limpeza nos jazigos ao cuidado da Santa Casa. A mais recente fase de trabalhos, que teve lugar neste ano que vai correndo de 2016, interveio sobre 213 jazigos69. Esta necessidade de preservação, à qual a SCML dá resposta desde há mais de um século, não é, obviamente, novidade alguma. Naturalmente, a questão da boa manutenção de um túmulo após a morte do encomendante é um problema antiquíssimo, ao qual as sociedades foram dando diferentes respostas, variando com a época e com a zona do mundo em causa. Em Portugal, até ao século XIX, as famílias e confrarias instituíam capelas dentro dos mosteiros e conventos, que serviriam um duplo propósito, ritual e fúnebre, de relação intrínseca. A ordem religiosa em causa (ou o clero secular, se fosse o caso) ficaria responsável pela capela e, semelhantemente ao que se verifica hoje com a Santa Casa, os instituidores agraciariam o templo com doações. Com efeito, conforme sintetiza Paula André, “a criação de capela surgia de um contrato bilateral entre o fundador e o capelão sobre a disponibilização, por parte do fundador, de bens de raiz, não só para assegurar a aquisição desse espaço, a sua construção e decoração, como também para a sua manutenção. O aspecto bilateral deste contrato deve ser reforçado uma vez que ambas as partes saíam beneficiadas. O fundador garantia não só a perpetuação como também a contínua celebração “pública” do seu nome (família, linhagem) em pleno palco sagrado, e o clero assegurava a entrada

69 Aproveitamos para agradecer ao Eng. Pedro France e à Dr.ª Carla Antas de Almeida, do DGIP, pelos esclarecimentos prestados com vista à redacção deste artigo.

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de novas parcelas patrimoniais”70. Resumindo, a capela funerária ficaria ao cuidado da Igreja, que asseguraria algum nível de manutenção, e o instituidor saberia que quando morresse o seu túmulo ficaria nas mãos de alguém que dava garantias ad aeternum. No século XIX, num espaço relativamente curto de tempo, com a extinção das ordens religiosas, a criação de cemitérios e a proibição dos enterramentos nos espaços religiosos, impôs-se uma alteração deste paradigma, que levou à transplantação de um modelo anterior para um espaço novo. Um jazigo é, na sua essência, uma capela com uma cripta para se depositarem os mortos71, semelhantemente às que se foram construídas durante séculos nas igrejas e nos conventos. Com a perda do monopólio da morte por parte da Igreja, o clero vê-se impossibilitado de continuar a assegurar o cuidado dos túmulos e muitas famílias com posses vão, então, procurar a Misericórdia de Lisboa que, com uma História mais antiga que a de certas ordens religiosas, garantia a preservação dos sepulcros em perpetuidade. Apesar de ainda não ter sido possível localizar documentação que o comprove ou refute com segurança, parece-nos que foi tacitamente que a Misericórdia de Lisboa aceitou este desígnio, surgido devido a doações sucessivas por parte de beneméritos interessados em contribuir para o bem comum e em assegurar o bom estado das suas últimas moradas. De uma certa maneira, o que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa faz é uma continuidade desta solução já empregue no passado. Fica com o encargo dos túmulos, mediante a contrapartida de uma doação, que reverterá não só a favor da Instituição mas, em última análise, a favor de toda sociedade, pois servirá também em prol de todos aqueles que ao longo dos tempos procuraram e continuam a procurar a ajuda da Santa Casa.

ANDRÉ, Paula – op. cit., p.74 Ainda que em Portugal a norma seja que no espaço superior, da “capela”, haja também espaço para urnas. 70 71

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