O Patrimônio Cultural como Objeto de Lei: Legalização, Constituinte, Revolução. IN: CAMPOS, Y.D.S. (org.) \"Patrimônio Cultural Plural\". Belo Horizonte: Arraes Editores, 2015.

July 4, 2017 | Autor: Yussef Campos | Categoria: Revolução Francesa, Patrimônio Cultural, Legislação
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Capítulo 3 O Patrimônio Cultural como Objeto de Lei: Legalização, Constituinte, Revolução Yussef Daibert Salomão de Campos1 As leis sempre se adaptam às paixões e aos preconceitos do legislador. Ora passam por eles e os tingem; ora permanecem presas e se incorporam neles. (Montesquieu, 1689-1755. Do espírito das leis).

Montesquieu, na primeira metade do século XVIII, preceituou que as leis traziam, em si, intenção. Veículo de posições políticas, a lei é fruto de seu meio e de seu contexto. Antes mesmo de ser objeto de apreciação de seus intérpretes, ela é um objeto sobre o qual se debruçam homens. Não é resultado de geração espontânea. É decorrência de um processo legislativo que lhe atribuirá contorno, existência, condição de validade, expectativa de eficácia e, principalmente, conteúdo. Na figura do legislador repousa o espírito da lei; na figura do corpo legiferante está a matéria a ser dissecada para que se compreenda a substância legal. Tal qual o defunto prestes a receber a notícia de sua causa mortis, a lei, pronta e acabada, vigente ou não, só conhecerá seu íntimo se for perscrutada sua intimidade forjadora, na intenção daqueles que a criaram. Este é o intento desse trabalho, que, antes de sua autópsia na carne constituinte, exige um primeiro passo. Começar uma investigação pela gênese2 é certamente um clichê. Determinar origens, inícios, começos, é algo que suscita no pesquisador um meio mais confortável 1



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Doutorando em História (Universidade Federal de Juiz de Fora), mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas-RS. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, é especialista em Gestão do Patrimônio Cultural (Granbery e PERMEAR, Juiz de Fora-MG). Durante o mestrado participou, como bolsista CAPES, do projeto “Perspectivas Teóricas sobre el Patrimonio Material e Inmaterial en Sudamerica (Brasil y Argentina)”, na “Universidad de Buenos Aires (UBA)”. É pesquisador do LAPA (Laboratório de Patrimônios Culturais/UFJF). Não pretendo escrever sobre a gênese do patrimônio ou uma história da sua preservação, e sim determinar um ponto de partida para o objeto desse estudo. Para uma análise mais detida: CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 3. Ed. – São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2006; POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente. Séculos XVIII – XXI. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. Como exemplo: “Se aceitarmos que o nascimento da história é ligado ao ‘domínio do antiquado sobre o historiador’, tem-se aqui desenhada a relação progressiva entre os objetos do cotidiano, caros ao antiquário do Antigo Regime - ou as obras de arte que ocupam o expert -, e a história tal qual ela foi construída enquanto literatura acadêmica. Durante o século XVIII, o desenvolvimento da ciência dos antiquários ou colecionadores fortaleceu as ligações entre o patriotismo e as pesquisas artísticas ou arqueológicas: os dife-

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de iniciar uma narrativa. Mas essa não é a prima causa desse item. Mesmo porque “o sentido das histórias se liga a expectativas de futuro3 que vão além da experiência do passado”, o que pode contrapor, em certa medida, o modelo tradicional “do pensamento histórico, o qual argumenta a partir de inícios e origens4”. O que realmente provoca desbravar a trajetória nesse texto, dessa forma, é o impacto que a Revolução Francesa profere na formação dos Estados modernos, em seus respectivos processos de constitucionalização e na formatação do corpo legislativo a formar seus quadros jurídicos, fundamentalmente no que toca aos primeiros indícios legais de proteção do patrimônio da França dos setecentos. Quiçá “pela transferência do divino à história nacional com a reviravolta da Revolução francesa5”. E, sobretudo, quando o monumento deixa de ser somente uma obra de arte para se transformar em um monumento histórico, com acepção histórica. Podemos tomar emprestada a definição de Pomian, transcrita por Hartog: “os objetos do patrimônio são ‘semióforos’: ‘objetos visíveis investidos de significação’6”. A acepção racionalista está presente nessa transformação da atribuição de valor sobre a obra e o monumento. Para Castro, “a razão e o progresso – elementos fundamentais do Iluminismo – contribuem para as transformações políticas e sociais entre o fim do século XVIII e o início do século XIX7”. Acresce que: Tal movimento, em sua crítica ao Absolutismo, à Igreja Católica e à estrutura do Antigo Regime, atuou como elemento impulsionador do capitalismo e da sociedade moderna. [...]. Nesse contexto, a Revolução Francesa modificou os modos como a sociedade europeia se relacionava com o passado, provocando, assim, “o despertar da noção de ruptura entre o passado e o presente e produzindo um sentimento de proteção a edifícios e ambientes históricos em vários estados europeus”. Martínez Justicia ressalta que o novo termo “monumento histórico” – que adquire com a Revolução Francesa seu significado jurídico – exemplifica a tomada de consciência defendida por Alois Riegl quando ele estabelece a distinção entre “monumento” e “monumento

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rentes estados italianos se comprometeram a proteger seus tesouros das vicissitudes do mercado, numa tomada de consciência posteriormente julgada como se fundada pela Itália unida. Em outros locais, o mito céltico, ou druida, informa o olhar sobre as pedras levantadas e os cultos primitivos, às vezes conjugando-os às tentativas de decifrar as práticas populares: este é o negócio da Academia Céltica instalada no museu dos monumentos franceses sob o Primeiro Império, em que Michelet fez do incipit sua vocação, identificando-o a uma ressurreição do passado. A partir deste episódio emblemático, a museografia da história foi definida pela capacidade de trazer de volta, de maneira fiel, o passado para o presente - e, simultaneamente, de garantir a verdade de uma narrativa inteligível. Logo após a Revolução Francesa, a questão do patrimônio tornou-se crucial. A década de 1790 e, sobretudo, a seguinte trazem, de fato, um conjunto de destruições ‘vândalas’ como efeito indireto dos confiscos e dos realocamentos de propriedades, da liquidação de um bom número de heranças anteriormente mantidas pela Igreja ou pelas famílias aristocráticas. Elas provocam uma série de apreensões e anexações de obras de arte antigas e modernas, em favor do Louvre e dos museus da província francesa, graças ao Tratado de Tolentino e a uma mudança geral no mercado de arte, que tiveram peso considerável e duradouro sobre a fisionomia das coleções públicas e privadas. A restauração do Antigo Regime em todo o continente após a queda de Napoleão não assegurou um retorno à situação anterior, em razão das muitas transformações ocorridas no tecido social: destruir o patrimônio passou a ser uma questão ideológica na luta entre a tradição e o progresso” (POULOT, 2011, p.473-474). “A frase: quando o futuro frustra, o passado reconforta parece que consegue nos dar alguma pista e a dimensão dos interesses da cultura historiográfica atual” (DIEHL, 2002, p.15). RÜSEN, 2011, p.259. DETIENNE, 2013, p.89. HARTOG, 2013, p.197. CASTRO, 2012, p.75.

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histórico”. Tal valorização propõe a exigência de respeito e de conservação do monumento como valor formal e histórico e, portanto, essa nova conscientização possibilitou a reflexão crítica, o desenvolvimento e consolidação da conservação e restauração do patrimônio cultural8.

Certamente não reside em 1789 o berço da conservação de edificações e bens materiais9. Aristóteles, em sua Política, já indicava o imperativo de proteção aos bens, advindo das funções e ministérios públicos. Para o filósofo grego, deve o bom governante “conservar e adornar a cidade, como se fosse o seu curador, e não o tirano10”. E aduz: [...] uma magistratura suprema de que dependam todas as outras é, enfim, necessária. Ela tem ao mesmo tempo o direito ordinário de impor os impostos e de inspecionar a sua percepção. Em toda parte onde o povo é senhor, ela preside às Assembleias (pois é preciso que aqueles que as convocam tenham nelas a principal autoridade). Em alguns lugares, ela é chamada a Probulia, ou Consulta, porque prepara as deliberações. Nas democracias, em que a massa decide soberanamente, dão-lhe o nome de senado. Após estas diversas espécies de magistraturas políticas, vem um outro tipo de ministério público, relativo ao culto divino, que abrange, depois do sacerdócio, a intendência das coisas sagradas, o trabalho de conservar os templos e os edifícios subsistentes e de reformar os que estão em ruínas; numa palavra, tudo o que diz respeito à religião11 (grifei).

Tampouco está no século XVIII o primeiro registro de legislação devotada à preservação. “Em 408, um primeiro decreto promoveu [em Roma] o uso secular dos templos a serem protegidos como ‘monumentos públicos’ [...] 12”. “O fato de que a palavra patrimônio venha do latim patrimonium, de que os romanos tenham sido grandes amantes de antiguidades, incialmente gregas, é suficiente para transportar ou repatriar a noção de patrimônio ao mundo antigo?” questiona Hartog13. Continua: “Monumentos, estátuas quadros foram certamente restaurados nas pólis gregas, em Roma ou na Itália. Assim como existiram coleções e colecionadores famosos”, aponta, “como os Átidas, em Pérgamo, ou Ático, sem esquecer o corrupto Verres, em Roma14”. A resposta será determinada na condição de se adjetivar o monumento como histórico. Ferreira, assim como Hartog, sugere um corpus legal predecessor ao francês. Diz que “quando emergiu na modernidade, o patrimônio cultural foi, sobretudo, criação das instituições jurídicas do Estado”. “Para parafrasear o antropólogo 8 9



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Idem, p.75-76. Muitos são os estudos que afirmam que essa categoria [de pensamento, o patrimônio] constitui-se em fins do século XVIII, juntamente com os processos de formação dos Estados nacionais. O que não é incorreto [enquanto política pública de Estado; enquanto instrumento jurídico]. Omite-se no entanto o seu caráter milenar. Ela não é simplesmente uma invenção moderna. Está presente no mundo clássico, na idade média e a modernidade ocidental apenas impõe os contornos semânticos específicos que ela veio assumir. Podemos dizer que ela também se faz presente nas chamadas sociedades tribais (GONÇALVES, 2007, p.109). s/d, s/p. Idem. CHOAY, 2011, p.61. HARTOG, 2013, p.201. Idem, Ibidem.

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Victor Turner”, cita, o “patrimônio cultural surgiu como momento de passagem: ao desintegrar as comunidades tradicionais, o Estado moderno inventou o patrimônio cultural, proscrevendo ou assenhorando-se de símbolos antigos15”. Define: Os métodos sangrentos de criação dos Estados modernos, a partir do Renascimento, acompanharam-se da definição do bom gosto, da eleição dos estilos transmissíveis: o reconhecimento de um cânone de mestres e a delimitação de um corpus artístico a preservar-se. Instituíram-se, sobretudo nos nascentes Estados da península itálica, legislações de proteção e conservação do patrimônio. Uma das mais célebres é o decreto de 1601, por meio do qual o grão-duque Ferdinando de Médici listou dezoito pintores do passado cujas obras não seriam vendidas no exterior16.

Adverte, porém, que o século XVIII propicia uma radicalização do que chama de “virada epistemológica”, ao buscar no passado a trajetória de identidade que nasce das organizações políticas do presente. Numa tentativa de estabelecer uma “razão jurídica sobre o passado”, “o que chamamos de patrimônio cultural” é trazido à baila numa colaboração ao processo de assimilação das “filiações identitárias17”. Essa “virada epistemológica” radicalizou-se no século XVIII, o “século das revoluções”: a atualidade é interrogada filtrando-se o passado, selecionando-se porções dele para circunscrever a singularidade de uma trajetória histórica, um “nós” que remeteria a uma configuração cultural característica e singular. Deu-se azo à noção de cidadania como inextricavelmente atada à história, ao território e à língua. Explico-me: desde o século XVIII, num processo que só fez acentuar-se progressivamente a partir do século XIX, o indivíduo, o cidadão do mundo liberal, é impensável fora da rede social que o liga às tradições nacionais declinadas pelo Estado. Daí a proliferação de leis que asseguram destino específico aos bens históricos, sejam objetos arqueológicos em fragmentos ou monumentos: eles são restaurados, preservados, exibidos nos museus e nas praças públicas18.

Para ele, “a legislação patrimonial – como de praxe na constituição histórica moderna da jurisprudência – apoia-se, para tanto, num conjunto de expertises e ciências”, e enumera “convocam-se museólogos, antropólogos, arqueólogos, historiadores, conservadores, engenheiros e arquitetos para assinar o veredicto patrimonial19”. Adita: Em nossas sociedades, as práticas judiciárias, articulando-se a várias ciências, instituíram o inquérito e o exame como forma de chegar-se à verdade e fundar uma técnica de gestão, uma modalidade de administração estatal da economia e da política. O que chamamos de patrimônio cultural não escapou a esses procedimentos do exame e do inquérito: as ciências são chamadas para fundar uma razão jurídica sobre o passado, 15

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FERREIRA, 2013, p.XVIII-XIX. Idem, Ibidem. Idem, Ibidem. FERREIRA, 2013, p.XVIII-XIX. Idem, Ibidem.

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administrar o legado cultural e dizer aos indivíduos quais são, e quais não são, suas filiações identitárias. Em nossas sociedades, há um estatuto jurídico das identidades sociais, para cujo funcionamento ativa-se a patrimonialização do passado. Para dizê-lo com um trocadilho: desde o século XVIII, nenhum governo governa sem patrimônio cultural20 (grifei).

Com o distanciamento, a mudança do relacionamento com o passado, as acepções de outros valores para a obra de arte, o sentimento de herança da nação francesa, em resumo, a inauguração de uma nova temporalidade vai transformar o monumento em monumento histórico e, a partir disso, o Estado vai se imbuir da tarefa de preservá-lo dentro de suas conveniências. Hartog completa: Existiu também toda uma legislação imperial sobre a proteção dos centros urbanos. Poderíamos enfim lembrar a biblioteca de Alexandria, mesmo que seu objetivo fosse mais enciclopédico do que patrimonial: reunir todos os livros gregos e bárbaros para produzir saber sore o saber, saber melhor e mais. Mas o que falta é a categoria de monumento histórico, que pressupõe um distanciamento. Chega um momento em que um monumento pode ser olhado além do que era ou foi durante muito tempo: ele volta a ser visível de outra maneira, um semióforo portador justamente de ‘valores artísticos e históricos’21 (grifei).

É, portanto, com a Revolução Francesa que, “pela primeira vez, a gestão das ‘antiguidades’ recebe uma delimitação jurídica, administrativa e territorial fundada sobre um trabalho científico e sistemático [...] 22”, pois é, durante ela que o monumento se torna histórico. Encontrar um marco de origem da gestão pública do patrimônio cultural nos leva além da indicação de uma data de nascimento: permite-nos apreendê-lo como um objeto de políticas públicas previstas na legislação maior de um ordenamento jurídico, a sua constituição. A dimensão conflitiva em torno não só de um processo constituinte, mas como da formação de uma identidade nacional e da eleição entre a preservação e destruição de um bem, determina, também na Revolução de 1789, a desordem inerente da não unanimidade do patrimônio. Com o advento de um Estado centralizador (do poderio econômico e financeiro), esses artifícios surgem como meio de concretização de vontades e afirmações sobrevindas de deliberações políticas. Nesse sentido: O Estado se torna o centro poderoso da administração nacional, a grande empresa de racionalização econômica, financeira e estatística. “Pertence quase todo ao domínio do voluntário, do deliberado”: é o arco da nova aliança entre a razão (o Logos) e o fazer (as práticas que fazem a história). O século XVIII é “por excelência o século da política, logo, o século do Estado23”. 20

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Idem, Ibidem. HARTOG, 2013, p.201-202. CHOAY, 2011, p.89. CERTEAU, 1982, p. 173-174.

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Para Bauman: O século XVIII foi um século de administração, organização, gestão; um século em que os costumes tornaram-se objetos de legislação, e um modo de vida foi questionada como cultura; um século que refez drasticamente as antigas fronteiras entre privado e público e aumentou o tamanho deste último a um ritmo nunca antes visto; um século que necessitava de conhecimentos técnicos, competências, a experiência para fazer o que antes tinha sido feito prática e naturalmente; um século em que o poder necessitava e buscava conhecimento24 25.

Não só por ser a revolução ascendente26, mas também por ser aquela que primeiro cotejou, no corpo jurídico revolucionário, os primeiros corpos jurídicos voltados à preservação de bens históricos, além de ter buscado a construção de uma identidade nacional francesa, é que a Revolução Francesa aqui surge como separador de águas nas políticas públicas de preservação do patrimônio. Para Tocqueville, pensador francês do século XIX, que fez da Revolução Francesa um objeto de análise: A Revolução não aconteceu por causa dessa prosperidade [da antiga monarquia]; mas o espírito que devia produzir a Revolução – esse espírito ativo, inquieto, inteligente, inovador, ambicioso, esse espírito democrático das sociedades novas – começava a animar todas as coisas, e, antes de convulsionar momentaneamente a sociedade, bastava já para agitá-la e para desenvolvê-la27.

Para Hobsbawm, a “França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radical-democrática para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo28”. Não só isso: A França forneceu os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para a maioria dos países. A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido às ideias europeias inicialmente através da influência francesa. Esta foi a obra da Revolução Francesa29.

Afirma Anderson que “nenhuma revolução posterior teve essa sublime confiança na novidade, mesmo porque a Revolução Francesa sempre tem sido vista como uma ancestral30”. Assim, essa visão encontra-se consolidada pelo menos desde Tocqueville. 24 25

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BAUMAN, 1997, p.41-42. Todos os textos em língua estrangeira, usados no corpo desse trabalho, foram traduzidos pelo autor. Já os de rodapé foram mantidos no original consultado, como forma de ilustração e elucidação. “El camino de América hacia la constitución resultó más fácil y directo: por una parte, había recibido de Europa los ingredientes necesarios y, por otra, los obstáculos europeos habían quedado en el continente. En este punto Francia constityue el caso más complicado a la vez que el más relevante desde el punto de vista histórico, puesto que, pesa al gran interés provocado en Europa por los acontecimientos americanos, éstos fueron aplicados a la situación propia en muy escasa medida; sólo la Revolución francesa elevó la constitución a cuestión política en otros estados del continente. Por estas razones, el modelo explicativo tiene que demostrar primero su validez en el ejemplo francés” (GRIMM, 2006, p.62-63). TOCQUEVILLE, 2009, p.279. HOBSBAWM, 2012, p.98. Idem. ANDERSON, 2008, p.264.

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A Revolução assinala a elevação da sociedade burguesa e capitalista na história da França. Sua característica essencial é ter realizado a unidade nacional do país por meio da destruição do regime senhorial e das ordens feudais privilegiadas: porque, segundo Tocqueville em L’Ancien Régime et la Révolucion (livro II, cap.I), seu “objetivo particular era abolir em toda parte o resto das instituições da Idade Média”. O fato de ter chegado, finalmente ao estabelecimento de uma democracia liberal particulariza ainda a sua significação histórica. Deste duplo ponto de vista, e sob o ângulo da história mundial, ela merece ser considerada o modelo clássico da revolução burguesa31 32.

“Apenas ela [França] podia gerar uma revolução tão súbita, tão radical, tão impetuosa em seu curso”, dispõe Tocqueville, e, no entanto, “tão cheia de viravoltas, de fatos contraditórios e de exemplos opostos”. Diz mais: “é preciso reconhecer que todas [as] razões juntas não teriam vingado para explicar uma revolução como essa em outro lugar que não a França33”. Calhoun adverte que “[...] o levante em massa da Revolução Francesa simbolizou a capacidade do povo não apenas de agir, mas de moldar a história”. Completa, ao relatar a composição das nações na modernidade34: A constituição das nações - não só em dramáticos e revolucionários atos de fundação, mas na formação de identidades políticas e culturas comuns - é uma das características centrais da era moderna. Ela faz parte da organização da lealdade e participação política, da cultura e identidade, de como se ensina história e de como se travam guerras. Ela não apenas molda a ideologia e a identidade política prática, mas também molda a própria ideia de sociedade na qual grande parte da teoria social está enraizada35.

Esse anseio em moldar a nação e legitimar os poderes sobre ela instituídos, foi meio de ruptura e dissensão com o que até então se via como poder posto e imposto, mesmo que tenha o Antigo Regime fornecido à “Revolução várias de suas formas, ela lhes acrescentou apenas a atrocidade de seu gênio36”. No entanto, no caso francês, a extrusão de elementos do Ancien Régime apresentava-se como elemento paradoxal no discurso revolucionário; pois, para Tocqueville, “a Revolução teve duas fases bem distintas: a primeira, durante a qual os franceses parecem querer abolir tudo do passado; a segunda, em que vão retomar nele uma parte do que haviam deixado”. Garante, além disso, que “há um grande número de leis e hábitos políticos do Antigo Regime que assim desaparecem subitamente em 1789 e ressurgem alguns anos 31 32

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SOBOUL, 2007, p.07. “[...] não havia uma classe burguesa autoconsciente, em1789, que pudesse representar as novas realidades do poder econômico e que estivesse pronta para tomas os destinos do Estado e da sociedade em suas próprias mãos; e que, na medida em que tal classe pode ser discernida na década de 1780, seu alvo não era fazer uma revolução social mas, antes, reformar as instituições do reino [...]” (HOBSBAMW, 1996, p.24); talvez uma “revolução de classe média” (p.17). TOCQUEVILLE, 2009, p.231. Em tentativa de rejeitar a tese de uma crise contemporânea dos estados-nação, Calhoun complementa: “se as nações se tornarem obsoletas, isso fará uma enorme diferença. Contudo, por mais perturbada e perturbadora que seja a organização política por nações, creio não haver muitos indícios de que elas estejam desaparecendo do cenário mundial” (2008, p.66). CALHOUN, 2008, p.66. TOCQUEVILLE, 2009, p.221.

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depois”, assim como “alguns rios se afundam na terra para reaparecerem um pouco adiante, mostrando as mesmas águas para novas margens37”. Em sua visão: Os franceses fizeram em 1789 o maior esforço que um povo já empreendeu, a fim de, por assim dizer, cortarem em dois seu destino e separarem por um abismo o que haviam sido até então do que queriam ser dali em diante. Com esse objetivo, tomaram toda espécie de precauções para não levarem para sua nova condição coisa alguma do passado; impuseram a si mesmo toda sorte de coerções para se moldarem diferentemente de seus pais; enfim, nada esqueceram para se tornarem irreconhecíveis38.

Vemos a necessidade de ruptura com o passado. Mas, diferentemente da linha do “reaparecimento dos rios”, pode se ver na proteção de igrejas, estátuas e castelos, contra as destruições39 da Revolução Francesa iniciadas pelos próprios revolucionários, “as origens da conservação dos monumentos históricos na França40” ou “a invenção da conservação do monumento histórico com seu aparelho técnico e jurídico41”, a partir não do reaparecimento, mas do surgimento de uma nova dimensão temporal, que transforma o monumento em bem histórico. Canclini afirma que “os projetos modernos se apropriam dos bens históricos e das tradições populares42”. E provoca, dizendo que: O confronto dessa ideologia com o desenvolvimento moderno - desde a industrialização e massificação das sociedades europeias nos séculos XVIII e XIX- resultou em uma visão metafísica, aistórica, do “ser nacional”, cujas manifestações superiores, procedentes de uma origem mítica, só existiriam hoje nos objetos que a rememoram. A conservação desses bens arcaicos teria pouco a ver com sua utilidade atual. Preservar um lugar histórico, certos móveis e costumes é uma tarefa sem outro fim que o de guardar modelos estéticos e simbólicos. Sua conservação inalterada testemunharia que a essência desse passado glorioso sobrevive às mudanças43.

Novamente em Tocqueville, vemos, ainda nas primeiras práticas públicas de preservação do patrimônio, aquilo que o será inerente: o conflito. Uma das primeiras atitudes da Revolução Francesa foi atacar a Igreja44 e, entre paixões que nasceram dessa revolução, a primeira a acender-se e a última a extinguir-se foi a 37

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TOCQUEVILLE, 2009, p.XLIV-XLV. Idem, p.XLI. “Nada mostra melhor o quanto as liberdades locais estavam aviltadas do que essa constante mudança de suas leis, às quais ninguém parecia dar atenção. Essa mobilidade por si só teria bastado para destruir de antemão qualquer ideia particular, qualquer gosto por recordações, qualquer patriotismo local, na instituição que entretanto lhes é mais propícia. Preparava-se assim a grande destruição do passado que a Revolução ia fazer” (TOCQUEVILLE, 2009, p.258). RÜCKER apud CHOAY, 2006. p.95. CHOAY, 2006. p.95. CANCLINI, 2008, p.159. Idem, p.161. “Na França, [os revolucionários] atacaram com uma espécie de furor a religião cristã, sem sequer tentarem colocar outra religião em seu lugar. Trabalharam ardorosa e continuamente em tirar das almas a fé que a enchera e deixaram-nas vazias” (TOCQUEVILLE, 2009,

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paixão pela irreligiosidade. E entretanto hoje é fácil convencer-se de que a guerra às religiões não era mais que um incidente dessa grande revolução, um traço marcante porém fugitivo de sua fisionomia, um produto passageiro das ideias, das paixões, dos fatos particulares que a precederam e prepararam, e não seu gênio próprio45.

Vimos o paradoxo46, ao menos o visível. As ações de proteção-ataque, de preservação-demolição47 são determinantes para entender o contexto de indexação de um corpo constitucional e legal que surgiria para estabelecer diretrizes primeiras destinadas ao patrimônio. Foi necessária uma terrível convulsão para destruir e extrair bruscamente do corpo social uma parte que estava agarrada assim a todos seus órgãos. Isso fez a Revolução parecer ainda maior do que era; parecia destruir tudo, pois o que destruía estava ligado a tudo e de certo modo incorporava-se a tudo. Conservou do antigo mundo apenas o que sempre fora alheio a essas instituições [aristocráticas e feudais] ou podia existir sem elas48.

A justificativa de Tocqueville, para as discrepâncias, estava nas diferentes classes e na execução dos projetos revolucionários. Para ele “o contraste entre a benignidade das teorias e a violência dos atos, que foi uma das características mais estranhas da Revolução Francesa”, e “não surpreenderá ninguém que levar em conta que essa revolução foi preparada pelas classes mais civilizadas da nação e executada pelas mais incultas e mais rudes49 50”. Mais: Como os homens das primeiras não tinham entre si nenhum laço preexistente, nenhum hábito de se ouvirem, nenhuma ascendência sobre o povo, este se tornou quase de imediato o poder dirigente, assim que os antigos poderes foram destruídos. Onde

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p.166); “Como a Igreja se encontrava naturalmente imiscuída em todas as velhas instituições que importava destruir, não havia como duvidar que essa revolução devesse abalar a religião ao mesmo tempo que derrubasse o poder civil; a partir daí era impossível dizer a quais temeridades inauditas podia entregar-se o espírito dos inovadores, libertados simultaneamente de todos os entraves que a religião, os costumes e as leis impõem à imaginação dos homens” (p.225). TOCQUEVILLE, 2009, p.08. Talvez o dissenso aparente esteja no próprio olhar de Tocqueville: “Não sei se, no final das contas e apesar de seus vícios clamorosos de alguns de seus membros, já houve no mundo um clero mais notável que o clero católico da França no momento em que a Revolução o apanhou de surpresa; mais esclarecido, mais nacional, menos entrincheirado unicamente nas virtudes privadas, mais bem provido de virtudes públicas e ao mesmo tempo de mais fé: a perseguição mostrou bem isso. Comecei o estudo da antiga sociedade cheio de preconceitos contra ele; terminei-o cheio de respeito. Na verdade, tinha apenas os defeitos que são inerentes a todas corporações, tanto as políticas como as religiosas, quando estão fortemente unidas e bem constituídas: tendência para invadir, humor pouco tolerante, apego instintivo e às vezes cego aos direitos particulares da classe” (2009, p.125). “Quando, na segunda metade do século XVIII, o gosto pelas obras públicas especialmente pelas estradas começou a difundir-se, o governo não hesitou em apossar-se de todas as terras de que precisava para seus empreendimentos e em derrubar as casas que o atrapalhavam. O departamento de obras públicas ficou tão apaixonado pelas belezas geométricas da linha reta quanto se mostrou desde então; evitava com grande cuidado seguir os caminhos existentes, se acaso lhe parecessem um pouco sinuosos, e, ao invés de fazer um pequeno desvio, cortava através de mil propriedades. Os bens assim devastados ou destruídos eram sempre arbitrária e tardiamente pagos, e muitas vezes não o eram em absoluto” (TOCQUEVILLE, 2009, p.207-208). TOCQUEVILLE, 2009, p.24. Idem, p.226. Análise dos cadernos da nobreza em 1789. Liberdade e inviolabilidade da propriedade. A nobreza pede que a propriedade seja inviolável e que não possa agir em seu prejuízo, exceto por motivo de utilidade pública indispensável. Nesse caso o governo deverá dar, sem demora, uma indenização de alto valor. O confisco deve ser abolido (TOCQUEVILLE, 2009, p.265).

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não governou por si mesmo, deu pelo menos seu espírito ao governo; e quem, por outro lado, pensar na maneira como esse povo vivera sob o Antigo Regime, não terá dificuldade em imaginar o que ele ia ser51.

Chuva ensina que “a preocupação com a conservação de objetos materiais em pertencentes a todo um grupo-nação - contida na intenção mais ampla de resgatar um passado nacional - data, sem dúvida, do período pós-Revolução Francesa”, de criação “de uma ‘herança nacional’, em que a ideia de ruptura com o tempo perdido se fez presente”. “No período de 1789-1800”, completa, essa “preocupação esteve identificada ao desejo dos franceses de se tornarem se os herdeiros legítimos da Grécia Antiga: todas as marcas do despotismo do Antigo Regime deveriam ser apagadas”, para serem “constituídas as marcas da origem de uma nação - as antiguidades nacionais (Poulot, 1997)52”. Essa história nacional francesa seria aos poucos recontada, a partir de uma valorização da Idade Média, firmando-se paulatinamente o período medieval como a origem “autêntica” da nação. Essa transformação deu-se ao longo da primeira metade do século XIX, sendo, a partir de então, de tal forma reproduzida e multiplicada que se tornou inquestionável, a ponto de criar a crença em sua existência desde sempre. Foi nesse momento que se investiu, na França, na realização do primeiro inventário dos monumentos nacionais53.

Também parto de Poulot, para quem “a característica mais notável da sensibilidade às imagens na Revolução foi, então, a substituição de modelos: do icônico pelo narrativo54”. E “a atitude a adotar em relação à herança do passado e da desordem legada pelo acaso dos séculos tinha a ver, daí em diante, com a Lei55”. Para Choay está bem datado e localizado, na França de 1789, o início da legalização do patrimônio56. Eis a formação jurídica inicial acerca do patrimônio cultural. A análise anterior nos possibilitará entender como a apropriação do patrimônio surge como política pública de Estado, notadamente com a Assembleia Nacional Constituinte de 178957. Sem dúvida cabem aqui, entre outros, os aportes teóricos (vistos e a serem vistos) trazidos por Choay58 e Poulot59. Ambos se preocuparam, cada um a seu modo, em descrever o uso político-jurídico do patrimônio cultural. E não por acaso a análise sobre essa gênese parte de suportes teóricos oferecidos pelos dois pesquisadores franceses, bem como Hartog60. 51

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TOCQUEVILLE, 2009, p.226. CHUVA, 2009, p.47. CHUVA, 2009, p.47-48. POULOT, 2009. p.99. Idem, p.96. CHOAY, 2006, p.27. Assembleia Nacional Constituinte Francesa foi formada pela Assembleia dos estados gerais em 9 de Julho de 1789, nas primeiras fases da Revolução Francesa e foi dissolvida a 30 de Setembro de 1792. CHOAY, 2006. POULOT, 2009. HARTOG, 2013.

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Na introdução de sua obra “A alegoria do patrimônio”, Françoise Choay afirma que o monumento, ao tomar uma dimensão histórica, passa a exigir “uma conservação incondicional61”. E acrescenta que “o projeto de conservação dos monumentos históricos e sua execução evoluíram com o tempo e não podem ser dissociadas da historia do conceito62”. Essa “invenção do ocidente” deve ser distinguida do mero monumento, conforme instrui Choay pela ótica de Alois Riegl: enquanto esse é uma criação deliberada, consciente e imediata, “o monumento histórico é constituído a posteriori pelos olhares convergentes do historiador e do amante da arte, que o selecionam na massa dos edifícios existentes, dentre os quais os monumentos representam apenas uma parte63”. Hartog reforça esse entendimento trazendo a Bastilha como primeiro monumento histórico (sendo ela uma extraordinária metonímia do conflito que cerca o patrimônio). Em francês, o primeiro uso da expressão ‘monumento histórico’ – para designar um prédio – é atribuído a Louis Aubin Millin: em 1790. Só em 1790? poderíamos retrucar. Deveríamos concluir disso que não houve monumento histórico, aceito plenamente como tal, antes dessa data na França? Seria provavelmente excessivo, mas acrescentemos essa precisão: o primeiro monumento histórico descrito por Millin era a Bastilha, que estava sendo demolida; histórico e em vias de desaparecimento. A própria razão de seu Recueil era inventariar o conjunto de edifícios e de objetos que, de repente transformados em bens nacionais, haviam mudado completamente de status e de modo de visibilidade. Por esse gesto, ele contribuía para fazer deles semióforos de um novo tipo64.

A jurisdição de proteção surgiria, portanto, para salvaguardar o monumento histórico, que, após suas feições de “arte” e de “história”, surge através da perspectiva da “preservação”, com a ação concomitante de nacionalização dos bens. Como exemplo, podemos verificar o que Choay diz sobre a Revolução e sua constituinte revolucionária em relação ao patrimônio: “um dos primeiros atos jurídicos da Constituinte, em dois de outubro de 1789, foi colocar os bens do clero ‘à disposição da nação’. Vieram em seguida os dos emigrados, depois da Coroa65”. Conforme discurso de M Lebrun, membro da Assembleia Nacional, em 30 de outubro de 1789, sobre os bens do clero: “Estes bens são propriedade comum, indivisível [...] Sob esses aspectos, a propriedade é uma propriedade pública66”. Choay explica que: O valor primário do tesouro assim devolvido a todo povo é econômico. Os responsáveis adotam imediatamente, para designá-lo e gerenciá-lo, a metáfora do espólio. Palavras-chave: herança, sucessão, patrimônio e conservação. Eles transformam o 61

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CHOAY, 2006, p.27. Idem, Ibidem. CHOAY, 2006, p.25. HARTOG, 2013, p.209. CHOAY, 2006. p.98. “Ces biens sont la propriété commune, indivise. [...] Sous ces aspect, ces biens sont une propriété publique”. (Assemblée Nationale, Archives Parlementaires, 30 octobre 1789, p.603).

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status das antiguidades nacionais. Integrados aos bens patrimoniais sob o efeito da nacionalização, estas se metamorfossearam em valores de troca, em bens materiais que, sob pena de prejuízo financeiro, será preciso preservar e manter. Não dependem mais de uma conservação iconográfica67.

A metáfora do espólio provoca o surgimento do administrador, do inventariante, que tem em suas mãos o dever de cuidar dos bens sob sua tutela, sob risco de imposição de penas, como a declaração de indignidade de encontrar-se na posição de herdeiro. A referência aos instrumentos jurídicos que se voltam ao direito sucessório – herança, inventário, espólio – passam a traçar a linha que separa presente e passado, permitindo a normatização da herança patrimonial-nacional. Ao entregar os bens do clero à nação, a Constituinte, iniciada em 1789, nomeia como herdeiros a nação francesa. Elucidando: Nós temos a recolher uma imensa herança [...], uma nação que governa a si mesma deve se conduzir no lidar com esse tipo de questão com a mesma prudência que herdeiros judiciosos empregam em relação ao espólio [...]. Esses herdeiros não deixariam ao deus-dará os quadros preciosos, as estátuas antigas, as medalhas, os bronzes, os mármores, as bibliotecas [...] 68.

Na mesma sintonia, Hartog afirma que “a Revolução é esse momento de apropriação coletiva, no qual seus atores sentem ‘o orgulho de ver um patrimônio de família se tornar um patrimônio coletivo’69”. Da mesma forma que “se há transferência de soberania, há transferência de propriedade: em nome e com o nome da Nação70”. Acresce: É o primeiro tempo, propriamente político e presentista, prontamente seguido de um outro, que leva a reconhecer o tempo como ator. Um ator pioneiro e duplamente da operação. Há o tempo longo, aquele que restitui e a quem é preciso restituir; e o tempo imediato, aquele da experiência inédita da aceleração. A antiga ordem do tempo se quebra e, uma vez passado o momento tábula rasa, a ordem moderna não sabe ainda muito como se formular71.

Para tanto seria necessária normatização sobre a inventariação e a gestão desses bens. Foram separados em categorias, inventariados e protegidos. Entre algumas categorias: “livros impressos, estátuas, bustos, mausoléus, selos, quadros, mosaicos”, etc.72-73. Nos termos do seu artigo 3, a Assembleia Nacional Constituinte 67

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CHOAY, 2006. p.98. KERSAINT apud CHOAY, 2006, p.99. HARTOG, 203, p.229-230. Idem. Idem. RÜCKER apud CHOAY, 2006, p.99-100. “A comissão dos monumentos da Constituinte compreende dez seções, todas igualmente compostas tanto de especialistas quanto de simples cidadãos [...]”. São elas: “I. Livros impressos; II. Manuscritos; III. Forais e selos; IV. Medalhas antigas e modernas; V. Pedras gravadas e inscrições; VI. Estátuas, bustos, baixos-relevos, vasos, pesos e medidas antigos e da Idade Média, armas ofensivas, mausoléus, túmulos e todos os objetos desse gênero, relacionados à Antiguidade e à História; VII. Quadros, pastas de pintores, desenhos,

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“Encarrega os diretórios dos departamentos de mandar fazer um levantamento e zelar, por todos os meios, [...] pela conservação dos monumentos, igrejas e casas tornados domínios nacionais que se encontram sob sua jurisdição [...] 74”.

Cumpre citar a participação do abade Grégoire. “Com suas origens dentro do contexto revolucionário francês do século XVIII” aponta Ferreira75, “o Inventário aparece atrelado ao nome de Abade Grégoire, deputado da Constituinte e uma das vozes mais aguerridas contra os atos de destruição impetrados pelos revolucionários frente ao que materialmente representava o Antigo Regime”. Choay ensina que “no seu primeiro apelo contra o vandalismo revolucionário, associa sem hesitação as mais altas considerações morais ao interesse econômico representado pelo turismo europeu: ‘as arenas de Nîmes e a ponte de Gard’, talvez”, enumera, “trouxeram mais à França do que eles custaram aos romanos76”. É o abade Grégoire, através de seus Rapports sur le vandalisme [Relatos sobre o vandalismo], que coloca o vandalismo no âmbito do léxico patrimonial77. Mas que herança é essa? Queriam os revolucionários preservar os ícones do Ancien Régime? Não seria esse passado amaldiçoado pelos revolucionários? Esse período, que posteriormente seria reconhecido como o nascedouro das práticas patrimoniais, ou anos “fundadores do patrimônio78”, apresenta-se aparentemente contraditório. “Deve ser a Revolução Francesa ser considerada como um acontecimento inesperado e novo ou ela é a realização dos projetos que o Século das Luzes ou a Enciclopédia haviam preparado?”, questiona Serres. “Será que ela libera antigos formatos ou, ao contrário, impõe os que precedem?79”. As relações entre memória e esquecimento, identidade e diferença, preservação e destruição, são marcadas pelo conflito, pelo vandalismo e pela conservação. E pela ideologia. “A politização intensa, que, na inquietude e na chama apenas do presente, curto-circuitava o tempo ou só evocava como começo absoluto, cedeu lugar então a uma operação de temporalização”, sugere Hartog, “com olhar sobre o passado e abertura para o futuro80”. Ao expirar, escreve ainda Boissy d’Anglas, o despotismo deixou à França regenerada uma vasta herança. ‘Ele lhe restituiu, por séculos e para o universo, o imenso depósito de todos os conhecimentos humanos’. A regeneração legitima a restituição, como compreendida como retorno de um bem a seu proprietário legítimo81.

Choay explica que devemos diferenciar as medidas imediatas para conservação do patrimônio nacionalizado das medidas posteriores, com métodos mais efetivos e

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gravuras, mapas, tapeçarias antigas ou históricas, mosaicos, vitrais; VIII. Máquinas e outros objetos relativos às artes mecânicas e às ciências; IX. Objetos relativos à história natural e a seus três reinos; X. Objetos relativos aos costumes antigos, modernos, europeus e estrangeiros” (RÜCKER apud CHOAY, 2006, p.99-100). CHOAY, 2006, p.100. 2014, p.18 CHOAY, 2011, p.36. Idem, p.110. POULOT, 2009, p.96. SERRES, 2008, p.29. HARTOG, 2013, p.225. Idem, Ibidem.

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fundamentados para enfrentar o vandalismo ideológico de alguns revolucionários. As primeiras, que ela afirma derivarem de uma conservação “primária ou preventiva”, visaram “prevenir um monstruoso desperdício de riqueza”; enquanto que “as medidas de preservação ‘secundárias’ ou reacionais do patrimônio histórico superam, integrando-as numa totalidade original, a abordagem conservatória prática de sua primeira fase revolucionária, assim como a conservação esclarecida, mas iconográfica, dos antiquários82”. O decreto do dia 14 de agosto de 1792 ilustra bem essas ambivalências: Seu preâmbulo afirma que não se deve ‘deixar muito mais tempo à vista do povo francês os monumentos erguidos ao orgulho, ao preconceito, à tirania’. É novamente retomado o tema do olhar ‘ferido’ pelos emblemas do despotismo. Mas nem todos os artigos que se seguem pregam a supressão ou a destruição dessas marcas, alguns fazem valer contraditoriamente a preocupação em preservar e conservar. Nos meses seguintes, singularmente pelo intermédio das intervenções de Roland, ministro do Interior, um discurso de conservação se estabelece, em nome da glória da França e com uma preocupação educativa. O museu se impõem então como o próprio instrumento dessa política. Para Roland, o Louvre tem vocação para se tornar ‘Monumento nacional’ no qual, como na Grécia, as artes brilharão83.

Convém ressaltar que a própria Revolução decretou ações destrutivas destinadas a subvencionar despesas, através de “fundição das pratarias e dos relicários, mas também mandou transformar em peças de artilharia as armações de telhado de chumbo ou de bronze das catedrais, basílicas e igrejas84”. Choay afirma que essa ação destrutiva com intuitos de subsídio econômico inscreve-se numa tradição familiar ao Antigo Regime. E remata: “Quantas guerras não obrigaram os reis da França a mandar fundir suas baixelas de ouro e de prata e seus artigos de ourivesaria85”. Logo, as ações de preservação objetivaram conter o vandalismo ideológico, porém não os econômicos. Mas também livrou da destruição bens condenados ao desaparecimento pela Coroa, momentos antes da Revolução. “Ainda em 1788, Luís XVI assinava sem muita preocupação um édito que prescrevia a demolição ou venda dos castelos La Muette e de Madri au Bois de Boulogne, de Vincennes e de Blois”, ensina Hartog. “Os bens da coroa são teoricamente inalienáveis, mas a necessidade de dinheiro justifica. Os dois primeiros foram demolidos, a Revolução salvou os outros dois86”. À determinação sobre fundição, sucedem, um mês após, instruções complementares (3 de março de 1791, Suite d’instructions) que apresentaram exceções que atenuaram as regras postas. Choay destaca entre elas os critérios que “motivam a conservação dos bens condenados, o interesse pela história, a beleza do trabalho, o valor pedagógico para a arte e as técnicas” que são, pela primeira vez, “enumerados juntos, constituindo uma definição implícita dos monumentos e do patrimônio histórico”, 82

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CHOAY, 2006, p.114. HARTOG, 2013, p.223-224. CHOAY, 2006, p.106-107. Idem, p.106. HARTOG, 2013, p.209.

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podendo se “ver nisto os primórdios da conservação reacional87”. São essas as nove condições ou critérios: 1º Quando o preço atual da mão-de-obra ultrapassar ou apenas igualar o valor do material, o monumento não será fundido; 2º Todo monumento anterior ao ano de 1300 será conservado, de acordo com os costumes (muitas vezes as datas dos autos que acompanham as relíquias ajudarão a determinar a idade dos cofres e dos relicários); 3º Todo monumento valioso pela beleza do trabalho será conservado; 4º Os monumentos que, não sendo valiosos pela beleza do trabalho, trouxerem informações sobre a história e os períodos da arte, serão conservados; 5º Se, entre os monumentos históricos que não merecerem ser conservados, se encontrarem alguns com detalhes interessantes para a história ou para a arte, eles serão desenhados antes da fundição; 6º Todo monumento que tiver interesse para a história, para os costumes e para os usos será conservado; 7º Quando um monumento tiver uma inscrição ou uma legenda interessante para a história da arte, ela deve ser retirada para conservação, mencionando-se o monumento onde se encontrava [...]; 8º Extrair-se-ão, sem as danificar, as pedras preciosas e as pedras gravadas, as medalhas, os baixos relevos incrustados nas peças de ourivesaria [...]; 9º Quando as relíquias estiverem colocadas em estofos ou tecidos que possam esclarecer sobre as manufaturas, ter-se-á o cuidado de pô-las à parte para serem examinadas. Se merecerem ser conservadas, pedir-se-á ao padre encarregado do transporte das relíquias que delas separe esses tecidos e esses estofos com as precauções exigidas pela decência88.

Alguns sujeitos, e seus discursos, são trazidos aqui para o esboço do conflito entre o que se desejava esquecer e aquilo que deveria ser preservado. Choay introduz “um certo Deschamps” que, acusado de vandalismo, tenta se justificar: Visto que muitos cidadãos reclamaram de ainda existirem em nosso século da razão esses símbolos da superstição, encarreguei-me, junto à administração, de fazê-los desaparecer. Se isto é ser vândalo, confesso que eu o era, sem o saber89.

Nesse mesmo sentido, Condorcet, reivindicando na tribuna da Assembleia Constituinte, em 14 de julho de 1790, afirmou: É importante para a glória da nação impedir a subsistência de algum monumento que faça lembrar ideias de escravidão. [...] Convém à dignidade de um povo livre consagrar-se tão somente a ações que ele próprio tenha considerado e reconhecido como grandes e úteis90.

Diametralmente oposto, Dussault, membro da Constituinte, na mesma tribuna, discursa em audiência de 4 de agosto de 1792: 87

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CHOAY, 2006, p.107. CHOAY, 2006, p.107. HERMANT apud CHOAY, 2006, p.109. POULOT, 2009, p.92.

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Os monumentos do despotismo caem em todo o reino, mas é preciso poupar, conservar os monumentos preciosos para as artes. Fui informado por artistas renomados de que a porta Saint-Denis está ameaçada. Dedicada, sem dúvida, a Luís XIV [...], ela merece ódio dos homens livres, mas essa porta é uma obra-prima [...]. Ela pode ser convertida em monumento nacional que os especialistas virão, de toda Europa, admirar. Dá-se o mesmo com o parque de Versailles91.

“Foi instaurado pela Assembleia Legislativa”, exemplifica Choay, “o Comitê de Instrução Pública em seguida à Comissão dos Monumentos, logo substituída (em 15 de dezembro de 1793) pela Comissão Temporária das Artes”. Adiciona: “Não sem conflitos internos, elaborou-se então uma significativa metodologia da conservação (critérios, inventários), brevemente aplicada, mas abandonada após o Termidor92 93”. Por um lado buscava-se acabar com uma cultura elitista e substituí-la “pela dinâmica de uma cultura igualitária”; por outro “os textos revolucionários sobre e para a proteção do patrimônio monumental não podem ser reduzidos a um discurso de má-fé94”, uma vez que: Postular começos absolutos e pensar que uma nova visão do mundo pode ser institucionalizada sem qualquer base real é o mesmo que se instalar no coração da utopia, que abole o tempo, em proveito do puro instante, e não da eternidade, como ela pretende. A urgência da ação às vezes impõe uma mens momentânea na condução dos negócios humanos. Os antropólogos nos ensinaram também que as sociedades tradicionais podiam, de forma cíclica, por um curto período, ritualizado, abstrair seu passado e seus costumes para viver na imediatez do presente. Mas esses parênteses apenas confirmam a regra: indivíduos e sociedades não podem preservar e desenvolver sua identidade senão pela duração da memória95 (grifei).

Castriota também se ampara em Choay para chegar à semelhante indicação conclusiva: No caso da França, primeiro país europeu a implantar uma estrutura institucional de defesa do patrimônio, é interessante percebermos, como nos mostram J.-P. Babelon e André Chastel (1994), a longa trajetória do termo “patrimônio” e sua expansão até se atingir a ideia de um “patrimônio da nação”, fenômeno que poderia ser explicado pela junção de dois fenômenos: pela “transferência dos bens do clero, da Coroa dos emigrados para a nação”, e, negativamente, pela “destruição ideológica de que foi objeto uma parte desses bens, a partir de 1792, particularmente sob o Terror e o governo do Comitê de Salvação Pública” (CHOAY, p.97). Assim, segundo Choay, na “arrancada de 1789”, todos os elementos necessários a uma autêntica política de conservação do patrimônio monumental, que não visaria apenas à conservação das igrejas medievais, mas “em sua riqueza e diversidade, à totalidade de patrimônio cultural”, já está unidos na França: a criação do termo “patrimônio histórico”, o levantamento do 91

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CHOAY, 2006, p.111. Referência ao Calendário Revolucionário Francês, que esteve em vigor na França de 22 de setembro de 1792 a 31 de dezembro de 1805. CHOAY, 2011, p.19. CHOAY, 2006, p. 110 e 112. Idem, p.112-113.

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corpus patrimonial em andamento e a existência de instrumentos jurídicos e técnicos ao dispor da administração encarregada da conservação. (CHOAY, p.120). Com isso, se articulariam, ainda no final do século XVIII, os elementos essenciais - teóricos, metodológicos e institucionais - para a instituição das políticas de patrimônio, que se espalhariam pela Europa e pelo restante do mundo nos dois séculos subsequentes [....] 96.

A construção de uma nacionalidade francesa grandiosa atingiu também paragens distantes. Stallybrass indica que “(...) a revolução de 1789-1814 se ‘vestiu’, sucessivamente, como a República Romana e como o Império Romano; Danton, Robespierre, Napoleão ‘cumpriram a missão de seu tempo em vestes romanas’97”. A redenção, ou a salvação do passado, passaria por apropriações de novas roupagens para o identitário nacional almejado. Robespierre desejava uma extensão sem medida para a perspectiva do ideal nacional revolucionário, talvez para encontrar uma substância não realizada. O modelo de tal re-apropriação Benjamim acha, por exemplo, em Robespierre, que, encontrando um passado “correspondente” na Roma Antiga, toma posse dele e, redimindo suas expectativas não realizadas, subtrai-o ao continuum inerte da história. [Benjamin, Tese XIV]: “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio mas um tempo saturado de ‘agoras’. Assim, a Roma Antiga era para Robespierre um passado carregado de ‘agoras’, que ele fez explodir no continuum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente98.

Em proposição análoga, Hartog assevera: Ora, já desde 1789, Paris havia naturalmente se apresentado como uma nova Atenas. A que título? Em nome e em virtude da liberdade e sob o efeito da regeneração, que é a grande palavra de ordem da Revolução, a fim de criar um homem novo. ‘Sob o império da liberdade, as artes erigiam’, dizia Jansen, o tradutor de Winckelmann, ‘à augusta assembleia de nossos representantes resta apenas querer, e assim, as mesmas maravilhas que ilustram os mais belos séculos da Grécia vão acontecer entre nós.’ Não se trata de retraçar, depois de Édouard Pommier, o que se deu em Paris entre 1789 e 1796 do ponto de vista das artes, mas somente de sublinhar a reviravolta que faz passar, no período de alguns anos, das ‘marcas do despotismo a ser apagado’, conforme a palavra de ordem dos primeiros tempos da revolução, ‘à herança a ser conservada e transmitida’. Essa passagem combina com um outro deslocamento. Aquele que conduz da Grécia e de Roma às Antiguidades nacionais, da Antiguidade à Idade Média e ‘do iconoclasmo do patrimônio’” (2013, p.223).

A construção de um passado ideal transcorreu todos esses choques em torno do patrimônio. Uns exigiram a rejeição a tudo aquilo que remontasse ao Antigo Regime, 96

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CASTRIOTA, 2009, 63-64. STALLYBRASS, 2012, p.53. CASTRIOTA, 2009, p.60.

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buscando provar, através de pesquisas linguísticas, etnológicas e arqueológicas, que “as antiguidades nacionais francesas eram simplesmente os monumentos do povo celta, ou seja, o povo original da terra; assim, seria estabelecida definitivamente a identidade das antiguidades francesas e das antiguidades universais99”. Outros decretaram a absorção do passado recente, que poderia servir como ícone de exemplo de superação bem como de admiração do que detinha apelo artístico100. É a alteração da atribuição de valor. Além disso: “o passado torna-se referência com a condição de que seja transmitido como tradição; por sua vez, a autoridade torna-se tradição com a condição de apresentar-se historicamente101”. Logo, pode-se falar aqui da interposição entre os conceitos e suas (aparentes) dicotomias identidade e diferença, preservação e destruição, memória e esquecimento. Quanto à preservação, vista na legislação francesa como efeito das exigências de conservação, pôde ser notada com as normas acerca do que poderia ou não ser objeto de usurpação e destruição pela Revolução. Oliveira esclarece que “esse processo [colecionismo em antiquários], que aconteceu a partir do Renascimento, sofreria o impacto da Revolução Francesa, já que com ela teve lugar a apropriação de bens da realeza, da nobreza, da Igreja”, que passaram a “ser considerados a partir de então ‘bens nacionais’”. “A Monarquia”, remata, “estava interessada e comprometida com a conservação das obras de arte, mas foi com a República que se desenvolveu a noção de patrimônio nacional102”. Para ela: Após a Revolução, foi importante impedir a destruição das marcas do antigo regime e assegurar a salvaguarda dessas riquezas. Para proteger os bens do antigo regime do vandalismo revolucionário é que foram feitos os primeiros decretos visando salvar os monumentos históricos - castelos, abadias, mosteiros - onde tinham acontecido grandes eventos. Os bens religiosos foram tomados da Igreja Católica e passaram à nação, para serem conservados em nome da história nacional. Bens que eram objeto do culto religioso, que representavam a piedade, tornaram-se objetos de arte, representando a beleza. Os bens do clero foram colocados à disposição da nação sob o argumento de que era preciso devolver esses tesouros ao povo. Como esses bens constituíam seu patrimônio, era preciso fazer o inventário dessa herança. Foi então criada a Comissão de Monumentos Históricos, com o objetivo de inventariar, proteger, tirar de circulação esses bens, mesmo antes de se resolver seu destino. 99



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POULOT, 2009, p.92. “O elo entre os assuntos públicos e as artes é particularmente forte nos países onde a consciência nacional e os movimentos de libertação ou de unificação nacional estavam-se desenvolvendo [...]. Não foi por acaso que o despertar ou ressurreição das culturas literárias nacionais na Alemanha, na Rússia, na Polónia, na Hungria, nos países escandinavos e em outras partes coincidisse com - e de fato fossem sua primeira manifestação - a afirmação da supremacia cultural da língua vernácula e do povo nativo, frente a uma cultura aristocrática e cosmopolita que constantemente empregava línguas estrangeiras. E bastante natural que este nacionalismo encontrasse sua expressão cultural mais óbvia na literatura e na música, ambas artes públicas, que podiam, além disso, contar com a poderosa herança criadora do povo comum - a linguagem e as canções folclóricas. E igualmente compreensível que as artes tradicionalmente dependentes de comissões das classes dirigentes - cortes, governo, nobreza -, a arquitetura e a escultura, e até certo ponto a pintura, refletissem menos estes renascimentos nacionais. A ópera italiana floresceu, como nunca, mais como uma arte popular que cortesã, enquanto a pintura italiana e sua arquitetura morriam. E claro que não se deve esquecer que estas novas culturas nacionais estavam limitadas a uma minoria de letrados e às classes superiores e médias” (HOBSBAWM, 2012, p.404-405). HARENDT apud POULOT, 2009, p.97. OLIVEIRA, 2008, p.142.

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Considerava-se que os homens livres, diferentemente dos bárbaros, deviam amar e conservar os monumentos das ciências e das artes103.

Quanto à identidade e diferença, o ponto de embate maior foi quanto àquilo que remontava ao Antigo Regime. Inicialmente conceitos transversalmente contrapostos, diferença e identidade possuem uma interdependência indissolúvel. Só há identidade onde possa ser notada a diferença. A identidade é um campo de conflitos, assim como a memória, sendo ambos representados politicamente na figura patrimonial. Tomaz Tadeu da Silva apresenta explicita o poder das identidades da seguinte forma: A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes104.

As afirmativas suscitadas acima partem da conceituação de Stuart Hall de que “as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela105”. O autor afirma ainda que pode ser perturbadora a ideia de que só se pode criar um perfil identitário a partir do reconhecimento do outro, a partir daquilo que não o é, sendo que a constituição da identidade social, para Hall, é um ato de poder. Se se quer ou não a identificação com o Antigo Regime e seus símbolos. Obviamente que politicamente a ruptura com o passado do Ancien Régime era algo conclusivo entre os revolucionários. Porém, a construção da legitimidade do novo poder instaurado exigiu a presença dos ícones do poder sucumbido, como mostra de metonímia de superação política. A memória, como elemento formador da identidade, também irá trazer no bojo de seu próprio conceito, sua outra face, o esquecimento. Os revolucionários divergiram sobre qual memória eleger e o que faria parte de seu passado. Ao eleger tornar os bens herdados da opressão do regime que havia sido abatido, a contra gosto de outros tantos, a Assembleia Nacional Constituinte francesa do século XVIII fez uma escolha por lembrar e tornar marco identitário seu passado recente. Destaco, a partir de Hobsbamw, que “economicamente as perspectivas da Assembleia Constituinte eram inteiramente liberais”, já que “sua política em relação aos camponeses era o cerco das terras comuns e o incentivo aos empresários rurais; para a classe trabalhadora, a interdição dos sindicatos; para os pequenos artesãos, a abolição dos grémios e corporações106”. Essa Assembleia Dava pouca satisfação concreta ao povo comum, exceto, a partir de 1790, com a secularização e venda dos terrenos da Igreja (bem como dos terrenos da nobreza emigran103

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Idem. SILVA, 2009, p. 81. HALL, 2009, p. 110. HOBSBAWM, 2012, p.114.

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te) que tinha a tripla vantagem de enfraquecer o clericalismo, fortalecer o empresário rural e provinciano e dar a muitos camponeses uma retribuição mensurável por suas atividades revolucionárias107.

As iniciativas de conservação presentes nesse instante, que a posteriori seria apontado como a gênese do patrimônio histórico e cultural e de seu trato normativo, se apresentam como meios de construção de um passado em comum e legitimação da instauração de poder108. Em outra oportunidade afirmei que: A identidade nacional, que se sobrepõe às alteridades internas, é um projeto que constrói o outro, que está além da fronteira geopolítica do território nacional, e cria dentro dos limites territoriais um grupo de homogeneidade inventada que sustenta a existência de um Estado nacional. E essa homogeneidade pode ser amparada num passado comum, como elemento constitutivo da nação, que é selecionado ou esquecido através das conveniências nacionais (CAMPOS, 2013, p.08).

Logo, [...] as políticas de identidades são produzidas e sustentadas através de relações de poder, dominação e resistência. E mais: que o patrimônio cultural cria também vínculos sociais, sendo essa sua escritura marginal (TILLEY, 2006, p. 07, 15). As políticas de patrimônio, que são políticas de reconhecimento, celebram identidades e, simultaneamente, resistências, já que os atos políticos do Estado são verticais, de cima para baixo (WEISS, 2007, p. 414, 416), dissimulando identidades locais e as reivindicações das bases comunitárias, que fluem de baixo para cima (WEISS, 2007, p. 426; MAGALHÃES, 1985, p. 52). Para Meskell, todas as negociações sobre o patrimônio cultural implicam uma visão hegemônica e dominante do passado (MESKELL, 2002, p. 566) (CAMPOS, 2013, p.16-17).

Nesse mesmo sentido, podemos atribuir ao patrimônio uma estatura de “propriedade objetiva” ao buscar o aporte de Chartier, que afirma: “a história da construção das identidades sociais encontra-se assim transformada em uma história das relações simbólicas de força109”. Essa história define a construção do mundo social com o êxito (ou o fracasso) do trabalho que os grupos efetuam sobre si mesmos – e sobre os outros – para transformar as propriedades objetivas que são comuns a seus membros em uma pertença percebida, mostrada, reconhecida (ou negada). Consequentemente, ela compreende a dominação simbólica como o processo pelo qual os dominados aceitam ou rejeitam as identidades impostas que visam a assegurar e perpetuar seu assujeitamento110.

Uma das conclusões apontadas por Choay é a que a “conservação do patrimônio histórico não foi, pois, sob a Revolução, nem uma ficção nem uma impostura”. 107 108

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Idem. “A Assembleia Constituinte, tendo organizado as municipalidades do reino pelo decreto de 14 de dezembro de 1789, não podia deixar de subsistir em Paris uma organização particular que favorecia as tendências autonomistas” (SOBOUL, 2007, p.32). CHARTIER, 2002, p.11. Idem.

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Não se sabe qual seria a “extensão da destruição se ela não tivesse sido implantada111”. As disputas dentro da própria Revolução, e de sua Constituinte, às vezes pautadas na identidade e diferença, não podem ser alijadas desse contexto. A iniciativa aristocrática e a repulsa à participação popular, em um primeiro momento, deram o tom do início das manifestações revolucionárias. Para Soboul, “as ‘reclamações dos cidadãos, fundadas em princípios simples e incontestáveis’, só se poderiam voltar para a ‘manutenção da Constituição e da felicidade de todos’”, crença esta, afirma, “otimista na onipotência da razão, perfeitamente conforme o espírito do século das Luzes, mas que pôde resistir à pressão dos interesses de classe112”. No plano das ideias, o ofício do legislador, como trabalhador intelectual, nas palavras de Bauman, pode nos ajudar na melhor compreensão da prática legiferante nesse exercício político. Para ele, o que melhor caracteriza a “estratégia tipicamente moderna do trabalho intelectual é a metáfora para o papel de ‘legislador’”. Isso consiste em “fazer declarações de autoridade que arbitraram entre controvérsias de opiniões para escolher qual, tendo sido selecionados, passam a ser corretas e vinculativas”. “A autoridade para arbitrar”, afirma Bauman, “é legitimada neste caso por um (objetivo) conhecimento superior, ao que os intelectuais113 têm melhor acesso que a sociedade não-intelectual114 115”. Ainda: “essa era a legitimação que propuseram antecipadamente ao zelo administrativo da Revolução. E, no entanto, ante uma análise mais aprofundada, a substância do radicalismo ilustrado se revela como o impulso 111

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CHOAY, 2006, p.120. SOBOUL, 2007, p.48. Para Bauman, “Las definiciones del intelectual son muchas y variadas. Tienen, sin embargo, un rasgo en común, que también las hace diferentes de todas las otras: son autodefiniciones. Efectivamente, sus autores son miembros de la misma rara especie que intentan definir. De allí que toda definición que propagan sea un intento de trazar un límite de su propia identidad. Cada límite divide el territorio en dos lados: aquí y allá. Adentro y afuera, nosotros y ellos. Cada autodefinición es en definitiva la enunciación de una oposición marcada por la presencia de una distinción en un lado del límite y su ausencia en el otro” (BAUMAN, 1997, p.17). BAUMAN, 1997, p.13. Segundo Darton (1987): “[...] Voltaire entendia que o Iluminismo devia começar com os grands: uma vez conquistadas as camadas dominantes da sociedade, poderia ocupar-se das massas – mas zelando para que não aprendessem a ler”. “[...] d’Alembert sublinhava que a sociedade era e deveria ser hierárquica, e que o lugar mais alto estava reservado aos grands” (p.24); “O Iluminismo também era um programa para a difusão das Luzes (Lumières) – ou seja, uma tentativa geral de propagar ideias entre o público em geral, e não apenas refiná-las entre os filósofos” (p.77-78); L’INFÂME: As caretas e os panfletos propagandísticos de Voltaire costumavam terminar com um apelo enfático, Écrasez l’infâme – esmagai [tudo] o [que for] infame. Num desses panfletos lemos o resumo do que ele entendia por infame: “Esmaguemos os fanáticos e patifes, suas hipócritas declamações, seus miseráveis sofismas, a história mentirosa, o amontoado de absurdos. Não permitamos que os possuidores de inteligência sejam dominados pelos que não a têm – e a geração futura nos deverá a razão e a liberdade” (p.247). Para Bauman: “La opinión de Tocqueville sobre los pensadores de la Ilustración era inequívoca: ‘Despreciaban al público casi con entusiasmo como a la ‘Deidad’. La opinión concuerda con los hechos, aunque es necesario hacer una salvedad. La ‘Deidad’ simboliza el clero y los ‘intelectuales jerárquicos’ de la Iglesia, y las burlas que le prodigaban les philosophes eran una expresión de la ‘rivalidad entre hermanos’” (1997, p.113). “’El pueblo – escribió Diderot – está constituido por los más necios y perversos de todos los hombres’. No discriminaba. En cierto modo, la falta de discriminación era la esencia misma del “pueblo”. Una masa indiferenciada y gris de hombres y mujeres apartados de toda situación social y territorial dadora de calidades, producto de dos siglos de desalojos, encierros y acción punitiva del estado. Para Diderot, “el pueblo” era simplemente una “multitud”. Para un artículo que escribió sobre ésta, le fue necesario un vocabulario especial: méchanceté, sottise, déraison, hébétée. D’Alembert añadió sus propias pinceladas espeluznantes: la multidud, escribió, es “ignorante y estúpida […] incapaz de acciones vigorosas y generosas”. Para Voltaire, “el pueblo” eran “les bêtes féroces, furieux, imbéciles, fous, aveugles”. “Siempre estará compuesto por brutos”. De hecho, están “entre el hombre y la bestia”. Para Holbach, las clases inferiores eran “cabezas de chorlito, inconstantes, impúdicas, impetuosas, sometidas a accesos de entusiasmo, instrumento de los alborotadores” (p.114).

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para legislar, organizar e regular, mais do que difundir o conhecimento116”. O intelectual pode ser visto como “mediador simbólico117”. As desconexões entre interesses diversos, inclusive, seriam determinantes nas sessões da Assembleia Constituinte, que se formaria em busca de um texto normativo para a nação francesa, que surgia da insurreição de 1789. Segundo Hobsbawm “a Revolução começou como uma tentativa aristocrática de recapturar o Estado118”. E completa: Esta tentativa foi mal calculada por duas razões: ela subestimou as intenções independentes do “Terceiro Estado” - a entidade fictícia destinada a representar todos os que não eram nobres nem membros do clero, mas de fato dominada pela classe média - e desprezou a profunda crise socioeconômica no meio da qual lançava suas exigências políticas119.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão aparece então como embrião do movimento normativo que brotava no seio nos insurgentes. “’ A fonte de toda a soberania’, dizia a Declaração, ‘reside essencialmente na nação’120”. “Mais especificamente, as exigências do burguês foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789”, sendo este documento “um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios121 nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária122”. Já havia afirmado Montesquieu que “a grande vantagem dos representantes é que são capazes de discutir os problemas”. Já “o povo não é de modo algum adequado para isso, o que constitui um dos grandes inconvenientes da democracia123”. E que “tendo o corpo legislativo a confiança do povo e sendo mais esclarecido que este, poderia fazê-lo superar as más impressões que lhe teriam passado e acalmar essas reações124”. Para Hobsbawm: “Os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis”, dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência de distinções sociais, ainda que “somente no terreno da utilidade comum”. A propriedade privada era um direito natural, sagrado, inalienável e inviolável. Os homens eram iguais perante a lei e as profissões estavam igualmente abertas ao talento; mas, se a corrida começasse sem handicaps, era igualmente entendido como fato consumado que os corredores não terminariam juntos. A declaração afirmava (como contrário à hierarquia nobre ou absolutismo) que “todos os cidadãos têm o direito de colaborar na elaboração das leis”; mas “pessoalmente ou através de seus representantes”. E a assembleia representativa que ela vislumbrava como o órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembleia de116

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BAUMAN, 1997, p.13. ORTIZ, 2012, p.139. HOBSBAWM, 2012, p.105. Idem, Ibidem. Idem, p.107. “O que fizeram os notáveis de 1787? Defenderam seus privilégios contra o trono. O que fizeram os notáveis de 1788? Defenderam seus privilégios contra a nação. É que, em vez de consultar notáveis em “privilégios”, seria preciso consultar notáveis em ‘luzes’” (SIEYÈS, 2001, p.31-32). HOBSBAMW, 2012, p.106. MONTESQUIEU, 2010, p.171. Idem, p.329.

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mocraticamente eleita, nem o regime nela implícito pretendia eliminar os reis. Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república democrática que poderia ter parecido uma expressão mais lógica de suas aspirações teóricas, embora alguns também advogassem esta causa. Mas no geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários125.

Nessa mesma ordem, no intuito de ratificarem a Constituição americana, em reuniões ocorridas na Filadélfia em 1787, Hamilton, Madison e Jay vaticinam que, ao tratar da câmara dos representantes, “o número dos seus membros é tão pequeno, que não é possível supô-la completamente informada dos interesses dos seus constituintes126”. Como esta objeção é evidentemente fundada na comparação do número dos representantes com a extensão do país e com o número dos seus habitantes e diversidade dos seus interesses, sem dar a mínima atenção às circunstâncias que hão de distinguir o Congresso dos outros corpos legislativos, a melhor resposta que é possível dar-lhe consiste na exposição resumida dessas diferenças. Que os representantes devem conhecer os interesses e circunstâncias dos seus constituintes, é um princípio tão importante como incontestável; mas, por mais incontestável e importante que seja, não é possível estendê-lo mais longe do que às circunstâncias e interesses que têm relação com a autoridade e funções dos ditos representantes127.

Completam, indicando que a finalidade de toda constituição “é, ou deve ser: primeiro, entregar as rédeas do governo a quem mais sabedoria tiver para discernir o bem público, e mais virtude para dele fazer o objeto dos seus trabalhos”; e “segundo, tomar as precauções mais eficazes para preservar de quebra a sua virtude durante o exercício de suas funções128”. Afirmam, todavia, que o caráter político do “governo republicano é que os funcionários públicos sejam eleitos pelo povo; e o meio mais eficaz para que não degenerem é limitar o exercício das suas funções a um período que afiance o efeito da sua responsabilidade129”; e que “sem que o governo, em geral, tenha com o povo comunidade de interesses, não pode haver liberdade”. Ainda mais: “é essencial que a parte do governo que vamos examinando esteja em imediata dependência do povo e que esteja com ele em simpatia perfeita130”. De volta à Europa, sem a inclusão do Terceiro Estado131 na formação de uma França renascida a partir de 1789, impossível seria afirmar que a Carta Política 125

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HOBSBAMW, 2012, p.106-107. HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p.345. Idem. HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p.349. Idem, Ibidem. Idem, p.324. “Tantas foram, e tão boas, as descrições do ápice da história intelectual do século XVIII, que talvez conviesse rumar noutra direção, tentando atingir a base do Iluminismo e mesmo penetrar seu submundo, lá onde ele possa ser examinado como ultimamente se tem feito com a Revolução – isto é, de baixo” (DARTON, 1987, p.13). “Con todo, la constitución formal se impuso porque, de acuerdo con las

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nascida do vulto revolucionário seria “a primeira constituição genuinamente democrática proclamada por um Estado moderno132”. Darton assinala que as reivindicações dos eleitores do Terceiro Estado “eram anotadas em cadernos (cahiers), compondo autênticos memoriais. Os deputados eleitos133 para a Assembleia empossada em Versalhes em maio de 1789 obrigavam-se solenemente a cumpri-los como programa político134”. “A ruptura revolucionária só se produziu quando o caminho da evolução pareceu fechado e, por decisão do Terceiro Estado, os États généraux se constituíram em Assembleia nacional para tomar em suas próprias mãos o destino da França135”, claramente no intuito de fazerem valer suas vontades, abandonando velhos hábitos. Além do mais, “os hábitos de um povo escravo são parte da sua servidão; os de um povo livre, parte da sua liberdade136”. Ao tratar do Terceiro Estado e a Constituinte, Sieyès aponta que: É necessário compreender, antes de tudo, qual é o objetivo ou o fim da Assembleia representativa de uma nação: não pode ser diferente do que a própria nação se proporia se pudesse se reunir e deliberar no mesmo lugar. O que é a vontade de uma nação? É o resultado das vontades individuais, como a nação é a reunião dos indivíduos. É impossível conceber uma associação legítima que não tenha como objeto a segurança, a liberdade comum, enfim, a coisa publica. Sem duvida, cada particular se propõe, além disso, fins particulares. As pessoas se dizem: ao abrigo da segurança comum, poderei me entregar tranquilamente a meus projetos pessoais, irei atrás da minha felicidade como quiser, certo de só encontrar como limites legais aqueles que a sociedade me prescreve pelo interesse comum em que tomo parte e com o qual meu interesse particular fez uma aliança tão útil137.

Para Barroso, “embora a regra fosse a votação por estado – o que asseguraria sempre a vitória da aliança nobreza/clero-, o terceiro estado rebelou-se contra esse critério e autoproclamou-se, inicialmente, Assembleia Nacional e, logo em seguida, Assembleia Constituinte138”. Na típica estratificação social feudal, baseada em ordens ou estamentos, o terceiro estado era composto pelos camponeses (pequenos proprietários, arrendatários, assalariados rurais), a burguesia (banqueiros, comerciantes, profissionais liberais e proprietários) e trabalhadores urbanos, conhecidos como sans cullotes (pequenos lojistas, artesãos e assalariados em geral).

O certo é que uma Assembleia Constituinte é, factualmente, um campo minado. As pelejas políticas marcam esse processo, seja na França do setecentos seja no

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convicciones de los apoyos sociales de la revolución, el bienestar social y la justicia dependían de una limitación del Estado en defensa de la libertad individual” (GRIMM, 2006, p.29). HOBSBAWM, 2012, p.121. “É essencial determinar o número de cidadãos que devem formar as assembleias; sem isso, poder-se-ia ignorar se foi o povo que falou ou só parte dele” (MONTESQUIEU, 2010, p.28). DARTON, 1987, p.241. GRIMM, 2006, p.56. MONTESQUIEU, 2010, p.328. SIEYÈS, 2001, p.69. BARROSO, 2009, p.26.

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Brasil do século XX. Os conflitos que envolvem o patrimônio cultural já se mostram presentes, expressos ou tácitos, desde 1789. Estejam aparentes, nas audiências ou reivindicações populares, ou camufladas atrás das portas das negociações fechadas, as contendas políticas acerca do patrimônio cultural poderão também ser notadas em 1987-1988?139 FONTE FRANCE. Assemblée nationale constituante (1789-1791). Assemblée nationale constituante ([Reprod.]) impr. par ordre du Sénat et de la Chambre des députés; sous la dir. de M. J. Mavidal,... et de M. E. Laurent, 1875-1889. ftp:// ftp.bnf.fr/004/N0049524_PDF_1_-1DM.pdf

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Essa é uma provocação do autor que desenvolve, até 2016, sua tese sobre a dinâmica política em torno do patrimônio cultural na última constituinte brasileira.

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